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Apresentação

Apresentação

Quando pensamos em organizar um número da revista com o título de "Saberes e Fazeres" queríamos, justamente, deixar o tema amplo e aberto a contribuições que trouxessem uma gama variada de questões capazes de mostrar a riqueza do trabalho antropológico.

Este tema, como objeto de estudo, quase se confunde com a noção de cultura. Tratando do vivido, implica conhecimento e prática. Mas, complexificando a questão, não podemos pensar nos saberes e nos fazeres descolados das ideias, das crenças, dos mitos, das normas, dos valores, transmitidos e transformados através das relações estabelecidas pelos grupos humanos entre si e com a natureza.

As experiências etnografadas e aqui trazidas relativas ao saber fazer vão além de considerá-lo como alguma demonstração de competência técnica (e, por que não, virtuosidade) em algum domínio relacionado ao que se convencionou chamar de "cultura material". Se os saberes podem ser materializados nas ações humanas, nos fazeres isso se dá através de processos que trazem visões de mundo que dão sentido às práticas sociais.

É frequente que a expressão saberes e fazeres venha acompanhada das palavras tradicionais e/ou populares. Certamente tratar com formas de viver, saber e fazer que apresentam uma permanência em relação àquelas que se tornaram dominantes nas sociedades atuais é algo de grande importância, embora frequentemente essa empresa fique reduzida a buscar vestígios do passado.

Com as novas situações e questionamentos, entre eles os projetos de desenvolvimento sustentável relacionados aos saberes e fazeres das sociedades tradicionais e ameríndias, nada mais oportuno que apresentássemos trabalhos envolvendo atividades tradicionais inseridas em um contexto contemporâneo, como as aqui selecionadas.

Trazemos, também, experiências de diferentes campos de especialização da antropologia, tal como os que envolvem os saberes e fazeres jurídicos, as políticas públicas e as redes digitais e eletrônicas.

Assim, mostramos a riqueza e as possibilidades que envolvem a interlocução entre saberes e fazeres construídos e alguns dos múltiplos caminhos da investigação antropológica no mundo contemporâneo, como as que apresentamos a seguir.

A discussão sobre a questão dos conhecimentos tradicionais é trazida por Regina Abreu e Nina Lys Nunes a partir dos processos de confecção de uma linha feita com as folhas da palmeira do tucum. As autoras mostram como o preparo da linha e suas diferentes formas de utilização expressam modos peculiares de sociabilidade e de produção e transmissão de um conhecimento tradicional intrinsecamente relacionado com os elementos da natureza. Assim, colocam em foco a relevância da salvaguarda de conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade como forma de organizar um importante acervo de práticas não poluentes e sustentáveis.

Manuel Ferreira Lima Filho e Telma Camargo da Silva estudam as bonecas karajá a partir do entendimento de que a cultura material está inserida em contextos sócio-ecológico-territoriais e imbricada nas dinâmicas de poder que envolvem sua produção, significação e circulação. A análise é feita a partir dos dados levantados na pesquisa coletiva que subsidiou o registro do modo de fazer e formas de expressão das Ritxoko como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil.

O texto de Benedito Souza Filho e Maristela de Paula Andrade traz uma discussão muito atual e pertinente, os limites da metodologia adotada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) para inventariar o patrimônio imaterial, pois hoje se vê como muito importante e necessário o aprofundamento da reflexão sobre experiências de inventário.

Laura Ana Cardini estudou a produção artesanal dos qom, na cidade de Rosário, Argentina, a qual apresenta características significativas para levar à compreensão da vida desse grupo. Enfocando seus objetos verifica suas transformações, o que implica processos de seleção (dando continuidade com o passado, o que implica tradição) e, ao mesmo tempo, processos de transformação vinculados à comercialização dos objetos.

O texto de Aline Sapiezinskas trata do chamado "artesanato de design", localizado na confluência entre as práticas do mundo técnico do design e os "saberes e fazeres tradicionais", passados de geração em geração. O artigo procura desvendar como se forma a noção de que sua produção deve atender a determinados requisitos formais e estéticos para ir ao encontro das expectativas do consumidor e ganhar o mercado, pondo em relevo as disputas simbólicas que se processam entre artesãs, designers e instituições organizadoras.

Karen Pennesi e Carla Renata Braga de Souza demonstram como a invenção da tradição dos profetas da chuva depende da circulação de discursos populares, acadêmicos e midiáticos. Tratam com a construção da noção de "resgatar a cultura", cultura essa que é imaginada existir na zona rural do sertão do Nordeste brasileiro, examinando a interseção entre cultura e folclore e analisando a colaboração dos indivíduos, da mídia, de estudiosos (inclusive antropólogos) e outros na produção da cultura relacionada à previsão de chuvas.

No texto de Lilian Sagio Cezar, a autora trata de uma congada a partir dos modos como seus dançadores transmitem conhecimentos específicos sobre a festa, analisando discursos cosmológicos e as associações estabelecidas entre catolicismo, memória africana e ancestralidade.

Daniel Bitter e Nina Pinheiro Bitar também trazem reflexões sobre o processo de patrimonialização e salvaguarda do Iphan, no caso, das baianas de acarajé e das tacacazeiras. Trabalhando com a noção de "sistemas culinários", os autores revelam que distintas concepções de "patrimônio" circulam entre essas profissionais, seus clientes e agentes, gerando conflitos e situações complexas.

O texto de Rogéria Campos de Almeida Dutra traz o "pão de canela", tradição culinária de uma região de Minas Gerais e cuja fabricação envolve modos de saber e fazer que, frente ao desenvolvimento turístico, são simultaneamente reafirmados e reinventados. Trata-se de uma problemática importante frente às questões referentes à perda de saberes transmitidos entre gerações e seus novos sentidos ante as dinâmicas contemporâneas.

Considerando que a antropologia das sociedades complexas contemporâneas vai no sentido de contestar dicotomias, tais como a oposição entre modernidade versus tradição, é que trazemos um trabalho que trata dos saberes e fazeres do mundo virtual. Débora Krischke Leitão realiza sua etnografia em um mundo virtual 3D, mais precisamente, no Second Life, trazendo uma discussão sobre a interação humano-computador e discutindo os saberes e práticas que permeiam esse ambiente on-line, uma discussão muito atual.

O texto de Ivana Mihal trata dos gestores de políticas culturais na Argentina relacionados com a leitura, os "novos intermediários culturais". Esses mediadores recortam um conjunto de aspectos relacionados com práticas, saberes e sentidos que ocorrem nas bibliotecas, tendo um papel-chave em propiciar ou não o consumo cultural.

Lucía Eilbaum nos traz uma nova e inovadora perspectiva relacionada às etnografias das instituições judiciais e policiais a partir da confluência de três saberes distintos: o antropológico, o jurídico e o judicial. Fazendo essa distinção, procura pensar a relação entre fatos e leis como própria de diferentes saberes e, portanto, tendo diferentes graus de legitimidade e de verossimilhança no âmbito dos tribunais.

O Espaço Aberto traz um texto de Lea Geler em que a autora trata do imaginário argentino, no qual persiste a percepção de ser um país branco-europeu, percepção esta que forma parte do mito de origem nacional desconsiderando a existência de afrodescendentes que hoje começam a vencer a invisibilidade a que foram relegados.

Trazemos também uma entrevista com o antropólogo Sidney Mintz realizada por Ceres Gomes Víctora, quando de sua estadia na Johns Hopkins University em 2011, a quem muito agradecemos esta colaboração. Precedendo a entrevista está o texto de sua autora e da organizadora deste número, "'Como é possível que você tenha um Ph.D. e ainda não saiba cortar uma costela em pé?' Sidney Mintz e a antropologia da alimentação", que apresenta, de uma maneira sucinta, a grande contribuição de Mintz à antropologia. Esta entrevista, de fato, é um presente para todos, mas, muito especialmente, para aqueles que trabalham com a antropologia da alimentação. Inestimáveis, as palavras deste grande antropólogo vêm abrilhantar o número que busca, de uma maneira sutil, mostrar o saber e o fazer dos antropólogos.

Finalizando, como ilustração da capa escolhemos o quadro de Julien Dupré (1851-1910) La recolte des foins, onde o autor nos traz uma cena da dura realidade do trabalho nos campos lembrando que há sempre uma relação entre o fazer e o saber.

Maria Eunice Maciel

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Nov 2012
  • Data do Fascículo
    Dez 2012
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