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A noção de crença e suas implicações para a modernidade: um diálogo imaginado entre Bruno Latour e Talal Asad

Resumos

Trata-se de refletir sobre as implicações da presença da noção de crença na modernidade. Constituída em um projeto crítico, que acarretou sua fragilização ontológica, a noção de crença foi fundamental para a definição moderna de religião. Por outro lado, a modernidade não deixou de incorporar positivamente a mesma noção, o que se evidencia em seu compromisso declarado com o princípio da "liberdade de crença". O texto estabelece conexões entre os sentidos da definição moderna de crença e a construção também moderna da noção de sociedade. Nessa articulação são considerados temas como liberdade e sujeição e situações como o estatuto da credulidade e da blasfêmia. Seu percurso e seu resultado se estabelecem em diálogo com a obra de dois autores, Bruno Latour e Talal Asad.

crença; modernidade; religião; teoria antropológica


The article aims to reflect on the implications of the presence of the category of belief in modernity. Formed in a critical project, which led to its ontological weakening, the notion of belief was fundamental to the modern definition of religion. On the other hand, modernity did not fail to positively incorporate the same notion, which is evident in its stated commitment to the principle of "freedom of belief". The text establishes connections between the senses of the modern definition of belief and the modern construction of the notion of society. In this exploration, themes as freedom and subjection and situations are considered, as well situations as the status of credulity and blasphemy. Its course and its outcome are set in dialogue with the work of two authors, Bruno Latour and Talal Asad.

anthropological theory; belief; modernity; religion


ESPAÇO ABERTO

A noção de crença e suas implicações para a modernidade: um diálogo imaginado entre Bruno Latour e Talal Asad* * Partes deste texto foram apresentadas em dois eventos: II Reunião de Antropologia da Ciência e da Tecnologia (UFMG, Belo Horizonte, 2009) e IV Congresso da Associação Portuguesa de Antropologia (ISCTE, Lisboa, 2010). Agradeço a leitura e os comentários de Otávio Velho a uma versão preliminar.

Emerson Giumbelli

Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Brasil

RESUMO

Trata-se de refletir sobre as implicações da presença da noção de crença na modernidade. Constituída em um projeto crítico, que acarretou sua fragilização ontológica, a noção de crença foi fundamental para a definição moderna de religião. Por outro lado, a modernidade não deixou de incorporar positivamente a mesma noção, o que se evidencia em seu compromisso declarado com o princípio da "liberdade de crença". O texto estabelece conexões entre os sentidos da definição moderna de crença e a construção também moderna da noção de sociedade. Nessa articulação são considerados temas como liberdade e sujeição e situações como o estatuto da credulidade e da blasfêmia. Seu percurso e seu resultado se estabelecem em diálogo com a obra de dois autores, Bruno Latour e Talal Asad.

Palavras-chave: crença, modernidade, religião, teoria antropológica.

ABSTRACT

The article aims to reflect on the implications of the presence of the category of belief in modernity. Formed in a critical project, which led to its ontological weakening, the notion of belief was fundamental to the modern definition of religion. On the other hand, modernity did not fail to positively incorporate the same notion, which is evident in its stated commitment to the principle of "freedom of belief". The text establishes connections between the senses of the modern definition of belief and the modern construction of the notion of society. In this exploration, themes as freedom and subjection and situations are considered, as well situations as the status of credulity and blasphemy. Its course and its outcome are set in dialogue with the work of two authors, Bruno Latour and Talal Asad.

Keywords: anthropological theory, belief, modernity, religion.

O que a religião faz na modernidade? Eis a pergunta que guia este texto. Admito que ela aparenta alguma insensatez, pois seus termos - "religião" e "modernidade" - ameaçam impedir o começo mesmo da empreitada. Mas se é verdade que cada um deles poderia merecer uma análise apta a decompor totalidades e a revelar polissemias, procuro apostar na produtividade de sua conjunção e na possibilidade de mantermos o singular da formulação. Afirmar que a religião está presente na modernidade tornou-se constatação banal, embora o sentido dessa presença ainda vá gerar muitos debates. De todo modo, não é isso que me interessa tematizar, e sim a intrincada relação entre os dois termos. Pois temos razões para afirmar que a modernidade - utilizada para apontar para o projeto desenvolvido na Europa Ocidental a partir do século XVI - produziu a religião como categoria. Embora sirva para designar realidades virtualmente universais, essa condição depende de uma definição consolidada justamente no espaço e tempo designados pela modernidade. Procurarei ainda demonstrar que esse trabalho teve implicações para a própria modernidade: ou seja, podemos ganhar mais inteligibilidade sobre ela se refletirmos sobre o modo como definiu o que seja religião.

O tema é sem dúvida complexo e, como forma de tornar possível a sua exploração, aproximo-me dele pelo recurso a um diálogo entre dois autores: Bruno Latour e Talal Asad. Minha primeira preocupação será de apresentálos, menos para dar informações sobre seu trajeto ou seu trabalho intelectual, mais para situar seu diálogo em um panorama mais amplo, tentativamente uma espécie de comentário sobre alguns dos caminhos recentes percorridos pela antropologia. Em seguida, disponho, com base em leituras e discussões que venho mantendo com esses autores a propósito de minhas pesquisas, suas intervenções sobre os temas da religião e da modernidade. Há nessa disposição, como o leitor facilmente perceberá, um esforço de apreciação crítica. Após, farei convergir nossos autores em torno da noção de crença, que é, nesse exercício, o nexo mais importante da relação entre religião e modernidade. Pois "crença" tanto serve à definição moderna do religioso quanto permite en-tender certas características do modo como a modernidade concebe o social. Nessa parte final, ao esforço crítico junta-se uma certa cumplicidade com os autores em foco, de modo a fazer convergir argumentos deles que me parecem pertinentes e de modo a permitir a inserção de algumas situações e temas que mantêm vínculos com meus interesses de pesquisa.

Comecemos então pela apresentação de nossos autores, assinalando certos contrastes. Os leitores de língua portuguesa têm várias chances de conhecer os escritos de Bruno Latour, muitos deles, na forma de livros, artigos e entrevistas, publicados no Brasil. Seus textos circulam entre muitos públicos, algo que dialoga com a trajetória do próprio autor. Com formação em filosofia, Latour passou cerca de 20 anos vinculado a um centro de estudo da tecnologia e atualmente está inserido em uma instituição associada à ciência política, também sediada em Paris. Desde meados dos anos 1970, Latour dedica-se ao campo dos "estudos da ciência", ele mesmo constituído no cruzamento de várias disciplinas. Associado a esse investimento, Latour (1994) produziu uma reflexão sobre a modernidade, consolidada em um livro de 1991, mas desenvolvida e desdobrada em muitos outros textos. Em função dessa reflexão, outros temas foram agregados ao seu trabalho, tais como as políticas ambientais, a democracia, a arte e a religião. No caso da religião, Latour (2002) publicou um livro, confessamente referido a uma certa tradição do cristianismo, sobre o que chama de "palavra religiosa"; mas, nesse campo de questões, é ainda preciso mencionar, como farei adiante, suas considerações sobre as noções de fetiche e de Deus.

A relação de Latour com a antropologia é curiosa. Ela não faz parte de sua formação, mas integra seu ofício na década de 1970, quando acompanhou o recrutamento de africanos na Costa do Marfim por empresas francesas e quando realizou a etnografia de um laboratório de neuroendocrinologia localizado na Califórnia. Desde a publicação do livro que é resultado desse segundo trabalho, Latour está engajado em um debate com a antropologia. Em alguns momentos, designa o que faz como antropologia da ciência ou da modernidade; em outros, prefere criticar a disciplina por suas limitações para tratar desses temas; mas, em muitas ocasiões, em textos e eventos, mantém a antropologia como fonte e como interlocutora de seu empreendimento. É ainda preciso considerar que o modo pelo qual Latour escolheu tratar da ciência e da modernidade colocou-o como participante de debates sobre temas que estão na própria definição da antropologia. É o caso de teorias da ação, da relação natureza/cultura, da constituição do humano e do não humano, da definição de sociedade. Ou seja, tendo formação e trajetória que apenas tangenciam a antropologia, Latour não deixa de interferir em debates centrais da disciplina, debates que propiciam tanto a conexão com discussões "clássicas" quanto a constatação da sua atualidade.

Talal Asad é bem menos conhecido que Latour, não havendo nem a chance do leitor restrito à língua portuguesa encontrar um texto seu. Mesmo no cenário mundial, pode-se dizer que Asad é um autor quase marginal no debate contemporâneo.1 1 Como notou o parecerista anônimo, essa marginalização é atenuada pelo privilégio conferido ao islã como tema de discussão. O islã, como indicarei adiante, é um dos objetos centrais de Asad e faz parte também de seus compromissos políticos. Ao contrário de Latour, sua trajetória é completamente integrada à antropologia. Ela começa no final dos anos 1950, em uma graduação em Edimburgo, Escócia, concluída com uma monografia sobre a noção de ritual em Radcliffe-Brown. Asad continua sua formação em Oxford, Inglaterra, durante a qual realizou dois trabalhos, um sobre lei islâmica no Punjab colonial e outro, sua tese orientada por Evans-Pritchard, sobre a estrutura de dominação local de um grupo no Sudão. Asad foi professor de antropologia já no Sudão e continuou a sê-lo na Inglaterra e nos Estados Unidos, onde está radicado desde 1988. Participou da coletânea Writing culture (Asad, 1986a), em texto no qual polemiza com Ernest Gellner. A polêmica, aliás, é uma marca de seu trabalho: Barth e Geertz estão entre os autores com os quais seus textos debatem. Sua relação com a antropologia conjuga pertencimento e crítica, como evidencia outro livro de que Asad participa - Anthropology and the colonial encounter (Asad, 1973), umas das primeiras ocorrências do debate sobre as implicações do colonialismo para a antropologia.

O mesmo livro é também uma evidência da associação entre o trabalho de Asad e os chamados estudos pós-coloniais. Esses estudos mantêm com as disciplinas uma relação tão transversal quanto aquela dos estudos da ciência, com a agravante - se estivermos procurando por precisões - de não haver um objeto definido. Uma das maneiras de se manter uma interlocução e de se apropriar dos estudos pós-coloniais é exatamente o diálogo com o empreendimento antropológico.2 2 Temos um exemplo disso no texto de Ribeiro (2006), onde o leitor pode encontrar algumas referências sobre o campo de estudos pós-coloniais. Isso, por um lado, situa a antropologia como um dos saberes envolvidos na relação entre mundos definidos por "encontros coloniais", ou, de modo mais geral, por quadros assimétricos. Tal operação pode ser valiosa em termos de recursos reflexivos e análises históricas. Por outro lado, entendo que o horizonte das teorias pós-coloniais não é estranho aos compromissos antropológicos: o questionamento do eurocentrismo e uma compreensão do mundo que enfatiza as implicações mútuas dos processos históricos e sociais. Também nessa segunda via o trabalho de Asad tem sido proveitoso, por conta de seu investimento (atrelado, aliás, a engajamentos políticos) no estudo de sociedades islâmicas de uma maneira que implica o questionamento de princípios bem estabelecidos nas concepções ocidentais.

Religião tem sido um tema definidor no trabalho de Asad. Em parte, por questões biográficas: filho de mãe saudita, ele foi criado como muçulmano na Índia e no Paquistão. Mas o tópico só aparece claramente como objeto de estudo no final dos anos 1970, depois que Asad participa de um grupo dedicado a discussões e publicações sobre o Oriente Médio. O texto que consolida seus investimentos é o que foi escolhido para abrir a coletânea Genealogies of religion (Asad, 1993). Publicado originalmente em 1983, trata-se uma polêmica com Clifford Geertz em torno do conceito de religião, que conta com análises sobre o cristianismo medieval. Asad (2003) manteve análises sobre o cristianismo medieval no livro seguinte, Formations of the secular, apresentado como um desdobramento do anterior. Mas em Formations, tem mais espaço o islã, que foi também tema de um ensaio, The idea of an anthropology of Islam (Asad, 1986b). Além disso, desde Genealogies, Asad articula suas análises sobre o cristianismo e sobre o islã com reflexões acerca da modernidade ou dos princípios liberais. Eventualmente, os temas se cruzam, como no caso da observação sobre minorias muçulmanas em países ocidentais. Penso que o mais interessante é tomar essas articulações como demonstrações profícuas da relação entre antropologia e estudos pós-coloniais, o que ressituaria Asad como autor relevante para debates contemporâneos.

Latour e Asad mantêm, portanto, com a antropologia uma relação complexa, na qual se misturam comprometimento e crítica. Talvez isso seja sintomático acerca da situação atual da antropologia, cuja continuidade depende de uma crise de suas próprias condições de produção, cuja permanência se sustenta no abalo produzido sobre a certeza das fronteiras e das distinções disciplinares. Em um registro mais modesto, limito-me a confessar meu entusiasmo com as contribuições e as provocações desses dois autores tão diferentes. Latour, católico por opção, antropólogo por implicação, cujas elaborações propõem uma espécie de universalismo pela ampliação do centro; Asad, muçulmano por formação, antropólogo por convicção, cujas polêmicas insistem em trazer para perto os desafios das margens. Seus textos, aliás, não trazem nenhuma manifestação de conhecimento mútuo ou unilateral. Isso torna o diálogo aqui anunciado um certo desafio e amplia as expectativas sobre seus resultados. Para permitir a exploração tão longa quanto possível de suas obras, autorizo-me a restringir outras referências intelectuais, e passo às contribuições de nossos autores para a questão que inspira este texto: o que a religião faz na modernidade?

Latour, o predicador não moderno

Em 2002, Latour publicou na França um livro no qual trata direta e especificamente de religião. Suas posições percorrem também outros textos.3 3 Ver sobre eles o comentário de Otávio Velho (2005), no qual várias das questões abordadas aqui são retomadas e colocadas a serviço de outros diálogos intelectuais. Latour propõe que designemos por religião um certo modo de enunciação, com suas correspondentes exigências de produção de verdades. Nesse modo, a informação, no sentido referencial, já está dada e não constitui o foco da comunicação religiosa; o que lhe cabe é atualizar, presentificar, através de uma tradução tão inventiva quanto fiel, uma mensagem já conhecida, já revelada. A comunicação é eficaz se (e enquanto) consegue transformar aqueles a quem se dirige, se estes aceitam o seu apelo, se, por sua vez, estão presentes naquilo que respondem. Latour aproxima a palavra religiosa do discurso amoroso: a pergunta é um chamado, a resposta é (ou não) um engajamento. Está em jogo, sempre arriscadamente, o estabelecimento de uma relação por um mecanismo de compreensão retrospectiva, pela qual o presente recupera o passado e o estranho dá lugar ao familiar: "graças à qual povos diversos descobrem enfim que estão conectados pela mesma história, que eles formam em realidade o mesmo povo, pois que neles ressoa a mesma mensagem sob fórmulas nunca iguais" (Latour, 2002, p. 196, tradução minha).

Pois bem, mas a que corresponde essa definição do religioso? Latour não faz referência a situações ou experiências do nosso presente. Nesse plano, seus escritos são algo enigmáticos: constatam um incômodo - pessoal, mas supostamente compartilhado - que remete às igrejas esvaziadas e ao insucesso de prédicas sacerdotais; ao mesmo tempo, anunciam a oportunidade para uma nova compreensão, para outro movimento de disseminação da palavra religiosa. Nada do que existe merece a atenção do autor, que parece não identificar nenhuma vivência atual como confirmação de suas definições. Os exemplos a que Latour recorre são textos ou imagens do cristianismo, um cristianismo pré-Reforma, e os comentários que tece a seu propósito dialogam com uma teologia da deidade encarnada. Um dos temas dessa teologia é exatamente a copresença do divino e do humano. O Pentecostes é emblemático, não só porque naquela ocasião os apóstolos são compreendidos em muitas línguas, mas porque se trata da manifestação humana do divino. Nosso autor comenta um retábulo de Fra Angelico que ilustra a ressurreição de Cristo, embora seu corpo não seja visto pelas mulheres retratadas, as quais constatam apenas o túmulo vazio. Trata-se de uma teologia que precisa da ilusão da ausência e que se alimenta do desaparecimento de um Deus que prefere viver entre os homens.4 4 Velho (2005) nota, na mesma chave, a convergência entre a ênfase de Latour na (re)presentação e o tema da segunda vinda de Cristo. Na aproximação que faço, há pontes possíveis com um trabalho de Vattimo (1996) em que fala de seu reencontro pessoal com o cristianismo e a associa a uma ontologia fundada na ideia de debilitamento. A mesma consequência, continua o autor, existiria na doutrina da Encarnação de Deus, que consiste exatamente na negação da onipotência, da estaticidade e da transcendência divinas. Com essas ilustrações, Latour, enfatizando a exigência de uma experiência, associa suas formulações a uma tradição específica - e que ele julga necessário renovar, elevada ao "propriamente religioso".

Em outro texto, nosso autor trata também da noção de Deus, mas não quer com ela fazer referência a uma entidade, mas sim a "uma teoria da ação, do domínio e da criação" (Latour, 2001, p. 306). Nela, central é a noção de controle, como predicado do sujeito, seja ele divino ou humano. O que importa para Latour é nos desfazermos dessa teoria da agência, que reitera a dicotomia entre sujeito e objeto. Ela se inspiraria em uma teologia que mantém Deus distante de suas criações:

Eis uma estranha e ímpia descrição de Deus. Como se Deus fosse dono de Sua Criação! Como se fosse onipresente e onisciente! Se Ele tivesse todas essas perfeições, não haveria Criação. [...] também Deus é ligeiramente surpreendido pela sua Criação, ou seja, por tudo o que é mudado, modificado e alterado ao encontrar-se com Ele. (Latour, 2001, p. 323).

Em Jubiler, Latour (2002) retoma e desenvolve essas ideias, desembocando na sugestão de que a religião - o que ele chama de "palavra religiosa" - prescinde de "Deus". A melhor atualização do que um dia foi chamado de Deus, realizando o que propõe como sua invenção fiel, é "o quadro indiscutível da existência banal". Formulação sujeita a dupla leitura: Deus não pode ter lugar em uma ontologia da mediação ou se trata da radicalização de uma verdadeira teologia que humaniza o divino? Seja como for, para Latour, Deus é menos importante do que a religião.

Penso ser útil contrastar o projeto de Latour nesse livro e nos textos que o acompanham com outros dois momentos em que a religião aparece como tema para ele. Sobretudo, porque seu argumento não se modifica, e mesmo as ilustrações apresentadas para sustentá-las se repetem, prova de que o estudioso da ciência mantém na religião um interesse antigo. O que muda é o estatuto que Latour confere às situações religiosas que analisa. Em 1975, ele apresentou uma tese de doutorado na qual discute as exegeses do Evangelho de Marcos.5 5 Tenho notícia dessa tese apenas pela citação que o próprio Latour (1983, p. 232-235) lhe faz em outro texto. Seu título: Exégese et ontologie, une analyse des textes de résurrection, thèse pour le doctorat de 3e cicle, Philosophie, Université de Tours, 1975. Nesse caso, sua preocupação é contrastar duas formas de exegese bíblica, uma das quais muito semelhante ao que propõe no livro de 2002, mas sem precisar elevá-la a uma definição do propriamente religioso. Em outro texto, publicado pela primeira vez em 1990, Latour (1993) elabora um contraste entre dois regimes de mediação ou de tradução, um associado à ciência, outro à religião. Novamente, o que diz sobre esse segundo regime seria retomado mais adiante para caracterizar a "palavra religiosa". Ocorre que no texto de 1990 Latour analisa um momento histórico mais ou menos preciso, que assinala a passagem da religião para a ciência como linguagens e técnicas predominantes em uma sociedade. Não se trata então de falar da religião em geral, como parece ser o caso em Jubiler.

Eis então o problema: Latour escreve um livro sobre a "palavra religiosa", mas toda vez que procuramos pelas referências que o animam somos conduzidos para argumentações dentro de uma tradição específica. Em defesa do autor, diga-se logo que ele é o primeiro a prevenir contra falsas expectativas. Eis a advertência que redige para seu auditório:

Não creio que seja possível falar de religião sem deixar clara a forma de discurso mais conforme ao seu tipo de "predicação". A religião, ao menos na tradição a partir da qual falarei - a saber, a cristã -, é um modo de pregar, de predicar, de enunciar a verdade - eis por que tenho de imitar na escrita a situação em que uma prédica é feita do púlpito. Esta é literalmente, tecnicamente, teologicamente uma forma de dar a notícia, de trazer a "boa nova", o que em grego se chamou "

evangelios"

. Portanto, não vou falar da religião em geral, como se existisse algum domínio, assunto ou problema universal chamado "religião" que permitisse comparar divindades, rituais e crenças, da Papua-Nova Guiné a Meca, da Ilha de Páscoa à cidade do Vaticano. Um fiel tem uma só religião, como uma criança tem uma só mãe. Não há ponto de vista a partir do qual seria possível comparar diferentes religiões e ao mesmo tempo falar de modo religioso. Como vêem, meu propósito não é falar sobre religião, mas falar-lhes religiosamente, ao menos de modo suficientemente religioso para que possamos começar a analisar as condições de felicidade desse ato de fala, demonstrando in vivo, esta noite e nesta sala, que tipo de "condição de verdade" ele exige. (Latour, 2004, p. 350, grifo do autor).

Nesse trecho, além de recuperar seu objetivo, Latour deixa claro que se insere em uma tradição, nega que queira generalizar acerca do religioso e declara sua obrigação de prédica.

Ele não parece estar interessado em convencer o leitor de que há situações - para além daquelas circunscritas à tradição na qual se insere - que poderiam ser melhor compreendidas com a ajuda de suas formulações. Apesar da ausência de citações, pode-se reconhecer a influência que o pragmatismo linguístico desempenha sobre Latour, uma influência que para outros autores servirá para propor formulações que pretendem, por exemplo, acrescentar inteligibilidade ao que a antropologia chama de "magia". E numa direção que propicia aproximações com o modo como Latour aborda as ciências. Temas como ação à distância, agências invisíveis, instâncias de mediação percorrem tanto a magia quanto a ciência. A proposta de uma antropologia simétrica, que identificou Latour, está baseada na necessidade de entender o lugar das ciências na sociedade moderna do mesmo modo, por exemplo, que entendemos o lugar das técnicas mágicas (ou das práticas e concepções religiosas) em sociedades indígenas. Não é o caso de aprofundar esse ponto aqui; e sim de notar que Latour reserva à religião um papel exclusivo de predicação, ao passo que sua maneira de analisar a ciência passa por um vocabulário e vale-se de temas que lhe permitem, num certo sentido, falar religiosamente da ciência.6 6 "[...] é da ciência que se deve dizer que alcança o mundo invisível do além, que é espiritual, milagrosa, que sacia e edifica a alma" (Latour, 2004, p. 360,). Desenvolvi o contraponto entre magia e ciência em um texto que parte de uma apreciação do livro de Evans-Pritchard sobre a bruxaria azande e que faz Latour dialogar com antropólogos como Stanley Tambiah e Alfred Gell, que estão entre aqueles também influenciados pelo pragmatismo linguístico (Giumbelli, 2006).

Insistamos um pouco sobre o paralelo com a ciência. Afinal, ele é central na elaboração do próprio Latour (2002) sobre a religião. De fato, a formulação do que seria o modo de enunciação religioso está estruturada por um contraste com o modo de enunciação científico. Para a prática científica, segundo o autor, o fundamental é o transporte de informação. Mas isso se faz também através de traduções e de mediações, como na religião; a diferença é que, na ciência, o que se transporta é um mesmo referente, que permite conectar coisas tão distintas quanto um território, um registro em um instrumento de medição, um diagrama no computador e um mapa que ilustre um artigo publicado em uma revista. Latour então estabelece essa relação contrastiva entre dois modos de produção de verdades e duas economias de mediação. Como sabe o leitor de seus textos mais polêmicos, ele acha mesmo que essa maneira de entender a ciência produzirá uma outra política, na qual a reflexão sobre os mecanismos de representação é algo crucial. Nesse sentido, Latour não fala "sobre a ciência" apenas. Mas ele não se sente impedido de fazê-lo: ou seja, e é isto que pretendo destacar, quando escreve sobre o modo de enunciação científico, apresenta-o como uma apreensão descritiva de como as ciências funcionam. Já no caso do modo de enunciação religioso, essa apreensão descritiva é restringida até ser negada.

O problema então do que Latour apresenta como suas elaborações acerca da palavra religiosa não é que não sejam generalizáveis; e sim que, renunciando mesmo a qualquer outra aplicação do que aquela que seu autor lhe dá, elas ganhem mais sentido pela relação que mantêm com a ciência. O que Latour parece querer, afinal, é estabelecer a relação que considera mais conveniente entre religião e ciência, de modo que elas possam coexistir sem entrar em conflito. Mas quais as implicações desse procedimento? São convincentes suas interpretações sobre a interação, a propósito de certa tradição, entre devotos, imagens e instituições. São também interessantes suas formulações sobre esse modo de enunciação que funciona pela conversão do destinatário. Entretanto, ao articulá-las sob a designação do "religioso", Latour desempenha de fato o papel estrito do predicador: alguém que aponta como devemos nos tornar devotos. Talvez seja essa mesmo sua intenção, inventar, fielmente a uma tradição, uma religião não moderna. Mas, ao contrário do que consegue fazer com a ciência, não ajuda muito a entender o que a religião faz na modernidade.

Asad, antropólogo do secularismo

Como Asad reagiria diante do empreendimento de Latour? Impossível saber, mas a citação a seguir será o mote para o diálogo que prosseguirá: "Definir 'religião' é antes de tudo um ato." (Asad, 2001, p. 220, tradução minha). Asad encara qualquer definição de religião não como uma necessidade epistemológica, mas como um elemento que participa de um contexto histórico particular - no interior do qual pode ser estudado.7 7 Velho (2005) já faz o contraponto entre Asad e Latour a propósito da operação de definição do religioso. Procuro aprofundar o ponto aqui. Portanto, quando coloca sob observação uma dessas definições, ele não está à procura de outra, que seria o resultado da crítica das limitações e da parcialidade da primeira. "Estou apenas apontando para o fato de que religião como uma categoria está sendo constantemente definida dentro de contextos sociais e históricos, e que as pessoas possuem razões específicas para defini-la de um modo ou outro." (Asad, 2002, p. 1, tradução minha). Referindo-se, por exemplo, ao contexto indiano recente, as disputas que cercam o estabelecimento do que seja uma entidade tão heterogênea quanto à do hinduísmo devem ser tratadas, segundo Asad (2001, p. 210), como um jogo altamente político, que envolve, entre outras coisas, a questão dos limites e sustentação de comunidades e tradições. No caso das formulações de Latour, Asad provavelmente notaria, como fez a propósito de outro autor (Asad, 1999, p. 178-182), seu desejo de intervir na definição do papel público da religião no mundo contemporâneo.

Essa perspectiva de investigação já se estabelece claramente no texto publicado em 1983, no qual Asad polemiza com Geertz, mas alvejando, no debate intelectual, toda tentativa de definição da religião. Em seu percurso, esse texto participa do esforço mais geral de crítica a concepções que tomam a cultura como texto e que se propõem a tarefa de interpretar significados como se fossem dados primordiais. Asad insiste na necessidade de investigar a produção de discursos e representações em meio a práticas sociais, envolvendo instâncias de autoridade e processos de subjetivação. Ou seja, ao invés de ten-tar aplicar ou reconhecer os itens articulados em uma definição antropológica da religião - tal como aquela que Geertz (1978) apresenta em um dos capítulos de Interpretação das culturas -, é preferível decompor uma determinada situação - designada por algum ator social como "religiosa" - nos elementos heterogêneos correspondentes a forças historicamente distintivas que correspondam a instâncias de autoridade e processos de subjetivação. No texto de 1983, Asad exercita sua perspectiva diante do cristianismo medieval, apontando complexos socialmente identificáveis, suas instituições de autoridade, suas categorias de conhecimento, seus efeitos de disciplina.

Pode-se formular o projeto de Asad deste modo: como estudar religião sem partir de uma definição de religião que lhe dá prioridade epistemológica e também sem considerá-la como algo ontologicamente secundário, situado em uma camada menos importante da sociedade? Duas noções ganham crucialidade, levando uma à outra. A primeira é a de prática, que interroga sobre as condições pelas e nas quais uma experiência significativa torna-se possível; a segunda é a de tradição, entendida não apenas na dimensão de uma continuidade, mas também como espaço de argumentação no âmbito de condições históricas mutantes. Asad propõe que acompanhemos os circuitos que, em relação às pessoas, articulam interioridade e exterioridade e que, portanto, envolvem a produção de desejos, expectativas e sensibilidades e também de comportamentos e interações com objetos materiais. O corpo é lugar de passagem, marcado, exercitado, disciplinado, enredado e protagonista de processos observáveis. Tradição, portanto, deve ser concebida como um modo prático de vida, como técnicas de produção, na mente e no corpo, de "virtudes e habilidades específicas que foram autorizadas, legadas e reformuladas ao longo de gerações" (Asad, 2001, p. 216, tradução minha).

Genealogies of religion, livro que traz em sua abertura o texto de polêmica com Geertz, foi concebido sob essa inspiração, exercitada sobretudo a propósito do cristianismo medieval em sua produção de uma obediência voluntária, desejada mesmo. No livro seguinte, Formations of the secular, Asad (2003, p. 1) apresenta como novidade uma "antropologia do secularismo". Suas consequências são preciosas, mas penso que seu valor cresce - ao menos para os propósitos deste texto - se forem apreendidas após um duplo comentário. O primeiro tem como alvo o entendimento que articula secularismo - como doutrina política ou ideologia - e secular - como categoria epistêmica ou como uma "variedade de conceitos, práticas e sensibilidades". Para Asad (2003, p. 16), o secular é conceitualmente anterior ao secularismo. Isso é discutível. Tomemos, para um contraponto, as formulações de Milbank (1990, p. 9, tradução minha), para quem "o secular como um domínio teve de ser instituído ou imaginado, na teoria e na prática"; na era medieval, o saeculum não era um espaço, mas um tempo, um momento no interior da história sagrada. Asad concorda que "o secular" é algo produzido. Mas não seria o secularismo parte imprescindível dessa produção? É possível abstrair o secularismo na definição do que seja o secular?

Isso nos leva ao segundo comentário, embora ele ainda tenha consequências sobre o primeiro. Quando alguém utiliza a categoria "secularismo", no sentido de uma "doutrina política", associa suas formulações com situações nas quais houve ou há um debate que tem nessa doutrina uma referência. Isso pode ter ocorrido em algum grau em quase todo lugar que, desde o século XIX, passou pela influência de ideia que propugnava a separação entre Estado e igrejas e que visava, de maneira mais geral, autonomizar a política em relação a forças, agentes e argumentos religiosos. Mas é preciso reconhecer que a categoria se tornou muito mais significativa na história política de certospaíses, como Estados Unidos, Turquia e Índia, ou, na versão latina consolidada pela categoria "laicidade", França, México e Uruguai. Uma "antropologia do secularismo" corresponderia então a uma análise de debates que tiveram por referência o secularismo ou a laicidade, com privilégio para as situações onde essa referência foi fundamental. Ocorre que Asad pretende e consegue fazer algo diferente. Pois seu foco não recai sobre debates, e sim sobre as situações pelas quais a oposição entre "o secular" e "o religioso" é estabelecida, não apenas por discursos, mas por tecnologias e dispositivos de formação de sujeitos e de configuração do social. Isso aponta para a interdependência entre as categorias "secular" e "religioso" e também para a insuficiência do "secularismo" para definir o que Asad propõe em sua antropologia - que, aliás, recua para períodos anteriores ao século XIX.

De fato, em suas análises inspiradas pelas formulações do último livro, a relação entre secular e religioso é uma preocupação constante. Ao contrário do tom que predomina em Genealogies of religion, no qual está sugerida uma distância grande entre a situação descrita pelo cristianismo medieval e o Ocidente moderno, em Formations of the secular é exatamente a convivência entre religião e modernidade que se destaca. Asad lembra que a história dos Estados seculares (no sentido de secularizados) demonstra muitos exemplos de acomodações com agentes religiosos, como fica claro com a chegada de minorias identificadas com religiões estranhas à formação nacional. "As formas de mediação características da sociedade moderna certamente diferem de sociedades cristãs medievais - e islâmicas - mas não se trata de mera questão de ausência de 'religião' na vida pública do Estado-nação moderno." (Asad, 2003, p. 5, tradução minha). Nesse sentido, Asad está diretamente preocupado com a situação de minorias - sobretudo as muçulmanas - em países ocidentais, não só pelo tratamento que recebem, mas também pelo que isso revela acerca da forma - acidentada e assimétrica - de constituição do espaço público. De forma simétrica e inversa, ele está interessado no modo como em países muçulmanos no Estado e na sociedade civil se assimilam os ideais do secularismo, mesmo que seja para atacá-los.

Em outro plano, a análise de Asad sobre a relação entre secular e religioso é ainda mais intrincada. Pois não se trata apenas de convivência, mas de mecanismos pelos quais a definição do que seja religioso depende do secular. Vejamos: "É precisamente em um Estado secular - supostamente totalmente separado da religião - que é essencial para a lei definir, muitas vezes, o que seja genuinamente religião, e onde suas fronteiras devem propriamente estar." (Asad, 2001, p. 2, grifo do autor, tradução minha). Isso abrange, por exemplo, a criação de instrumentos e estatutos jurídicos para registrar instituições religiosas. Mas vai além, no sentido de que pode envolver uma espécie de hermenêutica voltada para o reconhecimento de motivações religiosas. Asad (2006b) exercita a ideia analisando a proibição do uso do véu em escolas públicas francesas, fundamentada em uma lei de 2004. O que essa lei faz, ao designar o véu como um "signo ostensivamente religioso", é conferir-lhe um sentido que ele pode não ter para sua usuária. O que está em jogo, pois, é o lugar que a religião deve ocupar em uma sociedade e as formas pelas quais se configuram os sujeitos para que essa adequação tenda a ocorrer. Embora essa lei esteja incrustada em definições oficiais de laicidade, Asad não a analisa para entender apenas o secularismo, mas para iluminar certas dimensões cruciais do que chama de modernidade.

Eis onde pretendo chegar: o que Asad propõe é uma antropologia da modernidade, na medida em que é no seu âmbito e por referência a ela que as relações observadas entre secular e religioso adquirem sentido e fundamento. Isso parece ser reconhecido pelo próprio Asad, que, apesar de definir seu projeto como uma antropologia do secularismo, se dedica a uma definição da modernidade que inclui o secularismo como um de seus princípios. Mas a modernidade não é feita apenas de princípios, pois implica também "tecnologias (de produção, guerra, viagem, entretenimento, cura)" engajadas na produção de "sensibilidades, estéticas e moralidades distintivas" (Asad, 2003, p. 13-14, tradução minha). Na verdade, o mais importante não é chegar a uma definição que circunscreva uma era - como Asad parece às vezes querer -, mas reconhecer que a relação entre religioso e secular, historicamente constituída, carrega consigo implicações para a configuração de uma sociedade.

O que me interessa particularmente é o esforço de construir as categorias do secular e do religioso nos termos que são requeridos para o viver moderno ocorrer, e apresentados aos povos não modernos visando a sua adequação. Pois representações do "secular" e do "religioso" em Estados modernos e em modernização mediam as identidades pessoais, ajudam a construir suas sensibilidades e garantem suas experiências. (Asad, 2003, p. 14, tradução minha).

O lugar e a importância do religioso para a modernidade se afirma, para Asad, desde seus momentos fundadores. Foi no século XVIII que surgiram as primeiras definições universais de religião, que passaram a imaginá-la como domínio que poderia ser delimitado na composição de uma sociedade, como gênero que poderia conter muitas espécies.

Religião é um conceito moderno [...] porque ele foi associado com seu gêmeo siamês, o "secularismo". A religião tem sido parte da reestruturação de tempos e espaços práticos, uma rearticulação de conhecimentos e poderes mundanos, de comportamentos subjetivos, sensibilidades, necessidades e expectativas na modernidade. Mas isso aplica também ao secularismo, cuja função tem sido tentar guiar aquela rearticulação e definir "religiões" no plural como espécies de crença (não racional). (Asad, 2001, p. 221, tradução minha).

Para Asad, a antropologia deveria se dedicar não a formular outras definições universais de religião, e sim a entender o papel e as implicações dessas definições para a sociedade na qual se inserem. Isso poderia servir de crítica a Latour quando este designa como "religiosas" as formulações sobre um certo modo de enunciação e produção de verdades; mas não deixaria de concordar com a proposta de uma antropologia da modernidade. Menos do que discutir os fundamentos de uma tal antropologia, o que me interessa é notar a convergência entre os dois autores por conta do destaque que a categoria "crença" adquire nas suas definições do que faz a modernidade.

Crença na modernidade

Para Asad, a crença é a forma que a religião adquire na modernidade, o que supõe um processo histórico, uma transformação que ele percebe a partir do contraste propiciado pelo cristianismo medieval. "Deixando de ser um conjunto concreto de regras práticas vinculadas a processos específicos de poder e conhecimento, a religião tornou-se abstrata e universalizada." (Asad, 1993, p. 42, tradução minha). No mesmo texto, o autor assinala alguns aspectos dessa transformação, destacando a noção de "religião natural", "uma ideia desenvolvida em resposta a problemas específicos à teologia cristã em um nexo histórico particular" (Asad, 1993, p. 42, tradução minha). Com a ajuda de outros autores,8 8 Uma referência inaugural é o trabalho de Smith, W. (1991), publicado originalmente em 1962, com a qual Asad (2001) discute, reconhecendo suas realizações e apontando seus limites. Outras referências importantes: Despland (1979), Dubuisson (1998), Harrison (1990), Toulmin (1990), Masuzawa (2005) e Smith, J. (1997). A importância dessas referências é pela ajuda que prestam para entender os contextos históricos da emergência de uma ciência e de uma filosofia da religião. Para contextos recentes, ver os textos de Beyer (2003) e McCutcheon (1997). poderíamos ampliar a caracterização desse nexo: conjugam-se, naquele momento histórico vivido desde a Europa ocidental, movimentos tais como a partição do cristianismo romano, a formação e consolidação de Estados-nações, o empreendimento colonialista (com sua consequente ampliação do conhecimento sobre o mundo), a criação e organização de disciplinas científicas. Asad destaca um componente, que se relaciona mais diretamente com debates filosóficos acerca da natureza da religião, que convergem para a sua definição como um conjunto de proposições com o qual os sujeitos se relacionam na modalidade da crença. Isso proporcionou, ao mesmo tempo, a universalização da religião (gênero ou virtualidade que se manifesta em suas muitas espécies) e a sua marginalização (enquanto locus para produção de conhecimento disciplinado e subjetivação orientada).

Implícita na abordagem de Asad está a seguinte proposta: se uma religião é definida ou se apresenta como "crença", o que ela designa precisa ser visto como apenas parte de um dispositivo mais amplo, aquele que dá conta da formação de disciplinas e de sujeitos. Nessa crítica epistemológica à noção de crença encontramos já Latour.9 9 É nesse sentido que propõe um agnosticismo: livremo-nos da noção de crença (Latour, 1996, 2001, 2002). De fato, para ele a utilização da crença para se definir a religião provoca uma espécie de curto-circuito: faz-se à palavra religiosa exigências que só cabem a outros modos de enunciação. Assim, quando se fala em crença, espera-se informação, quando, segundo Latour, isso é exatamente o que menos interessa à religião produzir. Ou então, como consequência de um fracasso em obtê-la, apela-se a uma subjetivação, a uma simbolização ou a uma estetização; ou ainda a uma espiritualização que desencaminha um verdadeiro entendimento.10 10 "A religião, na tradição que eu gostaria de tornar novamente presente, nada tem a ver com subjetividade, nem com transcendência, nem com irracionalidade, e a última coisa de que ela necessita é a tolerância dos intelectuais abertos e caridosos, que querem acrescentar aos fatos da ciência - verdadeiros, porém secos - o profundo e encantador 'suplemento de alma' provido por pitorescos sentimentos religiosos." (Latour, 2004, p. 358). Em outro texto, Latour (1993, p. 242 e ss.) designa como crença o que acontece com a religião quanto esta aceita, ou sobre ela se aplica, o regime de verdade próprio da ciência, nesse caso exercitando a análise de uma situação histórica que lamenta o papel que nela tiveram os cientistas racionalistas e os religiosos da Reforma e da Contrarreforma. Penso, no entanto, que interessam menos as críticas epistemológicas em si do que a relação que elas mantêm com uma exploração sobre o lugar da noção de crença não apenas na definição da religião, mas também na definição da modernidade.

Podemos então nos referir às elaborações de Latour exatamente onde elas produzem um outro encontro com as de Asad, no bojo das transformações históricas que desembocaram em uma nova definição de religião. Pois os debates sobre a natureza da religião foram alimentados pela noção de fetichismo proposta por um autor no século XVIII, noção que é retomada por Latour em vários de seus textos. Seu objetivo não é propriamente uma análise da formação histórica daquele conceito - que, como sabemos, teve avatares importantes nos escritos de Marx e Freud -, mas uma reflexão epistemológica sobre a noção que o embasa, a noção de fetiche.11 11 Para um competente inventário e uma interessante discussão sobre a noção de fetiche na antropologia contemporânea, bem como sobre suas condições de surgimento, ver Pires (2009). Ora, o fetiche, explica Latour, é definido como o produto de uma crença: projeta-se qualidades humanas sobre uma pedra, por exemplo, que em função disso passa por ser divino. Envolvida na caracterização, a crença torna-se, antes de mais nada, uma denúncia. Os fetichistas povoam o mundo de entidades inexistentes, conferem às coisas atributos que elas não possuem. Para Latour, a noção de crença está comprometida com uma separação entre sujeito e objeto, entre epistemologia e ontologia. O pressuposto é o da existência da natureza como algo composto de coisas autônomas; o que a crença faz é projetar certos postulados mentais, certas representações sobre essa realidade: "um mundo físico 'lá fora' versus muitos mundos mentais 'aqui dentro'" (Latour, 2001, p. 325).

Essa reflexão epistemológica não está, no entanto, desvinculada de uma formação historicamente localizável, pois Latour associa crença e modernidade. Vejamos como sua Pequena reflexão começa: "A crença não é um estado mental, mas um efeito da relação entre povos [...]. Em todos os lugares que eles [os modernos] jogam a âncora, eles estabelecem fetiches, ou seja, eles veem em todos os povos com que encontram adoradores de objetos que são nada." (Latour, 1996, p. 15, tradução minha). Um moderno é aquele que crê que os outros creem. Mas, novamente, não se trata de um estado mental, mas de algo associado a uma prática sistemática, a libertação dos ídolos. O moderno, portanto, é um iconoclasta, um antifetichista, com todas as implicações concretas que isso pode ter. Sua denúncia vem acompanhada de destruição: é preciso entregar aos fetichistas a natureza como ela é. Mas é preciso também preservar - em museus, por exemplo - esses objetos que foram inventados como fetiches, como provas das proezas de que a humanidade foi capaz. Daí o comentário irônico de Latour sobre as reações, inspiradas por um impulso de preservação, à destruição dos monumentais budas de Bamiyan pelos talibãs no Afeganistão: "Como muitas pessoas notaram, 99% daqueles que se escandalizaram com o gesto de vandalismo dos talibãs descendem de ancestrais que deixaram em pedaços os ícones mais preciosos de algum outro povo - ou, em verdade, participaram eles mesmos de algum ato de desconstrução." (Latour, 2008, p. 119).

Para Latour, portanto, a noção de crença é importante não como categoria heurística universal, e seria enganoso procurar nela apenas algo correspondente a representações; ela permite saber como agem e o que fazem os modernos. Se quisermos entender essa ação, precisamos, segundo nosso autor, igualar os modernos aos não modernos. É nesse sentido que ele propõe a noção de fatiche, que visa substituir e ao mesmo tempo articular fatos e fetiches. Os objetos, tanto quanto os deuses, são feitos, e o que se trata de determinar são as exigências, condições e mecanismos pelos quais uns e outros vêm a existir. Os movimentos de destruição e reparação contidos na aproximação dos modernos com outros povos podem então ser entendidos com a ajuda da noção de fatiche: eles destroem certas entidades para dar existência a outras que promovam ou acelerem sua ação (Latour, 2001). De modo análogo, Latour (2008) insiste no trabalho produtivo do iconoclasta, pois o estatuto e o significado de sua destruição nunca são certos, pois é sempre possível associar uma outra imagem ao próprio ato de destruição. Voltemos então à noção de crença, para aprofundar a demanda pelo que ela faz, ou, recorrendo ao modo de busca em Asad, para sabermos como ela se articula com o que faz a modernidade enquanto conjunto de tecnologias para a produção de um viver no mundo.

Mas fiquemos ainda com Latour, pois penso que novamente é possível construir uma convergência. Na sua sugestão de que é mesmo um fatiche que está em jogo no recurso dos modernos à crença, o autor da Petite réflexion demonstra como a teoria da agência implícita na acusação de fetichismo é maiscomplexa do que aparenta. À primeira análise, a verdadeira ação partiria apenas do sujeito humano, que projeta suas representações sobre certos objetos, o que os torna fetiches. Mas ao procurarmos especificar as razões pelas quais tal objeto fica investido dessa condição, vemos que os modernos não estão tão seguros de que ao objeto da natureza não se misturam forças de outra ordem, tais como "a sociedade", "a economia" ou "o inconsciente". Ou seja: "Os antifetichistas, como os fetichistas, não sabem quem age e quem se engana sobre a origem da ação, quem é mestre e quem é alienado ou possuído." (Latour, 1996, p. 28, tradução minha). Desse modo, alternam sobre os fetichistas uma dupla crítica, que se refere ora à liberdade que viria da denúncia da projeção, ora à sujeição que o objeto representa. Mais ainda, pois liberdade e sujeição podem elas mesmas variar em sua referência: a liberdade se aplica também à capacidade de projeção, que não é anulada como parte do processo; a sujeição se aplica ao próprio sujeito para definir a natureza dele.

Sob as várias modalidades, todas possíveis, do argumento moderno, uma coisa é certa: a mesma crítica que pretende revelar o objeto como inerte é a que lhe confere um poder - de inversão, de dissimulação, de transformação da força em cuja origem estaria (mas quem pode ter certeza?) o sujeito humano. O tema reaparece em outro texto para caracterizar o dilema dos antifetichistas: quanto mais afirmam que um fetiche nada é, mais ação emana dele (Latour, 2001). Ou ainda no texto sobre os iconoclastas: se as imagens materiais são tão falsas, por que atacá-las? E, ao observar o fluxo permanente das mediações, novamente os iconoclastas aparecem sob a pressão de possibilidades contraditórias, pois oscilariam, na definição do humano e suas criações, entre lhe atribuir poder ilimitado e reconhecer sua dependência infinita (Latour, 2008, p. 124-126). Em todos os textos, Latour nota como essas alternâncias podem se cristalizar na dupla manipulação/ingenuidade. Nesse caso, as forças que percorrem e conectam humanos e não humanos passam a identificar posições em uma relação social, cabendo a alguns o papel de charlatães, a outros o papel de ludibriados. Sabe-se como esse é um tropo clássico na crítica da religião. Mas, estando Latour certo, ele não é senão uma instância da economia de argumentos e de ações permitidas pela noção de crença.

Em Jamais fomos modernos, seu livro mais conhecido e talvez mais pretensioso, Latour (1994) não trata da noção de crença. Mas ele define a modernidade por um jogo de imanências e transcendências que pode ser associado às formulações anteriores. Esse jogo compõe-se de três noções: natureza, sociedade e Deus. A última delas ocupa um espaço mais reduzido e indefinido do que as demais, e o argumento de Latour parece não perder nada se ela for suprimida;12 12 Aliás, trata-se do "Deus suprimido" e, como demonstram outros textos, Latour (2001, 2002) está mais preocupado com a teoria da ação que esse Deus encarna ou com sua tradução atualizada na forma do "quadro indiscutível da existência banal". Para uma discussão mais consistente sobre o lugar atribuído a Deus nas concepções modernas de natureza, ver Funkenstein (1986). ao menos ela não é necessária para o que se dirá a seguir sobre a noção de crença. Vejamos então como se dá o jogo de imanências e transcendências envolvendo natureza e sociedade. Em um primeiro registro, a natureza é apresentada como dado, que precisa ser descoberto ou revelado; nesse sentido, trata-se de algo transcendente. Por contraste, a sociedade é concebida como uma construção, sendo, portanto, imanente. Mas Latour mostra como esses atributos podem ser invertidos: a natureza é produzida nos laboratórios dos cientistas, enquanto que a sociedade ganha uma consistência que a torna algo transcendente. O que me interessa destacar é como a sociedade - essa invenção dos modernos - aparece sob a mesma tensão que vimos acometer a noção de crença: em ambas, liberdade e sujeição se conjugam.

Falta, então, caracterizar com mais precisão o que é essa sociedade em sua dupla faceta de imanência e transcendência. E é importante registrar que para Latour o que se trata de entender é a configuração específica de sociedade-natureza desenvolvida na modernidade. A modernidade não é o que diz ser, essa separação entre natureza e sociedade, mas é o que faz essa forma de dizer. E o que faz - presente também no dizer, desde que abordado por um ângulo que preserva o registro das práticas - passa pela produção de redes em que circulam e se associam humanos e não humanos. Como todo coletivo, os modernos vivem de híbridos; por não reconhecê-lo, mobilizam forças imensas e virtualmente incontroláveis. Isso lhes permite, segundo Latour (1994), construir redes de uma amplitude inédita. Essa força, que se destaca para caracterizar as qualidades do coletivo de natureza-sociedade designado pela modernidade, tem sua contrapartida, tema que o autor explora mais, por exemplo, no texto em que trata das imagens (Latour, 2008). Referindo-se ao 11 de setembro, ele comenta:

Nós sabíamos (eu sabia!) que jamais fomos modernos, mas agora o somos me-nos ainda: frágeis, fracos, ameaçados; ou seja, de volta ao normal, de volta ao estágio ansioso e cuidadoso no qual os "outros" costumavam viver antes de serem "libertados" de suas "crenças absurdas" pela nossa corajosa e ambiciosa modernização. (Latour, 2008, p. 144).

Parece-me que as explorações sobre a noção de crença já haviam chegado a essa constatação de fragilidade, uma vez que o mesmo sujeito capaz de inventar a sociedade é por esta submetido.

É aqui que podemos ver novamente um encontro entre Latour e Asad. Mas Asad (2003, p. 299), que acusa também o impacto do 11 de setembro sobre sua empreitada intelectual, prefere falar dessa sociedade com a perspectiva de quem está fora dela, ou seja, apostando no potencial reflexivo que o estudo da tradição islâmica, por exemplo, pode ter sobre a definição de modernidade. Talvez por causa disso, mas também pela influência que a démarche foucaultiana tem sobre suas formulações, Asad propõe uma visão sombria da modernidade. Nela, o Estado tem um lugar crucial, sobretudo pelo papel que desempenha na formação de sujeitos e na configuração da sociedade. O que lhe interessa é destacar o modo como noções tais como "autodisciplina" e "participação" estão associadas a dispositivos de governabilidade cujo modo de funcionamento não se reduz nem à compulsão nem ao consentimento. O cidadão de um ordenamento liberal, em sua própria constituição, depende de uma espécie de transcendência: "Existe a concepção no mundo moderno de algo transcendente que civiliza os sujeitos, que legitima as condições nas quais podem se desenvolver e serem administrados. A lei é um modo de universalização que civiliza, legitima e administra." (Asad, 2006a, p. 294). Como em Latour, a existência de uma dimensão transcendente constitutiva à sociedade, que Asad relaciona com a própria lei, é uma característica da modernidade.

Para Asad (2003, p. 5), o secularismo designa essa mediação transcendente. Mas o caminho aberto pela noção de crença levaria ao mesmo lugar, com a vantagem de envolver no seu fulcro, e não apenas em um de seus componentes, a modernidade. Refaçamos o percurso: a religião na modernidade foi definida pela noção de crença. Isso permitiu que ela fosse criticada pela sua fragilidade ontológica: ela tem mais a ver com os sujeitos e suas representações do que com o mundo objetivo. Isso não significa que ela não tenha sido vista como socialmente útil ou mesmo necessária. A extinção da religião representou sobretudo um empreendimento intelectual. No plano da história política, a religião constituiu um componente constante, mesmo que fosse como algo apenas tolerável, mas não raramente como força importante na formação dos vínculos de nacionalidade ou na constituição de moralidades e princípios desejáveis. Mesmo no plano filosófico, os exercícios críticos estiveram frequentemente associados com empenhos de reforma - e as tentativas de reconfiguração do cristianismo foram bem mais numerosas que os projetos de destruição. Mas a fragilização ontológica foi um produto de ambas, pois elas se fizeram, geralmente, dentro do novo espaço que a modernidade reservara à religião.13 13 Em Giumbelli (2002, p. 24-46, 413-420), procuro seguir alguns dos capítulos ou dimensões dessa história política e filosófica que envolveu modernidade e religião.

Quanto à noção de crença, ela não ficou restrita à religião. Duas formulações, pelo menos, são fundamentais como evidência dessa extrapolação. A primeira associa a liberdade de crer com a de não crer; é nesse sentido que se reconhece ao princípio da liberdade religiosa um lugar fundante para outras liberdades civis. A segunda, que pode até ser vista como derivação da primeira, associa crença e opinião. A opinião, tanto quanto a crença, não precisa estar fundamentada; uma sociedade moderna, mesmo assim, lhe garante o direito de existência e de manifestação. Quais as implicações dessas formulações? Elas reconhecem direitos ao agnosticismo e às opiniões, de tal modo que a própria liberdade de crença é que parece derivar deles. Mas se a associação se mantém, é possível concluir que esses princípios se nutrem das contradições que acometem a noção de crença. Lembremos: nela se articulam liberdade e sujeição. Ora, temos aí os fundamentos para que a sociedade seja concebida ao mesmo tempo como imanente e transcendente. A noção de crença - ela mesma o apoio da garantia de existência e manifestação das opiniões em geral - permite que convivam liberdade e sujeição na concepção moderna do que constitui um coletivo político e um sujeito autônomo.

Finalizo com breves argumentações sobre duas situações que me permitem ilustrar possíveis articulações entre crença e modernidade, inscritas na configuração acima delineada. Em minhas pesquisas, deparei-me várias vezes com dispositivos jurídicos que visavam a exploração da "credulidade". No início da República brasileira, o "espiritismo" (expressão do texto legal) foi incorporado ao código penal entre os crimes contra a saúde pública, uma das bases para a ampla repressão aos cultos mediúnicos na primeira metade do século XX. A razão principal para isso eram suas práticas terapêuticas à margem da medicina acadêmica; mas as justificativas da lei enfatizavam a natureza quimérica do espiritismo, reforçado em seu poder de ilusão pelo apelo ao sobrenatural; algo tolerável enquanto permanecesse como distração, mas inadmissível se associado a promessas de cura (Giumbelli, 1997, p. 85-88). A partir dos anos 1950, a figura do estelionato passou a ser utilizada no Brasil para incriminar pastores e igrejas pentecostais em certas de suas práticas; ou serviu mesmo, na descrição de algumas igrejas, cuja teologia associa a obtenção de graças a doações materiais pelos fiéis, para caracterizar a sua própria natureza (Giumbelli, 2002, p. 313-319). Na França, também recentemente, uma série de providências mobilizou mecanismos legais e aparatos estatais para a repressão às "seitas", acusadas de manipularem psicologicamente seus adeptos (Giumbelli, 2002). Note-se que nos três casos os dispositivos jurídicos mencionados convivem com o princípio da liberdade de crença.

Há muitas diferenças entre essas três situações, mas gostaria de sublinhar alguns aspectos comuns relacionados com a discussão travada neste texto. Pois em todos eles a crença é acusada de adquirir uma dimensão exagerada, de tal modo que o sobrenatural, que a define, passa a possuir o estatuto de um instrumento. Assim, sua carga ontológica é esvaziada em proveito de uma configuração escusa, que coloca em relação um manipulador e um ingênuo. A "credulidade" designa essa configuração e esse estado da crença. Considerada a existência de dispositivos voltados a sua repressão, tem-se aí um exemplo de como o arcabouço liberal convive com providências de outra natureza. A autonomia individual é anulada diante dessas situações: aqueles que sofrem por suas crenças necessitam de tutela; aqueles que as promovem, merecem punição. A recorrência com que aparece o tropo da "ameaça social" - o espiritismo, os pentecostais, as seitas não são um perigo apenas para os que se envolvem com eles, mas para toda a sociedade - permite-nos pensar que algomais do que o corpo, os bens ou a mente dos indivíduos está em jogo. É a sociedade, em seus princípios de constituição, que é chamada a se defender. Ao mesmo tempo, é fácil de ver que aqueles dispositivos são acionados seletivamente, ou seja, visando esse ou aquele grupo que reivindica, como tantos outros, um estatuto religioso. Com isso, fica assegurado o princípio da liberdade de crença - mas também a condenação do estado de credulidade.

O segundo tema é o da blasfêmia, que aparece na cena pública e acadêmica relacionado sobretudo com situações que envolvem a definição mesma do Ocidente. Penso particularmente nas controvérsias em torno do romance Os versos satânicos, de Salman Rushdie (1998), publicado primeiramente na Inglaterra no final da década de 1980, e em torno das charges que ilustraram um jornal dinamarquês em 2005. Nos dois casos, houve enorme reação entre muçulmanos, uma vez que o islã é tema do livro e das charges. Essas reações, que tomaram em alguns episódios feições violentas, ativaram uma leitura que se alimenta de concepções bem consolidadas: o Ocidente aprendeu a blasfemar, ou seja, a conviver com a expressão, através de imagens ou de palavras, de opiniões desfavoráveis sobre um assunto; enquanto que os muçulmanos em suas reações desmesuradas revelavam sua incapacidade de tolerar o desacordo. Assim, a prática da blasfêmia poderia ser, juntamente com a iconoclastia, parte constitutiva da psicologia dos modernos, efetivando o direito da "liberdade de opinião". Vistos sob outra perspectiva, no entanto, esses casos poderiam levar a conclusões distintas, que evidenciam o estatuto complexo da noção de crença. Pois crer - no sentido de expressar uma opinião e por oposição a praticar algo - é o que se exige dos muçulmanos. Mas é exatamente como atos - e não apenas como opiniões - que podemos entender a publicação de livros ou de charges: eles exercitam habilidades que são prezadas na constituição dos sujeitos liberais e suas ironias participam da conformação do quadro que molda o encontro entre o Ocidente e o resto do mundo.

Outro comentário possível atenta para o fato de que a blasfêmia é uma categoria jurídica presente em legislações ocidentais, o que permitiu que muitos casos ocorressem a seu propósito. De fato, em muitos países existem dispositivos que protegem especificamente as crenças ou as práticas religiosas contra ataques de diversos tipos. Não se trata de um atavismo ou de uma sobrevivência. Como sugere Viswanathan (1995), a modernidade operou uma diferenciação inédita entre heresia e blasfêmia, de modo a desqualificar a primeira - em nome da liberdade de opinião - e a preservar a segunda - definida não por referência a uma doutrina, mas sim a uma comunidade religiosa. Assim, o que as leis antiblasfêmia visam punir é a ofensa a uma comunidade, o que as coloca na linhagem de outras normas que se aplicam à regulação da pluralidade que constitui uma sociedade. Isso permitiu que aquelas leis acompanhassem a separação entre Estado e igrejas no Ocidente, e também que fizessem parte do processo de conformação cultural dos Estados-nações (o blasfemo aparecendo como um desviante ou um minoritário). Nesse último sentido, entende-se como as leis antiblasfêmia podem estar a serviço da afirmação de hegemonias culturais, beneficiando tradições religiosas majoritárias (Lawton, 1993).14 14 Na Inglaterra, por exemplo, onde o livro de Rushdie foi publicado, a lei antiblasfêmia protege apenas os cristãos. No Brasil, embora a lei não tenha tal restrição, são evidentes as diferenças no tratamento (não apenas legal) reservada ao universo católico em contraste com o universo afro-brasileiro (ver Giumbelli, 2003). Por outro lado, uma vez que se dirige especificamente ao universo religioso, a validade da noção de blasfêmia pode estar reiterando a sua ontologia precária - a proteção, nesse caso, é a contrapartida de uma operação que cria a situação de fragilidade que assola qualquer entidade que reivindique viver de crenças.

Considerações finais

O que permite conferir à noção de crença um estatuto privilegiado para compreender a modernidade é, portanto, seu deslizamento entre domínios que podem aparecer apenas em sua dissociação. Vimos como ela é fundamental para a definição moderna de religião. O lugar que a modernidade procurou atribuir à religião - confinando-a a uma esfera específica e opondo-a ao saber científico e à ação autônoma - explica o que designei como fragilidade ontológica da crença. Ao mesmo tempo, no sentido de regras que dispensam um fundamento outro que não as deliberações daqueles engajados em uma espécie de contrato, a noção de crença pode designar a operação em que se baseia uma sociedade moderna. Eis porque estamos autorizados a tratar os coletivos religiosos, tal como a modernidade os imaginou, como protótipos do contrato social moderno: associação dos crentes que compartilham dos mesmos princípios, os quais, por sua vez, não reivindicam fundamento de outra ordem. Nesse caso, a crença teria um sentido e um papel positivos, o que torna justificável sua promoção - vinculando-a ao ideal da liberdade. Sua fragilidade ontológica, por outro lado, aponta para a presença de outros vetores - a transcendência e a sujeição, o primeiro colado à sociedade que se forma a partir dos seus agentes, o segundo constitutivo dos indivíduos que a formam como coletivo.

Espero que a discussão acima proposta possa abrir caminhos para novas explorações sobre a modernidade, considerando noções que lhes são cruciais e perseguindo os meandros a que conduzem. Apostei na importância que possui a categoria "crença". Se em certo plano, há motivos que justificariam mesmo o seu descarte, como em alguns momentos sugerem nossos autores, num impulso que na antropologia parece ter sido radicalizado por Needham (1972), ainda temos muito a saber sobre os efeitos de sua existência e de seu uso em dadas configurações sociais. A noção de crença não está atrelada apenas ao cristianismo, como sugere Pouillon (1979), mas, como espero ter demonstrado aqui, finca vínculos necessários com certos princípios da modernidade. Nesse caso, não é suficiente reiterar a oposição entre crença e ciência, ou entre opinião e certeza. Pois é exatamente em sua fragilidade ontológica que a crença joga um papel fundamental nas concepções de sujeito e de sociedade modernas. Para demonstrar isso, optei por acompanhar o pensamento de dois autores que me parecem dignos de atenção, não só por suas pistas acerca de como problematizar a modernidade, mas também pelo que apontam sobre os (des)caminhos e os desafios da antropologia na atualidade.

Recebido em: 31/10/2010

Aprovado em: 17/03/2011

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  • *
    Partes deste texto foram apresentadas em dois eventos: II Reunião de Antropologia da Ciência e da Tecnologia (UFMG, Belo Horizonte, 2009) e IV Congresso da Associação Portuguesa de Antropologia (ISCTE, Lisboa, 2010). Agradeço a leitura e os comentários de Otávio Velho a uma versão preliminar.
  • 1
    Como notou o parecerista anônimo, essa marginalização é atenuada pelo privilégio conferido ao islã como tema de discussão. O islã, como indicarei adiante, é um dos objetos centrais de Asad e faz parte também de seus compromissos políticos.
  • 2
    Temos um exemplo disso no texto de Ribeiro (2006), onde o leitor pode encontrar algumas referências sobre o campo de estudos pós-coloniais.
  • 3
    Ver sobre eles o comentário de Otávio Velho (2005), no qual várias das questões abordadas aqui são retomadas e colocadas a serviço de outros diálogos intelectuais.
  • 4
    Velho (2005) nota, na mesma chave, a convergência entre a ênfase de Latour na (re)presentação e o tema da segunda vinda de Cristo. Na aproximação que faço, há pontes possíveis com um trabalho de Vattimo (1996) em que fala de seu reencontro pessoal com o cristianismo e a associa a uma ontologia fundada na ideia de
    debilitamento. A mesma consequência, continua o autor, existiria na doutrina da
    Encarnação de Deus, que consiste exatamente na negação da onipotência, da estaticidade e da transcendência divinas.
  • 5
    Tenho notícia dessa tese apenas pela citação que o próprio Latour (1983, p. 232-235) lhe faz em outro texto. Seu título:
    Exégese et ontologie, une analyse des textes de résurrection, thèse pour le doctorat de 3e cicle, Philosophie, Université de Tours, 1975.
  • 6
    "[...] é da ciência que se deve dizer que alcança o mundo invisível do além, que é espiritual, milagrosa, que sacia e edifica a alma" (Latour, 2004, p. 360,). Desenvolvi o contraponto entre magia e ciência em um texto que parte de uma apreciação do livro de Evans-Pritchard sobre a bruxaria azande e que faz Latour dialogar com antropólogos como Stanley Tambiah e Alfred Gell, que estão entre aqueles também influenciados pelo pragmatismo linguístico (Giumbelli, 2006).
  • 7
    Velho (2005) já faz o contraponto entre Asad e Latour a propósito da operação de definição do religioso. Procuro aprofundar o ponto aqui.
  • 8
    Uma referência inaugural é o trabalho de Smith, W. (1991), publicado originalmente em 1962, com a qual Asad (2001) discute, reconhecendo suas realizações e apontando seus limites. Outras referências importantes: Despland (1979), Dubuisson (1998), Harrison (1990), Toulmin (1990), Masuzawa (2005) e Smith, J. (1997). A importância dessas referências é pela ajuda que prestam para entender os contextos históricos da emergência de uma ciência e de uma filosofia da religião. Para contextos recentes, ver os textos de Beyer (2003) e McCutcheon (1997).
  • 9
    É nesse sentido que propõe um
    agnosticismo: livremo-nos da noção de crença (Latour, 1996, 2001, 2002).
  • 10
    "A religião, na tradição que eu gostaria de tornar novamente presente, nada tem a ver com subjetividade, nem com transcendência, nem com irracionalidade, e a última coisa de que ela necessita é a tolerância dos intelectuais abertos e caridosos, que querem acrescentar aos fatos da ciência - verdadeiros, porém secos - o profundo e encantador 'suplemento de alma' provido por pitorescos sentimentos religiosos." (Latour, 2004, p. 358).
  • 11
    Para um competente inventário e uma interessante discussão sobre a noção de fetiche na antropologia contemporânea, bem como sobre suas condições de surgimento, ver Pires (2009).
  • 12
    Aliás, trata-se do "Deus suprimido" e, como demonstram outros textos, Latour (2001, 2002) está mais preocupado com a teoria da ação que esse Deus encarna ou com sua tradução atualizada na forma do "quadro indiscutível da existência banal". Para uma discussão mais consistente sobre o lugar atribuído a Deus nas concepções modernas de natureza, ver Funkenstein (1986).
  • 13
    Em Giumbelli (2002, p. 24-46, 413-420), procuro seguir alguns dos capítulos ou dimensões dessa história política e filosófica que envolveu modernidade e religião.
  • 14
    Na Inglaterra, por exemplo, onde o livro de Rushdie foi publicado, a lei antiblasfêmia protege apenas os cristãos. No Brasil, embora a lei não tenha tal restrição, são evidentes as diferenças no tratamento (não apenas legal) reservada ao universo católico em contraste com o universo afro-brasileiro (ver Giumbelli, 2003).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Set 2011
    • Data do Fascículo
      Jun 2011

    Histórico

    • Recebido
      31 Out 2010
    • Aceito
      17 Mar 2011
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