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Fé em Deus e pé na tábua: ou como e por que o trânsito enlouquece no Brasil

RESENHAS

DAMATTA, Roberto. Fé em Deus e pé na tábua: ou como e por que o trânsito enlouquece no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco. 2010. 191 p.

Carolina Vasconcelos Pitanga*

Universidade Federal do Maranhão - Brasil

Roberto DaMatta, em parceria com João Gualberto M. Vasconcelos e Ricardo Pandolfi, no traz uma análise aprofundada sobre os comportamentos e atitudes vivenciados diariamente nas vias públicas das grandes cidades brasileiras. Tendo como parâmetro uma pesquisa realizada sobre o trânsito na capital do Espírito Santo, DaMatta aborda a questão do trânsito no Brasil, aproximando-o com a discussão feita anteriormente no seu livro A casa e a rua (DaMatta, 1997).

Roberto DaMatta observa como a rua, concebida dentro de um contexto igualitário, aberto a todos, pode se tornar hierarquizada socialmente e como a violência e a loucura dos condutores e pedestres têm crescido em decorrência disso. Levando em conta a dicotomia entre os valores da casa e os da rua, o livro considera o pressuposto de que, no Brasil, a utilização do carro como principal instrumento de transporte é seguido por uma série de concepções ligadas aos modelos aristocrático e individualista, personificados na ocupação do espaço público realizado por dona Carlota Joaquina (p. 94), que recebia reverência de todos que passavam pelas ruas ao ser levada em sua cadeirinha de arruar, por escravos. Nos dias atuais, o carro faz com que os indivíduos se protejam de contatos mais diretos com outros, mas por outro lado possibilita o poder da liberdade e a consequência disso é um cidadão repleto de direitos e vazio de deveres.

Analisando o trânsito como um sistema cultural, nos termos de Clifford Geertz (1989), e afastando-se da ideia de produzir uma obra sobre engenharia, ou sobre educação no trânsito, a proposta do livro é analisar os comportamentos dos condutores, pedestres, (moto)ciclistas, levando em consideração a dificuldade do brasileiro de cumprir leis, bem como a mentalidade hierárquica que classifica objetos e pessoas como superiores ou inferiores, resultando disso uma situação de constante conflito e tensão, num espaço que, presumidamente, acredita-se ser de igualdade para todos.

Se no carnaval o brasileiro é visto em toda sua cordialidade como um sujeito alegre e sem preocupações, no trânsito esse mesmo sujeito torna-se agressivo e tem a necessidade de ultrapassar todos os obstáculos que estão na sua frente (pedestres, ciclistas, semáforos etc.). No capítulo 2, intitulado "Raízes da desobediência", DaMatta justifica essa carga de desumanidade e a agressividade encontrada no trânsito considerando que o ato de sair de casa, no Brasil, é algo dramático. Ao sair de casa, deve-se esquecer os laços sociais pautados pela hierarquia e as normas familiares, e encarar a rua como um local perigoso e repleto de riscos, e onde só Deus pode tomar conta de tudo e de todos.

No capítulo 3, "Receitas para enlouquecer: avaliações e julgamentos do trânsito", a questão da falta do cumprimento das leis, tanto por parte dos condutores quanto por parte dos pedestres, apresenta-se como interesse principal de análise. O prestígio e o poder de liberdade que o carro oferece aos seus usuários fazem com que o pedestre se torne a principal vítima desse espaço, onde o carro deixa de ser um instrumento de locomoção para se tornar um símbolo de superioridade social.

No capítulo "O carro é o motorista", demonstra-se como atualmente o carro foi transformado em um objeto de desejo e como instrumento de ascensão social. O cidadão motorizado tem prestígio de se deslocar livremente, muitas vezes até mesmo sem carteira de habilitação, o que proporciona uma sensação de privilégio em relação aos que não possuem um carro. Desse modo, afirma-se que o carro importado, novo e em ótimas condições está no topo da hierarquia do trânsito.

A dimensão referente aos sentimentos e emoções provocados no trânsito, como estresse, agressividade e impaciência, pode ser entendida a partir da análise do dilema do trânsito, onde se constitui uma contradição entre a concepção de rua como um espaço construído para todos e indivíduos com uma mentalidade marcada pela hierarquia aristocrática. Além disso, há no Brasil uma crença compartilhada por condutores de veículos, motociclistas e pedestres: a de que os problemas do trânsito estão relacionados a fatores externos - ausência de estrutura física adequada de funcionamento das vias públicas. A partir disso pode-se destacar a falta de conscientização em relação aos direitos e, principalmente, aos deveres de cada um ao sair de casa.

No capítulo "Os motivos da loucura: um esboço de uma análise comportamental", o problema social da junção entre bebida alcoólica e direção é abordado. Se, por um lado, as pessoas costumam concordar que a lei precisa ser cumprida, no momento em que elas sofrem essas punições - multas ou até perda da carteira de habilitação -, reclamam e justificam que se todos fazem não é justo que só um seja punido. Desse modo, o autor afirma que a infração de trânsito tornou-se uma característica do brasileiro, sendo muitas vezes justificada em função de questões pessoais.

A crença de que certas quantidades de álcool são aceitáveis, pois tudo depende do motorista, segue a mesma lógica deste amálgama conflituoso inconsciente entre ideias pessoais de superioridade e ideias de igualdade. Daí a disjuntiva entre a lei para o outro e a compreensão relativizante que conduz à tolerância, ao perdão e à condescendência para os nossos e para a nossa conduta. O famoso Você sabe com quem está falando?, segundo o qual aos inimigos aplica-se a lei e, aos amigos, concede-se toda a compreensão, tem como ponto de partida nossa visão hierárquica do mundo e teima ignorar um outro lado: o igualitarismo que tudo complica. (p. 117, grifo do autor).

Ao concluir o livro, no capítulo "Desligando o motor", é possível recordarmos de algumas situações de injustiça e crueldade que já passamos ou impusemos a alguém. Além da experiência de alteridade, podemos experimentar a sensação de estranhamento, visto que, de uma forma geral, ao sair de casa, estamos preparados para tudo e não nos damos conta do nível de insensatez e selvageria que toma conta das ruas, onde o carro é um dos principais instrumentos de status e opressão.

Para concluir, o livro possibilita uma compreensão sobre os aspectos sociais e cotidianos que determinam a existência de um trânsito cada vez mais caótico e violento. Propondo uma abordagem concentrada nas atitudes e na mentalidade dos condutores e pedestres, nas suas expectativas e ideias sobre o trânsito, Roberto DaMatta realiza um estudo importante sobre a situação atual das experiências em vias públicas brasileiras. Sendo assim, este trabalho é uma contribuição fundamental para a análise antropológica e sociológica das cidades, e preenche uma lacuna em relação ao estudo sobre o trânsito e as formas de interação no espaço público brasileiro.

  • DAMATTA, R. A casa e a rua: espaço, cidadania mulher e morte no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
  • GEERTZ, C. A interpretação das culturas Rio de Janeiro: Guanabara, 1989.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jul 2012
  • Data do Fascículo
    Jun 2012
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