Acessibilidade / Reportar erro

O tempo dos inimigos: Reflexões sobre uma antropologia da repressão no século XXI

Resumos

Neste artigo pretendo indagar sobre uma "antropologia da repressão". Retomando antigas propostas do antropólogo francês Marc Augé, reflito sobre a pertinência de uma antropologia da repressão para o estudo de dimensões políticas e experienciais da vida social. Para tal, elaboro um itinerário conceptual da repressão do ponto de vista antropológico, para depois propor um exercício de demarcação sobre dois aspectos que lhe são (a priori) inerentes: a temporalidade e a dialética.

dialética; política; repressão; temporalidade


In this article I propose a discussion on an 'anthropology of repression'. Following previous proposals set forth by French anthropologist Marc Augé, I reflect upon the pertinence of repression for the study of political and experiential dimensions of social life. For this, I draw a conceptual itinerary of repression from an anthropological point of view, and then propose a discussion of two of its underlying problems: that of temporality and dialectics.

dialectics; politics; repression; temporality


ARTIGOS

O tempo dos inimigos. Reflexões sobre uma antropologia da repressão no século XXI

Ruy Llera Blanes

Universidade de Lisboa - Portugal

RESUMO

Neste artigo pretendo indagar sobre uma "antropologia da repressão". Retomando antigas propostas do antropólogo francês Marc Augé, reflito sobre a pertinência de uma antropologia da repressão para o estudo de dimensões políticas e experienciais da vida social. Para tal, elaboro um itinerário conceptual da repressão do ponto de vista antropológico, para depois propor um exercício de demarcação sobre dois aspectos que lhe são (a priori) inerentes: a temporalidade e a dialética.

Palavras chave: dialética, política, repressão, temporalidade.

ABSTRACT

In this article I propose a discussion on an 'anthropology of repression'. Following previous proposals set forth by French anthropologist Marc Augé, I reflect upon the pertinence of repression for the study of political and experiential dimensions of social life. For this, I draw a conceptual itinerary of repression from an anthropological point of view, and then propose a discussion of two of its underlying problems: that of temporality and dialectics.

Keywords: dialectics, politics, repression, temporality.

Reflexões sobre uma antropologia da repressão no século XXI

Neste texto proponho uma contribuição para o campo de estudos antropológico sobre a repressão. Mais concretamente, pretendo explorar esse problema sob o ponto de vista político, epistemológico e experiencial, para ligá-lo a questões de memória, expectativa e temporalidades. Sugiro que a repressão, que eu entendo aqui como a produção de violência, opressão e perseguição, mas também e sobretudo como a imposição hegemónica e totalitarizante da percepção de uma determinada e inamovível ordem "naturalizada" das coisas, é uma forma de "poiese" ou tradução prática (concreta, física) de determinadas ideologias que incorpora uma dimensão produtora de realidades sociais dinâmicas e de "pontuações" temporalizadoras (Guyer, 2007) específicas. Nesse sentido, do ponto de vista abstrato dirige-se a uma ideia de hegemonia - tal como foi explorada por Gramsci (2000, p. 211) nas formas e formações ético-políticas (e económicas) de dominação que estudava, e via como sendo um "processo contínuo em formação" no equilíbrio instável entre líderes e liderados; e por Foucault (1980) nas suas elaborações sobre discurso hegemónico e poder. Aqui, pretendo explorar as dimensões dialética e ontológica da repressão, para sugerir que ela é mediada por concepções e noções de memória e expectativa, produzidas tanto por repressores como por reprimidos.

Do ponto de vista empírico, existem inúmeros contextos sociopolíticos contemporâneos que ilustram esse tipo de enquadramento. Por exemplo, contextos de guerra e a consequente "reparação" entre "vencedores" e "vencidos" no pós-guerra; contextos de genocídio, tortura e posterior julgamento; as expectativas por trás dos movimentos antiditatoriais de revolução e mudança sociopolítica como a "primavera árabe"; ou, numa perspectiva mais de longue durée, o declínio dos regimes pós-coloniais e pós-ditatoriais da Europa do Sul, e as consequentes redefinições de memória associadas ao processo. Para ilustrar melhor essas invocações, neste texto farei referência a um estudo de caso concreto que me encontro a estudar: a ação da polícia política do regime do Estado Novo português (a PIDE ou Polícia Internacional de Defesa do Estado) sobre um movimento religioso conhecido como a Igreja Tocoista, desenvolvido numa das suas colónias (Angola) nas décadas de 1950 e 1960 (ver, por exemplo, Blanes, 2009a, 2011).

Mas porquê, então, uma "antropologia da repressão"? Ao propor uma abordagem nesses termos coloco-me voluntariamente perante dois problemas que simultaneamente propiciam potencialidades epistemológicas interessantes para a disciplina antropológica. Em primeiro lugar, ao invocar contextos como os de regimes políticos ditatoriais e a sua resistência, não faria mais sentido falar de uma antropologia da opressão do que uma antropologia da repressão?

Existe uma interessante proximidade etimológica e conceptual entre "opressão" e "repressão". Se a "opressão" é entendida comummente como uma imposição - por exemplo através de uma força física ou de um exercício extremo de poder -, de uma submissão, a "repressão" remete frequentemente para uma ideia de controlo, redução e sujeição, muitas vezes associada a dimensões psicológicas de ação - como uma auto-opressão voluntária, tal como é explorada na psicanálise enquanto processo mental de inibição ou supressão de desejos. Mas, e seguindo a proposta de Marc Augé (1977, p. 29 e seguintes) de incrementar o escopo de reflexão sobre esse termo, a repressão também pode ser política, associada a problemas de discriminação, violação de direitos humanos, etc. Desse ponto de vista, a ideia de repressão incorpora uma gama mais ampla de significados do que a opressão, tendo a particularidade de individualizar a experiência hegemónica, permitindo refletir sobre o problema simultaneamente num plano político e experiencial.

Um segundo problema com essa proposta é que a repressão é, curiosa e ironicamente, também ela um "objeto reprimido" na literatura antropológica sobre violência (ver, por exemplo, Bloch, 1986; Clastres, 1994; Feldman, 1991; Kapferer, 2004; Kelly, 2006; Nordstrom; Robben, 1995; Robben; Suárez-Orozco, 2000; Schmidt; Schroeder, 2000), guerra (Clastres, 1994; Haas, 1990; Scheper-Hughes; Bourgois, 2004), terror (Feldman, 1991; Nagengast, 1994; Sluka, 2000; Taussig, 1984, 1996), resistência (Caouette; Turner, 2009; Scott, 1990), etc. No entanto, esse objeto está sempre lá, mesmo que de forma discreta e instrumental. Poderíamos dizer que a repressão é enquadrada, nesses casos, como um dispositivo implícito, propulsor de imposição e hegemonia. Torna-se portanto necessário acertar a focalização da lente para outro tipo de problemas e debates mais concretos e identificáveis: por exemplo, a prisão e as culturas prisionais como espaços e dispositivos concretos de reprodução de ideologias de Estado, cidadania e pessoa (ver, entre muitos outros, Cunha, 2002; Foucault, 1974; Wacquant, 1999, 2009). Alguns estudos sobre policiamento e vigilância estatal, como por exemplo os realizados recentemente em Portugal (Bastos, 1997; Durão, 2008; Fróis, 2008, 2009), também introduzem reflexões sobre como é possível detectar, a nível local, pessoal e corporal, poieses que transformam determinadas políticas societais em práticas concretas. No caso de Susana Pereira Bastos (1997), a autora explora brilhantemente os mecanismos através dos quais o Estado Novo português localizou e construiu pessoas e grupos sociais marginais e desviantes (mendigos, prostitutas, homossexuais, etc.) mediante processos de controlo e institucionalização, usando como estudo de caso um "albergue de mendicidade" conhecido como a Mitra, em Lisboa - estabelecendo assim uma ligação entre repressão ideológica, institucional e psicológica.

Nessa linha, o que une essas distintas abordagens é um olhar à organização social que é identificada como sendo hierarquizada, de primazia política e epistemológica do coletivo (o "Estado" e as suas respectivas ramificações) sobre o indivíduo, invocando noções por vezes opostas e confrontadas de liberdade, volição e agência. Noutras palavras, num questionamento implícito ou explícito das "repercussões" de projetos de sociedade sobre a individualidade - independentemente do seu caráter mais ou menos impositivo -, veiculados através de teorias políticas societais e comportamentais concretas. Aparecem portanto nesses contextos noções como as de prevenção, controlo, dissuasão, etc., e o seu combate - a resistência. Tal é o caso, por exemplo, dos estudos modernos das prisões como dispositivos de vigilância, controlo e punição, tal como fora proposto pelo próprio Foucault (1974) nas suas reflexões sobre disciplina e poder. A localização, por parte do filósofo francês, dessas agências no corpo individual - por exemplo, no regicida Damien (Foucault, 1974, p. 3 e seguintes) - como local de sentença e aplicação ideológica foi seguida na antropologia por outros autores como Allen Feldman (1991, p. 147-218), que estudou a geração e inscrição, materialização de processos de violência política nos corpos de combatentes no conflito norte-irlandês do século XX. Também Tobias Kelly (2006), por exemplo, aborda a mesma problemática através do conceito de "soberania" no cruzamento entre contextos empíricos de violência (na Cisjordânia) e teorias e práticas de jurisdição, nação e direitos humanos.

É portanto reconhecível que uma "antropologia da repressão" em si não seja um campo disciplinar estabelecido (apesar de Augé, 1977), nem tenha sido objeto de compêndio nas diversas enciclopédias e readers disponíveis para os estudantes e praticantes de antropologia. Foi essencialmente, nessa linha de pensamento, uma categoria implícita. Existem no entanto alguns itinerários prévios de explicitação da repressão que importa recordar: o próprio founding father Bronislaw Malinowski (2001) elaborou um tratado sobre o conceito no seu Sexo e repressão numa sociedade selvagem. O livro, no entanto, é lido como uma desconstrução das teorias freudianas em voga à época, nomeadamente a do complexo de Édipo, situando-se assim como um ensaio entre a antropologia e a psicanálise. No entanto, Malinowski (2001, p. 199-205) não deixa de oferecer uma perspectiva socializante sobre a repressão, nomeadamente na sua conjunção com o problema da autoridade (no seu caso, a autoridade paternal) e à forma como ela é constituída no seio do núcleo familiar.

Não pretendo aqui renegar a relevância heurística da construção psicanalítica da repressão. No entanto, estou mais interessado numa noção mais abrangente de repressão, enquanto "problema" simultaneamente psicológico e político, como um "efeito totalitarizante" que cruza estratégias coletivas e expectativas individuais. Essa perspectiva, de certa forma, já foi explorada implicitamente por Hannah Arendt (1973, p. 460 e seguintes) nas suas reflexões sobre as origens e disposições do totalitarismo nazi, fascista e estalinista, quando a autora procurava escalpelizar as ontologias por trás dos mecanismos de naturalização dos sistemas político-jurídicos associados e da necessidade de "identificar inimigos" por parte dos agentes totalitarizantes (ver reflexão em baixo). Nessa linha, décadas mais tarde, seria a antropologia francófona a produzir uma abordagem à repressão no âmbito de uma antropologia política preocupada com noções de Estado, pessoa e poder. Penso em particular em Marc Augé (1977) e nas suas reflexões sobre ideologia e política, onde convida o leitor, através de uma crítica à "meta-antropologia" vigente na época, para uma "antropologia da repressão" através da conjugação do binómio poder/repressão e sobretudo da análise do conceito propulsor de "ideologia" ou do "ideológico" - enquanto a soma do "pensável" com o "possível". Um dos objetivos primários de Augé era o de elaborar uma crítica ao binarismo clássico entre o West e o rest que persistia ainda então na antropologia, revestido na distinção entre sociedades "de Estado" (étatiques) e sociedades primitivas - estas despojadas de individualidade, história e agencialidade. Será precisamente na desconstrução dessa tradição que Augé (1977) vai explorar o problema da repressão sob a forma de poder, independentemente do facto da agência repressiva ser mediada por uma entidade estatal ou não. Grande parte do seu estudo, aliás, é uma descrição de como uma sociedade dita "sem Estado" também pode observar o totalitarismo e a repressão - numa exploração em muitos aspectos aproximada às propostas de Pierre Clastres (1979) sobre organização política, violência e poder nas sociedades amazónicas.

Nessa linha de pensamento, a ideia de Augé seria a de articular ideias de imposição, totalitarismo e dominação, trabalhando num contínuo as componentes psicanalíticas do conceito de repressão (através de Morin, Marcuse, Deleuze e Guattari) em função dos debates que então prevaleciam na antropologia sobre a "natureza" ou "cultura" da agência humana, e em particular sobre a eficácia simbólica do poder e a sua tradução ritual. Mas o fulcro da obra de Augé também entra em contacto com Foucault e Gramsci (sem necessariamente os citar) através de uma tripla constatação: o historicismo (temporalização da análise social), as noções de desigualdade e primazia e articulação entre ideologia, discurso e práxis - aspectos da vida social apreensíveis tanto pela história como pela filosofia política e pela antropologia. Aqui, percebemos como o conceito de repressão afeta ou é afetado simultaneamente por dinâmicas ideológicas, temporalizantes e pragmáticas

Do ponto de vista político, a proposta de Augé não implica obviamente que o Estado enquanto entidade produtora de agência deva ser subestimado. O próprio Gramsci (1992, p. 206-276), na sua destrinça do conceito de hegemonia, distinguira entre a sociedade política (coercitiva e dominante, materializada na polícia, o exército, etc.) e a sociedade civil (educativa, familiar) - uma distinção que medeia algumas das conceptualizações acima citadas, mas que encontrará eco sobretudo em reflexões inseridas na antropologia política, em geral, e do Estado, em particular (ver, por exemplo, Kelly e Shah, 2006). Também já foi referido acima o confronto entre sociedade e Estado proposto por Clastres (1979). Mais recentemente, Didier Fassin (2005) explorou a economia moral da repressão, pensando no caso das políticas estatais para a imigração na França, e as dialéticas de imposição repressiva e "compaixão" de que são alvos migrantes clandestinos que chegam às fronteiras daquele país. Nesse contexto, Fassin insere-se numa linha de reflexão sobre os conceitos políticos de Estado, lei e pessoa previamente iniciada por referências como Georges Balandier (1971), Pierre Clastres (1979, 1994) e, mais recentemente, Maurice Duval (1982) e Abdelmalek Sayad (1999). Fora da academia francófona, autores como Richard Wilson (1991), Alba Zaluar (1994, 2007), James C. Scott (1998), Ubaldo Martínez Veiga (2001, 2002), Tobias Kelly (2009), Jonathan Spencer (2007), Esmail Nashif (2008) e outros exploraram igualmente esse tipo de relacionamentos. Por exemplo, o antropólogo palestiniano Esmail Nashif (2008) explora a ideia de "captividade" enquanto sensação, condição e identificação entre os presos políticos palestinianos detidos pelo Estado de Israel, que por sua vez se transformam em "locais" (sites) de memória e identidade.

Como sugerido acima, se há um ponto de união entre todas essas teorias e abordagens, ele remete para o problema que pode ser considerado clássico da história da antropologia: as articulações e dispositivos que medeiam a relação entre o indivíduo e a sociedade - desde as solidariedades durkheimianas à escola da culture and personality norte-americana -, embora aqui observadas desde um ponto de vista político. Aqui igualmente, reconheço que esse exercício também contribui para essa dialética, ao indagar como repercutem, no indivíduo, ideologias e ontologias sociais e socializadas. E mais, proponho que esse exercício de "imaginação comunitária" (Anderson, 1983) pode ser localizado em formas, práticas, pessoas, estratégias (as tais "poieses") concretas.

Etnografando a repressão

As minhas primeiras reflexões sobre o problema da repressão começaram, como é hábito e saudável, a partir de interrogações que me surgiram durante o meu trabalho de terreno. Em 2007, comecei uma pesquisa sobre um movimento cristão profético angolano, a Igreja Tocoista, e as suas ramificações diaspóricas (ver, por exemplo, Blanes, 2009a, 2009b, 2010, 2011). Como muitos outros movimentos religiosos de caráter profético, esse movimento assentava, ideológica e teologicamente, na atribuição de uma centralidade ideológica da memória e consciência histórica, cujo eixo central se localizava na trajetória biográfica do seu profeta fundador, Simão Gonçalves Toco (1918-1984) - quem, após estudar e trabalhar nas missões batistas do norte de Angola, se emancipou e criou um dos movimentos cristãos mais importantes desse país, que hoje congrega dezenas de milhares de crentes nos seus cultos dominicais na capital Luanda e se encontra implantado por todo o território angolano e pela sua diáspora.

Ao longo da minha pesquisa, cedo percebi que a memória com que os tocoistas trabalhavam discursivamente era entendida como aquilo a que chamei eventualmente de "memória de sofrimento" (Blanes, 2009a), composta pela invocação dos distintos episódios de prisão, tortura, perseguição, exílio e tentativa de homicídio que o profeta experienciou ao longo da sua vida e na qualidade de líder religioso - já que desde o momento fundacional da igreja em Leopoldville em 1949, Toco fora objeto de inúmeras campanhas repressivas por parte dos distintos sistemas políticos coloniais e pós-coloniais que conheceu (belga, português, angolano; ver Blanes, 2011). Ao indagar nessa história, percebi que essa narrativa de sofrimento e martírio que circulava na igreja não era apenas um dispositivo metafórico e ideológico de autossustentação, mas assentava em experiências muito concretas resultantes de uma imposição exterior: a repressão que as distintas polícias políticas coloniais e pós-coloniais exerceram sobre a igreja e os seus seguidores desde a sua inauguração enquanto movimento. Por alguma razão ouvia repetidamente como os tocoistas se dirigiam uns aos outros como "irmão consofredor" (Blanes, 2009a).

Nascido numa aldeia remota do Uíge no norte de Angola, Simão Toco iniciou o seu movimento em 1949 quando se encontrava migrado em Leopoldville - como era, aliás, comum entre os bakongo do norte de Angola na primeira metade do século XX. Lá, ganhara alguma notoriedade nos círculos cristãos locais por liderar um coro eclesiástico (o Coro de Kibokolo), e pela sua docência na escola dominical da Missão Batista local, frequentados essencialmente por "zombos", migrantes bakongo angolanos oriundos da região do Uíge. Após um acontecimento descrito no seio da igreja como fundacional - a descida do Espírito Santo sobre Toco e dezenas de seus seguidores, em julho desse ano -, ele decide separar-se da Sociedade Missionária Batista e iniciar um movimento próprio, que proclamava a salvação espiritual do continente africano e a emancipação individual e social do cristão africano. Poucos meses depois desse evento, Simão Toco, denunciado pelos missionários batistas de quem se emancipara, é detido pelas autoridades belgas, acusado de alterar a ordem pública - no que é hoje recordado no seio da igreja como as "primeiras prisões" do profeta, onde Toco e dezenas dos seus seguidores foram presos, interrogados e torturados. Suspeitando do potencial subversivo do movimento, as autoridades belgas decidem expulsá-lo, junto com centenas dos seus seguidores, alguns dos quais se entregaram voluntariamente à prisão para poder seguir o seu líder, para o seu país de origem. Em janeiro de 1950, o grupo é encaminhado para a fronteira, onde é entregue pelas autoridades belgas à polícia portuguesa, que passou a incluí-los no seu sistema de vigilância e gestão sócio-demográfica, assente numa ideia muito concreta: a de que "seitas" como o tocoismo, potencialmente perigosas para o projeto colonial, deveriam ser reprimidas, tanto física como ideologicamente.

O grupo de centenas de pessoas passa então a sofrer três possíveis destinos: prisão, desterro ou fixação de residência e trabalho forçado, nos então chamados colonatos rurais que tinham criados de norte a sul do território angolano. O próprio líder passa por um colonato no Vale do Loge (Bembe, Uíge), antes de ser forçado a um exílio de 12 anos no deserto do Namibe (Ponta Albina), onde trabalhou com ajudante de faroleiro, proibido de sair do complexo e do contacto com qualquer pessoa alheia ao serviço do farol; em 1963, é enviado para um novo período de exílio, dessa vez na metrópole, na remota ilha de São Miguel, nos Açores. Os seus crentes, situados sobretudo em Luanda, Benguela e no norte (Uíge, Zaire), viriam igualmente a sofrer árduas consequências: desde prisões por tempo indeterminado a afastamento forçado entre familiares, à proibição de circular pelo território, à coartação das suas atividades espirituais e rusga e devassa da vida privada, ao trabalho escravo nos colonatos. Nesse processo, algumas fontes tocoistas relatam a morte de muitos correligionários às mãos das autoridades portuguesas (Agostinho, [s.d.]; Quibeta, [s.d.]). No entanto, a sua memória desse período também é uma de resiliência (Paxe, 2009), e de certa forma de orgulho por terem conseguido superar a provação e de terem conseguido não só persistir mas também proselitizar e fazer crescer o movimento por todo o território angolano (ver Blanes, 2009a, 2009b). A proclamação da independência em Angola inserir-se-ia então numa narrativa de resistência e vitória para os tocoistas - que conjugavam a memória de sofrimento a partir de uma história concreta de dispositivo repressor com uma noção cristã de providencialismo.

Mas essa memória também assentava noutro processo de documentação: o facto de muitos desses momentos de repressão estarem registados nos arquivos que a PIDE produziu durante o processo de vigilância e repressão. Entre 1950 e 1975, data da independência angolana, a PIDE acumulou inúmeros processos internos relativos ao tocoismo e o seu líder, produzindo relatórios internos, missivas confidenciais, relatórios de interrogatório, copiando e traduzindo correspondência dos tocoistas, encomendando estudos "científicos", etc. O interesse por compreender o fenómeno das "seitas místicas" e o seu substrato político começou a crescer à medida que se desenvolviam os movimentos de insurreição angolana (a partir de 1961) - o que provocou um aumento drástico das medidas de vigilância, controlo e opressão. Nesse contexto, a PIDE guiava-se por determinadas orientações e antevisões: o receio do potencial subversivo e desestabilizador do movimento (num momento histórico em que por toda a África se operavam processos de libertação e independentização), a convicção de que o seu modelo sociopolítico era o correto e devia ser protegido da "ação terrorista" (ver Mateus, 2004) e a ideia de que movimentos como o tocoismo deveriam, numa ótica de combate contra ideias subversivas e "antinaturais", ser reprimidos em favor de uma causa maior - a "bondade" e a "verdade" do colonialismo português (Mateus, 2004; Pimentel, 2007).

Em 1994, os arquivos da PIDE foram pela primeira vez disponibilizados para consulta pública (embora sujeitos a expurgo), o que veio inaugurar um novo campo e regime de reflexão, memória e consciência histórica, tanto da parte da academia portuguesa (por exemplo, Ribeiro, 1995; Bastos, 1997; Rosas, 2001; Madeira, Pimentel e Farinha, 2007; Pimentel, 2007; Domingos e Pereira, 2010) como da parte dos próprios tocoistas, que passaram a poder consultar um retrato de si próprios elaborado por um pintor que era simultaneamente um repressor. Inaugurou-se assim um novo regime "documental" de memória, produzido a partir de material iniciamente desenhado para ser confidencial e secreto. E hoje, ironia das ironias, os tocoistas socorrem-se desse acervo para comprovar a sua memória de resistência contra o agente repressor. A repressão da PIDE, portanto, transformou-se em material de memória.

Encontrei-me, portanto, perante um fenómeno que resultou de uma ação concreta e cujos contornos (históricos e sociais) eu conseguia detectar e confrontar. Era possível etnografar com algum detalhe os mecanismos de repressão, e ao mesmo tempo medir as percepções de memória e expectativa, empregando uma perspectiva diacrónica. Deu-se nesse momento um primeiro ato de definição heurística: eu não podia olhar para esse contexto concreto sem elaborar um exercício de "situação histórica" para perceber os contextos, as ideias e as expectativas daqueles que reprimiam e os que resistiam.

Repressão e a produção de temporalidades

Um dos primeiros antropólogos a preocupar-se com o problema da "situação histórica" foi o francês Georges Balandier. Tal como descrevi noutro artigo (Blanes, 2009c), ao longo da sua estadia em África (Gabão, Congo) no período pós-Segunda Guerra Mundial, já em plena formação ideológica e militar do processo de descolonização, Balandier desenvolveu a sua muito comentada teoria da "situação colonial", onde descreve e concebe uma sociedade plural, heterogénea em que sujeitos e grupos em interação agem de acordo com interesses e objetivo diferentes e frequentemente opostos, produzindo "dominantes" (colonizadores) e "dominados" (colonizados). Balandier (1963) propõe então uma abordagem dialética ao social a partir das divisões e fraturas (ou "turbulências") entre hegemonias e marginalidades, para melhor perceber as dinâmicas de mudança social produzidas pelo "contacto cultural" entre esse distintos grupos. Com esse enquadramento, Balandier vai então estudar, no Baixo Congo, o desenvolvimento e implantação de movimentos chamados "messiânicos" como o kimbanguismo e a Église des Noirs - movimentos a vários títulos próximos do tocoismo que aqui descrevo. Esses movimentos surgiram, de acordo com Balandier (1963, p. 285 e seguintes), como uma "reação" à "situação colonial", desenvolvendo teorias políticas sobre o sistema de dominação e teologias sobre a providência divina, ao proclamar a emancipação político-religiosa dos congoleses (em particular) e dos africanos (em geral). Para Balandier (1963, p. 417 e seguintes), esses fenómenos podiam ser estudados enquanto "revelações", expressões particulares de determinadas conjunturas históricas. Que expressões eram essas? Precisamente, a reação por parte de determinados sectores da população indígena à repressão e subjugação de outros, traduzida em processos de constituição política de liderança religiosa e profética, e particularizada em personalidades concretas como Simão Kimbangu, Simon-Pierre Mpadi, etc., que por sua vez avançavam com teologias, profecias e messianismos idealizadores de ordens sociais (e espirituais) alternativas às vigentes. Desde esse ponto de vista, o próprio sistema colonial produziu, através de processos de dominação e resistência, a sua própria negação e o seu próprio fim. É precisamente esse tipo de poiese histórica característica da repressão que eu pretendo remarcar aqui.

Mas o que estaria em causa, ainda, seria um problema retomado posterior e recorrentemente por antropólogos anglófonos: o problema da estrutura e da agência. Penso em particular em autores como Marshall Sahlins (1981, 1985, 2004, por exemplo), Eric Wolf (1982) e Jean Comaroff (1985). Sahlins, por exemplo, debatia o problema da ausência histórica nas análises estruturalistas que prevaleciam na segunda metade do século XX, assim como a falta de agencialidade atribuída às pessoas - aquelas mesmas que produziam a ação não-histórica de que tanto gostavam os estruturalistas. Defendia, portanto, a ideia da "eficácia histórica das pessoas, objetos e eventos" (Sahlins, 1981, p. 7), em realidades e ações concretas (como um jogo de baseball - Sahlins 2004, p. 125 e seguintes). O mesmo tipo de raciocínio poderia ser encontrado no exercício macro-histórico de Eric Wolf (1982), que procurava contrariar as historiografias que acentuavam perspectivas top-down a partir de conceitos despersonalizados de nação, cultura e sistema. Dizia Wolf (1982, p. ix): "[...] I think history matters. It is also important to understand how and why these systems [os sistemas de poder exercidos sobre a sociedade do trabalho] develop and extend their sway over people." (Como vimos acima, já se encontrava a mesma preocupação em Augé, 1977). Por outro lado, Jean Comaroff também debateu o problema da agência e transformação estrutural, ao debater a "motivação histórica" dos tshidi na África do Sul, que trabalhava simultaneamente no plano da semântica e da materialidade (Comaroff, 1985, p. 4) para perceber a conjugação entre cultura, consciência e transformação estrutural (Comaroff, 1985, p. 123 e seguintes) nas expressões de resistência tshidi. Esse tipo de argumentos não só enfatiza a história e a conjuntura como aspectos ineludíveis da reflexão antropológica, como também o reconhecimento da consciência histórica dos indivíduos em contextos de desigualdade (económica, política, epistemológica, etc.).

Numa linha semelhante, defendo uma abordagem no concreto para argumentar que atos físicos como a repressão se transformam em atos mentais como o entendimento e a consciência histórica, produzindo por sua vez novos modos de ação e significância investidos em pessoas, objetos e eventos. Nesse ponto, penso num exemplo muito concreto: na relevância sociopolítica que materialidades concretas como ossos, por exemplo, ganharam um lugar muito particular em contextos como a Espanha - onde a exumação das ossadas daqueles que foram assassinados durante e na remanescência da Guerra Civil de 1936-1939 foi recentemente objeto de um intenso debate público seguido de processo judicial (Ferrándiz, 2006, 2009) - ou a América Latina, onde se desenvolveu uma "arqueologia" dos regimes ditatoriais e guerras sujas que daí ocorreram, a partir por exemplo da investigação dos cidadãos "desaparecidos" desses regimes (Funari, 2009). Igualmente, alguma literatura recente sobre as comunidades indígenas nessa mesma região e a violência genocida estatal incorpora problematizações sobre paisagens e memórias de terror (ver, por exemplo, Rodgers, 2006; Tamagno, 2011).

Nesse contexto, aprecia-se uma ligação entre repressão e memória que nos importa reter enquanto antropólogos sociais - na medida em que a antropologia forense já é em si, na maior parte dos casos, uma pesquisa e uma forma de lidar com a violência (Lessa, 2009). Uma antropologia preocupada com questões de repressão deverá, penso, necessariamente trabalhar sob essa perspectiva. É nesse sentido que se observam, em muitos casos, processos de "memorialização" (Wahnich, 2007) ou "arquivo" (Sánchez-Carretero, 2011) do terror, da dor e do trauma. O caso dos museus sobre o Holocausto são sobejamente conhecidos (Hirsch; Spitzer, 2010; Wahnich, 2007). Mas nem sempre a distância temporal é necessária para observar esses processos de memorialização. A obra coletiva dirigida por Cristina Sánchez-Carretero (2011) sobre a resposta cidadã aos ataques terroristas no 11 de março de 2004 em Madrid, intitulada El archivo del duelo, por exemplo, é um caso fascinante de reflexão sobre como atos concretos de repressão se transformam, post facto, em atos de memória ou processos de memorialização, despoletando diferentes regimes de ação e discurso a partir de um caso terrorífico de repressão social e psicológica.

No entanto, o meu argumento aqui pretende ser mais abrangente: mais do que repercutir em processos de memória, o problema da repressão envolve uma gama de temporalidades que não só remete para exercícios de "estabilização do passado" (Blanes, 2011; Lambek; Antze, 1996) como também implica noções experienciais e ideológicas de expectativas e esperança. Por exemplo no caso tocoista, como noutros movimentos proféticos e messiânicos objeto de perseguição política e policial (Sarró, 2009), a repressão surge como dispositivo mediador entre a memória do sofrimento e uma configuração do futuro (sumida em conceitos como o de "expectativa", "certeza" e "esperança"). As próprias categorias de messianismo e profecia já remetem conceptualmente para uma ideia de mudança, transformação social (ver, por exemplo, Dozon, 1974).

Repressão e a produção de dialéticas

Muitas dessas propostas teóricas, embora separadas no tempo e espaço, e nas respectivas linhagens de pensamento, convergem, creio, numa concepção dialética da produção social, e em particular da violência e inimizade que frequentemente assenta em processos de produção de hegemonias e margens - o coletivo versus o individual; o Estado contra a sociedade, imposição contra liberdade, a ordem contra a desordem, etc. Nesta secção, penso concretamente nesse aspecto dialético para refletir sobre como a conceptualização da repressão assenta, tal como propusera Arendt, em conceitos de alteridade e inimizade. Invoco aqui a conhecida noção de "constituição de inimizades" proposta por Eduardo Viveiros de Castro (1992, p. 248 e seguintes) a propósito do posicionamento dos guerreiros arawetê, para sugerir que a repressão impõe e simultaneamente produz posicionamentos e perspectivas que descobrem a dimensão político-conflitiva da sociedade. No âmbito dessa teoria política da inimizade, o próprio ato de exonímia - lida aqui como a "nomeação do estrangeiro" - de que falava Viveiros de Castro (1986) é ilustrativo de como processos de constituição coletiva são mediados por economias políticas de identificação da alteridade. Nesse contexto, a repressão pode ser entendida simultaneamente como agente, mecanismo, causa e consequência desses processos de identificação e posterior dominação ou "exclusão".

Nessa linha de reflexão em particular, a inspiração marxista - através das noções de dialética, desigualdade e utopia ou horizonte temporal (ver Bloch, 1977; ver também Donham, 1999) - é demasiado óbvia para ser deixada de lado, em particular porque reforça a dimensão temporal da relação binária entre repressores e reprimidos. O ponto de interesse aqui será precisamente questionar: até que ponto é que essa dialética é irreversível e inevitável? Invocando a terminologia hegeliana, onde começa concretamente a tese e a sua antítese? Efetivamente, em muitos dos contextos empíricos acima invocados, frequentemente torna-se difícil distinguir onde começam as histórias de violência - tanto no particular como no coletivo (ver Docker, 2008) -; do ponto de vista etnográfico apenas podemos almejar conhecer, in medias res, as relações dialógicas entre "ação" e "provocação". É comum ouvir que a "violência gera violência" para justificar confrontos e belicismos - e como a resistência é de certa forma uma "imposição" do próprio ato de repressão. Mas contrariando a retórica da pergunta mais acima neste parágrafo, talvez interesse mais perceber que a própria constituição dialética (sobre a qual assenta o dispositivo repressor que constrói "dominantes" e "dominados") é em si uma teoria política de identidade e expectativa.

Neste ponto, talvez seja relevante pensar naquele que é frequentemente constituído como o "outro lado" da repressão: a resistência e/ou o conformismo. Um dos grandes antropólogos das resistências, James Scott (1990), olhou acutilantemente para o problema da hegemonia, dominação e subordinação através da reflexão sobre a "arte" da representação - o registo discursivo e comportamental - de grupos subordinados em contextos hegemónicos, mais tarde brilhantemente explorado sob a perspectiva histórica (Scott, 2009). Nesse sentido, a visão de Scott surge interessantemente como "resposta" ao problema lançado anos antes por Balandier (1976) quando também ele procurava desmontar outro clássico binómio antropológico: o da divisão entre as sociedades "com história" e as sociedades "sem história" - e portanto estabilizadas, conformadas. Essa associação entre consciência histórica e instabilidade, de certa forma, é revelada por Scott quando descreve o tipo de registos e discursos próprios daqueles que são subordinados e silenciados. O ponto que pretendo ressaltar aqui é o da multiplicidade das consciências e consequentemente das agências, recordando que a hegemonia e a marginalidade (enquanto resultados da repressão) obedecem a distintas direcionalidades que, embora recorrentemente desenhadas enquanto tal, não têm porque ser dicotómicas. Igualmente, existem várias resistências e temporalidades envolvidas (Hollander; Einwohner, 2004) - a performatização quotidiana (Scott, 1990), a longue durée (Scott, 2009), a resistência episódica ou espontânea, etc. - que nos obrigam uma vez mais a complexificar o problema.

O caso tocoista pode ser, uma vez mais, interessante para pensar essa constituição, sobretudo nessa suposta inevitabilidade da sua dicotomização. No final do processo de libertação angolana, quando as autoridades portuguesas começavam a preparar a sua saída do território, Simão Toco foi autorizado a regressar ao seu país, após 11 anos de desterro nos Açores. Os jornais da época relatam esse regresso triunfal, com títulos como "O regresso de um homem de paz" e onde entrevistavam um líder religioso que falava de paz e concórdia no país recém-nascido. Parecia, de facto, o fim da dialética de violência e o triunfo da resistência tocoista perante a repressão colonial. Mas o período pós-independência, referido no seio da igreja como "as segundas prisões do profeta", acabou por ser ainda mais dramático para os crentes. Com a instauração do primeiro governo de Angola liderado pelo MPLA Agostinho Neto, de inspiração marxista-leninista, o movimento voltaria a ser alvo de perseguição governamental; isso, graças em primeiro lugar ao caráter manifestamente antirreligioso da ideologia do partido do poder, mas também por desentendimentos pessoais entre Neto e Toco, que motivaram uma repressão particularmente particularizada, se me for permitida a redundância (Blanes, 2009a, 2011; Grenfell, 1998). Acusado de querer interferir no processo de paz angolano, Toco foi objeto de inúmeras rusgas, prisões e ainda se manteve vários meses escondido das autoridades num bairro de Luanda - num lugar ainda hoje não revelado pelos tocoistas, conhecido no seio da igreja como "o buraco". Para os tocoistas, então, deixava de haver um "outro", uma "inimizade", mas sim várias. O reconhecimento histórico que desenvolvem hoje é assim uma resposta à necessidade de "estabilizar" um passado com múltiplos inimigos e narrativas de perseguição, sofrimento e resiliência (Blanes, 2011).

Percebemos portanto que embora a repressão obriga ao reconhecimento de uma alteridade no âmbito da sua vontade hegemónica - tal como Arendt (1973) nos avisara a propósito dos totalitarismos do século XX -, tal não terá necessariamente de implicar um binarismo social, mas antes a constituição de pontos de vista e exercícios de identificação do outro dentro da turbulência do social e no âmbito das ideologias "em competição". Como descrevia Arendt, por exemplo, no processo que levou à II Guerra Mundial, os judeus passaram a ser um alvo "catalisador" para os regimes fascista e nazi, de certa forma através de uma "necessidade" de criação e identificação de um inimigo. Fica, então, uma pergunta sem resposta evidente mas intuída - pelo menos enquanto problema etnográfico: quais as consciências e as motivações que propiciam o ato repressivo?

Conclusão

Ao longo deste artigo, procurei elaborar um exercício de demarcação sobre uma hipotética "antropologia da repressão", a partir de um convite avançado décadas antes por Marc Augé, procurando simultaneamente abrir o escopo e explorar as potencialidades do conceito de "repressão" para entender as dimensões da política e a experiência da conflitualidade no social. Essa demarcação passou por dois problemas que surgem associados ao próprio conceito de repressão - a temporalidade (memória e expectativa) e a dialética do confronto. Daí o título "o tempo dos inimigos": o alerta para a forma como os processos de instituição de repressões podem estar mediados pela associação entre atos de consciência histórica e reconhecimento de alteridades/inimizades.

Sobre o primeiro dos problemas, o subtítulo deste artigo continha uma ligeira provocação: propus as notas para uma "antropologia da repressão", particularmente no século XXI. No entanto, também é verdade que as notas empíricas que invoquei neste texto remetem para acontecimentos do século XX - assim como muitas das referências bibliográficas que citei. Porquê, então, uma antropologia da repressão no século XXI? Talvez porque momentos históricos de repressão como os que invoquei sejam, como diria Walter Benjamin (1974), "abreviações monstruosas" da história, que repercutem nas noções de temporalidade (isso, nas consciências históricas) muito para além do seu momento de ocorrência. Desconstroem o construtivismo historiográfico e o redefinem com novas percepções e experiências. Nesse sentido, não é tão relevante assim que tenham acontecido no século XIX, XX ou XXI, mas antes que estejamos a recordá-los e debatê-los precisamente no século XXI.

Recebido em: 30/08/2011

Aprovado em: 12/11/2011

  • AGOSTINHO, P. Simão Gonçalves Toco e os tocoistas no mundo Luanda, [s.d.
  • ANDERSON, B. Imagined communities: reflections on the origin and spread of nationalism. London: Verso, 1983.
  • ARENDT, H. The origins of totalitarianism San Diego: Harvest Books, 1973.
  • AUGÉ, M. Pouvoirs de vie, pouvoirs de mort: introduction à une anthropologie de la répression. Paris: Flammarion, 1977.
  • BALANDIER, G. Sociologie actuelle de l'Afrique Noire Paris: PUF, 1963.
  • BALANDIER, G. Politique et contestation en Afrique. Canadian Journal of African Studies, n. 2, p. 131-134, 1971.
  • BALANDIER, G. Tradition, conformité, historicité. In: POIRIER, J.; RAVEAU, J.-F. Autre et l'ailleurs: hommage à Roger Bastide. Berger-Levrault, 1976. p. 15-38.
  • BASTOS, S. P. O Estado Novo e os seus vadios Lisboa: Dom Quixote, 1997.
  • BENJAMIN, W. On the concept of History: gesammelten Schriften I: 2. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1974.
  • BLANES, R. L. Remembering and suffering: memory and shifting allegiances in the Angolan Tokoist Church. Exchange, v. 38, n. 2, p. 161-181, 2009a.
  • BLANES, R. L. Circunscrição moral: mobilidade, diáspora e configurações doutrinais na Igreja Tokoista. In: CARMO, R. do; SIMÕES, J. A. A produção das mobilidades: redes, espacialidades e trajectos num mundo em globalização. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2009b. p. 247-262.
  • BLANES, R. L. O que se passa tabernáculo? Oração e espacialização na Igreja Tokoista Angolana. Religião e Sociedade, ano 29, n. 2, p. 116-133, 2009c.
  • BLANES, R. L. The personification of a prophet: leadership, charisma and the globalization of the Angolan Tokoist Church. In: FANCELLO, S.; MARY, A. Chrétiens Africains en Europe Paris: Karthala, 2010. p. 69-92.
  • BLANES, R. L. Unstable biographies: the ethnography of memory and historicity in an Angolan prophetic movement. History and Anthropology, v. 22, n. 1, p. 93-119, 2011.
  • BLOCH, M. Análisis marxistas y antropología social Barcelona: Anagrama, 1977.
  • BLOCH, M. From blessing to violence: history and ideology in the circumcision ritual of the Merina of Madagascar. Cambridge: Cambridge University Press, 1986.
  • CAOUETTE, D.; TURNER, S. (Ed.). Agrarian angst and rural resistance in contemporary Southeast Asia London: Routledge, 2009.
  • CLASTRES, P. A sociedade contra o Estado: investigações de antropologia política. Porto: Afrontamento, 1979.
  • CLASTRES, P. Archaeology of violence New York: Semiotext(e), 1994.
  • COMAROFF, J. Body of power, spirit of resistance: the culture and history of a South African people. Chicago: University of Chicago Press, 1985.
  • CUNHA, M. Entre o bairro e a prisão: tráfico e trajectos. Lisboa: Fim de Século, 2002.
  • DOCKER, J. The origins of violence: religion, history and genocide. Sidney: UNSW Press, 2008.
  • DOMINGOS, N.; PEREIRA, V. (Ed.). O Estado Novo em questão Lisboa: Edições 70, 2010.
  • DONHAM, D. Marxist modern: an ethnographic history of the Ethiopian revolution. Berkeley: University of California Press, 1999.
  • DOZON, J.-P. Les mouvements politico-religieux: syncrétismes, messianismes, néo-traditionnalismes. In: AUGÉ, M. (Ed.). La construction du monde: religion, représentations, idéologie. Paris: F. Maspero, 1974. p. 75-111.
  • DURÃO, S. Patrulha e proximidade: uma etnografia da polícia em Lisboa. Coimbra: Almedina, 2008.
  • DUVAL, M. Les formes élémentaires d'un totalitarisme lignager: contribution à l'anthropologie de la répression à partir d'un cas voltaïque. Thèse (3ème cycle Ethnol). Paris: EHESS, 1982.
  • FASSIN, D. Compassion and repression: the moral economy of immigration policies in France. Cultural Anthropology, v. 20, n. 1, p. 362-387, 2005.
  • FELDMAN, A. Formations of violence: the narrative of the body and political terror in Northern Ireland. Chicago: University of Chicago Press, 1991.
  • FERRÁNDIZ, F. The return of Civil War ghosts. The ethnography of exhumations in contemporary Spain. Anthropology Today, v. 22, n. 3, p. 7-12, 2006.
  • FERRÁNDIZ, F. Fosas comunes, paisajes del terror. Revista de Dialectología y Tradiciones Populares, v. LXIV, n. 1, p. 61-94, 2009.
  • FOUCAULT, M. Discipline and punish: the birth of prison. New York: Vintage Books, 1974.
  • FOUCAULT, M. Power/knowledge: selected interviews and other writings 1972-1977. New York: Pantheon, 1980.
  • FRÓIS, C. Não mais estaremos sozinhos... A globalização do controlo. In: CARMO, R.; MELO, D.; BLANES, R. L. (Ed.). A globalização no divã Lisboa: Tinta da China, 2008. p. 203-216.
  • FRÓIS, C. A sociedade vigilante: ensaios sobre identificação, privacidade e vigilância. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2009.
  • FUNARI, P. Memories from darkness: archaeology of repression and resistance in Latin America. New York: Springer, 2009.
  • GRAMSCI, A. Selections from the Prison Notebooks New York: International Publishers, 1992.
  • GRAMSCI, A. The Gramsci reader: selected writings 1916-1935. New York: New York University Press, 2000.
  • GRENFELL, J. Simão Toco: An Angolan prophet. Journal of Religion in Africa, v. 28, n. 2, p. 210-226, 1998.
  • GUYER, J. Prophecy and the near future: Thoughts on macroeconomic, evangelical, and punctuated time. American Ethnologist, v. 34, n. 4, p. 409-421, 2007.
  • HAAS, J. (Ed.). The anthropology of war Cambridge: Cambridge University Press, 1990.
  • HIRSCH, M.; SPITZER, L. 2010. Ghosts of home: the afterlife of Czernowitz in Jewish memory. Berkeley: University of California Press, 2010.
  • HOLLANDER, J.; EINWOHNER, R. Conceptualizing resistance. Sociological Forum, v. 19, n. 4, p. 533-554, 2004.
  • KAPFERER, B. State, sovereignty, war: civil violence in emerging global realities. Oxford: Berghahn, 2004.
  • KELLY, T. Law, violence and sovereignty among West Bank Palestinians Cambridge: Cambridge University Press, 2006.
  • KELLY, T. The politics of Palestinian Legal Reform: Judicial independence and accountability under occupation. In: JEFFERSON, A.; JENSEN, S. (Ed.). State violence and human rights: state officials in the South. London: Routledge, 2009. p. 23-39.
  • KELLY, T.; SHAH, A. Introduction. A double-edged sword: protection and State Violence. Critique of Anthropology, v. 26, n. 3, p. 251-257, 2006.
  • LAMBEK, M.; ANTZE, P. (Ed.). Tense past: essays in trauma and memory. London: Routledge, 1996.
  • LESSA, A. Violência e impunidade em pauta: problemas e perspectivas sob a ótica da antropologia forense no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, ano 14, n. 5, p. 1855-1863, 2009.
  • MADEIRA, J.; PIMENTEL, I.; FARINHA, L. Vítimas de Salazar: Estado Novo e violência política. Lisboa: Esfera dos Livros, 2007.
  • MALINOWSKI, B. Sex and repression in a savage society London: Routledge, 2001.
  • MARTÍNEZ VEIGA, U. Pobreza, exclusión y segregación racial Madrid: Icaria, 2001.
  • MARTÍNEZ VEIGA, U. Immigrant labor: Policies, civil rights, violence and the labor market: El Ejido (Almería, Spain). Endoxa, n. 15, p. 129-134, 2002.
  • MATEUS, D. A PIDE/DGS na Guerra Colonial Lisboa: Terramar, 2004.
  • NAGENGAST, C. Violence, terror, and the crisis of the State. Annual Review of Anthropology, v. 23, p. 109-136, 1994.
  • NASHIF, E. Palestinian political prisoners: identity and community. New York: Palgrave, 2008.
  • NORDSTROM, C.; ROBBEN, A. (Ed.). Fieldwork under fire: contemporary studies of violence and survival. Berkeley: University of California Press, 1995.
  • PAXE, A. M. V. Dinâmicas de resiliência social nos dircursos e práticas tokoístas no Icolo e Bengo Dissertação (Mestrado em Estudos Africanos)-ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa, Lisboa, 2009.
  • PIMENTEL, I. F. A História da PIDE Lisboa: Temas e Debates, 2007.
  • QUIBETA, S. Simão Tôco: o profeta africano em Angola: vida e obra. Luanda, [s.d.
  • RIBEIRO, M. da C. A polícia política no Estado Novo, 1926-1945 Lisboa: Estampa, 1995.
  • ROBBEN, A.; SUÁREZ-OROZCO, M. (Ed.). Cultures under siege: collective violence and trauma. Cambridge: Cambridge University Press, 2000.
  • RODGERS, D. The State as a gang: Conceptualizing the governmentality of violence in contemporary Nicaragua. Critique of Anthropology, v. 26, n. 3, p. 315-330, 2006.
  • ROSAS, F. O salazarismo e o homem novo: ensaio sobre o Estado Novo e a questão do totalitarismo. Análise Social, v. 35, n. 157, p. 1031-1054, 2001.
  • SÁNCHEZ-CARRETERO, C. El archivo del duelo Madrid: CSIC, 2011.
  • SAHLINS, M. Historical metaphors and mythical realities: structure in the early history of the Sandwich Islands Kingdom. Ann Arbor: University of Michigan Press, 1981.
  • SAHLINS, M. Islands of History Chicago: University of Chicago Press, 1985.
  • SAHLINS, M. Apologies to Thucydides Chicago: University of Chicago Press, 2004.
  • SARRÓ, R. Kongo en Lisboa: un ensayo sobre la reubicación y la extraversión religiosa. In: AIXELÀ, Y; MALLART, L.; MARTÍ, J. (Ed.). Introducción a los estudios africanos Barcelona: CEIBA, 2009. p. 115-129.
  • SAYAD, A. La double absence: des illusions de l'émigré aux souffrances de l'immigré. Paris: Seuil, 1999.
  • SCHEPER-HUGHES, N.; BOURGOIS, Ph. (Ed.). Violence in war and peace: an anthology. Oxford: Blackwell, 2004.
  • SCHMIDT, B.; SCHROEDER, I. Anthropology of violence and conflict London: Routledge, 2000.
  • SCOTT, J. C. Domination and the arts of resistance: hidden transcripts. Yale: Yale University Press, 1990.
  • SCOTT, J. C. Seeing like a State: how certain schemes to improve the human condition have failed. Yale: Yale University Press, 1998.
  • SCOTT, J. C. The art of not being governed Yale: Yale University Press, 2009.
  • SLUKA, J. Death squad: the anthropology of State Terror. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2000.
  • SPENCER, J. Anthropology, politics and the State: democracy and violence in South Asia. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.
  • TAMAGNO, L. Pueblos indígenas. Racismo, genocidio y represión. Corpus, v. 1, n. 2, p. 1-6, 2011.
  • TAUSSIG, M. Culture of terror space of death. Roger Casement's report and the explanation of torture. Comparative Studies in Society and History, v. 26, n. 3, p. 467-497, 1984.
  • TAUSSIG, M. Shamanism, colonialism and the wild man Chicago: University of Chicago Press, 1996.
  • VIVEIROS DE CASTRO, E. Arawetê: os deuses canibais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986.
  • VIVEIROS DE CASTRO, E. From the enemy's point of view: humanity and divinity in an Amazonian society. Chicago: University of Chicago Press, 1992.
  • WACQUANT, L. Les prisons de la misère Paris: Raisons d'Agir, 1999.
  • WACQUANT, L. Punishing the poor: the neoliberal government of social insecurity. Durham: Duke University Press, 2009.
  • WAHNICH, S. Transmettre l'effroi, penser la terreur. Les musées d'une Europe déchirée. Gradhiva, n. 5, p. 26-37, 2007.
  • WILSON, R. Machine guns and mountain spirits. The cultural effects of state repression among the Q'eqchi' of Guatemala. Critique of Anthropology, v. 11, n. 1, p. 33-62, 1991.
  • WOLF, E. Europe and the people without history Berkeley: University of California Press, 1982.
  • ZALUAR, A. Drogas e cidadania: repressão ou redução de riscos. Brasília: Brasiliense, 1994.
  • ZALUAR, A. Democratização inacabada: fracasso da segurança pública. Estudos Avançados, ano 21, n. 61, p. 31-49, 2007.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jul 2012
  • Data do Fascículo
    Jun 2012

Histórico

  • Recebido
    30 Ago 2011
  • Aceito
    12 Nov 2011
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - IFCH-UFRGS UFRGS - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Av. Bento Gonçalves, 9500 - Prédio 43321, sala 205-B, 91509-900 - Porto Alegre - RS - Brasil, Telefone (51) 3308-7165, Fax: +55 51 3308-6638 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: horizontes@ufrgs.br