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Chimpanzés em juízo: pessoas, coisas e diferenças

Resumos

A partir da análise processos judiciais que colocam em questão a tradicional classificação dos animais como coisas nos sistemas jurídicos ocidentais, o artigo apresenta uma reflexão sobre a fabricação jurídica de pessoas e coisas, bem como sobre o papel que a ciência tem sido chamada a desempenhar nesse contexto. O primeiro processo é um pedido de habeas corpus em favor de duas chimpanzés. O segundo tem como escopo o reconhecimento jurídico de um chimpanzé como pessoa humana. Ao propor que a oposição jurídica fundamental entre pessoa e coisa tem como corolário a homogeneização da diferença, a análise sugere que o problema suscitado pelas demandas de reconhecimento de seres vivos não humanos como sujeitos de direitos está em definir - e, assim, trazer à existência - modos de diferir que se distinguem daqueles que o direito reconhece e normatiza

animais; coisas; direito; pessoas


By focusing on lawsuits in which the long-established categorization of animals as things is at stake, this paper aims to attain a better understanding of the legal fabrication of persons and things, and the role that science lately plays in this context. The first case is an application for habeas corpus on behalf of two female chimpanzees. The scope of the second one is the acknowledgement of a male chimpanzee as a (human) person. It is argued that one corollary of the legal opposition person/thing is the homogenization of difference. Therefore, the problem involved in the recognition of animals as subjects of rights seems to be how to conceptually fabricate - and thereby bring into existence - another difference, i.e., a difference that does not fit in the traditional modes of legal differentiation

animals; law; persons; things


ARTIGOS

Chimpanzés em juízo: pessoas, coisas e diferenças* * A elaboração deste trabalho foi iniciada durante período como Senior Visiting Fellow na London School of Economics and Political Science (maio-novembro de 2010) com bolsa de estágio pós-doutoral concedida pela Capes (Processo nº 5295/09-2). Uma primeira versão foi apresentada em seminário no BIOS Centre (Centre for the Study of Bioscience, Biomedicine, Biotechnology and Society), da LSE, em outubro de 2010.

Ciméa Barbato Bevilaqua

Universidade Federal do Paraná - Brasil

RESUMO

A partir da análise processos judiciais que colocam em questão a tradicional classificação dos animais como coisas nos sistemas jurídicos ocidentais, o artigo apresenta uma reflexão sobre a fabricação jurídica de pessoas e coisas, bem como sobre o papel que a ciência tem sido chamada a desempenhar nesse contexto. O primeiro processo é um pedido de habeas corpus em favor de duas chimpanzés. O segundo tem como escopo o reconhecimento jurídico de um chimpanzé como pessoa humana. Ao propor que a oposição jurídica fundamental entre pessoa e coisa tem como corolário a homogeneização da diferença, a análise sugere que o problema suscitado pelas demandas de reconhecimento de seres vivos não humanos como sujeitos de direitos está em definir - e, assim, trazer à existência - modos de diferir que se distinguem daqueles que o direito reconhece e normatiza.

Palavras-chave: animais, coisas, direito, pessoas.

ABSTRACT

By focusing on lawsuits in which the long-established categorization of animals as things is at stake, this paper aims to attain a better understanding of the legal fabrication of persons and things, and the role that science lately plays in this context. The first case is an application for habeas corpus on behalf of two female chimpanzees. The scope of the second one is the acknowledgement of a male chimpanzee as a (human) person. It is argued that one corollary of the legal opposition person/thing is the homogenization of difference. Therefore, the problem involved in the recognition of animals as subjects of rights seems to be how to conceptually fabricate - and thereby bring into existence - another difference, i.e., a difference that does not fit in the traditional modes of legal differentiation.

Keywords: animals, law, persons, things.

Disposições relativas ao bem-estar de animais têm sido incorporadas aos sistemas jurídicos ocidentais ao menos desde as últimas décadas do século XIX. Concepções renovadas a respeito da posição dos seres humanos diante de outros seres vivos conduziram gradualmente, a partir de então, à consideração jurídica das espécies não humanas em si mesmas, como elementos da biodiversidade cuja proteção não decorre de modo direto ou exclusivo de sua importância econômica ou científica para os seres humanos.1 1 Para um panorama da legislação ambiental brasileira ao longo do século XX, ver Benjamin (2005). Esse deslocamento do foco normativo, contudo, é apontado como insuficiente por algumas vertentes do ativismo em defesa dos animais que propugnam o reconhecimento de seres vivos não humanos não apenas como objeto de proteção, mas como sujeitos de direitos tidos até recentemente como especificamente humanos.2 2 Isso não significa, evidentemente, que o próprio conceito de ser humano tenha permanecido estável nos ordenamentos jurídicos, tampouco que os mesmos direitos tenham sido (ou sejam) assegurados a todos os seres humanos, em termos formais e/ou efetivos.

Ao desafiar a longa tradição doutrinária segundo a qual os animais só têm existência no universo do direito sob a condição de coisa, essas demandas também incidem sobre o outro polo do dualismo básico que sustenta os ordenamentos jurídicos ocidentais, desestabilizando, ao menos potencialmente, o estatuto jurídico da pessoa, humana ou não humana. De maneira análoga ao que ocorre, por exemplo, no âmbito dos debates acerca das implicações recíprocas entre direito e biotecnologia (ver Pottage, 2007), o que conta como pessoa ou coisa, quando se (re)considera o estatuto jurídico dos animais, deixa de ser uma questão não problemática e imune a inflexões oriundas de situações particulares.

Ao analisar processos judiciais que tematizam a categorização de seres vivos não humanos no universo do direito, não pretendo ingressar na arena de debates sobre os direitos dos animais em sentido estrito, mas antes refletir sobre o papel das técnicas e instituições jurídicas na constituição das formas de existência que o direito reconhece e normatiza. Com esse propósito, tomo os processos judiciais como documentos etnográficos de práticas significativas que efetivamente produzem distinções entre pessoas e coisas, entes humanos e não humanos, bem como as ambiguidades entre essas categorias e formas de existência. Essa abordagem comporta, por assim dizer, uma vantagem estratégica. O debate político-filosófico sobre direitos dos animais3 3 Conforme assinala Jonathan Benthall (2007), a defesa dos direitos dos animais é um dos poucos movimentos nascidos no século XX cuja inspiração nasce do trabalho de fi lósofos profi ssionais. A principal referência nesse campo é o filósofo Peter Singer (1975), defensor da "libertação animal", expressão cunhada para denunciar o "especismo" e a "tirania de animais humanos sobre animais não humanos". Singer é um dos mentores do Projeto Grandes Primatas (Great Apes Project), cuja pauta inclui a extensão de direitos humanos a outros primatas com base nas similaridades genéticas. Outras fi guras preeminentes nesse campo são o filósofo Tom Regan (2004), que procura fundamentar eticamente os direitos dos animais, e o advogado Gary Francioni (2008), formulador da "teoria abolicionista" contrária à consideração dos animais como propriedade. é, por definição, interminável. Da mesma forma, as tensões entre regimes jurídicos tradicionais e recentes aplicáveis a seres não humanos, em diferentes contextos e ramos do direito, estão longe de se estabilizar. Processos judiciais, ao contrário, necessariamente chegam a um fim.

Conforme observa Latour (2002) ao contrastar direito e ciência, uma das características distintivas dos enunciados produzidos pelo primeiro é precisamente seu caráter terminativo e irreversível, uma vez que tenham sido esgotadas as possibilidades de recurso previstas pelo sistema judiciário em questão. Não é facultado ao direito deixar de pronunciar uma palavra final, um veredito, quaisquer que sejam seu conteúdo específico e possíveis implicações. Ao mesmo tempo, quando decisões oriundas de processos particulares orientam o desfecho de casos subsequentes, a jurisprudência gradativamente consolidada contribui de forma ativa para criar ou reconfigurar o próprio mundo ao qual suas disposições se referem. Esse pensamento jurídico "técnico" contido nas decisões judiciais, indissociável dos problemas sobre os quais se debruça (Thomas, 1995, p. 39), deixa-se apreender no meticuloso encadeamento de documentos de diferentes tipos e de argumentos provenientes de fontes diversas que, em conjunto, constituem os autos de demandas judiciais concretas.

Com esse ponto de partida, o foco deste artigo são dois processos recentes envolvendo grandes primatas, cujo teor contrasta vivamente com a classificação jurídica dos animais como coisas. O primeiro processo é um pedido de habeas corpus apresentado ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) brasileiro em favor de duas chimpanzés. O segundo tem como escopo o reconhecimento jurídico de um chimpanzé como pessoa. Originado na Áustria, onde percorreu todas as instâncias do sistema judiciário, esse caso culminou com um recurso ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) apreciado no início de 2010. A descrição desses dois casos4 4 A descrição do primeiro caso se baseia principalmente nos acórdãos disponíveis nos sítios eletrônicos do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (São Paulo) e do Superior Tribunal de Justiça. Não foi possível obter acesso aos registros oficiais do segundo caso no sistema judiciário austríaco e no Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Desse modo, a principal fonte da descrição que ofereço é um artigo escrito em coautoria por dois de seus protagonistas: Martin Balluch, ativo militante em favor dos direitos dos animais, cujo envolvimento no caso será esclarecido adiante; e Eberhart Theuer, um dos advogados responsáveis pelo processo (Balluch; Theuer, 2007). Os desdobramentos mais recentes do caso foram discutidos em contatos por correio eletrônico com Eberhart Theuer e Paula Stibbe, a quem agradeço por compartilharem informações sobre as estratégias processuais com uma completa desconhecida. é seguida por algumas reflexões acerca da fabricação jurídica de pessoas e coisas (e sobre o papel que a ciência tem sido chamada a desempenhar nesses procedimentos), inspiradas também pelo pano de fundo difuso oferecido pela leitura de outros processos envolvendo animais de diversas espécies e pertinentes a diferentes ramos do direito.

Direitos humanos e não humanos

Caso 1: chimpanzés têm direito à liberdade?

Duas filhotes de chimpanzé nascidas em um zoológico particular em Fortaleza teriam sido doadas a um empresário paulista após a interdição daquele estabelecimento e, numa jornada de mais de três mil quilômetros, levadas para o município de Ubatuba, no litoral do estado de São Paulo. Fiscais do Ibama5 5 O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) é a autarquia federal responsável pela execução da Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA) estabelecida pela lei nº 6.938/81 (Brasil, 1981) e normas posteriores. Entre outras atribuições, cabe ao Ibama o controle e a fiscalização do uso de recursos naturais no território brasileiro, incluindo a água, o solo, a flora e a fauna. identificaram uma série de irregularidades na documentação de procedência e registro das chimpanzés, assim como nas instalações onde passaram a viver. Mesmo depois da mudança para um novo local, mais tarde homologado pelo Ibama - o Santuário Caminhos da Evolução, construído pelo empresário no município de Ibiúna, a 63 quilômetros de São Paulo -, o órgão ambiental apontou a persistência de irregularidades.

Com o intuito de evitar sua apreensão iminente, o empresário impetrou um mandado de segurança em maio de 2005 visando assegurar a "guarda, posse e propriedade" de Lili, a mais velha das duas chimpanzés, então com um ano. Três outros processos foram iniciados por ele posteriormente, agora incluindo a segunda filhote, Megh, nascida em outubro de 2005.6 6 Não há nenhuma informação nos acórdãos consultados sobre como e quando Megh foi entregue aos cuidados do empresário. Embora se refiram à mesma disputa e derivem uns dos outros, os autos passam a tramitar de modo relativamente autônomo em diferentes varas cíveis da justiça federal de São Paulo: os fatos estabelecidos em cada processo não são uniformes, assim como os argumentos apresentados pelas partes e as normas invocadas para sustentá-los. Seus desdobramentos dão origem a mais de uma dezena de recursos apresentados pelo empresário e pelo Ibama ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região.7 7 No ordenamento jurídico brasileiro, questões ambientais pertencem à esfera federal, compreendendo três instâncias: Varas Federais de primeiro grau; cinco Tribunais Regionais Federais, cuja jurisdição abrange estados vizinhos; e o Superior Tribunal de Justiça, sediado em Brasília.

Assim como os fatos não permanecem estáveis ao longo da disputa, também as decisões dos diferentes magistrados são contextuais: embora guardem estrita coerência com os documentos contidos em cada processo específico, suscitam consequências práticas discrepantes. Ao examinar distintos recursos referentes ao caso, a mesma desembargadora do TRF pôde determinar (sem contradição jurídica) que as chimpanzés deveriam permanecer sob a posse do empresário8 8 Agravo de instrumento nº 237001, apresentado pelo Ibama após decisão da 13ª Vara da Justiça Federal de São Paulo favorável ao empresário (Processo nº 2005.03.00.040348-5). Reproduzo trechos da decisão da desembargadora do TRF, publicada em 07/10/2005: "As razões trazidas pela agravante não me convencem do desacerto da decisão agravada. [...] Não resta claro qual teria sido o documento faltante à regularidade da transação. [...] Nova transferência só acarretaria prejuízo a todos os envolvidos, sendo certo que o filhote de chimpanzé está bem acomodado e assistido por profissionais da área." e, pouco tempo mais tarde, que, "de acordo com os fatos trazidos aos autos", a situação era inteiramente irregular à luz da legislação ambiental.9 9 Agravo de instrumento do Ibama referente a medida cautelar obtida pelo empresário (Processo nº 2007.61.00.018152-0, 16ª Vara Cível da Justiça Federal de São Paulo). A decisão da desembargadora do TRF3, de 06/11/2007, menciona explicitamente a lei nº 5.197/67 - proteção da fauna (Brasil, 1967) - e a lei nº 9.605/98 - sanções derivadas de condutas lesivas ao meio ambiente (Brasil, 1998).

Uma profunda inflexão se produz no caso. Nas etapas anteriores, as chimpanzés figuravam inequivocamente como objeto de uma disputa judicial que parecia comportar tão somente dois desfechos: ou bem elas permaneceriam com o empresário ou seriam entregues ao Ibama, a quem caberia determinar seu destino posterior. A manifestação da desembargadora faz emergir uma terceira alternativa que, como se verá adiante, incide diretamente sobre o próprio estatuto das chimpanzés, até então indisputado, tanto em termos jurídicos (como coisas) quanto no plano ontológico (como seres não humanos). Na decisão publicada em 6 de novembro de 2007, a desembargadora afirma:

In casu

, entendo devam ser os chimpanzés "MEGH e LILI"

reintroduzidos na natureza

, mormente pelo fato de que os animais mantidos em cativeiro adquirem comportamento completamente fora de seus padrões naturais, servindo, na maioria das vezes, de mero adorno para o desfrute/deleite humano. [...] [É] certo que quanto mais cedo os filhotes forem reintroduzidos em seu habitat natural maior é a chance de adaptação e sobrevivência. (grifo no original).

Com o propósito de evitar que se consumasse uma decisão cujo efeito, tanto para o empresário como para o órgão ambiental, seria a morte das chimpanzés, um pedido de habeas corpus em favor de Lili e Megh foi impetrado pelas advogadas do empresário junto ao Superior Tribunal de Justiça.10 10 Informações sobre o processo podem ser consultadas no site do STJ, em: http://www.stj.jus.br/webstj/Processo/Justica/detalhe.asp?numreg=200702936461&pv=010000000000&tp=51. Instituto reconhecido pelo sistema jurídico brasileiro desde a independência do país, o habeas corpus é garantido pela Constituição como parte dos "direitos e garantias fundamentais" enumerados no artigo 5º, que dispõe:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

LXVIII - conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder.

Por se tratar de direito fundamental, a apresentação do pedido de habeas corpus prescinde das formalidades processuais: a iniciativa pode partir de qualquer cidadão, aceitando-se inclusive que o pedido seja manuscrito. Pelas próprias circunstâncias que ensejam a demanda de habeas corpus, tampouco é necessário que o proponente tenha sido formalmente designado pelo beneficiário do pedido como seu procurador. Não se coloca em discussão, portanto, a legitimidade do autor como parte na ação,11 11 Por legitimidade das partes entende-se "que o autor seja aquele a quem a lei assegura o direito de invocar a tutela jurisdicional e o réu, aquele contra o qual pode o autor pretender algo" (Leite, 2003). ponto crucial em todas as etapas do caso a ser descrito em seguida. Assim, a questão jurídica suscitada pela demanda em favor das chimpanzés Lili e Megh diz respeito, fundamentalmente, à admissibilidade do habeas corpus para seres não humanos. Em outras palavras, trata-se de determinar quem são todos os "iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza".

Caso 2: pode um chimpanzé ser pessoa? 12 12 Conforme mencionei acima, a descrição deste caso se baseia no relato de dois de seus protagonistas (Balluch; Theuer, 2007). Com o intuito de preservar o fluxo da leitura, reservo o uso de aspas às passagens particularmente relevantes para as reflexões aqui propostas.

Em abril de 1982, um lote de 12 filhotes de chimpanzé procedentesde Serra Leoa, na África Ocidental, chegou ao Aeroporto Internacional de Schwechat (Viena, Áustria). Dois deles, com cerca de dez meses, destinavam-se a um laboratório de pesquisa mantido pela empresa Immuno para experiências na área médica. Entretanto, uma vez que a Áustria havia formalizado no dia anterior sua adesão à Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Fauna e da Flora Silvestres Ameaçadas de Extinção (acordo CITES, na sigla em inglês), a encomenda carecia da documentação necessária para o desembarque no país. Os animais foram confiscados pelas autoridades aduaneiras e, em sua maioria, encaminhados ao zoológico municipal de Viena. Nenhum deles sobreviveu. Os dois filhotes pertencentes à empresa Immuno tiveram melhor sorte: entregues a um abrigo particular, foram levados por um voluntário da entidade para sua própria casa, onde cresceram em companhia das crianças da família. Receberam os nomes de Hiasl e Rosi.

Cerca de um ano mais tarde, uma decisão judicial de primeira instância considerou que a empresa Immuno, tendo transgredido o acordo CITES, não poderia ser considerada a legítima proprietária dos chimpanzés inicialmente destinados a seu laboratório. O primeiro recurso apresentado pela companhia não foi acatado. Novo recurso foi dirigido à Suprema Corte austríaca,13 13 A Suprema Corte (Oberster Gerichtshof) é a instância final do sistema judiciário austríaco para questões penais e de direito privado. que julgou favoravelmente à empresa. Quando seus representantes tentaram recuperar os chimpanzés, porém, foram impedidos por militantes de movimentos em defesa dos animais. A empresa recorreu novamente à justiça. Embora também nesse caso a Suprema Corte tenha decido em seu favor, o abrigo mais uma vez se recusou a entregar os chimpanzés. Nova ação judicial teve como desfecho, no início de 1988, a reafirmação dos direitos de propriedade da companhia Immuno.

Independentemente do caso, o parlamento austríaco aprovou no início de 1989 uma emenda ao artigo 285 do código civil do país, segundo o qual qualquer ente que não seja pessoa tem o estatuto jurídico de coisa. A esse dispositivo foi acrescentado o artigo 285a, que declara: "animais não são coisas". Com base nesse novo artigo, o abrigo vienense recorreu à Suprema Corte argumentando que, não sendo coisas, os animais possuem um valor intrínseco que se sobrepõe ao valor que possam ter como propriedade de terceiros. Embora o recurso não tenha sido acatado pelo tribunal, Hiasl e Rosi permaneceram sob os cuidados da entidade. Em 1999, a empresa Immuno foi adquirida por outra companhia, que decidiu interromper as experiências com chimpanzés. Três anos mais tarde, Hiasl e Rosi, já então próximos de seu vigésimo aniversário, foram oficialmente doados ao abrigo.

O fim da disputa judicial, entretanto, não colocou um ponto final na saga dos dois chimpanzés. Em 2006, o abrigo em que residiam desde fi lhotes pas-sou a enfrentar graves dificuldades financeiras. Se a falência fosse decretada judicialmente, seus responsáveis anteviam que a liquidação das dívidas seria providenciada pelos administradores da massa falida por meio da alienação dos bens da entidade - entre eles Hiasl e Rosi, cuja venda para um zoológico, circo ou laboratório de pesquisas no exterior poderia render uma soma razoável.

Nessas circunstâncias, uma doação em dinheiro foi feita por terceiros ao presidente da associação vienense de defesa dos direitos dos animais Verein Gegen Tierfabriken (VGT),14 14 O presidente da VGT é Martin Balluch, doutor em física e fílosofi a e ex-professor universitário. Tendo estreado na militância pelos direitos dos animais em meados da década de 1980, passou a se dedicar integralmente ao ativismo no final da década de 1990. Em 2008, isto é, paralelamente aos desdobramentosdo caso aqui descrito, Balluch foi preso na Áustria, juntamente com outros militantes, numa controvertida operação baseada em lei de combate ao crime organizado. Os desdobramentos judiciais do episódio ainda estão em andamento. Informações biográficas sobre Balluch podem ser encontradas em: http://en.wikipedia.org/wiki/Martin_Balluch. Para um depoimento divulgado por ele durante a prisão, ver: http://www.indymedia.org.uk/en/2008/06/401184.html. condicionada à nomeação de um tutor para Hiasl, cobeneficiário do montante doado. Na condição de representante legal do chimpanzé, o tutor poderia receber a parcela a ele destinada. Ambos poderiam então decidir juntos em que gastar o dinheiro (Balluch; Theuer, 2007, p. 337).

O contrato de doação foi concebido de forma a possibilitar que o presidente da VGT propusesse, como parte legítima, uma ação judicial pleiteando a nomeação de um tutor para Hiasl. A petição protocolada em fevereiro de 2007 no tribunal distrital de Mödling (a 14 km de Viena) argumentava que, de acordo com o direito austríaco, chimpanzés, e Hiasl em particular, devem ser considerados como pessoas. Declarações de dois juristas, um antropólogo e uma bióloga foram anexadas ao pedido.

A primeira parte do código civil da Áustria (Allgemeines Bürgerliches Gesetzbuch - ABGB)15 15 A íntegra do ABGB está disponível em: http://www.jusline.at/Allgemeines_Buergerliches_Gesetzbuch_(ABGB)_Langversion.html. dispõe sobre os direitos das pessoas (Personenrechte). O artigo 16 estabelece que todos os seres humanos são pessoas:

§ 16: Todo ser humano [

Mensch

] nasce com direitos à luz da Razão e, assim, deve ser considerado como uma pessoa [

Person

]. A escravidão e a servidão, e o exercício dos poderes correspondentes, não são permitidos.

16 16 No original: "§ 16: Jeder Mensch hat angeborne, schon durch die Vernunft einleuchtende Rechte, und ist daher als eine Person zu betrachten. Sclaverey oder Leibeigenschaft, und die Ausübung einer darauf sich beziehenden Macht, wird in diesen Ländern nicht gestattet."

Quando o código afirma que todo ser humano (Mensch) deve ser considerado como uma pessoa (als eine Person), estabelece simultaneamente uma diferença entre pessoa e ser humano: a primeira é uma categoria jurídica que, por previsão explícita, inclui todos os seres nascidos humanos. A despeito da clara distinção entre ser humano (Mensch) e pessoa (Person), a lei não define diretamente o signifi cado de Mensch. Essa condição é implicitamente concebida como um fato natural apreendido pelo sistema jurídico, mas não constituído nem modificado pela codificação civil. Já o signifi cado de Person é constituído pelo e ao longo do código em contraste com a categoria Sache (coisa). Os artigos 285 e 286 estabelecem:

§ 285: Tudo o que difere de pessoa [Person], e se destina ao uso de seres humanos [Menschen], deve ser qualificado juridicamente como coisa [Sache].

§ 286: As coisas [Sachen] existentes neste território são propriedade do Estado ou propriedade privada. Estas pertencem a pessoas individuais ou morais, pequenos negócios ou comunidades inteiras.17 17 Respectivamente: "§ 285: Alles, was von der Person unterschieden ist, und zum Gebrauche der Menschen dient, wird im rechtlichen Sinne eine Sache genannt"; e "§ 286: Die Sachen in dem Staatsgebiethe sind entweder ein Staats- oder ein Privat-Gut. Das Letztere gehört einzelnen oder moralischen Personen, kleineren Gesellschaften, oder ganzen Gemeinden."

As coisas são constituídas, desse modo, por dois atributos relacionais, o primeiro estritamente negativo (coisas são tudo aquilo que não é pessoa), o segundo positivo: coisas são possuídas e utilizadas por pessoas. Elas existem apenas, e necessariamente, sob a condição de bens, públicos ou privados. Inversamente, e por implicação, pessoas não podem ser coisas e, portanto, não podem ser possuídas como propriedade.

Nas primeiras etapas do caso envolvendo os chimpanzés trazidos de Serra Leoa, pessoa e coisa são categorias não problemáticas. A disputa opõe a empresa Immuno (cujo estatuto de pessoa é reconhecido por sua própria admissão como parte em uma demanda judicial) e agências governamentais austríacas acerca dos direitos da primeira sobre filhotes trazidos ao país sem a documentação pertinente. O estatuto dos chimpanzés como coisas - simultaneamente "não humanos" e "não pessoas" - não é objeto da disputa, mas sua própria premissa.

A modificação do estatuto jurídico dos animais no código civil torna menos pacífica essa classificação, ao estabelecer:

285a: Animais [

Tiere

] não são coisas [

Sachen

]; eles são protegidos por leis especiais. Normas jurídicas aplicáveis a coisas se aplicam a animais somente quando não existirem outras normas.

18 18 No original: "§ 285a: Tiere sind keine Sachen; sie werden durch besondere Gesetze geschützt. Die für Sachen geltenden Vorschriften sind auf Tiere nur insoweit anzuwenden, als keine abweichenden Regelungen bestehen."

Enquanto a primeira parte do novo artigo distingue (substancialmente) animais e coisas, assegurando àqueles um regime protetivo específico, a segunda os reintroduz implicitamente no conjunto institucional das coisas passíveis de apropriação como bens: sempre que não houver disposição em contrário, as provisões relativas às coisas continuam aplicáveis aos animais.

Da mesma forma que não se afigurou necessário ao legislador definir Mensch, o termo Tiere é empregado ao longo do código como autoevidente e não problemático. De fato, uma vez que até a incorporação do artigo 285a essas duas categorias constituíam subconjuntos de cada um dos polos da oposição fundamental entre pessoas e coisas, havia pouco espaço para ambiguidades. No entanto, quando o código estabelece que os animais não mais pertencem ao conjunto jurídico das coisas, os contornos da distinção entre Tiere e Mensch se tornam menos distintos. Consequentemente, também deixa de ser tão claro quem são ou podem ser as pessoas (jurídicas) não humanas. Conforme se verá adiante mais detalhadamente, torna-se possível argumentar que o chimpanzé Hiasl "deve ser considerado uma pessoa de acordo com o direito austríaco" (Balluch, Theuer, 2007, p. 337, tradução minha).

Biologia e direito: o que significa ser um chimpanzé?

O pedido de habeas corpus para Lili e Megh e a demanda de personalidade jurídica para Hiasl são exemplos de uma política adotada internacionalmente por algumas vertentes do ativismo em favor dos direitos dos animais nos últimos anos: propor ações judiciais em benefício de determinados indivíduos não humanos.19 19 Há no sistema judiciário brasileiro pelo menos um precedente: o pedido de habeas corpus impetrado em 2005 na 9ª Vara Criminal de Salvador (HC nº 833085-3/2005) em benefício da chimpanzé Suíça, com o objetivo de assegurar sua transferência do zoológico municipal da capital baiana para o Santuário dos Grandes Primatas do GAP, em Sorocaba (SP). O principal responsável pela iniciativa foi Heron Santana, promotor de justiça e professor de direito da Universidade Federal da Bahia. A petição argumenta em favor da "extensão dos direitos humanos aos grandes primatas", por compartilharem "99,4% da nossa carga genética". A morte da chimpanzé conduziu à extinção do processo antes que houvesse uma decisão (Habeas corpus..., 2005). Em dezembro de 2009, outro pedido de habeas corpus foi impetrado na 5ª Vara Criminal de Niterói em favor do chimpanzé Jimmy. O indeferimento do pedido, cujo objetivo também era a transferência do animal para as instalações do GAP em Sorocaba, suscitou recurso junto ao TJRJ, ainda aguardando decisão (Processo nº 0002637-70.2010.8.19.0000). A íntegra da petição está disponível em: http://www.portaldomeioambiente.org.br/index.php?option=com_rubberdoc&view&id=58&format=raw. Uma vez que um processo obrigatoriamente conduz a uma decisão, o objetivo é provocar o sistema judiciário a produzir precedentes que conduzam, paulatinamente, ao reconhecimento de seres vivos não humanos como sujeitos de direitos.

Afirmar que essas ações judiciais integram uma política de reconhecimento de direitos convida a refletir sobre o próprio termo reconhecimento, que sugere a existência de algo exterior ao universo jurídico a ser (ou não) percebido e admitido pelo direito. É esse o sentido preponderante nos processos aqui descritos, nos quais, como se verá mais detalhadamente, a defesa da extensão da titularidade de direitos tipicamente humanos a seres não humanos está ancorada em grande medida na constituição genética de uns e outros. Mas o reconhecimento também pode ser concebido, como propõe Tim Murphy (2004), como uma tecnologia jurídica de produção de distinções. Nessa perspectiva é possível sugerir que o locus standi (a legitimidade de determinado sujeito como parte numa ação), as provas processuais, os argumentos, as analogias e os precedentes (isto é, que decisões contam como precedentes e/ou o seu peso relativo) são, fundamentalmente, questões de reconhecimento jurídico (Murphy, 2004, p. 131-132).

Um segundo aspecto requer atenção: nesses processos, as instituições judiciárias surgem até certo ponto como pacientes da agência militante, uma vez que não podem se furtar a receber petições formalmente adequadas, nem deixar de inseri-las no fluxo determinado pelas normas processuais. Entretanto, ao não se confundir com passividade, a condição de paciente (aquele que voluntariamente se submete à ação de outrem) é transitiva e, desse modo, necessariamente implica alternância. É esse o ponto que Michael Carrithers (2005, p. 578) pretende destacar quando sugere que a ação social pode ser melhor caracterizada como "agência-com-paciência" (agency-cum-patience): a cada momento, a iniciativa pertence a um ou outro dos que interagem.

Cumprindo a obrigação de acolher (formalmente) as demandas em favor de animais, juízes e tribunais, por assim dizer, "deixam-se agir". Não obstante, justamente porque lhes cabe o processamento da demanda - a condução do processo, pautada simultaneamente por normas preexistentes e por técnicas de reconhecimento, no sentido proposto por Murphy (2004) -, cada passo seu condiciona (restringindo ou ampliando) as alternativas de ação dos demandantes. Da mesma forma, a palavra final do juiz não somente encerra a discussão daquela demanda específica, mas também incide sobre o ajuizamento de futuras ações.

Ao destacar o caráter mutuamente generativo das estratégias militantes e daquilo que o direito pronuncia sobre si mesmo e sobre o estatuto dos animais no contexto de processos concretos, chamo a atenção do leitor para um ponto crucial. A estratégia de provocar o sistema judiciário a respeito dos direitos dos animais coloca em evidência algo que, embora bem sabido por demandantes e juízes, emerge nesses processos como uma surpresa: a ambiguidade das formas de existência definidas pela oposição jurídica pessoa/coisa. Quando se torna necessário enunciar de forma inequívoca que propriedades determinam o pertencimento de um ente a um ou outro polo, e se tal condição é exclusiva ou contextual, torna-se impossível ignorar que as pressuposições sobre as quais repousam os sistemas jurídicos ocidentais (a despeito das diferenças entre a codificação civil e a common law) só são plenamente efi cazes quando operam de modo silencioso.

Precisamente porque algumas das categorias jurídicas mais básicas podiam ser consideradas até recentemente tão óbvias que dispensavam especificação, os advogados responsáveis pelos casos apresentados acima se encontravam relativamente livres para explorar um amplo leque de argumentos, nem sempre mutuamente coerentes, para sustentar demandas em relação às quais nem a lei nem a jurisprudência ofereciam aos tribunais uma orientação segura.

As diversas alegações enumeradas pelas advogadas responsáveis pelo pedido de habeas corpus em favor das chimpanzés Lili e Megh não constituem o desenvolvimento lógico de um argumento unitário, mas antes a justaposição de razões incompatíveis. O que as reúne não é a coerência, mas, possivelmente, sua potencial eficácia.

Primeiramente as demandantes objetam contra a qualificação das chimpanzés como animais da "fauna silvestre", contida na decisão da desembargadora do Tribunal Regional Federal de São Paulo, e procuram apontar as consequências negativas de uma ordem judicial baseada em premissas equivocadas.

A legislação brasileira define como silvestres "os animais de quaisquer espécies, em qualquer fase do seu desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro" (Brasil, 1967, art. 1º).20 20 Note-se que a definição legal de fauna silvestre poderia se aplicar também aos animais humanos, que "vivem naturalmente fora do cativeiro". O problema de determinar o que constitui uma forma natural de existência é reformulado pelas advogadas em termos de uma oposição entre o mundo humano e a natureza, esta caracterizada como autônoma em relação àquele. Assim se torna possível sustentar que animais silvestres são aqueles "que vivem junto à natureza e dos meios que esta lhes faculta, pelo que independem do homem". Esse passo também permite passar da definição jurídica de fauna silvestre, de caráter geral, para o modo de vida particular de Lili e Megh, caracterizado pela absoluta dependência de cuidados humanos. Não se argumenta que as duas chimpanzés são humanas, mas que sua existência é indissociável do mundo humano.

O argumento também pretende justificar o emprego do habeas corpus - remédio jurídico por excelência para proteger a liberdade de locomoção - para questionar uma decisão judicial destinada justamente a libertar Lili e Megh de seu longo cativeiro. Sua transferência forçada para um ambiente ao qual não pertencem é apontada como abusiva, e é isso o que permite demandar uma medida judicial de proteção da liberdade para garantir que as chimpanzés permaneçam confinadas em instalações particulares e possuídas como propriedade privada.

O primeiro movimento singulariza: se chimpanzés em geral podem ser legalmente classificados como pertencentes à fauna silvestre, essa qualificação é inteiramente inadequada quando se consideram esses dois indivíduos específicos. O segundo movimento, ao contrário, generaliza, visando retirar consequências jurídicas de condições preexistentes ao próprio direito. A petição sustenta: "[...] a vida dos animais, mormente dos Chimpanzés, que possuem 99% do DNA Humano, está acima das leis, requerendo que seja aplicada a equidade". Novamente, não se argumenta que chimpanzés são humanos (nem mesmo Lili e Megh, cujas vidas são indissociáveis da socialidade humana), mas que a estreita proximidade entre as duas espécies demanda um tratamento jurídico compatível com sua similitude biológica. Ademais, se o direito (humano) inalienável à vida antecede o próprio sistema jurídico, uma vida "99% humana" não pode ser excluída desse direito.

A partir desse ponto, verifica-se uma inflexão. Em contraste com as afirmações que pretendem enfatizar a condição quase humana de Lili e Megh, tanto em termos relacionais como substantivos, o próximo argumento distancia as duas chimpanzés do mundo humano ao invocar normas constitucionais referentes à proteção da fauna - não como um direito assegurado a seres não humanos, mas como um dever imposto àqueles que, por definição, não pertencem a esse domínio. Finalmente, após deslocar as chimpanzés do estatuto de sujeitos (quase) humanos para a condição de seres vivos juridicamente protegidos, as demandantes chegam à extremidade oposta desse gradiente, argumentando que Lili e Megh são propriedade legítima do empresário que as mantém desde filhotes em "excelentes condições de alojamento, sanidade e segurança". As chimpanzés são assim reintroduzidas no mundo humano, porém agora na condição de bens sobre os quais se exercem direitos de propriedade assegurados pela legislação.

A demanda de personalidade jurídica para o chimpanzé Hiasl tem como premissa a alegada indefinição da categoria "pessoa" no código civil austríaco. Os demandantes não se limitam a argumentar, no entanto, que grandes primatas poderiam ser legalmente considerados como pessoas em circunstâncias específicas, tal como outros entes não humanos tão díspares como clubes esportivos, fundos de investimento ou agências governamentais. Sua reivindicação é que chimpanzés (e este em particular) possuem as qualidades essenciais que constituem e distinguem o subconjunto humano dos entes abrangidos pela categoria jurídica de "pessoa".

O debate jurídico é situado, desde o início, no domínio da ciência. Sucessivas operações retóricas intensificam o tom imperativo de um arrazoado que visa tornar indisputável a afirmação de que chimpanzés são real e essencialmente humanos, cabendo ao direito tão somente reconhecer uma verdade cientifi camente estabelecida.

O primeiro passo é afirmar que o termo ser humano (Mensch), no artigo 16 do código civil (ABGB), "has to be interpreted biologically".21 21 " Tem de ser interpretado biologicamente" (Balluch, Theuer, 2007, p. 337, tradução minha, grifo meu). Se no momento da elaboração da lei, no início do século XIX, a distinção entre criaturas humanas e não humanas podia ser considerada não problemática, o desenvolvimento da ciência teria conduzido à identificação de diversas espécies ou subespécies humanas agora extintas. Considerando os conhecimentos atuais, afirmam os demandantes, "a well based scientific argument can be made that chimpanzees (and bonobos) must be part of the genus homo, as homo pan".22 22 "É possível sustentar de modo cientificamente embasado que chimpanzés (e bonobos) devem fazer parte do gênero homo, como homo pan" (Balluch, Theuer, 2007, p. 337, tradução minha, grifo meu).

Pertencer ao gênero homo, entretanto, não é o mesmo que ser humano, sem mencionar que a própria categoria taxonômica homo pan está longe de ser um consenso científico. Esse obstáculo é contornado pela referência à noção de "família humana" presente nas modernas declarações de direitos. No entanto, se tais documentos utilizam a metáfora do parentesco como sustentação política da extensão a todos os seres humanos dos direitos que proclamam, essa figura é deslocada para o plano biológico. A expressão "família humana", afirmam os demandantes, "must be interpreted as the term 'family' of the Linnean classification to give the phrase a scientific meaning".23 23 " Deve ser interpretada como o termo 'família' da classificação de Lineu para que adquira um significado científico" (Balluch, Theuer, 2007, p. 337, tradução minha, grifo meu). O argumento é reforçado com uma profusão de dados científicos herméticos acerca da similaridade genética entre seres humanos e grandes primatas.

Compreensivelmente, deixa-se de justificar por que a noção de família deve ser compreendida pelo direito em termos científicos, o que conduziria à explicitação de um ponto de vista específico (e reconhecidamente controvertido) sobre as relações entre direito e natureza. Mas o registro naturalizante da argumentação traz consigo suas próprias ambiguidades. O acento na pré-especificação genética dos organismos vivos, como observa Tim Ingold (2000, p. 50), traduz uma concepção da vida como um processo passivo de reação dos organismos ao meio ambiente, em conformidade com sua natureza biológica. Desse modo, as capacidades da pessoa de autoconsciência, agência e intencionalidade não podem fazer parte do organismo enquanto tal. Ao contrário, precisam ser "acrescentadas" como atributos da mente, tradicionalmente reservados pelo pensamento ocidental aos seres humanos. Ingold (2000, p. 51) acrescenta: "Even today, now that the possibility of non-human animal awareness has arisen as a legitimate topic of scientific speculation, the basic dualism of mind and body is retained - for the question is phrased as one about the existence of animal minds."

Uma vez que a proximidade genética entre seres humanos e chimpanzés não permite por si só sustentar que Hiasl é uma pessoa, a argumentação é reconduzida ao domínio do direito e à reiterada indefinição de "pessoa" no direito austríaco. Se empresas são qualificadas como pessoas jurídicas, afirma-se, é porque, embora não sejam organismos vivos, são reconhecidas como entes unitários dotados de interesses próprios que podem ser representados em juízo. Logo, "having interests must be one defining aspect of being a person".24 24 "Possuir interesses deve ser um aspecto definidor da pessoa" Balluch, Theuer, 2007, p. 338, tradução minha, grifo meu). Não obstante, prosseguem os demandantes, considerando-se a forte influência do pensamento kantiano na elaboração do código civil austríaco, "it is the ability to reason which must be isolated as the defining factor of personhood".25 25 "É a razão que deve ser isolada como o fator que define a condição de pessoa" (Balluch, Theuer, 2007, p. 338, tradução minha, grifo meu).

Da mesma forma que a metáfora do parentesco havia permitido sustentar que chimpanzés são humanos em termos biológicos, agora, a pretexto de especificar as bases filosóficas da codificação civil, torna-se possível sair do universo do direito para, retornando ao domínio da ciência, afi rmar: "This ability we can translate into biological terminology: a person is biologically defined as a being capable of recognizing the interests of other beings, i.e. a person is a being who has what is called a theory of mind".26 26 "Essa habilidade [a razão] pode ser traduzida para a terminologia biológica: uma pessoa é biologicamente definida como um ser capaz de reconhecer os interesses de outros seres, i.e., uma pessoa é um ser que possui aquilo que é denominado uma teoria da mente" (Balluch, Theuer, 2007, p. 338, tradução minha, grifo meu). De acordo com os demandantes, pesquisas científi cas confirmaram amplamente que os chimpanzés possuem uma "teoria da mente". Hiasl, em particular, além de ter sido submetido com sucesso a inúmeros testes, pode ter suas capacidades cognitivas testemunhadas pelos seres humanos que lhe são próximos. Isto demonstra - afirma-se - quão artificiais e cientificamente obsoletas são as fronteiras jurídicas que separam humanos e chimpanzés: "There is practically no quality or ability traditionally considered typically human that chimpanzees do not also possess".27 27 "Não há praticamete nenhuma qualidade ou habilidade tradicionalmente tida como tipicamente humana que os chimpanzés também não possuam" (Balluch, Theuer, 2007, p. 338, tradução minha, grifo meu). As habilidades respectivas são então comparadas por meio de uma enumeração que inclui o uso e a manufatura de ferramentas; conhecimentos médicos acumulados por meio de experimentação e transmitidos às gerações seguintes; e, finalmente, diferenças técnicas e sociais análogas às diferenças culturais no interior da espécie Homo sapiens.

A partir dessas proposições, o enunciado final assume a forma categórica de um silogismo. Se a categoria "pessoa" do código civil inclui todos os seres humanos, e se os chimpanzés são dotados de todos os atributos que defi nem o humano, é imperativo concluir que

Hiasl is,

as a chimpanzee

, a

human

according to the definition of the term as it is used in § 16 ABGB. However he is also a

person

according to the definition of this term within the philosophical tradition of the enlightenment, which forms the very basis of the Austrian civil law code. He is therefore a person according to today's Austrian civil law.

28 28 "Hiasl é, enquanto chimpanzé, um ser humano de acordo com a definição do termo empregada no artigo 16 do ABGB. Mas ele é também uma pessoa conforme a definição desse termo na tradição filosófi ca do Iluminismo que constitui a base do código civil da Áustria. Ele é, portanto, uma pessoa de acordo com o direito civil austríaco atual" (Balluch, Theuer, 2007, p. 339, tradução minha, grifo meu).

Decidindo não decidir

Os dois casos descritos passaram por todas as instâncias de seus respectivos sistemas judiciários. A demanda do chimpanzé Hiasl foi levada inclusive ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos (voltarei a esse ponto). Em todas as instâncias os resultados foram análogos, uma vez que juízes e tribunais evitaram se pronunciar sobre a questão fundamental levantada pelos demandantes: quem é ou pode ser sujeito de direitos.

No sistema judiciário brasileiro, como é sabido, a distribuição dos processos é automática e, na maioria das vezes, efetuada eletronicamente. Assim, um primeiro aspecto a ser destacado em relação ao pedido de habeas corpus para as chimpanzés Lili e Megh é que o ministro do Superior Tribunal de Justiça a quem o processo foi inicialmente designado decidiu que não cabia a ele decidir sobre o pedido. Em breve despacho, o ministro afirma que "o constrangimento ilegal noticiado nos autos remete ao direito ambiental" e, portanto, de acordo com o regimento interno, a competência para apreciar o caso seria das turmas que compõem a primeira seção.29 29 O STJ está organizado em três seções especializadas, cada uma delas compreendendo duas turmas. A íntegra do despacho do ministro pode ser consultada em: https://ww2.stj.jus.br/websecstj/cgi/revista/REJ.cgi/MON?seq=3585766&formato=PDF.

Ainda que o regimento efetivamente justifique a posição do ministro, também é possível sugerir que ele escolhe a que ramo do direito o caso pertence: também teria sido possível considerar a matéria como afeta ao direito constitucional (as garantias fundamentais da cidadania) ou às disposições do Código Civil relativas à propriedade. Ao afirmar que o caso se refere ao direito ambiental, o juiz evita se pronunciar sobre o mérito da petição. O processo é encaminhado a um segundo ministro, cuja decisão, publicada no Diário da Justiça de 7 de dezembro de 2007, determina a extinção do processo.30 30 Íntegra disponível em: https://ww2.stj.jus.br/websecstj/cgi/revista/REJ.cgi/MON?seq=3585765&formato=PDF. A brevidade com que a pretensão é dispensada evidencia o caráter não problemático, na perspectiva do magistrado, da fronteira entre humanos e não humanos e dos direitos a ela correspondentes:

Nos termos do art. 5º, inciso LXVIII, da Constituição da República, é incabível a impetração de

habeas corpus

em favor de animais. A exegese do dispositivo é clara. Admite-se a concessão da ordem apenas para seres humanos.

O ministro reproduz a íntegra do dispositivo constitucional, destacando em negrito que o habeas corpus será concedido "sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder". O significado de "alguém" é tido como autoevidente e indisputável. Ao desconsiderar que o termo possa abranger seres não humanos, o ministro decide sem necessidade de avaliar os argumentos dos demandantes. Daí em diante, sua atenção se dirige estritamente a questões processuais.

Esse resultado adverso não esgota, porém, as alternativas dos demandantes. Poucos dias após publicada a decisão, as advogadas do empresário paulista ingressam com um agravo regimental, modalidade de recurso que possibilita que uma decisão individual seja reexaminada pelo órgão colegiado correspondente. A petição é incluída na pauta da reunião da segunda turma do STJ de 4 de setembro de 2008 - isto é, nove meses depois da decisão do ministro.

A iminência do julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça de um pedido de habeas corpus em favor de duas chimpanzés ganhou ampla repercussão na imprensa nacional. A despeito das expectativas em torno do caso, entretanto, o tribunal não produziu uma palavra final. Um dos ministros, reputado especialista em direito ambiental, pediu vista dos autos, adiando a decisão para uma data não especificada.

Enquanto isso Lili e Megh permanecem sob a guarda do empresário paulista, vivendo em instalações de cerca de mil metros quadrados que compreendem um parque de diversões ao ar livre e cinco ambientes internos, incluindo uma sala de jogos. O local agora está vinculado ao GAP - sigla em inglês para o Projeto Grandes Primatas, movimento internacional criado em meados da década de 1990 sob a inspiração do filósofo Peter Singer para a defesa de direitos dos "primatas não humanos". De acordo com o que foi noticiado pela imprensa na época do julgamento no STJ, as duas chimpanzés dormem em camas com cobertores e travesseiros e saboreiam cinco refeições diárias com cardápio igual ao de seres humanos, preparadas por babás que se revezam nos seus cuidados 24 horas por dia (STJ avalia..., 2008).

Também no caso do chimpanzé Hiasl, as alegações de cunho científico cuidadosamente elaboradas pelos demandantes não mereceram a atenção dos tribunais austríacos, que reintroduzem o debate no domínio estrito do direito. E uma vez que cada aspecto do processo, tendo sido estabelecido, não volta a ser examinado, torna-se cada vez mais difícil retornar à retórica biologizante da petição inicial à medida em que o caso caminha por diferentes instâncias do sistema judiciário.

Duas audiências são realizadas no tribunal distrital de Mödling, no qual o pedido de nomeação de um tutor para o chimpanzé Hiasl foi originalmente protocolado. Na primeira, a juíza apontou a ausência nos autos de documentação que comprovasse a identidade do chimpanzé. Os demandantes apresentaram testemunhos de que o animal havia chegado à Áustria como uma "criança raptada" (abducted child), mantendo identidade estável no país desde então. Após a segunda audiência a juíza decidiu não dar continuidade ao processo, por entender que Hiasl não preenchia os requisitos estabelecidos pelo direito austríaco para a nomeação de um tutor: a) ser portador de defi ciência mental; e/ou b) estar sob risco iminente.

Os demandantes recorreram dessa decisão argumentando que, a despeito de não ser portador de deficiência mental, Hiasl havia sido "seriously traumatized as he was taken from his family as a child".31 31 "Seriamente traumatizado por ter sido retirado da família na infância" Balluch, Theuer, 2007, p. 339, tradução minha, grifo meu). Se não tivesse sido forçado a crescer em um ambiente estranho e a passar a maior parte de sua existência aprisionado, ele seria capaz de uma vida autônoma. As circunstâncias de sua biografia, entretanto, colocaram-no na posição de necessitar de um tutor para garantir que seus interesses sejam reconhecidos e respeitados. Ademais, a iminente falência do abrigo o colocava sob a "ameaça de deportação" (threaten of deportation) (Balluch, Theuer, 2007, p. 339). Como uma pessoa legalmente representada por um tutor ele poderia receber doações em seu próprio nome, e não apenas como um bem pertencente à entidade, e poderia "fazer bom uso delas para si mesmo" (make good use of [them] for himself) (Balluch, Theuer, 2007, p. 339). Ao contrário, se não dispusesse de um representante legal, ele perderia a doação recebida em conjunto com o presidente da VGT.

As alegações não foram acatadas pelo juízo distrital, que entendeu que os demandantes não possuíam legitimidade (legal standing) para atuar como partes na ação. Novo recurso foi apresentado, também sem sucesso: de acordo com o tribunal provincial, somente o tutor ou o próprio tutelado têm legitimidade para recorrer de uma decisão judicial referente à tutela no direito austríaco. Ao apelar dessa decisão à Suprema Corte, os demandantes apresentaram argumentos de ordem estritamente processual: a) a lei citada pelos juízes do tribunal provincial só se aplica quando um tutor já foi nomeado, do contrário não faz sentido afirmar que somente o tutor pode apresentar recurso; b) a Suprema Corte já havia decidido em casos anteriores que parentes próximos de uma pessoa podem ingressar em juízo em seu nome se ela for incapaz de fazê-lo por si mesma; uma vez que os parentes de Hiasl "foram mortos por ocasião de seu rapto" (were killed during his abduction), uma interpretação alargada desse entendimento deveria assegurar aos "amigos mais próximos" (closest friends) do chimpanzé o direito de recorrer em seu nome; e c) os demandantes têm legitimidade, uma vez que receberam uma doação monetária à qual só poderão ter acesso se um tutor for nomeado para Hiasl (Balluch, Theuer, 2007, p. 400).

Assim como havia ocorrido nas demais instâncias, a Suprema Corte rejeitou o recurso. Sustentando que os tribunais austríacos haviam passado ao largo da questão central da personalidade jurídica, restringindo-se a considerações técnico-processuais, um novo recurso foi apresentado ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos, sob o argumento de que o direito a um processo equitativo32 32 De acordo com o artigo 6º da Convenção Europeia de Direitos Humanos, que estabelece o direito a um processo equitativo, "qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de caráter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela". Versão oficial em português em: http://www.echr.coe.int/NR/rdonlyres/7510566B-AE54-44B9-A163-912EF12B8BA4/0/POR_CONV.pdf. havia sido negado a Hiasl - ou, mais precisamente, a Matthias Pan.

É oportuno assinalar que no início da discussão judicial o chimpanzé era referido tão somente como Hiasl. Essa denominação também é utilizada no artigo publicado pelos demandantes a respeito do caso que, conforme mencionei anteriormente, é a principal fonte da minha própria descrição (Balluch; Theuer, 2007). Numa versão posterior desse texto, entretanto, escrita quando a questão foi levada ao TEDH, o até então "chimp Hiasl" é investido da identidade muito mais respeitável de "chimpanzé Matthew Pan, conhecido afetuosamente como Hiasl".

Empregado à maneira de um sobrenome humano, o termo Pan é emprestado da denominação científica da espécie Pan troglodytes, à qual pertencem os chimpanzés. (A segunda parte da expressão científi ca, com suas inafastáveis ressonâncias em termos de selvageria ou primitividade, é convenientemente omitida.) A diferença entre humano e não humano, porém, não é inteiramente obscurecida. Embora Hiasl seja uma derivação do prenome germânico Matthias, seu significado corrente - inquieto, caótico, desatento - torna-o precisamente não aplicável a seres humanos, ao menos como um apelido afetuoso. Neste último caso, a forma usual seria Hias, sem o "1" final.33 33 Agradeço à advogada austríaca Claudia Fuchs por me ensinar as diferenças entre Hiasl e Hias.

O Tribunal Europeu de Direitos Humanos determinou o encerramento do processo no início de 2010. Apesar de diversas tentativas, não tive acesso ao conteúdo dos autos e, portanto, não disponho de maiores detalhes sobre o conteúdo da decisão. Seja como for, ao rejeitar a demanda, o TEDH também evitou pronunciar um veredito a respeito de quem se qualifica como "qualquer pessoa" para o exercício dos direitos que é sua função institucional assegurar.

Pessoas e coisas, agência e diferença

À primeira vista é difícil acreditar que as bizarras histórias de Lili, Megh e Hiasl sejam processos judiciais genuínos, e não relatos fi ccionais. Assumo essa impressão desconcertante como um ponto de partida, buscando compreender de que maneira ela se produz e aonde pode conduzir em termos analíticos. Sugeri acima que, nos dois casos, os tribunais decidem não decidir.34 34 Não se trata obviamente de criticar a conduta dos tribunais, mas de descrever um modo específi co de decidir cuja particularidade está em evitar deliberadamente determinadas questões. Procedendo dessa forma, os tribunais efetivamente decidem. Marilyn Strathern (2005, p. 116) se refere a operações desse tipo como "fabrication by default", com o propósito de destacar os efeitos produzidos, por implicação, conforme aquilo que se escolhe reter ou ignorar nos processos judiciais. Concentrando-se em questões formais, evitam qualquer julgamento sobre o mérito de demandas que questionam quem são os entes admissíveis como sujeitos numa tradição jurídica em cujo seio a própria noção de direito é indissociável de sua associação a sujeitos determinados. Quando os processos chegam ao fim, nada parece ter realmente acontecido. Um efeito crucial de se evitar uma decisão, contudo, é precisamente reafirmar a fronteira jurídica entre seres humanos e não humanos.

Uma das possíveis razões do impacto inicial advindo desses processos é o contraste entre, de um lado, a inabalável solenidade dos procedimentos formais, a rigorosa concatenação dos movimentos das partes e dos juízes e, de outro, o caráter inusual e perturbador dos temas em discussão. O efeito de estranhamento emerge primeiramente quando se percebe que, embora os beneficiários não sejam humanos, isto não parece afetar os procedimentos, nem mesmo a maneira como esses personagens são descritos. De fato, os chimpanzés são caracterizados nos processos conforme padrões onomásticos humanos. Seus prenomes, que correspondem a apelidos normalmente aplicados a seres humanos,35 35 Com a diferença apontada acima no caso de Hiasl. são seguidos da denominação da espécie - afi nal um nome de família, tal como os sobrenomes humanos. Até certo ponto, isso se deve a normas processuais que determinam de que modo as partes devem ser qualificadas nos autos: o efeito humanizante é um resultado contingente de formalidades jurídicas longamente estabelecidas (embora, no que se refere a Hiasl, esse efeito seja também deliberadamente buscado pelos proponentes).

No caso brasileiro, embora o registro oficial no sistema eletrônico do Superior Tribunal de Justiça aponte o empresário como o paciente36 36 Tecnicamente, "paciente" é aquele que sofre ou se encontra ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, em cujo nome o pedido de habeas corpus é apresentado. do habeas corpus, tanto a petição inicial como a decisão do ministro se referem a Lili e Megh como as beneficiárias da medida pleiteada. Além disso, embora seja claro que o magistrado considera a demanda absurda, ele aponta razões de ordem estritamente processual para determinar a extinção do processo, em particular a incompetência do STJ para o julgamento de um pedido de habeas corpus cujas pacientes não se encontram sob custódia de uma autoridade pública. Da mesma forma, a despeito de seu mérito inusitado, o recurso contra essa decisão é recebido formalmente e incluído na pauta de julgamentos.

Também no tribunal distrital austríaco no qual o caso de Hiasl teve início, o primeiro passo da juíza foi solicitar comprovação legal da identidade da parte, a despeito de se tratar de um chimpanzé. Depois da realização de duas audiências, a decisão contrária ao pedido foi fundamentada em questões processuais. De acordo com a juíza, Hiasl não poderia ter um tutor não por ser um chimpanzé, mas porque não era portador de deficiência mental e não havia sido suficientemente comprovado nos autos que estivesse sofrendo coação ilegal. Os sucessivos recursos impetrados pelos demandantes permitiram que o caso passasse por todas as instâncias do sistema judiciário do país e chegasse ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos onde, da mesma forma, o caso foi formalmente admitido e julgado - mesmo que a decisão tenha determinado seu arquivamento.

Ainda em relação à atmosfera ficcional que parece cercar os casos descritos, outro aspecto merece ser destacado: ambos envolvem direitos especificamente humanos (garantias constitucionais fundamentais, no caso de Lili e Megh; e, no caso de Hiasl, o próprio estatuto de ser humano). Entretanto, o que essas demandas de direitos humanos colocam em evidência é precisamente a não humanidade de seus potenciais beneficiários.

No seio de uma imaginação político-jurídica que concebe o indivíduo humano como uma unidade em si mesmo, dotado de razão e autonomia de vontade, uma parte considerável do debate acerca dos direitos de animais tem se sustentado em analogias com os chamados casos "marginais" ou não paradigmáticos (fetos e recém-nascidos, portadores de deficiências mentais, adultos que sofreram danos cerebrais ou se encontram em condições físicas que os impedem de expressar sua vontade).37 37 Um resumo dos contornos gerais desse debate pode ser encontrado em DeGrazia (2002).

O que os processos envolvendo chimpanzés evidenciam, porém, é justamente a diferença entre os casos humanos marginais e aqueles que poderiam ser chamados de "casos marginais não humanos", uma vez que dizem respeito a indivíduos cujas condições de existência se distinguem profundamente daquelas em que vive a maioria de seus coespecíficos. Embora seja adulto e não apresente nenhuma limitação mental ou física, Hiasl ainda assim é incapaz de administrar sozinho o seu dinheiro, em que pese sua longa familiaridade com assuntos humanos. Hoje adultas e saudáveis, Lili e Megh continuam sob os cuidados de babás e se divertem com brinquedos concebidos para crianças humanas. Como observa Ingold (2000, p 91), o tratamento especial dispensado a animais de estimação em sociedades ocidentais (frequentemente justificado por terem sido criados como "membros da família") constitui a exceção que comprova a regra segundo a qual, no Ocidente, ser pessoa é sinônimo de ser humano:

Animals can only be persons to the extent that some of our humanity has, so to speak, 'rubbed off' on them through close contact with human members of the household. And just as the animal can never become fully human, its personhood, too, can never be more than partially developed. That is why pets are often treated as somehow retarded, locked in perpetual childhood. However old they are, they are never allowed to grow up, but are rather treated as cases of arrested development.

Encerrados numa infância eterna, Lili, Megh e Hiasl também figuram nos processos como objeto das ações de outrem. Obviamente isso não signifi ca afirmar que os chimpanzés sejam desprovidos de agência, mas que os autos só permitem que se tenha acesso a suas disposições, por assim dizer, subjetivas, por intermédio dos seres humanos com o quais eles se encontram mais ou menos intimamente ligados. Se os argumentos desenvolvidos pelos demandantes reafirmam constantemente os "interesses" dos chimpanzés (não como espécie, mas como indivíduos), são ainda assim seus representantes humanos que determinam, interpretam, traduzem, contextualizam e justificam esses interesses. Quando os advogados de Hiasl escrevem que ele vê a si mesmo como humano (sees himself as human), é tão somente sua não humanidade que vem à tona.

Derivadas da bizarra atmosfera na qual os protagonistas parecem se mover em ambos os casos, essas primeiras observações permitem delinear de modo mais preciso o dilema que os tribunais decidiram evitar. Obviamente não é possível caracterizar esses indivíduos como seres pertencentes a um domínio natural unificado por uma não humanidade genérica, como fez a desembargadora do TRF de São Paulo ao decidir sobre o destino de Lili e Megh. Os três chimpanzés sem dúvida fazem parte do mundo humano, mas participam dele sob o signo de uma diferença que se desdobra em dois planos: a) a particularidade de suas vidas quando comparadas às de seus coespecíficos; e b) a diferença indissolúvel que os separa dos seres humanos, com os quais no entanto compartilham algumas determinações fundamentais, tanto em sua constituição física quanto no que diz respeito ao engajamento em relações com seres humanos.38 38 No entanto, como assinala Ingold (2000, p 378), "the biological definition of species depends upon the possibility of a context-independent specification: thus a chimpanzee is a chimpanzee, Pan troglodytes, wheter reared among other chimpanzees or among humans, whether in the forest or in the laboratory".

A questão, portanto, é de que modo essa perturbadora mistura de humanidade e não humanidade pode ser situada, delimitada e administrada por um arcabouço jurídico construído a partir da oposição fundamental entre pessoas e coisas, e no âmbito do qual "opor" é sinônimo de "excluir". A condição ambígua dos chimpanzés (e destes em particular) coloca simultaneamente em destaque as ambiguidades que cercam os próprios seres humanos, seja no plano geral do velho dualismo entre natureza e cultura, seja no que concerne à polarização jurídica mais específica (e não menos antiga) entre pessoas e coisas.

A narrativa moderna da origem da humanidade descreve um caminho de evolução que é também um destacamento gradual da "natureza", um processo pelo qual nos tornamos "the kind of beings who, according to Western judicial precepts, can exercise rights and responsibilities" (Ingold, 2004, p. 212). Como afirma Viveiros de Castro (2004, p. 475), o estatuto dos seres humanos é essencialmente ambíguo no pensamento moderno, uma vez que nossa cosmologia postula uma "continuidade física" e uma "descontinuidade metafísica" entre humanos e animais:

Spirit or mind is the great differentiator: it raises us above animals and matter in general, it distinguishes cultures, it makes each person unique before his or her fellow beings. The body, in contrast, is the major integrator: it connects us to the rest of the living, united by a universal substrate (DNA, carbon chemistry) that, in turn, links up with the ultimate nature of all material bodies.

A impressionante similaridade do DNA de seres humanos e grandes primatas não humanos é uma das alegações centrais para legitimar as demandas apresentadas nos dois casos acima descritos. O papel desempenhado por esta proposição, porém, produz suas próprias ambiguidades. De um lado, o argumento define implicitamente o estatuto do próprio direito, ao assumir que a relação apropriada entre operações jurídicas e realidade natural é aquela em que as primeiras espelham a segunda: o direito não pode se situar aquém ou além da natureza, mas deve se alinhar àquilo que é biologicamente verifi cável. De outro lado, entretanto, está a percepção imediata de que chimpanzés e humanos são "naturalmente" diferentes. Não obstante, os demandantes reafirmam a subordinação do direito à natureza e à verdade científica como a própria condição de legitimidade dos seus enunciados. Esse argumento merece um parêntese.

A base da moderna taxonomia biológica39 39 A exposição a seguir provém inteiramente de Marks (2002). - como aliás sublinham os advogados de Hiasl - foi estabelecida em meados do século XVIII por Lineu, que equacionou o problema da relação entre humanos e grandes primatas distribuindo estes últimos em dois conjuntos, que incluíam respectivamente os seres mais ou menos antropomórficos. O primeiro conjunto foi designado como uma segunda espécie humana, Homo troglodytes, e o segundo classificado em outro gênero primata, Simia satyrus. Conforme observa Jonathan Marks (2002, p. 21), os grandes primatas - simultaneamente muito parecidos e muito diferentes de nós - eram agora formalmente ao mesmo tempo humanos e não humanos.

Esse paradoxo perturbou gerações de biólogos até que a genética se tornou capaz de dar um número à similaridade entre humanos e grandes primatas. A proximidade genética entre humanos e grandes primatas (ou qualquer outra espécie), no entanto, continua controversa entre profissionais: o número que agora sustenta pretensões jurídicas resulta de escolhas específicas de como e o que comparar.40 40 Marks (2002), citado acima, oferece uma discussão detalhada e particularmente esclarecedora sobre esse ponto, que seria impossível resumir aqui. Além disso, uma vez que a informação genética é composta de sequências de DNA, e que existem somente quatro elementos em cada sequência, quaisquer trechos de DNA são pelo menos 25% semelhantes. Como argumenta Marks (2002, p. 5, 13), assim como o fato de o DNA humano ser mais que 25% semelhante ao do dente-de-leão não implica que nós sejamos mais que um quarto dentes-de-leão, a similaridade genética entre humanos e chimpanzés talvez seja "the most overexposed factoid in modern science".

Mas ainda que ser "99% chimpanzé" não signifique nada numa perspectiva estritamente científi ca, significa muito num contexto sociológico em que a biologia foi assimilada à genética.41 41 A esse respeito, Ingold (2004, p. 215) escreve: "Referring initially to the procedures involved in the scientific study of organic forms, 'biology' has come to be seen as a set of directives - literally a biologos - supposedly residing in the organisms themselves, and orchestrating their construction. For any particular organism this bio-logos is, of course, its genotype. Herein lies the explanation for the commonplace, though highly misleading identification of 'biology' with genetics. The very notion of biology has come to stand in for the belief that at the heart of every organism there lies an essential specification that is fixed from the start and that remains unchanged throughout its lifetime." E quando se admite que a genética deve oferecer uma resposta definitiva às questões ontológicas mais fundamentais, torna-se possível levar aos tribunais imagens particularmente evocativas para uma imaginação conceptual na qual a natureza é o termo encompassador por excelência. O argumento baseado na genética (ou no que conta como genética) torna possível comutar evolução biológica e relações de parentesco, assim como converter diacronia em sincronia.

De acordo com a teoria darwiniana, o princípio básico da evolução biológica é a diferenciação ao longo do tempo, de modo que, quanto maior a distância temporal, mais significativa é a diferença entre espécies, e menos reconhecíveis suas características comuns (por exemplo, as características compartilhadas por humanos e dentes-de-leão). No plano do parentesco, no entanto, conexões longamente estabelecidas são precisamente aquilo que garante atributos comuns e obrigações recíprocas. Quando as relações entre humanos e grandes primatas (devidas a um caminho evolutivo comum, mas também, e de modo mais importante, a um longo processo de diferenciação) são transpostas para a linguagem do parentesco, um novo signifi cado pode ser atribuído a essa ancestralidade compartilhada. Como assinala Marilyn Strathern (1992, p. 16),

Darwin drew on the prevailing ideas of his time concerning genealogy and relatedness between human beings in order to depict degrees of affi nity between other species. In the twentieth century Euro-Americans have turned this back on itself, and conceive biological relatedness as primordial and prior to the constructs human beings build upon it.

Da mesma forma, esse "tráfego bidirecional" de ideias (a expressão é de Strathern) torna possível justificar as demandas de direitos (humanos) para chimpanzés em termos de reconhecimento jurídico de relações (biológicas) de parentesco que sempre existiram e, atualmente, podem ser comprovadas por testes de DNA - modalidade de prova, aliás, amplamente aceita pelas instituições judiciárias. Afinal, parecem sugerir os demandantes, existe diferença entre a prova de DNA em casos de determinação de paternidade (e os direitos daí decorrentes para os filhos) e a comprovação da similaridade genética para a extensão de direitos humanos a chimpanzés?

A analogia é poderosa, mas também carrega suas ambiguidades. Em disputas de paternidade, resultados positivos em testes de DNA de indivíduos específicos abrem caminho para a aplicação de inúmeras disposições do direito de família. Mas quando a verificação genética se limita a apontar uma profunda semelhança entre espécies, consideradas genericamente, as consequência jurídicas estão longe de ser automáticas, a começar pelo fato de que a classifi cação científica das espécies biológicas (e, portanto, a questão de determinar se um chimpanzé pode ser considerado biologicamente humano) não é um tema sobre o qual juízes tenham a última palavra. Seja como for, há algo mais tradicionalmente estabelecido nos sistemas jurídicos ocidentais que a atribuição de direitos a partir de laços de parentesco? E, no entanto, essa operação absolutamente tradicional é chamada agora a definir sujeitos inteiramente novos de direitos longamente reconhecidos.

A despeito de seu poder evocativo, contudo, a vizinhança genética entre chimpanzés e humanos é pecebida pelos próprios demandantes como insuficiente para sustentar o pedido de habeas corpus para Lili e Megh, assim como a demanda de personalidade jurídica para Hiasl. Parece claro que isso ocorre precisamente porque, no pensamento darwiniano que se tornou parte do nosso senso comum, a evolução das espécies na natureza, como aponta Ingold (2004, p. 210), é concebida ao mesmo tempo como uma evolução para fora dela, "in so far as it progressively liberated the mind from the promptings of innate dispositions". Deste ponto em diante, as duas histórias seguem caminhos distintos.

No caso de Lili e Megh, o primeiro argumento contra a ordem judicial de "liberar as chimpanzés do cativeiro e reintroduzi-las na natureza" é afirmar que elas não pertencem à natureza, mas ao universo da socialidade humana, na condição de seres (quase) humanos decorrente tanto da sua biografi a quanto da similaridade genética das duas espécies. Antevendo, porém, que o tribunal não se deixaria convencer facilmente, as advogadas recuam para um argumento menos controverso e, portanto, possivelmente mais efi caz. Continua-se a sustentar que as chimpanzés pertencem ao mundo humano, mas agora, a despeito da contradição com o primeiro argumento, procura-se demonstrar que Lili e Megh são "coisas" possuídas legitimamente por uma pessoa cujos direitos de propriedade estão sendo ameaçados pela determinação judicial.

Em contraste, os responsáveis pelo segundo caso escolhem levar o argumento inicial ainda mais adiante, buscando caracterizar o chimpanzé Hiasl não somente como "não coisa" (a condição imputada aos animais pelo código civil austríaco), mas como uma pessoa humana. Nesse sentido, pode-se entender o argumento como uma definição presuntiva dos atributos inerentes à pessoa humana (ou, mais precisamente, ao indivíduo moderno), abordados um após o outro, numa espécie de checklist,42 42 Tomo aqui a expressão utilizada por Barbara King ao se referir a uma abordagem que, segundo ela, é adotada com frequência por primatólogos. A análise do tipo checklist, afirma King (2004, p. 196), acaba por reduzir a complexidade da vida social de grandes primatas a uma lista de ações ou propriedades quantificáveis. sem que entre em questão de que modo esses elementos se constituem ou como se inter-relacionam.

Primeiramente, afirma-se que características biológicas substantivas, demonstradas pela genética contemporânea, permitem que chimpanzés sejam (re) classifi cados como membros da "família" humana. Ainda invocando a autoridade da ciência, os demandantes sustentam em seguida que os chimpanzés possuem uma "teoria da mente", isto é, consciência de si e de outrem, requisitos psicológicos essenciais para uma existência significativa, em termos subjetivos e relacionais. Em terceiro lugar, sugere-se que os chimpanzés também possuem o atributo por excelência que impulsionou a evolução dos seres humanos para além da natureza: a capacidade de criar e transmitir cultura e, assim, de se diferenciar de seus coespecíficos, ao menos num grau de complexidade (implicitamente) comparável ao conquistado por grupos humanos "primitivos".

Investido dos atributos que constituem a (versão moderna da) humanidade, o chimpanzé Hiasl está pronto a completar a transição do estatuto jurídico precário de "não coisa" para assumir o seu lugar no polo "pessoa" do código civil austríaco. De modo significativo, o passo final desse itinerário é destacar seu engajamento como sujeito num tipo específico de relação: a propriedade.

Pouco importa que a doação monetária tenha sido feita com o propósito deliberado de possibilitar uma ação judicial estratégica para a militância em favor dos direitos dos animais. O ponto crucial é que o caminho argumentativo que visa gradualmente caracterizar o chimpanzé Hiasl como uma pessoa só se completa por meio de coisas. O estatuto da pessoa é ao mesmo tempo constituído e demonstrado por seu envolvimento com coisas ou, mais precisamente, pelo vínculo de propriedade.

Como assinala Tim Murphy (2004), a ideia básica de propriedade diz respeito tanto à relação entre pessoas e coisas como à relação entre pessoas em referência a coisas. A primeira versão exprime a concepção cotidiana de propriedade, presente em afirmações do tipo: "Isto me pertence." Já a segunda, diz Murphy (2004, p. 138), é o modo como o saber acadêmico nos ensina a falar de relações de propriedade quando refletimos sobre o signifi cado de nossos próprios enunciados.

Contudo, ainda mais relevante para a discussão aqui proposta é perceber que a categoria coisa precede sua contraparte - a pessoa - tanto em termos lógicos como históricos no direito ocidental. Conforme indica Alain Pottage (2001), a concepção jurídica humanista de sociedade é quase inseparável da noção de subjectum juris, ou direito subjetivo, segundo a qual os direitos, em particular os de propriedade, são a vestimenta jurídica de indivíduos naturais, ou um conjunto de formas que realizam e articulam uma vontade subjetiva. De acordo com o autor - cujo argumento reproduzo nos parágrafos seguintes -, essa concepção emergiu da recepção escolástica do direito romano e das elaborações teológicas medievais da noção de personalidade. Embora a persona jurídica fosse reconhecida como um papel ficcional, era tratada como a projeção de um ator substantivo: parecia óbvio que os direitos eram atributos de pessoas reais. No entanto, assinala Pottage (2001, p. 119), a figura do direito subjetivo é paradoxal ou, ao menos, ambígua: o "reconhecimento" da subjetividade pode ser compreendido como um ato constitutivo, mais que declaratório de um fenômeno preexistente.

E uma vez que os atributos da pessoa são concebidos simultaneamente, de um lado, como recursos ou produtos da sociedade e, de outro, como manifestações de uma vontade subjetiva, ela existe como uma "ambiguidade ambulante" (a living equivocation), potencialmente tanto pessoa quanto coisa. De acordo com Pottage essa ambiguidade (a potencial transformação dos atributos da pessoa em bens) decorre da precedência da categoria coisa diante do seu par, a pessoa. Em termos históricos, a categoria bem (mercadoria) antecede, no direito romano, a persona, divina ou humana, que ela ameaça contaminar.43 43 A esse respeito ver a belíssima discussão de Yan Thomas (2004) sobre as res religiosae do direito romano, que demonstra que os jurisconsultos se preocupam primeiramente com os túmulos enquanto coisas, e não com as pessoas mortas, tidas como uma parte ou apêndice das sepulturas. Ao mesmo tempo, a pessoa ou subjectum somente se dá a conhecer pelas marcas por ela deixadas nas coisas ou por aquilo que comunica por intermédio delas. "Yet, although it is fundamental that persons do not circulate as commodities [...], 'persons' are a reflex of 'things'." (Pottage, 2001, p. 122).

As consequências disso poderão ser melhor apreciadas mais adiante, mas antes é preciso retornar brevemente às histórias de Lili, Megh e Hiasl. Ao se concentrar em questões processuais, nos dois casos os tribunais se furtaram a oferecer uma resposta direta sobre a possibilidade de animais serem admitidos como sujeitos de direitos. O que merece atenção, porém, é que ainda que esses casos demonstrem um crescente desconforto com a categorização de animais no mesmo conjunto ao qual pertencem os objetos inertes, na condição jurídica de coisas, a argumentação desenvolvida pelos demandantes não desafia diretamente o princípio básico de constituição de um universo no qual todos os entes são ou pessoas ou coisas, de acordo com seus atributos respectivos como sujeitos (proprietários) ou objetos (sobre os quais são exercidos direitos de propriedade).

Certamente não é trivial afirmar que chimpanzés são humanos, mas fazêlo com o propósito de deslocar certos entes de uma posição a outra não afeta a polaridade básica pessoa/coisa e, ao mesmo tempo, contribui para reafi rmar a pessoa humana "real" como modelo exemplar do sujeito jurídico. Nesse sentido, tanto a retórica e as estratégias dos demandantes como a (não) resposta que emana dos tribunais desenham os limites de um quadro conceptual no qual a diferença, constituída sobretudo por meio de relações de propriedade, é tida como binária e exclusiva.

Sugiro que um corolário da oposição jurídica entre pessoa e coisa é a homogeneização da diferença: há apenas um modo de diferir e, portanto, todas as formas (jurídicas) de existência devem se acomodar em um ou outro extremo desse grande divisor. Desde a clássica discussão de Lévi-Strauss (1970) sobre as organizações dualistas, porém, aprendemos a reconhecer o estatuto derivado das oposições binárias em relação a estruturas ternárias.

As reflexões de Lévi-Strauss,44 44 Assim como, mais tarde, Dumont (1992) e Houseman (1984). assim como as considerações sobre a anterioridade da categoria "coisa", tornam possível argumentar que a pessoa é, antes e acima de tudo, não coisa. Dito de outro modo, a categoria coisa, que tem precedência como princípio de diferenciação, traz consigo imediatamente a possibilidade de algo que se distingue dela ou é o seu contrário; mas tal condição é, de início, negativa e indeterminada. Para que essa indeterminação (não coisa) possa se constituir como um valor positivo, é necessário que dela se extraia tudo aquilo que define e caracteriza sua contraparte (que, não obstante, a contém). Reiterando-se indefinidamente, essa operação permite que a não coisa (que se diferencia internamente em coisa e não coisa) se constitua positivamente como uma "outra coisa". É assim que a pessoa emerge e se dá a conhecer: não apenas distinguindo-se das coisas, mas revelando-se por meio das ações de produzir, possuir, transformar, obter ou transferir coisas a terceiros. É também assim que a pessoa pode finalmente aparecer como o polo englobante do dualismo jurídico fundamental.

Esse percurso (lógico, mas também histórico, como se viu acima) de destacamento da pessoa a partir da condição geral e primeira de coisa é, não por acaso, análogo ao caminho evolutivo descrito por Darwin: a partir de uma animalidade comum, os seres humanos gradativamente se diferenciam e, finalmente, transcendem essa condição primitiva, sem que jamais se desfaça inteiramente o vínculo que os une aos (outros) animais. Nos dois casos, não se trata de uma oposição binária simples, e a comunicação entre os extremos é sua própria condição de existência. Explicitamente presente nas narrativas modernas sobre a "natureza humana", essa inter-relação parece menos evidente no direito. A possibilidade de deslocamento contextual de um polo ao outro da oposição pessoa/coisa, no entanto, nunca deixou de ser admitida pelos sistemas jurídicos ocidentais.

Instituições, empresas e associações são reconhecidas juridicamente como pessoas. Embora não sejam seres humanos, nem mesmo organismos vivos, esses entes - em certa medida análogos a "coisas" - existem tão somente como expressão da intencionalidade humana e, desse modo, podem habitar o universo do direito e nele agir na condição de pessoas. Inversamente, seres humanos podem se tornar coisas. Sem mencionar o estatuto jurídico frequentemente ambíguo de "partes" humanas como órgãos, tecidos e linhas celulares, corpos humanos inanimados existem juridicamente, de modo incontroverso, como coisas (mesmo que sob a rubrica de res extra commercium). Por outro lado, mesmo que seres humanos sejam temporariamente reconhecidos após a morte como pessoas dotadas de capacidade jurídica, isto acontece por meio de um testamento que expressa, signifi cativamente, sua última vontade.

Minha sugestão é que agência é o princípio que integra todas essas distinções num esquema unitário e faz, literalmente, toda a diferença. E a discussão anterior acerca da noção de subjectum juris deixa claro que a agência humana é a única forma concebível de agência no direito ocidental. Assim, enquanto os entes aos quais se reconhece um potencial agentivo podem transitar entre as categorias pessoa e coisa em situações determinadas, seres vivos não humanos, assim como objetos inertes, estão inapelavelmente condenados a uma perpétua imobilidade (categorial), sob a condição de coisas, num universo em que formas não humanas de agência (naturais ou sobrenaturais) não encontram lugar e, portanto, de fato não existem. O problema suscitado pelas demandas de reconhecimento de seres vivos não humanos como sujeitos de direitos, portanto, é precisamente como definir - e, assim, trazer à existência - uma diferença que, em si mesma, difere dos modos de diferenciação definidos pela oposição pessoa/coisa e pelo princípio de agência que, contido num dos polos, preside as relações entre ambos.

Mesmo os mais radicais defensores dos animais como sujeitos de direitos não propõem que todos os seres vivos não humanos devam ter acesso a todos os direitos fundamentais assegurados aos seres humanos. De modo semelhante, se a categorização jurídica dos animais como coisas vem sendo paulatinamente percebida como inadequada, mesmo os códigos mais inovadores não vão além da afirmação de que "animais não são coisas", da qual decorre uma problemática alternância: definidos (ontologicamente) como "não coisas", os mesmos seres são contextualmente submetidos a um regime específi co de proteção (que, por sua própria natureza, deixa intocada a questão de estabelecer se animais podem ou não ser sujeitos de direitos) ou às disposições gerais referentes às coisas.

Essa oscilação coloca em evidência o problema que o direito até aqui tem prudentemente evitado: a necessidade de fabricar conceptualmente uma outra diferença (uma diferença que é outra, que não corresponde aos modos jurídicos estabelecidos de diferenciação), uma vez que as tentativas de dissolução das diferenças entre humanos e não humanos parecem fadadas ao fracasso. Quanto mais os demandantes argumentam que Lili, Megh e Hiasl são (quase ou inteiramente) humanos, mais fica claro que não o são, e mais difícil se torna reconhecer esses outros como sujeitos, ou esses sujeitos que são outros. Mais precisamente, fazer existir juridicamente formas não humanas de agência parece depender não somente de admitir os animais como não coisas, como os sistemas jurídicos europeus vêm fazendo gradativamente, mas também como não pessoas, isto é, sujeitos que diferem da noção jurídica de pessoa elaborada a partir do modelo da agência humana.

Recebido em: 31/10/2010

Aprovado em: 27/03/2011

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  • *
    A elaboração deste trabalho foi iniciada durante período como Senior Visiting Fellow na London School of Economics and Political Science (maio-novembro de 2010) com bolsa de estágio pós-doutoral concedida pela Capes (Processo nº 5295/09-2). Uma primeira versão foi apresentada em seminário no BIOS Centre (Centre for the Study of Bioscience, Biomedicine, Biotechnology and Society), da LSE, em outubro de 2010.
  • 1
    Para um panorama da legislação ambiental brasileira ao longo do século XX, ver Benjamin (2005).
  • 2
    Isso não significa, evidentemente, que o próprio conceito de ser humano tenha permanecido estável nos ordenamentos jurídicos, tampouco que os mesmos direitos tenham sido (ou sejam) assegurados a todos os seres humanos, em termos formais e/ou efetivos.
  • 3
    Conforme assinala Jonathan Benthall (2007), a defesa dos direitos dos animais é um dos poucos movimentos nascidos no século XX cuja inspiração nasce do trabalho de fi lósofos profi ssionais. A principal referência nesse campo é o filósofo Peter Singer (1975), defensor da "libertação animal", expressão cunhada para denunciar o "especismo" e a "tirania de animais humanos sobre animais não humanos". Singer é um dos mentores do Projeto Grandes Primatas (Great Apes Project), cuja pauta inclui a extensão de direitos humanos a outros primatas com base nas similaridades genéticas. Outras fi guras preeminentes nesse campo são o filósofo Tom Regan (2004), que procura fundamentar eticamente os direitos dos animais, e o advogado Gary Francioni (2008), formulador da "teoria abolicionista" contrária à consideração dos animais como propriedade.
  • 4
    A descrição do primeiro caso se baseia principalmente nos acórdãos disponíveis nos sítios eletrônicos do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (São Paulo) e do Superior Tribunal de Justiça. Não foi possível obter acesso aos registros oficiais do segundo caso no sistema judiciário austríaco e no Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Desse modo, a principal fonte da descrição que ofereço é um artigo escrito em coautoria por dois de seus protagonistas: Martin Balluch, ativo militante em favor dos direitos dos animais, cujo envolvimento no caso será esclarecido adiante; e Eberhart Theuer, um dos advogados responsáveis pelo processo (Balluch; Theuer, 2007). Os desdobramentos mais recentes do caso foram discutidos em contatos por correio eletrônico com Eberhart Theuer e Paula Stibbe, a quem agradeço por compartilharem informações sobre as estratégias processuais com uma completa desconhecida.
  • 5
    O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) é a autarquia federal responsável pela execução da Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA) estabelecida pela lei nº 6.938/81 (Brasil, 1981) e normas posteriores. Entre outras atribuições, cabe ao Ibama o controle e a fiscalização do uso de recursos naturais no território brasileiro, incluindo a água, o solo, a flora e a fauna.
  • 6
    Não há nenhuma informação nos acórdãos consultados sobre como e quando Megh foi entregue aos cuidados do empresário.
  • 7
    No ordenamento jurídico brasileiro, questões ambientais pertencem à esfera federal, compreendendo três instâncias: Varas Federais de primeiro grau; cinco Tribunais Regionais Federais, cuja jurisdição abrange estados vizinhos; e o Superior Tribunal de Justiça, sediado em Brasília.
  • 8
    Agravo de instrumento nº 237001, apresentado pelo Ibama após decisão da 13ª Vara da Justiça Federal de São Paulo favorável ao empresário (Processo nº 2005.03.00.040348-5). Reproduzo trechos da decisão da desembargadora do TRF, publicada em 07/10/2005: "As razões trazidas pela agravante não me convencem do desacerto da decisão agravada. [...] Não resta claro qual teria sido o documento faltante à regularidade da transação. [...] Nova transferência só acarretaria prejuízo a todos os envolvidos, sendo certo que o filhote de chimpanzé está bem acomodado e assistido por profissionais da área."
  • 9
    Agravo de instrumento do Ibama referente a medida cautelar obtida pelo empresário (Processo nº 2007.61.00.018152-0, 16ª Vara Cível da Justiça Federal de São Paulo). A decisão da desembargadora do TRF3, de 06/11/2007, menciona explicitamente a lei nº 5.197/67 - proteção da fauna (Brasil, 1967) - e a lei nº 9.605/98 - sanções derivadas de condutas lesivas ao meio ambiente (Brasil, 1998).
  • 10
    Informações sobre o processo podem ser consultadas no
    site do STJ, em:
  • 11
    Por legitimidade das partes entende-se "que o autor seja aquele a quem a lei assegura o direito de invocar a tutela jurisdicional e o réu, aquele contra o qual pode o autor pretender algo" (Leite, 2003).
  • 12
    Conforme mencionei acima, a descrição deste caso se baseia no relato de dois de seus protagonistas (Balluch; Theuer, 2007). Com o intuito de preservar o fluxo da leitura, reservo o uso de aspas às passagens particularmente relevantes para as reflexões aqui propostas.
  • 13
    A Suprema Corte (Oberster Gerichtshof) é a instância final do sistema judiciário austríaco para questões penais e de direito privado.
  • 14
    O presidente da VGT é Martin Balluch, doutor em física e fílosofi a e ex-professor universitário. Tendo estreado na militância pelos direitos dos animais em meados da década de 1980, passou a se dedicar integralmente ao ativismo no final da década de 1990. Em 2008, isto é, paralelamente aos desdobramentosdo caso aqui descrito, Balluch foi preso na Áustria, juntamente com outros militantes, numa controvertida operação baseada em lei de combate ao crime organizado. Os desdobramentos judiciais do episódio ainda estão em andamento. Informações biográficas sobre Balluch podem ser encontradas em:
    http://en.wikipedia.org/wiki/Martin_Balluch. Para um depoimento divulgado por ele durante a prisão, ver:
  • 15
    A íntegra do
    ABGB está disponível em:
  • 16
    No original: "§ 16: Jeder Mensch hat angeborne, schon durch die Vernunft einleuchtende Rechte, und ist daher als eine Person zu betrachten. Sclaverey oder Leibeigenschaft, und die Ausübung einer darauf sich beziehenden Macht, wird in diesen Ländern nicht gestattet."
  • 17
    Respectivamente: "§ 285: Alles, was von der Person unterschieden ist, und zum Gebrauche der Menschen dient, wird im rechtlichen Sinne eine Sache genannt"; e "§ 286: Die Sachen in dem Staatsgebiethe sind entweder ein Staats- oder ein Privat-Gut. Das Letztere gehört einzelnen oder moralischen Personen, kleineren Gesellschaften, oder ganzen Gemeinden."
  • 18
    No original: "§ 285a: Tiere sind keine Sachen; sie werden durch besondere Gesetze geschützt. Die für Sachen geltenden Vorschriften sind auf Tiere nur insoweit anzuwenden, als keine abweichenden Regelungen bestehen."
  • 19
    Há no sistema judiciário brasileiro pelo menos um precedente: o pedido de
    habeas corpus impetrado em 2005 na 9ª Vara Criminal de Salvador (HC nº 833085-3/2005) em benefício da chimpanzé Suíça, com o objetivo de assegurar sua transferência do zoológico municipal da capital baiana para o Santuário dos Grandes Primatas do GAP, em Sorocaba (SP). O principal responsável pela iniciativa foi Heron Santana, promotor de justiça e professor de direito da Universidade Federal da Bahia. A petição argumenta em favor da "extensão dos direitos humanos aos grandes primatas", por compartilharem "99,4% da nossa carga genética". A morte da chimpanzé conduziu à extinção do processo antes que houvesse uma decisão (Habeas corpus..., 2005). Em dezembro de 2009, outro pedido de
    habeas corpus foi impetrado na 5ª Vara Criminal de Niterói em favor do chimpanzé Jimmy. O indeferimento do pedido, cujo objetivo também era a transferência do animal para as instalações do GAP em Sorocaba, suscitou recurso junto ao TJRJ, ainda aguardando decisão (Processo nº 0002637-70.2010.8.19.0000). A íntegra da petição está disponível em:
  • 20
    Note-se que a definição legal de fauna silvestre poderia se aplicar também aos animais humanos, que "vivem naturalmente fora do cativeiro".
  • 21
    "
    Tem de ser interpretado biologicamente" (Balluch, Theuer, 2007, p. 337, tradução minha, grifo meu).
  • 22
    "É possível sustentar de modo cientificamente embasado que chimpanzés (e bonobos)
    devem fazer parte do gênero
    homo, como
    homo pan" (Balluch, Theuer, 2007, p. 337, tradução minha, grifo meu).
  • 23
    "
    Deve ser interpretada como o termo 'família' da classificação de Lineu para que adquira um significado
    científico" (Balluch, Theuer, 2007, p. 337, tradução minha, grifo meu).
  • 24
    "Possuir interesses deve ser um aspecto definidor da pessoa" Balluch, Theuer, 2007, p. 338, tradução minha, grifo meu).
  • 25
    "É a razão que deve ser isolada como o fator que define a condição de pessoa" (Balluch, Theuer, 2007, p. 338, tradução minha, grifo meu).
  • 26
    "Essa habilidade [a razão] pode ser traduzida para a terminologia biológica: uma pessoa é
    biologicamente definida como um ser capaz de reconhecer os interesses de outros seres, i.e., uma pessoa é um ser que possui aquilo que é denominado uma teoria da mente" (Balluch, Theuer, 2007, p. 338, tradução minha, grifo meu).
  • 27
    "Não há praticamete nenhuma qualidade ou habilidade tradicionalmente tida como tipicamente humana que os chimpanzés também não possuam" (Balluch, Theuer, 2007, p. 338, tradução minha, grifo meu).
  • 28
    "Hiasl é,
    enquanto chimpanzé, um
    ser humano de acordo com a definição do termo empregada no artigo 16 do ABGB. Mas ele é também uma pessoa conforme a definição desse termo na tradição filosófi ca do Iluminismo que constitui a base do código civil da Áustria. Ele é, portanto, uma pessoa de acordo com o direito civil austríaco atual" (Balluch, Theuer, 2007, p. 339, tradução minha, grifo meu).
  • 29
    O STJ está organizado em três seções especializadas, cada uma delas compreendendo duas turmas. A íntegra do despacho do ministro pode ser consultada em:
  • 30
    Íntegra disponível em:
  • 31
    "Seriamente traumatizado por ter sido retirado da família na infância" Balluch, Theuer, 2007, p. 339, tradução minha, grifo meu).
  • 32
    De acordo com o artigo 6º da Convenção Europeia de Direitos Humanos, que estabelece o direito a um processo equitativo, "qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de caráter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela". Versão oficial em português em:
  • 33
    Agradeço à advogada austríaca Claudia Fuchs por me ensinar as diferenças entre Hiasl e Hias.
  • 34
    Não se trata obviamente de criticar a conduta dos tribunais, mas de descrever um modo específi co de decidir cuja particularidade está em evitar deliberadamente determinadas questões. Procedendo dessa forma, os tribunais efetivamente
    decidem. Marilyn Strathern (2005, p. 116) se refere a operações desse tipo como "fabrication by default", com o propósito de destacar os efeitos produzidos, por implicação, conforme aquilo que se escolhe reter ou ignorar nos processos judiciais.
  • 35
    Com a diferença apontada acima no caso de Hiasl.
  • 36
    Tecnicamente, "paciente" é aquele que sofre ou se encontra ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, em cujo nome o pedido de
    habeas corpus é apresentado.
  • 37
    Um resumo dos contornos gerais desse debate pode ser encontrado em DeGrazia (2002).
  • 38
    No entanto, como assinala Ingold (2000, p 378), "the biological definition of species depends upon the possibility of a context-independent specification: thus a chimpanzee is a chimpanzee,
    Pan troglodytes, wheter reared among other chimpanzees or among humans, whether in the forest or in the laboratory".
  • 39
    A exposição a seguir provém inteiramente de Marks (2002).
  • 40
    Marks (2002), citado acima, oferece uma discussão detalhada e particularmente esclarecedora sobre esse ponto, que seria impossível resumir aqui.
  • 41
    A esse respeito, Ingold (2004, p. 215) escreve: "Referring initially to the procedures involved in the scientific study of organic forms, 'biology' has come to be seen as a set of directives - literally a
    biologos - supposedly residing in the organisms themselves, and orchestrating their construction. For any particular organism this bio-logos is, of course, its genotype. Herein lies the explanation for the commonplace, though highly misleading identification of 'biology' with genetics. The very notion of biology has come to stand in for the belief that at the heart of every organism there lies an essential specification that is fixed from the start and that remains unchanged throughout its lifetime."
  • 42
    Tomo aqui a expressão utilizada por Barbara King ao se referir a uma abordagem que, segundo ela, é adotada com frequência por primatólogos. A análise do tipo
    checklist, afirma King (2004, p. 196), acaba por reduzir a complexidade da vida social de grandes primatas a uma lista de ações ou propriedades quantificáveis.
  • 43
    A esse respeito ver a belíssima discussão de Yan Thomas (2004) sobre as
    res religiosae do direito romano, que demonstra que os jurisconsultos se preocupam primeiramente com os túmulos enquanto coisas, e não com as pessoas mortas, tidas como uma parte ou apêndice das sepulturas.
  • 44
    Assim como, mais tarde, Dumont (1992) e Houseman (1984).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Set 2011
    • Data do Fascículo
      Jun 2011

    Histórico

    • Recebido
      31 Out 2010
    • Aceito
      27 Mar 2011
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