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Antropologia dos militares: reflexões sobre pesquisas de campo

RESENHAS

Bruno de Macedo Zorek

Centro Universitário Campos de Andrade -Brasil

CASTRO, Celso; LEIRNER, Piero (Org.). Antropologia dos militares: reflexões sobre pesquisas de campo. Rio de Janeiro: FGV, 2009. 242 p.

O livro organizado pelos antropólogos Celso Castro e Piero Leirner reúne um conjunto de artigos, de 11 autores diferentes, cujo tema central são as desventuras de suas pesquisas sobre militares. Cada um dos articulistas descreve as dificuldades que encontrou ao se propor investigar a "vida na caserna" e as estratégias adotadas para superá-las - em sua maior parte, bastante criativas, diga-se de passagem. A partir das experiências de campo - isto é, o momento em que a pesquisa em si era realizada, em que se coletavam os dados -, os autores realizam então a proposta fundamental da publicação: uma reflexão sobre a importância das condições em que o trabalho de campo fora realizado para a construção de seus estudos.

As dificuldades encontradas têm um fundo comum que pode ser descrito como uma espécie de desconfiança das forças armadas para com os acadêmicos, principalmente os das ciências humanas. A postura arredia dos militares foi interpretada como resultante de diferentes fatores. Há, entre as explicações, aquelas cujo argumento se baseia em uma perspectiva política, em referência às relativamente recentes experiências ditatoriais do Brasil e da Argentina e que implicariam em uma subentendida animosidade entre os acadêmicos, hipotéticos representantes da "esquerda", e os militares, supostos herdeiros de uma tradição "anticomunista". Sendo assim, a visita dos pesquisadores a quartéis seria, do ponto de vista militar, "perigosa", pois estaria direcionada para fins provavelmente "subversivos". Outra maneira de explicar tal desconfiança, a partir de uma argumentação antropológica, destacou que seria típico do ethos militar manter os assuntos da instituição afastados dos olhares "exteriores" por considerar inconveniente divulgar certas questões, entendidas, a princípio, como somente de interesse interno; ou, ainda, como uma forma de testar os pesquisadores, fosse para verificar se eles estariam de acordo com o "espírito militar", fosse para identificar um possível "inimigo" dos militares (ver também Castro, 2004). Todos os autores, em alguma medida, acabaram incorporando em suas reflexões ambas as perspectivas, ora tendendo mais para uma ou outra.

Por outro lado, nos casos em que os articulistas conseguiram superar as barreiras iniciais, suas pesquisas se desenvolveram com bastante liberdade, a ponto de causar surpresa aos próprios. O caso exemplar é o do pioneiro Celso Castro, que chegou a realizar exercícios de guerra junto com cadetes da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) e conseguiu abordar vários temas considerados "delicados" pelos militares. Contudo, faz-se necessário notar que, em todos os casos, houve a imposição de limites claros aos pesquisadores por parte das forças armadas.

Os dois principais pilares da organização das forças armadas, conforme os autores, são a hierarquia e a disciplina. Em função desses pilares, as instituições militares têm como uma das características fundamentais certa formalidade específica que permeia praticamente todas as relações dos militares entre si e com os "outros". Tal formalidade, por sua vez, quando se refere a autorizações de pedidos de pesquisa, deriva em um sistema burocratizado, quase kafkiano, que constitui o cerne dos obstáculos encontrados pelos pesquisadores. Qualquer autorização formal, que é, na maioria dos casos, necessária para se obter acesso à instituição, exige do interessado a ativação da burocracia militar através da apresentação de um documento oficial especificando a vinculação, os interesses e os procedimentos de sua pesquisa. Esse documento, se for encaminhado para o local correto (o que nem sempre é óbvio nem fácil de descobrir), passará pela cadeia hierárquica e, em qualquer ponto desta, poderá ocorrer alguma paralisação ou mesmo a negação do pedido. Caso o pesquisador conte com algum capital de relações pessoais, manifesto, por exemplo, em contatos com oficiais de alta patente, o processo pode ser atalhado significativamente. Caminhos que poderiam levar meses para se completar e sem a certeza do sucesso podem, com um telefonema para a pessoa certa, ser trilhados em poucos dias. Adriana Barreto de Souza, que encerra o livro com um artigo sobre sua pesquisa em arquivos militares, é um exemplo do último caso. Já Alexandre Colli de Souza, cujo trabalho foi sobre os rituais cotidianos dos militares, relata como o encaminhamento de seu pedido de autorização para a instância errada resultou em meses de espera. Nesse caso, em que o autor realizava o curso de mestrado, a demora para conseguir fazer o trabalho de campo deve ter sido exasperante, como ele sugere no texto.

O título do livro fala pela maioria dos trabalhos, no entanto, nem todas as pesquisas foram realizadas sob o signo da antropologia. Emília Takahashi, psicóloga de formação e doutora em educação, defendeu uma tese sobre a formação da identidade militar de homens e mulheres na Academia da Força Aérea (AFA). Um estudo, portanto, em que a psicologia social era a principal área de referência, ainda que seu método de pesquisa devesse muito aos antropólogos. No seu artigo no livro resenhado, Takahashi apresenta um dos capítulos de sua tese (Takahashi, 2000). Os trabalhos da já citada Adriana Barreto de Souza, sobre o papel do exército durante o Império e sobre Duque de Caxias, nitidamente se enquadram no campo da história (Souza, 1999, 2008). Entretanto, gostaria de explicitar que essas exceções do livro, ao invés de constituírem detalhes óbvios para uma crítica fácil, ao contrário, são pontos louváveis e indicam serem seus autores partidários de uma perspectiva na qual as fronteiras entre diversas ciências humanas seriam vistas como fluidas e passíveis de trocas constantes e frequentes, portanto, saberes livres de purismos. Acredito que uma perspectiva dessas é, no mínimo, saudável para os debates nas ciências humanas.

O livro revela ainda um visível esforço para tentar consolidar um campo de estudos relativamente pouco explorado no Brasil. É interessante notar que todos os articulistas formam uma rede entre si, onde os pontos nodais são Celso Castro e Piero Leirner. Boa parte dos demais são orientandos ou ex-orientandos de um dos dois organizadores, a maioria bastante jovem e em fase de formação (dos 11, três cursavam o doutorado quando da publicação, dois eram mestres e uma das autoras estava com o mestrado em andamento; os cinco outros já eram doutores). A relativa homogeneidade de posicionamentos é mais um indicador de que os estudos sobre militares ainda são bastante restritos e não há debate suficiente para criar pontos de vista, senão conflitantes, que pelo menos apresentem interpretações destoantes umas das outras. O único artigo que não se filia diretamente às opiniões dos organizadores é o de Máximo Badaró - um antropólogo argentino, com mestrado e doutorado na França. Badaró estudou a formação dos cadetes do exército de seu país natal e, talvez por conta da maior violência da ditadura argentina se comparada à brasileira ou talvez por haver uma ojeriza explícita do autor em relação ao exército argentino, suas questões têm um peso político muito mais manifesto do que a de seus colegas brasileiros. Além disso, em sua reflexão, o autor se mostra preocupado com questões teóricas importantes, como a problemática possibilidade de se criar empatia com os militares e aderir de alguma forma às suas opiniões, ou sobre como lidar com o diferente estatuto dos militares, enquanto objetos de estudo, por eles não se enquadrarem, por exemplo, na classificação de "grupo marginalizado", como seriam os objetos "tradicionais" da antropologia. Todavia, ainda que Badaró seja o ponto contrastante, ele se insere na mesma rede, tanto do ponto de vista "intelectual", pois há semelhanças entre suas propostas e as análises de Piero Leirner, principalmente, quanto no que diz respeito às filiações institucionais, o que pode ser indicado com o fato de que Leirner e Badaró coordenaram juntos um dos Grupos de Trabalho da última Reunión de Antropología del Mercosur (GT 35 Antropología del Estado) (RAM, 2009).

Por fim, vale destacar que a publicação tem o mérito de condensar em um único volume as principais referências sobre estudos antropológicos de militares para os leitores interessados. Portanto, para aqueles que começam a se aventurar nessa área, além de refletir sobre as dificuldades dos trabalhos de campo com as forças armadas e, sendo assim, de mostrar as principais questões que os militares constroem com/para os antropólogos, o livro traz um bom mapeamento inicial do état de l'art.

  • CASTRO, C. O espírito militar: um antropólogo na caserna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
  • RAM. Programa RAM 2009: VIII Reunión de Antropología del Mercosur: Diversidad y Poder en América Latina, 2009. Buenos Aires: UNSAM; IDAES, 2009.
  • SOUZA, A. B. de. O Exército na consolidação do Império: um estudo histórico sobre a política militar conservadora. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1999.
  • SOUZA, A. B. de. Duque de Caxias: o homem por trás do monumento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
  • TAKAHASHI, E. Homens e mulheres em campo: um estudo sobre a formação da identidade militar. Tese (Doutorado em Educação)-Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2002.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Nov 2010
  • Data do Fascículo
    Dez 2010
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