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Cosmologias políticas do neocolonialismo: como uma política pública pode se transformar em uma política do ressentimento

RESENHAS

LOBÃO, Ronaldo. Cosmologias políticas do neocolonialismo: como uma política pública pode se transformar em uma política do ressentimento. Niterói: Editora da UFF, 2010. 245 p.* * Agradeço a Carolina Llanes o apoio e as observações durante a leitura desse livro.

Sandro José da Silva

Universidade Federal do Espírito Santo - Brasil

Fruto de mais de 15 anos de investigação, o livro de Ronaldo Lobão, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), é uma provocante e desafiadora reflexão ao academicismo brasileiro, à biologia da conservação e aos agentes de Estado envolvidos na transformação da natureza em um objeto de tutela. O livro é também uma referência fundamental para os pesquisadores que têm à sua frente o desafio de rever temas tão "naturalizados" como desgastados pela dinâmica histórica e social: as "políticas públicas", o "desenvolvimento sustentado", "empoderamento", "participação", etc. A lista é extensa. Lobão faz desses temas uma leitura crítica incluindo a agência de antropólogos e antropólogas na validação daqueles saberes/poderes.

O subtítulo do livro nos evoca ainda mais desafios, pois, tendo como horizonte a atuação profissional do autor no campo da conservação, argumenta que uma "política pública pode se transformar em uma política do ressentimento" se olharmos os eventos com uma escala de observação maior do que aquela imposta pelos termos de referência ou agendas apressadas das agências de conservação. O livro busca compreender os conflitos relacionados às políticas públicas de conservação da natureza tomando os pontos de vista dos diferentes sujeitos: pescadores, caiçaras, indígenas, quilombolas e populações tradicionais, bem como daqueles que se definem como os protetores da natureza e, por fim, daqueles que financiam e delimitam os contornos onde podem caber as experiências de conservação no mundo. Todos envolvidos em uma dinâmica histórica tensa e que, segundo o autor, estão em plena transformação.

Mas o livro procura enfrentar o conflito de um ponto de vista diferente daquele comumente expostos nos diagnósticos sobre "o problema" da permanência humana em áreas protegidas. Lobão transforma "o problema" em um objeto de estudo a partir de duas guinadas epistemológicas: em primeiro lugar transforma as agências e os agentes da conservação em sujeitos da pesquisa e em segundo lugar transforma a natureza e suas diferentes conceptualizações em um objeto a partir dos espaços de disputa daqueles sujeitos. O resultado mostra a capacidade dessas duas práticas de engolir lógicas distintas que se impõem ou, simplesmente opõem, ao objeto híbrido, mas bem controlado, que pretendem tutelar: a natureza. Nesse aspecto, a tutela é desenvolvida desde uma perspectiva cosmológica, contendo aí seus mitos fundantes, seus dogmas, suas estratégias de reprodução e controle do tempo e do espaço, bem como aqueles que se definem como os especialistas que sacralizaram a natureza - juristas e ambientalistas - ou o Outro - como os antropólogos. Essas cosmologias contêm elementos díspares como ações globais em microescalas, mas também a convergência de interesses nacionais e manutenção da perspectiva Liberal relacionada à força de trabalho envolvida na conservação, no que Lobão define como "projetismo". Em meio a esses cenários ora segmentados, ora bem costurados, as sociedades humanas são apresentadas pelo autor como aquelas que se equilibram, fundem seus horizontes, negociam estratégias, cedem aqui e ali seus palmos de chão e dignidade, mimetizam agências, apresentam seus discursos bem adequados, desaparecem ou se reinventam.

Reunir, compreender e reconstruir fazem parte do percurso que Lobão escolheu para dar forma ao seu argumento. Com exemplos de pesquisa e mediação em vários lugares do Brasil, o autor mostra os arranjos locais na construção do objeto histórico meio ambiente. Ele reúne situações aparentemente distintas que têm o germe da presença estatal a desafiar/interpor-se às formas de organização civil local. Desde a experiência inovadora dos seringueiros do Acre, passando pelas adequações do modelo nas reservas extrativistas marinhas no Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia, Lobão demonstra que existem tensões na obtenção de direitos materiais - a terra -, oriundas dos processos de acomodação das identificações e da legitimação institucional que, acionados pelos direitos de cidadania, abrem canais de agenciamento por parte de instituições e organizações que instauram processos hierárquicos entre os atores e seus saberes. Na chave compreensiva, Lobão se dedica então a retomar a construção dos significados que subjazem na produção do meio ambiente como uma categoria analítica e também nativa, incluindo aí a construção de um saber universal e o posicionado hierarquicamente desde o Ocidente pela recusa do reconhecimento de outros saberes e que tem por resultado a domesticação do conflito. Tempo, espaço, história, natureza e sociedade são colocados no plano da administração pela ciência do Estado reafirmando a hierarquização do saber e mantendo a salvo o centro de controle sobre as alteridades.

Ao reconstruir os cenários das peças do quebra-cabeça das políticas públicas da conservação o autor chega a algumas conclusões. A primeira delas é que há a formação de uma razão formada pelo "encontro neocolonial", pois, ancorados nas premissas do "desenvolvimento sustentado" no "meio ambiente", elas opuseram uma "lógica do estado" à "lógica das sociedades civis". Essas transformações, acredita ele, são responsáveis pela criação de uma "política pública do ressentimento". Apesar de o autor demonstrar como o "meio ambiente" é um modelo exógeno, este se converteu em razão de ser das políticas de Estado pela promessa de um futuro possível, desde que os sujeitos, no presente, aceitassem a tutela: "uso" e não "propriedade definitiva da terra" são as máximas desse modelo. Em segundo lugar devemos procurar os artefatos criados para organizar o controle sobre os pobres, incluindo aí a definição mais abrangente, universalista e estranha possível do que eles e suas práticas representam de ameaça à natureza. Esses artefatos têm o poder de retirar os significados locais como "terra e trabalho", que comprometem a visão econômica e holística das políticas tutelares, criando "participações subordinadas".

O argumento central do livro pode dar a impressão muitas vezes de um "pessimismo sentimental", especialmente porque é uma revisão investida de muitos anos de trabalho e foi escrito como se alguém viajasse para longe de uma terra sonhada por um tempo e olhasse com maior nitidez as ruas largas, os atalhos, os becos não sinalizados; e a história de um ponto de vista privilegiado: acordos consolidados, novos grupos emergindo de antigas formações, rupturas, a fachada participativa encobrindo a retórica desenvolvimentista: como os atores se movimentam entre escolas, departamentos, rubricas e conceitos. Exemplos irônicos, máximas filosóficas extraídas das conversações com os pescadores, "mal-entendidos" dos agentes governamentais, consolidam, no entanto, um posicionamento crítico que faz da dúvida sistemática a trincheira de Lobão. Mas o mundo da política, no sentido da produção e consumo do poder e da formação de elites políticas, reserva dissabores incontáveis e decepções imprevisíveis aos que nele se lançam incautos ou despossuídos de algum capital para jogar. Assim, aos antropólogos e antropólogas fica o desafio de se olharem dentro das parafernálias da tutela de Estado e se colocarem em perspectiva, menos justificando seu "olhar" e sua "ética", e mais ponderando que "nossa postura tem sido a de neocolonizadores, apesar de nossas melhores intenções".

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    Agradeço a Carolina Llanes o apoio e as observações durante a leitura desse livro.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Jul 2012
    • Data do Fascículo
      Jun 2012
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