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Raça como questão: história, ciência e identidades no Brasil

RESENHAS

MAIO, Marcos Chor; SANTOS, Ricardo Ventura (Org.). Raça como questão: história, ciência e identidades no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010. 316 p.

Bernardo Lewgoy; Ivana dos Santos Teixeira* * Doutoranda em Antropologia Social.

Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Brasil

Raça como questão: história, ciência e identidades no Brasil é uma coletânea de 11 textos que se articulam analiticamente em torno de uma densa produção histórica, sociológica e antropológica que mostra que o conceito de raça e derivados foi central na construção da nação e da perspectiva de nacionalidade brasileira. A obra destaca-se pela consistência teórica de cada texto e pela unidade temática do conjunto. A leitura flui sem sobressaltos porque há coesão e coerência textual do início ao fim, algo difícil de conseguir em coletâneas. A cuidadosa reunião de um conjunto de textos produzidos ao longo da última década sobre a questão racial no Brasil e a harmoniosa organização dos manuscritos são frutos de um projeto editorial muito bem concebido por Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos, responsáveis pela organização da coletânea, e bem executado pela editora Fiocruz.

Apesar de não haver menção direta à origem e aos critérios de ordenamento dos manuscritos, podendo os capítulos ser lidos tanto em sequência como tomando-se cada um deles isoladamente, é possível classificá-los em dois grandes grupos de abordagens teórico-reflexivas e empírico-analíticas. Além disso, o livro mostra com clareza três domínios que se articulam em torno do conceito de raça: o domínio científico, a dimensão política e o plano social.

Os capítulos "Entre a riqueza natural, a pobreza humana e os imperativos da civilização, inventa-se a investigação do povo brasileiro", de Jair de Souza Ramos e Marcos Chor Maio; "Mestiçagem, degeneração e a viabilidade de uma nação: debates em antropologia física no Brasil (1870-1930)", de Ricardo Ventura Santos; "Crânios, corpos e medidas: a constituição do acervo de instrumentos antropométricos do Setor de Antropologia Biológica do Museu Nacional no fim do século XIX – início do século XX", de Guilherme José da Silva Sá, Ricardo Ventura Santos, Claudia Rodrigues Carvalho e Elizabeth Christina da Silva; e "Cientificismo e antirracismo no pós-2ª Guerra Mundial: uma análise das primeiras declarações sobre raça da Unesco", de Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos, fazem parte do conjunto de pesquisas que analisam o discurso científico sobre raça desde o final do século XIX até a primeira metade do século XX. São textos que funcionam como uma espécie de fio condutor da coletânea, pois apresentam, sob enfoques distintos, que ao longo do século XIX, "raça" não somente se consolidou como um importante descritor das características biológicas e socioculturais, em que o pensamento darwinista embasava a perspectiva da origem única, como passou a receber um tratamento cada vez mais científico indo de discussões sobre a aplicabilidade de um mesmo conjunto de leis (ilustrado pelos estudos em antropologia física e os debates sobre mestiçagem no Brasil) para pessoas que eram vistas como racial e evolutivamente distintas (teoria do branqueamento), até as mudanças no conceito de raça, tanto por parte das ciências sociais como das biológicas, ocorridas no século XX por ocasião da 2ª Guerra Mundial. Nesse contexto, os conhecimentos antropológicos e biológicos passaram a enfatizar que o caráter determinista, até então atribuído ao conceito de "raça", estaria dissociado entre raça, cultura e biologia. Presente em vários capítulos do livro, vemos a constatação histórica da persistência de uma crítica por parte da genética de populações e do neodarwinismo ao conceito de raça já existente há muitas décadas. Suas influências estiveram presentes, por exemplo, por ocasião da elaboração das primeiras Declarações sobre Raça da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Conforme esse documento, as dinâmicas sociais e culturais operariam independentemente das questões raciais, que descentralizava "raça" como conceito científico. Assim, esses capítulos nos mostram que passado meio século, o paradigma de que raça é "menos um fato biológico do que um mito social" (p. 168) e a compreensão das interfaces entre raça, ciência e sociedade continuam a nos desafiar intelectualmente.

Os outros sete textos se diferenciam dos anteriores por privilegiar reflexões em torno da esfera política e social. No capítulo 5, "Estoque Semita: a presença dos judeus em Casa-Grande & Senzala", Marcos Chor Maio aborda o papel social dos judeus no pensamento de Gilberto Freyre em Casa-grande & senzala, refutando a ideia dominante na literatura de que haveria uma perspectiva antissemita na obra do sociólogo pernambucano; ao contrário, a visada lamarckista do "'judeu freyreano', seria mais um exemplo da pluralidade étnica constitutiva da identidade 'luso-brasileira'" (p. 130). Nesses termos, foi com a preservação de uma narrativa racializada sobre a origem dos mestiços que a nação brasileira foi se firmando, com amplo respaldo da ciência ao conceito de raça.

A partir do capítulo 7, "Antropologia, raça e os dilemas das identidades na era genômica", Ricardo Ventura Santos e Marcos Chor Maio mostram que, no presente, a ciência oferece subsídios teóricos que tentam minar o conceito determinista de raça. A democracia racial nacional foi criticada pelos movimentos negros, que denunciam as pesquisas genéticas no Brasil de produzir, por meio da ciência, um "discurso político-ideológico" (p. 176).

Em "No fio da navalha: raça, genética e identidades", Ricardo Ventura Santos, Maria Cátira Bortolini e Marcos Chor Maio tencionam o modo como identidades raciais podem ser, paradoxalmente, reforçadas como o uso de tecnologias genômicas conhecidas como "marcadores informativos de ancestralidade" (MIAs). Detêm-se em um desdobramento extremamente recente, que é o emprego desses marcadores em escala inclusive comercial, para fins do conhecimento de ancestralidades no plano individual e, fundamentalmente, articulam história, ciência, genética e construção de identidades no mundo contemporâneo. Essas formas de "genetizar a cultura e culturalizar a genética" (p. 208) mostram que a noção de raça foi profundamente ressignificada nas ultimas décadas, perdendo seu status epistemológico de categoria explicativa da variabilidade humana, direcionando-se, em certos segmentos sociais e étnicos, para a busca por tecnologias genéticas a reforçar ideais de pertencimento étnico-racial.

Fechando as reflexões de cunho político de Raça como questão, no capítulo intitulado "A cor dos ossos: narrativas científicas e apropriações culturais sobre 'Luzia', um crânio pré-histórico", Verlan Valle Gaspar Neto e Ricardo Ventura Santos apresentam uma análise antropológica sobre a reconstrução do rosto de "Luzia", como ficou conhecida a personagem associada a uma reconstrução facial e a um crânio pré-histórico de milhares de anos escavado na região de Lagoa Santa, Minas Gerais, na década de 1970. Alçado ao posto de celebridade, o crânio teve voltado para si, ao longo de 1999 e 2000, boa parte dos holofotes concedidos às mais importantes descobertas no campo científico. Luzia representa o centro de um complexo simbólico, "uma matriz de reflexão impregnada de racialização" (p. 243), a partir de onde surgem novas narrativas sobre o passado, narrativas que se enraízam e ramificam no presente, com múltiplas manifestações. O "caso Luzia" está ligado ao revisionismo histórico de recorte racial em curso no Brasil, cujo maior exemplo é a Lei Federal n. 10.639 (Brasil, 2003), sancionada em 2003 pelo presidente Lula, uma alteração na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Brasil, 1996) que estabelece, de modo geral, a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira em todos os estabelecimentos de ensino fundamental e médio do país.

Por fim, as análises centram-se em políticas públicas de recorte racial e nos ajudam a compreender, no capítulo 2, como o cenário político da Primeira República (com o ideário sanitarista especialmente no que concerne à perspectiva não racialista) vai definir ações higienistas de cunho racial e, nos capítulos 10 e 11, como o cenário contemporâneo no Brasil, no qual "raça" ressurge como um elemento fundamental nos debates sobre a situação social presente e nas perspectivas futuras do país, oferece implicações tais como a implementação de políticas públicas de recorte racial no país. Em "Política de cotas raciais, os 'olhos da sociedade' e os usos da antropologia: o caso da Universidade de Brasília (UnB)", Maio e Santos trazem discussões sobre as cotas raciais, e em "Política social com recorte racial no Brasil: o caso da saúde da população negra", Marcos Chor Maio e Simone Monteiro discorrem sobre as políticas de saúde calcadas na questão da raça. Diferentemente do caso das cotas raciais na universidade, o debate sobre as relações entre raça e saúde e os subsequentes desdobramentos políticos não têm provocado discussões mais amplas do âmbito da sociedade, embora as reflexões sobre o tema revelem posicionamentos diversos.

Raça como questão é uma coletânea de textos bem alinhavados em torno das questões científicas, sociais e políticas concernentes à "raça". Não há apologia ou aversão a movimentos raciais ou estudos genômicos; há, isso sim, um conjunto de reflexões que, tendo Maio e Santos frequentemente como parceiros, somadas às participações de outros pesquisadores, nos mostram como o tema "raça" tem sido central para as ciências sociais desde o final do século XIX, pelo que representa em problemáticas na esfera social; nos movimentos sociais, atores de políticas públicas e militantes, na esfera política e, nas pesquisas genômicas, na esfera científica. Portanto, "raça" possui extrema relevância na explicação dos processos socioculturais, na dinâmica que estabelece os contornos de novas práticas, novas identidades, novos preconceitos, novas marginalizações e novas representações culturais.

Cabe salientar, por fim, que as divisões que estabelecemos na construção desta resenha tiveram por objetivo dar destaque às peculiaridades dos textos, independentemente da disposição no sumário, para evidenciar a complexidade temática e a bem-sucedida composição do livro. Nossa ideia foi dar visibilidade ao fio condutor que perpassa as análises de cada texto dessa coletânea. É bem provável que os futuros leitores e leitoras interessados no assunto encontrem novos fios que compõem essa instigante trama temática. Eis, aí, mais um bom motivo para embrenhar-se na leitura.

  • BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº9.394, de 20 de dezembro de 1996 Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, 1996. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm>. Acesso em: 15 jan. 2011.
  • BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº10.639, de 9 de janeiro de 2003 Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências. Brasília, 2003. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm>. Acesso em: 15 jan. 2011.
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    Doutoranda em Antropologia Social.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Jan 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2011
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