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Entre notas e moedas: trocas e circulação de valores entre negociantes em Constitución

Resumos

O artigo explora dados construídos em uma etnografia de uma loja de atacado, no bairro portenho de Constitución, buscando focalizar e discutir a articulação entre distintos valores - materiais, morais, éticos e estéticos - adjacentes à circulação de bens e pessoas. Tomando como referência a literatura clássica da antropologia econômica, a narrativa busca mostrar como as operações comerciais realizadas, muitas vezes em contextos conflituosos, promovem a circulação de valores sociais, os quais, cotidianamente, se atualizam e são contabilizados em um processo onde os valores das notas, as quantidades de moedas, a presença ou não de crédito, entre outros elementos, informam muito mais do que simples intercâmbios de compra e venda.

informalidade; moralidade; trabalho; valores


The article explores some information that had been built on an ethnography of a wholesale shop in the neighborhood of Constitución, where it seeks to both focus and to discuss the relationship between different values - material, moral, ethical and aesthetic - adjacent to the movement of goods and people. Taking as reference the economic anthropology literature, the narrative aims to show how the business operations undertaken, many times in contexts of conflict, promoting the circulation of social values, in which on a daily basis are updated and recorded in a process where the monetary values, the quantities of the coins, the presence or the absence of credit, among others, tell much more than simple exchanges of sale.

informality; moralities; values; work


ARTIGOS

Entre notas e moedas: trocas e circulação de valores entre negociantes em Constitución

Lenin Pires

Universidade Federal Fluminense - Brasil

RESUMO

O artigo explora dados construídos em uma etnografia de uma loja de atacado, no bairro portenho de Constitución, buscando focalizar e discutir a articulação entre distintos valores - materiais, morais, éticos e estéticos - adjacentes à circulação de bens e pessoas. Tomando como referência a literatura clássica da antropologia econômica, a narrativa busca mostrar como as operações comerciais realizadas, muitas vezes em contextos conflituosos, promovem a circulação de valores sociais, os quais, cotidianamente, se atualizam e são contabilizados em um processo onde os valores das notas, as quantidades de moedas, a presença ou não de crédito, entre outros elementos, informam muito mais do que simples intercâmbios de compra e venda.

Palavras-chave: informalidade, moralidade, trabalho, valores.

ABSTRACT

The article explores some information that had been built on an ethnography of a wholesale shop in the neighborhood of Constitución, where it seeks to both focus and to discuss the relationship between different values - material, moral, ethical and aesthetic - adjacent to the movement of goods and people. Taking as reference the economic anthropology literature, the narrative aims to show how the business operations undertaken, many times in contexts of conflict, promoting the circulation of social values, in which on a daily basis are updated and recorded in a process where the monetary values, the quantities of the coins, the presence or the absence of credit, among others, tell much more than simple exchanges of sale.

Keywords: informality, moralities, values, work.

Acevedo e Rolando atendiam no balcão. O primeiro, olhando para o rapaz à sua frente, perguntou "quantas vai levar?". El Cholo, um moreno corpulento, de cabelo espetado, segurava uma bolsa negra, grande, que parecia ter algo dentro.

"Quero 22", respondeu, "dez coca, oito pomelo e quatro limão". Do interior da bolsa, sacou uma pequena caixa de isopor. Rolando agarrou-a e desapareceu para trás de uma pilha de caixas de refrigerantes. Desviou-se do irmão, que era mais alto, porém mais magro que ele. Acevedo arrumou o rabo de cavalo, como se o deslocamento do irmão o desalinhara. Apoiou as duas mãos sob o balcão, como se o empurrasse. Nessa posição aguardava, ora olhando para o comprador à sua frente, olha desviando o olhar até a moça que, ao seu lado, atendia outro pedido. Quando seu irmão voltou, trazendo a geladeirinha com os refrigerantes que fora buscar, o rapaz deixou cair sob o vidro uma pequena pilha de notas de 10, 5 e 2 pesos. Acevedo contava o dinheiro, enquanto El Cholo tirava as latinhas do interior da caixa de isopor para conferi-las. "Tudo sai 26 pesos com 40. Falta." O rapaz levou a mão ao bolso, em silêncio. Em seu movimento, revolvia algumas moedas. "

Dale cacho

, tenho gente esperando", disse Acevedo como quem misturasse impaciência e molecagem. "E eu, o que sou?", perguntou o que comprava. "Não sou gente por acaso? Olha, que se não é pelo

busca

, você não existe!"

1 1 Texto elaborado a partir de extração das notas de caderno de campo, redigido em setembro de 2007, no bairro de Constitución, em Buenos Aires, Argentina.

O presente artigo apresenta uma etnografia de práticas comerciais em uma loja de atacado2 2 Na Argentina é chamado de negocio mayorista. localizada no bairro Constitución, ao sul da cidade de Buenos Aires, a qual fundamenta minhas reflexões sobre a possibilidade de articulação entre distintos valores - materiais, morais, éticos e estéticos - na construção de lógicas intrínsecas à circulação de bens e pessoas. Realizando trabalho de campo naquele estabelecimento comercial fiquei atento às formas como, a partir das trocas produzidas em seu interior, se podiam veicular informações, opiniões e perspectivas sobre a vida em Buenos Aires e de que maneira se podiam conjugar bens materiais, enquanto diacríticos, trajetórias sociais e reputações. As operações realizadas promoviam a circulação de mercadorias e, concomitantemente, contribuíam para que as pessoas se deslocassem de um lugar para outro, entre a capital federal argentina e outras localidades da chamada Grande Buenos Aires. Na minha perspectiva, tais mobilizações estimulavam a circulação de valores sociais que, cotidianamente, se atualizavam e eram contabilizados em um processo onde os valores das notas, o estado físico das mesmas, maiores ou menores quantidades de moedas, a presença ou não de crédito, entre outros elementos, faziam desses momentos muito mais que uma mera relação de compra e venda, mas de afirmação ou ocultação de relações e identidades.

Ora, é recorrente, nas ciências sociais, a abordagem sobre as possíveis relações entre padrões monetários e formas de organização social. Marx, por exemplo, visualizava na utilização de recursos financeiros um progressivo insulamento dos sujeitos nas relações de troca, levando à representação do dinheiro enquanto a mercadoria-mor, capaz de obscurecer (quando não obliterar) as relações sociais.3 3 Ver Marx (2009). Weber, por sua vez, sugeriu que a acumulação monetária poderia ser reflexo, no desenvolvimento do que chamou de "espírito capitalista", de uma busca individual por sinais distintivos da salvação, advindos do desenvolvimento de uma ética religiosa calcada no ascetismo de inspiração calvinista. Dessa forma, não retrata um mero apego a um ícone da apostasia refletindo a assunção de valores da modernidade.4 4 Em uma passagem ilustrativa dessa construção Weber esgrime argumentos para fundamentar a diferença entre o ascetismo de base luterana e calvinista. Advogando em favor desta última uma maior influência na constituição das características dos espaços públicos e suas sociabilidades que contribuíram para o florescimento do capitalismo, ele afirma que "a tendência de perseguir o contentamento presente, de retardar a organização racional da vida econômica, dependendo de certa previsão do futuro, tem em certo sentido um paralelo no campo da vida religiosa" (Weber, 2005, p. 62). Mas foi Simmel, a partir da sua proposta de estudar as relações sociais tomando por base as formas sociais nas quais se expressam os interesses e vontades individuais (Teixeira, 2000, p. 21), quem propôs focalizar o dinheiro enquanto objeto para reflexão, no período clássico do desenvolvimento da sociologia alemã. Para ele, a divisão social do trabalho no Ocidente tinha alcançado um encadeamento intrínseco em função das propriedades inerentes ao dinheiro. Este último, entre outras coisas, adquiria cada vez mais a característica de valorar a tudo e, por isso mesmo, adsorver as características dos objetos, incluindo aí a força de trabalho. Assim, na sua vulgaridade, se tornava o equivalente para todas as coisas, humano ou não humano, simbolizando em si mesmo o ideal do individualismo igualitário. Em outras palavras, aquilo que poderia corresponder a muitas coisas corresponderia ao mais baixo entre elas e reduziria também o mais alto para o nível do mais baixo (Simmel, 1998). Seja como for, tais abordagens têm em comum considerar as relações sociais em escala macrossociológica nas sociedades ocidentais, alternando maior ou menor profundidade histórica.

Contudo, são as considerações dos detalhes inerentes ao plano subjetivo das relações que podem contribuir para afinar a percepção sobre os dados construídos pela etnografia. Abordagens como a de Albert Hirschman (1979), o qual, partindo de um exercício especulativo, de caráter filosófico, esgrimiu argumentos bastante instigantes na tentativa de produzir um entendimento acerca da questão proposta originalmente por Weber: o que teria feito com que o capitalismo se desenvolvesse no Ocidente, tendo como base a acumulação monetária, prática representada enquanto negativa no período histórico anterior? A proposta de Hirschman coloca o dinheiro como instrumento privilegiado num longo processo onde as sociabilidades construídas em torno das ideias de coragem e honra, típicas do período áureo do chamado Antigo Regime, são gradativamente substituídas pela noção de interesse. Nesse diapasão, a acumulação de capital, mais do que proporcionar poder por proporcionar melhores condições materiais para manipular nobres, constituir exércitos ou comprar lealdades (entre tantos outros negócios possíveis), pareceu ao autor possibilitar a expressão de subjetividades, inseridas em um jogo cujas regras foram sendo constituídas paulatinamente, contribuindo, ao fim e ao cabo, com o refreamento das paixões. Em outras palavras, a acumulação de capital proporcionou a substituição dos impulsos violentos, testemunhos de valores tais como a valentia e a coragem, pela paixão pelo acúmulo de dinheiro, sinalizando destreza, inteligência e, numa última palavra, a inclinação pela racionalidade moderna.

Na antropologia o diálogo com essas e tantas outras perspectivas teóricas podem ser significativamente rentáveis, uma vez que o etnógrafo tende a assumir como premissa fundamental a proeminência do estudo empírico para a análise e construção do conhecimento. Logo, a possibilidade que se coloca é de ampliação do entendimento e renovação da teoria. É o que faz Strathern (1998), por exemplo, quando, em diálogo com a perspectiva de Simmel, chama a atenção para o fato de que na Papua-Nova Guiné, na década de 1960, em um contexto de aceleradas mudanças nos planos políticos e econômicos, a utilização de dinheiro estabeleceu novas relações entre as trocas materiais e relações entre os gêneros. A antropóloga adverte, portanto, para modificações estruturais significativas nas expectativas e perspectivas dos ilhéus.

A discussão começa com uma observação que também é familiar: o dinheiro é divisível, multifuncional e uma medida de valor, bem como um meio de troca. Acontece, porém, que esta é uma observação nova e, pelo menos para a pessoa que a faz, não familiar. Não estou me referindo a notas para uma conferência sobre Malinowski ou Firth, mas àquilo que disse o irmão da mãe de Sharleen, Manga [uma das interlocutoras da autora, durante seu trabalho de campo], no decorrer de várias conversas sobre mudança social. No passado, observou Manga, as pessoas tinham conchas de cauri ou de madrepérola e não hesitavam: se um homem chegasse e solicitasse uma concha de madrepérola esta era dada a ele; ou, em caso de divórcio, tratando-se de uma devolução do preço da noiva, conchas e porcos eram reunidos e entregues a ele. Não havia nenhum outro uso para essas coisas. Cada item era um todo. Era tanto uma coisa única como tinha uma única finalidade - ninguém pensava na possibilidade de reter parte de uma concha. Mas dinheiro é diferente. Há muitas coisas para se fazer com o dinheiro. Pode-se pensar em comprar comida, ou uma passagem de ônibus, ou em contribuir para um pagamento de reparação. Quando se trata de dar dinheiro a alguém, deseja-se ficar com uma parte. "Ele pediu 20 kinas, eu darei 10 kinas porque tenho outro uso para as outras 10 kinas". Do mesmo modo, o dinheiro pode ser dividido em pequenas quantias. Um homem tem 100 kinas, mas aí uma parte vai para isso, outra para aquilo, e a soma total já não existe mais. Idéias demais, disse Manga, acompanham seu uso. A utilidade do dinheiro encoraja as pessoas a se agarrarem às suas migalhas. E se o dinheiro pode ser gasto em numerosas coisas, então numerosas coisas também têm um preço. Um homem olha para uma casuarina seca e pensa: "Oh, posso vendê-la para alguém que não tenha lenha". Um homem com uma roça abandonada olha para o mato crescendo e pensa que alguém pode querê-lo como palha. No passado, simplesmente pegávamos o capim - agora temos de comprar. (Strathern, 1998, p. 116).

A etnografia tem essa característica de possibilitar a emissão de mensagens breves, porém densas, sobre as possibilidades culturais de realização da vida humana, dando relevo aos arranjos cognitivos particulares que vinculam os homens às instituições que criam. É nessa direção que pretendo veicular minha etnografia, acerca das relações comerciais em uma sociedade do Ocidente periférico, que é como me ocorre chamar países como Argentina, Brasil, entre outros. Estados-nação que construíram suas instituições formais, e seu Direito, tomando como base valores de um liberalismo tardio, incapaz de se refletir com densidade análoga às observadas em contextos nos quais se originaram os ideais liberais. Assim, ideais de liberdade e, sobretudo, de igualdade, são enunciados nas leis, refletindo interpretações diversas e, portanto, tendo maior ou menor reflexo nas relações entre o Estado e a sociedade. Por conseguinte, os sujeitos de direito, capazes de estabelecer contratos, são diferentes. Dependendo da representação que é feita deles por parte dos atores que se ocupam das funções de Estado, ou da própria maneira como cada indivíduo se vê em relação aos demais, tais contratos se estabelecem de maneira mais ou menos simétrica.

A questão fundamental, de acordo com os dados que construí e que veiculo a seguir, é que as relações pecuniárias nesses contextos fazem com que, a exemplo do que observou Strathern (1998) na Papua-Nova Guiné, o dinheiro retribua valores diferentes, assim como faça circular valores distintos, em função dos contextos nos quais se manifestam tais contratos. E a mobilização de recursos financeiros, no exato momento em que cumpre os acordos preestabelecidos, em relações de maior ou menor simetria no plano social, pode ser empregada também para sancionar negativamente determinadas práticas, transmitindo mensagens que não podem ser enunciadas em público.

Durante dois períodos, nos anos de 2007 e 2009, fiz trabalho de campo na cidade de Buenos Aires. Do total de 12 meses investidos nesse empreendimento, eu passei pelo menos três deles acompanhando as atividades na loja de Jorgito. Foi logo no início da primeira temporada. Eu estava interessado em fazer contato com vendedores ambulantes e, dessa maneira, construir dados que me possibilitassem estabelecer comparações com os ambientes que pesquiso no Rio de Janeiro, cidade onde vivo e trabalho. Eu estava aprendendo castelhano e a frequência com que fui àquela loja contribuiu para que se acelerasse meu aprendizado. As conversas com Jorgito, com as pessoas que trabalhavam para ele, assim como com seus clientes, me possibilitaram conhecer aquele mundo onde, tal como em tantos outros, nem tudo pode ser escrito ou verbalizado. Dessa forma, a observação direta e atenta desses movimentos, dessas idas e vindas de sujeitos, das trocas realizadas, ocuparam um posicionamento central para o entendimento dos valores que correspondiam aos momentos em que se engajavam os sujeitos naquelas relações.

Penso naqueles momentos enquanto econômicos, no sentido antropológico do termo. Isso quer dizer que eu concebo a distribuição de mercadorias não como uma característica isolada de uma dimensão em si mesma, mas, como sugeriu Godelier ([s.d.]), enquanto a combinação de aspectos inerentes também às dimensões da produção e do consumo. Portanto, enquanto os bens produzidos para o consumo na sociedade circulavam, neles se imbricavam processos complexos, nos quais se produziam valores, significados (Geertz, 1989, 2002), os quais enunciavam sujeitos sociais variados, que os "consumiam". Assim, as mercadorias produzidas previamente, seja em fábricas nativas ou estrangeiras, ao circularem e propiciarem o encontro de pessoas naquele ambiente ao sul de Buenos Aires, pareciam produzir lógicas e identidades que, por sua vez, engendravam procedimentos que promoviam o tangenciamento de distintas perspectivas do que seria adequado nas interações naquele contexto.

Essas éticas, no meu modo de entender, podiam ser percebidas ou mais bem identificadas na observação dos processos de circulação de uma mercadoria particular: o dinheiro. Ali, naquele pequeno negócio de Constitución, me pareceu que para mais além de seu valor de uso, indivisível e de caráter universal, o dinheiro era manipulado, guardado e consumido a partir do que se pode chamar de valores de troca locais e específicos. E isso se dava, penso, em função das perspectivas estéticas compartilhadas por aqueles que o manipulavam, em função de um conjunto de valores partilhados pelos atores. Tudo em concomitância com os papéis sociais que desempenhavam, mas também em decorrência dos valores particulares com os quais o dono da loja onde fiz trabalho de campo resguardava e com os quais dirigia seu empreendimento.

Uma loja em Constitución

A loja de Jorgito, como referi, estava localizada no bairro Constitución, em uma das ruas próximas ao terminal ferroviário General Roca. Ela tinha, com boa vontade, 3 m de frente e 8 m de fundo, pelo menos até uma prateleira que ficava logo após um balcão em "L", o qual dividia o recinto. Dois terços do espaço visível, assim, eram reservados para o dono e outras quatro pessoas que lá trabalhavam. O espaço que utilizavam era, portanto, exíguo. Circulavam todo o tempo restringidos entre inúmeras caixas de papelão nas quais se armazenavam mercadorias, como também por estantes e prateleiras que acondicionavam os produtos para venda. Mais diminuta, porém, era a área reservada ao público a ser atendido: este não dispunha de mais do que 6 m2 2 Na Argentina é chamado de negocio mayorista. . As esperas por atendimento eram grandes e muitas vezes se formavam filas que ocupavam a área externa à loja.

Eu me dirigi àquele estabelecimento por indicação de Hector, um amigo que era estudante de antropologia, o qual me auxiliou nos meus primeiros movimentos na cidade de Buenos Aires. Meu amigo também trabalhava no ramo de compra e venda, sendo responsável pela distribuição de biscoitos e doces naquela região ao sul da cidade. Ele tinha 45 anos à época e era de origem uruguaia. Ganhava a vida havia pelo menos 15 anos vendendo biscoitos para comerciantes que eram donos de lojas de atacado, como Jorgito.

Este último, por sua vez, era argentino, proveniente da província de San Juan. Era casado com uma paraguaia e pai de três filhos. Morador de Lanús, na província de Buenos Aires, ele abria sua loja todos os dias, às 7h, fechando por volta das 18h. Desenvolvendo uma dinâmica de negócios surpreendente, para uma loja de tão modestas dimensões, ele me ensinou bastante coisa sobre produção e circulação de valores no bairro Constitución.

Na primeira vez em que estive na loja de Jorgito, estava acompanhado de Hector. Tivemos que esperar um tempo significativo até que o proprietário pudesse vir para onde estávamos. Alternando o olhar para mim e para Hector, saudou a este último com um "Hola, como te va?", encostando sua bochecha na de Hector, simulando um beijo. Apertou minha mão em seguida, enquanto Hector me apresentava. Nas palavras de meu amigo, eu estudava antropologia no Brasil e queria escrever sobre os buscas. Foi a primeira vez que escutei esse termo. Jorgito franziu a testa e sorriu ligeiramente. Em castelhano, me perguntou o que eu queria. Em um portunhol sofrível, lhe expliquei que fazia um trabalho sobre o comércio ambulante nos trens do Rio de Janeiro e que queria entender como se organizavam contextos análogos em Buenos Aires.5 5 Pelo menos essa era a minha expectativa nos primeiros meses de trabalho de campo. Expliquei que meu estudo tinha por objetivo construir dados para uma tese de doutorado em antropologia. Franziu a testa novamente e, me olhando atentamente, perguntou o que tinha a ver os buscas com o "estudo dos ossos".6 6 Lembrei-me que já havia algum tempo que tinha percebido ser essa a representação dominante sobre a antropologia, na Argentina. Em distintos lugares onde me apresentei como antropólogo, as pessoas faziam referência ao trabalho que, geralmente, é desenvolvido por arqueólogos. Ademais, no caso da Argentina, há o ramo da chamada antropologia forense, muito conhecido por abrigar àqueles que se dedicam à identificação de ossos de pessoas que desapareceram durante a ditadura militar argentina. De fato, ao longo de minha estada no campo, o desaparecimento de 30 mil pessoas durante o período de 1976 a 1983 foi um tema recorrente em, praticamente, todos os lugares em que fui. Com exceção, justamente, naquela que era a loja de Jorgito. Sem entender a pergunta, fiquei assistindo os dois fazerem comentários sobre minha pesquisa ainda mais herméticos.

Jorgito tinha cerca de 40 anos, era de altura mediana, magro, cabelos lisos, negros e aparados. Tinha algo em seus traços que remetia a um tipo indígena. Hector o apresentou para mim, em contrapartida, como um ex-busca, que chegou a dono daquele negócio atacadista depois de um significativo período no qual trabalhou para um ex-cliente de Hector. Um assunto que foi objeto de uma conversa elucidativa, tempos depois.

Após conversarmos alguns minutos, ficou acertado que eu poderia voltar em outra oportunidade. Quando eu ia me despedir, retribuindo a saudação final de Jorgito, este último passou a dar atenção a um rapaz que tentava comprar doces, biscoitos e alguns refrigerantes para pagar depois. Era um ambulante. Jorgito ouvia os argumentos do rapaz com certa indiferença. Disse ao jovem que ele sabia muito bem que crédito ali não tinha pra ninguém. Este, porém, insistia. Em uma certa altura da conversa, o comerciante perguntou quanto de dinheiro ele tinha. O rapaz abriu a mão e mostrou um conjunto de notas amassadas, o qual Jorgito lhe tirou num piscar de olhos. Atônito, este parecia só se dar conta do que havia passado quando o comerciante já lhe entregava as mercadorias correspondentes ao dinheiro que tinha. O rapaz pegou suas coisas e saiu, dando lugar para o cliente seguinte. Jorgito voltou a se despedir de mim e caminhou para o fundo da loja, deixando que um de seus assistentes assumisse o atendimento. O rapaz, por sua vez, tomou o sentido de Plaza Constitución, que distava cerca de 300 metros. Pode ser que tenha ido tomar um ônibus, o metrô, o trem, ou até mesmo se dirigir a uma das muitas ruas que se entrecruzavam na direção do microcentro.

Intensificando as relações no campo

Nos períodos seguintes, passei a comparecer a loja de Jorgito pelo menos dois dias por semana. Aos poucos fui me tornando familiar aos olhos dos clientes e, sobretudo, para os colaboradores de Jorgito. Como Vera, uma jovem de 20 anos, de pele morena, cujos cabelos negros estava sempre presos na forma de rabo de cavalo. Nas primeiras vezes que lá chegava, era ela quem levantava os olhos do que estava fazendo e, ao identificar-me, meio que gritava para Jorgito: "El brasilero." Numa única expressão ela deixava claro que eu era objeto de conversas entre eles. Em certa medida, já tinha sido identificado, ainda que não se soubesse claramente o que queria. E não me faltaram disposição e interesse para explicar.

Logo na primeira vez que compareci à loja sozinho, me lembro que Jorgito veio em minha direção, distendido e com um meio sorriso. Era o período da tarde. Nos saudamos com o tradicional beijo no ar como fazem os argentinos e ele pediu para que eu passasse para o espaço interior da loja. Desviando de algumas caixas de alfajores,7 7 Uma espécie de biscoitos doces, muito populares na Argentina. procurei um lugar onde eu pudesse conversar com ele sem atrapalhar a moça e o outro funcionário que atendiam as pessoas naquele momento. Expliquei-lhe que tinha vindo pela manhã, mas que não me foi possível entrar. Ele pediu desculpas, dizendo que a manhã tinha sido muito complicada, pois era uma terça e havia faltado gente para trabalhar.

Sem meandros, e me olhando fixamente, Jorgito me perguntou: "Como posso ajudá-lo?" Contei-lhe que meu interesse era comparar o comércio ambulante nos trens do Rio de Janeiro e de Buenos Aires. Ele coçou a cabeça. Disse-me, na sequência, que não sabia que interesse podia ter a universidade em um mundo tão aborrecedor8 8 A palavra utilizada por Jorgito foi "aburrido", a qual, nesse contexto, pode ter o significado de "sem graça". como o mundo dos buscas. Expliquei-lhe que foi pesquisando camelôs, no Rio de Janeiro, que eu escrevi uma dissertação de mestrado, levantando questões que me estimularam a estudar comparativamente contextos parecidos em Buenos Aires. Em referência ao meu trabalho disse que pensava o universo do chamado comércio informal não desprovido de dimensões importantes como a economia e o direito. E disse que, fundamentalmente, o que me interessava era investigar, comparativamente, como se construía um direito que não está escrito; o direito que não tem a ver com a lei, mas com as normas construídas socialmente e que legitimam a ocupação de determinados espaços na cidade e, dessa forma, uma atividade que possibilita a circulação de mercadorias.

Jorgito respirou fundo e, enquanto pensava, desviou um instante o olhar para a jovem que manipulava o dinheiro na caixa registradora. Parecia impaciente. Voltando os olhos para mim, sugeriu que eu sentasse e se pôs a falar com seus empregados, ao mesmo tempo em que começava a pedir uma pizza por telefone. Passaram-se alguns minutos, até que Jorgito se aproximou de mim, tomou uma caixa de chocolates que tinha em uma prateleira e começou a dizer que, em geral, "um busca começa com uma coisa pequena assim". O primeiro lugar que lhes ocorria, segundo ele, são os sinais de trânsito, onde é grande a circulação de pessoas e se pode também ter acesso àqueles que estão nos carros e nas janelas dos ônibus. Jorgito disse que naquele lugar se deve falar muito rapidamente o nome do produto e o preço. Não há tempo para maiores apresentações, nem para "seduzir" os clientes falando dos benefícios e vantagens que podem conferir a aquisição da mercadoria. Isso só se torna possível caso um cliente o chame pela janela de um carro. Mesmo assim, tem que ser rápido para aproveitar ao máximo o sinal fechado. Fazendo caretas, levantando os olhos, mostrava-me como tinha sido sua técnica quando atuava nesses espaços.

Segundo meu interlocutor, os lugares onde mais trabalhou foram os semáforos, ônibus e, por pouco tempo, o metrô. Nunca tinha comercializado nos trens. "Que azar", pensei. Os ônibus apresentavam como vantajoso o fato de o público encontrar-se imóvel, passivo, o que contribuía para uma melhor explanação daquilo que era vendido. Sua técnica, como me demonstrou, consistia em distribuir os chocolates entre o público que estava sentado e, a uma certa altura da performance, olhar para trás do coletivo, fazendo de conta que havia interessados a chamá-lo. "Já vou, só um minutinho...", representava para mim. Essa técnica era bastante similar àquela identificada por Ostrower (2007), como também por Silva (2008), entre os ambulantes que comercializavam nos ônibus do Rio de Janeiro. Consistia, por assim dizer, na expressão do que os interlocutores das pesquisadoras brasileiras denominavam de talento, a qual configurava um elemento distintivo da identidade daqueles camelôs em relação aos demais que se distribuíam por minha cidade. Em Buenos Aires, pelo que Jorgito me falava, não era diferente a observância de técnicas específicas para lidar ora com um tipo de público consumidor, ora com outro.

Conversamos bastante sobre esse período da vida de Jorgito. Período de muitas dificuldades, segundo ele, mas que foi vivido dia a dia, sempre com o propósito de cuidar da família e fazer alguma poupança. Sua expectativa era de que, em algum momento, sua sorte pudesse mudar. Nunca teve como propósito trabalhar em outra coisa que não fosse o comércio. A educação formal, segundo ele, não era suficiente para que postulasse outras atividades na cidade para a qual mudara há pouco mais de 20 anos. Cidade na qual conhecera sua mulher, com quem teve três filhos, dois dos quais trabalhavam com ele na loja.

Naquele dia Jorgito estava bastante chateado, pois os filhos haviam faltado ao trabalho. Teriam ficado até tarde da noite na rua,9 9 Na ocasião Jorgito me disse que seus filhos cometeram "boludezes". Essa palavra deriva do termo castelhano boludo. Este signo, de caráter polissêmico, pode se referir a alguém que seja considerado bobo, otário, tonto, engraçado. Em outros contextos, um boludo pode ser alguém sacana: "Que boludo que es." Ficar de "boludez", nesse caso, me soou como "ficar de sacanagem" - sendo "sacanagem" um termo que, entre os cariocas, tem distintos significados - como falamos no Rio de Janeiro, em alusão a alguém que não cumpre um compromisso agendado. não reunindo forças para irem à loja. "E que pensam eles da vida?", murmurava entre os dentes. Irritado, dizia que dava de tudo a eles. Pagava-lhes a faculdade, para que não tivessem que viver a vida inteira nos "confins de Constitución". Também lhes havia dado uma casa a cada um, no mesmo bairro em que vivia na cidade de Lanús, no conurbano bonaerense. Tudo o que ele esperava em troca é que cumprissem com correção aquilo que lhes permitia ter essa vida, que incluía ainda carros para que se deslocassem com comodidade e, claro, algum pagamento pelos serviços que prestavam na pequena loja de atacado.

Um dos filhos, porém, teria reunido forças e comparecera na parte da tarde. Mostrava-se resignado, enquanto ouvia a queixa do pai, ajudando na embalagem das muitas caixas de pedidos dos clientes que ali estavam. Eram buscas, em sua maioria, mas também tinham donos de kioscos, de pequenos armazéns, cafés do bairro, entre outros tipos de comerciantes que constituíam a clientela de Jorgito. Gente que, segundo ele, estava sempre à sua porta, mas também flutuando em torno a muitos negócios atacadistas, à procura de oportunidades e melhores preços para as mercadorias oferecidas.

Passou-se mais um tempo e passamos a comer as pizzas que chegaram por volta das 16h30. A essa altura Hector havia se unido a nós, pois passara pelo bairro para fazer algumas cobranças a clientes. Enquanto comíamos pizza e tomávamos mate quente, eu observava os poucos clientes que acessavam a loja naquele horário. Pelo que pude entender do que falavam entre eles àquela altura, alguns compravam mercadorias para o dia seguinte; outros, para melhor proverem as demandas próprias do horário do rush nos trens. Perguntei a Jorgito se ele conhecia um dos buscas que trabalhava no trem. Ele disse que não, mas que tinha curiosidade de saber como era a venda lá. E agregou que caso eu conseguisse acompanhar a dinâmica, gostaria que eu contasse para ele.

Mercadorias e mercadores: algumas formas de classificação

Nas conversas com Jorgito, das quais muitas vezes participava também Hector, falei sobre o que tinha percebido em minhas observações pela cidade de Buenos Aires. Comentei que me parecia haver diferentes tipos de vendedores ambulantes. Hector, a esse respeito, tinha um próprio sistema classificatório que, uma vez exposto, parecia corresponder às minhas observações. Começando por aqueles vendedores que ambulavam, utilizando os próprios corpos para comercializar nos semáforos, nas calçadas, nos ônibus, nas composições de metrô e de trens. Estes anunciavam os preços, faziam propaganda das qualidades do produto e se moviam em direção à clientela. Mas havia também aqueles que se estabeleciam mais fixamente. E estes se subdividiam em pelo menos duas categorias: os fijos e os puesteros.10 10 Correspondentes a vendedores que utilizavam bancas "fixas" numa localidade e "postos" de venda, também fixados no espaço público. Os primeiros, em geral, acondicionavam suas mercadorias em tabuleiros, carrinhos, carrocinhas, os quais eram removidos no final do dia; os outros utilizavam grandes estruturas de madeira ou de metal, que eram fechadas e deixadas no local onde funcionavam. O que era comum a ambos é que se esperava que contassem, para se estabelecerem no espaço público, de uma licença do Governo Autônomo da Cidade de Buenos Aires. Os fijos para se estabelecerem, sobretudo nas ruas e praças, embora pudessem também ocupar determinadas localidades próximas aos pontos de ônibus. Os puesteros, basicamente, para se fixar nos pontos de maior confluência de pessoas no cruzamento entre trens, ônibus e metrôs, como acontecia em Plaza Constitución.

Como demonstrei em outros textos (Pires, 2010, 2011a, 2011b), e baseado no conhecimento construído pelo trabalho de campo que desenvolvi nos meses subsequentes ao período relatado neste paper, o mais comum era que fijos e puesteros não tivessem licença. Nesse caso, a alternativa palpável era que negociassem com os policiais federais para que pudessem se estabelecer nas ruas, contrariando o Código de Convivência Urbana da Cidade de Buenos Aires. Tal negociação dá origem à prática do arreglo, cuja contrapartida se constitui em pagamento de coima. O arreglo é uma categoria que se refere a uma relação entre o policial e um comerciante, na qual, para não aplicar a lei, o policial estabelece com a outra parte o valor a ser pago em contrapartida.11 11 Em outro lugar enfatizo as diferenças com práticas análogas que observei no Rio de Janeiro. Resumidamente, estas me pareceram apontar para um quadro de menor assimetria nas relações entre policiais e vendedores ambulantes. O arreglo me pareceu resultar de um padrão de negociação entre as partes, a qual tomava como referência a existência de uma lei existente sobre convivência urbana, com artigos voltados para uma regulação detalhada da venda ambulante. A coima, inclusive, guardava certa correspondência com o valor das multas. No Rio de Janeiro, diferentemente, a exigência de pagamento me pareceu resultar do estabelecimento unilateral por parte dos agentes policiais, sem tomar como referência um padrão socialmente conhecido, seja por lei, seja por um decreto governamental. Essa prática é conhecida enquanto a exigência do arrego. Logo, não é uma coisa que duas partes contratem, mas que uma parte impõe a outra. Sobre o assunto ver Pires (2010, 2011b). Em meu trabalho de campo eu busquei focalizar tais relações envolvendo a venda ambulante, mas o fato é que ela pode envolver também os chamados comerciantes estabelecidos, como era o caso de Jorgito. Particularmente em Constitución, onde os policiais arreglaban primeiramente com os comerciantes para não incidirem sobre os vendedores ambulantes logo na saída das lojas. Com isso se permitia, pelo menos, que as mercadorias chegassem até outros bairros, onde seriam vendidas, com base dessa vez nos arreglos feitos diretamente entre policiais e vendedores ambulantes.

Em todo caso, somente meses mais tarde eu concluiria, baseado em minhas próprias experiências, observações e entrevistas,12 12 Que incluíram, principalmente, a interlocução prolongada com Victor, um busca que atuava como músico nos trens que ligavam a capital federal argentina às cidades ao sul do chamado conurbano bonaerense. Sobre esta experiência ver Pires (2010), especialmente o capítulo 5. as distinções entre ambulantes e buscas. Um ambulante, por exemplo, pode vir a trabalhar para alguém, como as famosas máfias de que me falavam e preocupavam a membros do Ministério Público Fiscal da Cidade de Buenos Aires, em entrevistas que realizei em meu trabalho de campo.13 13 O Ministério Público da Cidade Autônoma de Buenos Aires é uma instituição criada em meados dos anos 1990 e tem como objetivo atuar na prevenção e sanção das práticas classificadas como contravencionais e de falta. Ele se ocupa, por exemplo, de fiscalizar as atividades não legalizadas envolvendo a venda ambulante, sendo auxiliado pela polícia. Estas instituições, em suas atividades, volta e meia se deparavam com as chamadas máfias, ou seja, redes de atores que envolviam comerciantes formais, agenciadores de imigrantes ilegais, representantes de comércio varejista, atravessadores e contrabandistas, entre vários outros, que se consorciavam na estruturação de determinados aspectos relacionados a venda ambulante. Em outro texto (Pires, 2011b) eu explico com maior detalhamento essas relações. Um busca, distintamente, trabalha por conta própria. Por outro lado, um ambulante pode submeter-se sem maiores contrariedades ao esquema de arreglo que, como referi, é capitaneado pela polícia. Já um busca, via de regra, só o fará se não houver alternativa. Esse vendedor ambulante, que além de vender, partilha de um complexo código de comportamento, além de um vocabulário significativamente particular,14 14 Nesse aspecto, trata-se de um ator similar ao hobo, do qual nos deu testemunho Nels Anderson (1923) em uma das mais representativas etnografias da chamada Escola de Chicago. um dia sem coimear é motivo de orgulho e comemoração. Mas talvez o que melhor defina o busca é uma lógica que eu testemunhei pessoalmente, na convivência com um busca cantante15 15 Um busca cantante é um músico que desenvolve suas habilidades nas composições dos trens de Buenos Aires, solicitando contribuições após executar algumas canções em cada um dos vagões. Pelas regras estabelecidas entre os buscas, naquele contexto, ao mesmo tempo em que só é admitido um busca por vez, comercializando em cada vagão, igualmente só é possível um busca cantante por trem. Ou seja, para que um segundo busca cantante possa executar suas musicas, é necessário que outro se dirija a outra composição, e não outro vagão. Esse acordo entre os buscas - ou arreglo - se deve ao tempo que um músico se demora em um vagão, superior a outros buscas que vendem mercadorias. nos trens de Constitución: a racionalidade que procura trabalhar cada vez menos tempo, em prol da manutenção de uma meta de ganhos que garanta o cotidiano.

Voltando, porém, ao período o qual informa a presente etnografia, Jorgito certa vez me disse que tinha sido um busca, mas que justamente tinha deixado de sê-lo em função da difícil relação com a Polícia Federal na cidade. "As coisas iam bem até o momento em que se encontrava um policial", me disse certa vez. Tais encontros sempre causavam constrangimentos, e como eles eram "os donos da rua", o busca só tinha duas alternativas: ou mudava constantemente de lugar, abrindo mão da clientela que se podia fazer, ou participava do arreglo com a polícia, abrindo mão de parte do dinheiro que se arrecadava. E o problema, segundo Jorgito, era que quando percebiam que o busca melhorava um pouco, eles queriam aumentar o valor da coima. "Um inferno", sentenciou.

Hector opinava, com as informações de que dispunha, que entre os ambulantes aqueles que comercializavam nos trens eram os mais prósperos. Particularmente se já tinham uma clientela habitual, em função dos trajetos nos quais estavam habituados a comercializar. Trajetos estes que, segundo tinha conhecimento, eram definidos a partir de negociações prévias envolvendo os próprios vendedores. Mas lhe faltava, assim como a Jorgito, uma maior vivência entre os ambulantes nos trens para melhor definir uma opinião.

Gerenciamento e representações

Um fato que me pareceu relevante ao longo das semanas em que compareci ao negócio de Jorgito é que seu gerenciamento era feito com observância a duas regras fundamentais. Em primeiro lugar, o dono tinha que estar sempre presente, acompanhando as operações de venda; em segundo lugar, as mercadorias deveriam ser entregues somente mediante o pagamento em dinheiro. Caso Jorgito tivesse que se ausentar para algum compromisso, seu filho mais velho era o encarregado de conduzir o gerenciamento. Isso significava basicamente gerir o caixa. Compras não agendadas com fornecedores era decisão exclusiva de Jorgito. Caso ele não estivesse, os interessados em vender suas mercadorias ao atacadista deviam passar em outro momento ou esperar. Outra coisa importante: não estava autorizada, sob nenhuma hipótese, a operação de vendas a crédito para quem quer que fosse.

Como referi, acorriam àquela pequena loja comerciantes de diferentes tipos: donos de armazéns, kioscos, maxikioscos, minimercados, entre outros estabelecimentos, e, principalmente, vendedores ambulantes. Como já frisei, assim como existiam estabelecimentos de diferentes tipos, em função do tamanho dos mesmos, ou da área da cidade em que estavam instalados, igualmente existiam ambulantes de diferentes envergaduras. O que era significativo, porém, é que em função dessas distinções se podiam operar, a partir da perspectiva de Jorgito, formas diferenciadas de reconhecimento dessas condições ou, melhor dizendo, status. Uma das maneiras de se verificar isso se dava através da observação das negociações que tinham seus cursos nas possíveis localidades na loja de Jorgito, o balcão de vendas e o interior da loja, como também na calçada em frente a mesma.

O balcão de vendas era o ponto de recepção de todos os interessados em adquirir ou fornecer mercadorias. Fossem conhecidos ou não, o primeiro contato era sempre ali, onde não havia mais que 6 m2 2 Na Argentina é chamado de negocio mayorista. de espaço para transitar. Um fornecedor contumaz, em geral, não demorava mais que cinco minutos para tomar o pedido e combinar a entrega. Às vezes, quando os preços se alteravam, essa conversa poderia durar um pouco mais, pois poderia levar à reformulação das quantidades demandadas pelo dono da loja. Já um comprador, via de regra, apresentava sua solicitação de mercadorias e quantidades, se certificando, ao final da apresentação de sua lista, se os preços continuavam sendo aqueles observados na vez anterior. A dinâmica dos negócios, em termos dos valores materiais e contábeis, era essa. O que podia alterar, porém, eram as conversas em função de uma maior ou menor proximidade pessoal de Jorgito para com aqueles que adentravam seu negócio.

Como referi, os atendimentos eram feitos, via de regra, pelos dois filhos de Jorgito - Acevedo e Rolando - e os dois funcionários. Salvo, evidentemente, os fornecedores, que negociavam diretamente com o dono da loja. Havia, porém, situações onde Jorgito atendia diretamente um cliente, particularmente os donos de armazéns e kioscos. Os ambulantes, ou buscas, em geral, não eram atendidos diretamente pelo comerciante. Havia em Jorgito uma espécie de evitação do contato com estes últimos. Mas havia alguns poucos para com os quais tinha apreço e, nesses casos, como mínimo, os saudava quando se dirigiam à caixa registradora e aí se demorava um pouco mais para perguntar como andavam as coisas nos negócios e na família.

Assim, o balcão não era lugar para negociações de crédito a possíveis compradores. Seja um busca, ambulante ou dono de algum estabelecimento comercial, embora isso fosse tentado por vários compradores, particularmente os mais antigos. Como demonstrei mais acima, o usual era que fosse vendida a mercadoria na quantidade que o dinheiro existente alcançava para comprar. No entanto, para determinados buscas, era possível sugerir a aquisição de mercadorias outras, por preços diferenciados.

Por exemplo, um busca que costumasse vender biscoitos de uma determinada marca, e que quisesse comprar uma caixa da mercadoria por um preço mais baixo, poderia ser convencido a adquirir maior quantidade de uma outra, similar. Essa possibilidade era oferecida em função da quantidade de mercadoria no estoque da loja, confrontado com a data de validade da mesma. Afinal, se a mercadoria estava por vencer, se priorizava a possibilidade de sua rápida venda, e quem melhor podia fazer isso, na visão de Jorgito, eram os vendedores ambulantes em suas incursões pelas ruas. No entanto, essa oportunidade16 16 Era como Jorgito representava, em lugar de uma mera possibilidade. Para ele, conforme anotei em meu caderno de campo, era um tipo de negociação que interessava à sua loja, mas que deveria, ao mesmo tempo, ter como contrapartida a capacidade de trabalho do ambulante para não prejudicar a si mesmo, "empacando" mercadoria, como também em não lesar o consumidor vendendo mercadoria com data vencida. não era dada a qualquer um, mas a determinados ambulantes ou buscas que Jorgito entendia partilhar de algum compromisso com o trabalho.

Em geral, Jorgito caracterizava um busca como um tipo avesso ao trabalho. Para ele, os buscas eram pessoas que viviam de acordo com uma lógica imprevidente. Saíam de suas casas com o propósito único de dobrar o capital investido em uma compra, no menor prazo de tempo possível. "Eu sei por que vivi aí", costumava me dizer. Um busca, segundo Jorgito, começava o dia vendendo biscoitos, balas, doces, refrigerantes, ou o que fosse, pelo dobro do preço que pagava pela aquisição. Assim, se tivesse comprado 20 pesos em mercadoria, a meta era chegar a 40 pesos. Feito isso, retornava à sua casa, ou para o bairro. Poderia reservar os 20 pesos para o dia seguinte e gastar o excedente. Caso fosse casado, poderia dar um dinheiro para a mulher comprar um bife à milanesa ou fazer um puchero.17 17 Uma espécie de cozido que é feito com legumes e carnes de vaca de segunda linha. O restante gastaria com os amigos, tomando cerveja ou consumindo outra sorte de coisas. Os solteiros, segundo ele, gastariam diretamente todo o dinheiro e, muitas vezes, ficariam mesmo sem recursos para adquirir novas mercadorias e voltar para as ruas. Isso, normalmente, gerava pedido de empréstimo a terceiros, os quais nem sempre eram honrados no devido tempo.

Jorgito, assim, parecia dispensar, em relação a esse público que constituía parte de sua clientela, um juízo particular sobre os valores que pareciam estruturar suas vidas. Elementos e conceitos que se opunham àqueles que estruturavam sua visão de mundo e que podiam ser sintetizados em uma palavra: trabalho. E o que seria trabalho para Jorgito? Na minha maneira de ver, se expressava na disposição de um indivíduo em manejar seu trajeto de vida, combinando os esforços de produção e reprodução da vida material em um mosaico de dimensões onde variáveis como espaço e tempo eram pontos que coordenavam as possibilidades de trânsito social. Em outras palavras, o comparecimento diário a um mesmo local, por um horário prolongado, construindo uma previsibilidade de sua localização no tempo e no espaço. Contrariamente, um busca, na representação de meu interlocutor, era potencialmente um ser errático, incógnito em termos físicos - pois nunca se sabia ao certo onde comercializava suas coisas - mas também em termos sociais. Estava sempre à margem, consequência da inaptidão para o trabalho e inclinação para escolhas equivocadas.

Resgato, assim, o prólogo a esse texto, no qual o jovem busca faz lembrar a Acevedo qual o lugar que pessoas como ele ocupam naquela rede de relações. Relações tensas, onde se sistematizam conjuntos de interdependências inexoráveis, numa intrincada rede na qual se entremeiam quantidades de mercadorias, oscilação de preços, valores morais, fazendo com que representações e performances detenham a capacidade de marcar distanciamentos sociais, mas não possibilitam um grau de alienação onde as identidades vividas nessas tramas, e nesses dramas, sejam borradas em função da perspectiva de uma moral específica.

Lembro-me de uma outra tarde, quando um outro busca era igualmente atendido por um dos filhos de Jorgito. Na minha maneira de ver, aparentava uns 30 anos, embora só tivesse 23, como me dissera momentos depois, numa conversa na calçada. O rapaz comprava uma quantidade considerável de mercadorias, o que obrigava Rolando a organizar e amarrar vários conjuntos de caixas. Jorgito o olhava de longe, queixo inclinado, como se olhasse por cima de óculos imaginários. Ficou um tempo significativo naquela posição, até que o rapaz perguntou o que olhava. Dirigindo-se para mim, como se ignorasse a pessoa à sua frente, disse que não tinha dúvida que era capaz de vender aquilo tudo no dia seguinte ou até naquele dia mesmo. O problema, segundo Jorgito, é que ele ia gastar boa parte do seu lucro com cocaína, fazendo com que nunca deixasse de se dirigir à sua loja na condição de um busca e não de um kiosquero, por exemplo.

Meu interlocutor era implacável em suas análises. Para ele, desejos e divertimentos tinham momentos certos. Citou, por exemplo, que suas férias eram muito curtas, e sempre aconteciam acompanhando os momentos em que a cidade se esvaziava em função das férias de fim de ano, quando muita gente ia para a costa, ou em meados de julho. Nessas ocasiões, agarrava a família e ia por alguns dias a localidades como Mar del Plata, Villa Gesel ou, no período de inverno, a Bariloche. Também conhecera localidades no Brasil, como Camboriú, Búzios e mesmo o Rio de Janeiro que, segundo ele, não pôde conhecer muito, pois o tema da insegurança o obrigou a andar na van do hotel ou em táxi. E tudo isso tinha que ver com os ingressos obtidos com o trabalho em sua loja. Algo inconcebível nos tempos em que era busca, onde eram escassos os recursos. Período, porém, em que não cedeu às "falsas ilusões" e aos "vícios".

Um exemplo mais pode contribuir para demonstrar o quanto Jorgito era crítico dos comportamentos possíveis desse segmento de sua clientela. Um homem que tinha um ponto fixo em frente à estação de Retiro era um cliente contumaz. Tinha aproximadamente 50 anos e pelo menos duas vezes na semana ia até sua loja para repor mercadorias. Este trabalhava com sua mulher e eu mesmo, inúmeras vezes, o encontrei em frente ao terminal Mitre, em Retiro, do outro lado da cidade. Era, segundo o negociante sanjuanino, um fijo que sabia ganhar dinheiro. Seu lucro líquido, diariamente, seria algo em torno de 500 pesos. Uma quantia considerável, à época, se considerarmos o valor da cesta básica de alimentos, divulgada pelo governo argentino para aquele período: 850 pesos por mês. No entanto, segundo Jorgito, o homem tinha um incorrigível vício pelo jogo, o que fazia com que perdesse, diariamente, somas e somas em um cassino que estava situado em um barco, nos arredores do bairro La Boca. Com isso, o homem jamais ascendia de sua condição de vendedor das mercadorias que adquiria na loja de Jorgito, sendo prisioneiro, por um lado, dos arreglos com os funcionários da prefeitura e da polícia e, por outro, das roletas do chamado Casino Flotante.

Em função de histórias como essa, Jorgito tinha uma certa reserva quando o assunto era busca ou vendedor ambulante em geral, como demonstrou logo no primeiro momento em que nos conhecemos. Parecia inconcebível que um pesquisador de uma universidade brasileira tivesse interesse em um universo tão problemático, segundo seu ponto de vista. A mesma atitude, no entanto, não tinha com relação aos donos de estabelecimentos com quem igualmente negociava. E isso fazia com que os demais espaços da loja tivessem uma outra configuração, em termos materiais e simbólicos.

O interior da loja e a calçada

Um outro espaço para negociações era o interior da loja. Mais especificamente na pequena sala de Jorgito, nos fundos da mesma. Era lá onde tinha uma pequena mesa, com duas cadeiras e um telefone. Também tinha um arquivo com fichas dos clientes, onde constavam endereços e mercadorias mais requisitadas. Nesse espaço, também exíguo, eram recepcionados novos fornecedores e compradores mais antigos, particularmente donos de armazéns e minimercados da região. Nesse lugar se discutiam valores para novos produtos, redefinição de preços das mercadorias, quantidades, promoções e particularidades acerca dos bens comercializáveis, entre outros aspectos relacionados às operações de compra e venda que se davam ali. Mas também se falava de questões relacionadas à política, à economia, às famílias, à cidade e ao bairro de Constitución.

A calçada em frente à loja se constituía em um espaço também importante para discutir aspectos análogos à compra e venda das mercadorias, como também para a manutenção dos negócios. Particularmente, no que se relacionava ao atendimento de kiosqueros e donos de pequenos armazéns, muitas vezes ávidos por novidades rentáveis. Essa localidade era destinada também ao pagamento dos arreglos que eram pagos pelos comerciantes da zona. Geralmente, um outro comerciante ia até a porta da loja com um policial e coletava o valor que cabia à loja de Jorgito para que a polícia deixasse a mercadoria escoar de Constitución até outra parte da cidade - o arreglo, de caráter ilegal - ou simplesmente para se pagar a cota do chamado serviço adicional, um serviço previsto legalmente.18 18 Trata-se de uma modalidade de contratação de serviço policial que donos de estabelecimentos comerciais, industriais, representantes de clubes de futebol, entre outros possíveis empreendedores, podem recorrer conforme dispõe a lei em Buenos Aires. Isso significa que, a rigor, um policial pode fazer horas extras, patrulhando particularmente uma determinada área ou guardando uma propriedade. Nesse caso, o contrato é feito entre a comisaria em que o policial está lotado e o requerente, ficando o pagamento sob a responsabilidade da iniciativa privada.

A entrada da loja era, assim, um lugar que podia ser considerado discreto porque, geralmente, havia uma grande mobilização de caixas e embalagens, que eram embarcadas desde a loja de Jorgito para o porta-malas de carros, para o baú de pequenos furgões ou caminhões, triciclos, entre outras formas de locomoção utilizadas pelos clientes. Mas havia situações em que Jorgito se prostrava para observar o movimento e conversar com um cliente. Nessas conversas, em algumas ocasiões, se negociavam os preços de algum produto em função da quantidade pedida. Eram raras as situações em que era concedido algum crédito, mas podia acontecer, dependendo do tempo que se conheciam e a credibilidade do cliente frente a Jorgito. Tratava-se de uma decisão exclusiva do titular da loja e tomada em contextos que não podiam, de forma nenhuma, tornar-se públicos, ou seja, reverberar para o pequeno espaço à frente do balcão.

A partir das negociações comerciais na loja de Jorgito, se podia perceber a veiculação de estratégias de negócio, para as quais correspondiam diferentes táticas no inter-relacionamento com clientes e fornecedores. No interior da loja, particularmente no espaço à frente do balcão, a circulação de palavras, gestos, como também a imposição dos insistentes silêncios, eram capazes de veicular as representações do dono da loja - conhecida de seus funcionários e de parte dos clientes - acerca da estratificação da clientela que buscava o atendimento de suas demandas por mercadorias naquela loja. Em outras palavras, isso resultava no compartilhamento de determinados códigos que atualizavam a valoração - a princípio, por Jorgito - destes muitos sujeitos que se dedicavam, em diferentes formas, ao comércio de biscoitos, doces, balas, refrigerantes, refrescos, cervejas, entre outros produtos ali comercializados. A promoção de distintas formas de tratamento comercial nesses distintos espaços, por parte do dono da loja, se dava em função não só de uma amizade ou conhecimento mais longevo, mas fundamentalmente em relação ao tipo de estabelecimento que o interlocutor representava.

Essa prática, por fim, alterava lógicas supostamente naturalizadas como, por exemplo, as configurações entre o que podia ser considerado espaço público e privado. O interior da loja tinha uma maior dimensão pública, onde se tornavam conhecidos e praticados os códigos - sociais ou não - que orientavam as transações. Em algumas situações, porém, o espaço da rua, protegido pelo ruído dos ônibus e automóveis que passavam intermitentemente, podia transformar-se em ambiente de privacidade, ainda que episodicamente. Nele a particularização das regras poderia ser exercitada por Jorgito, não comprometendo a manutenção de sua estratégia comercial.

Em meu trabalho de campo na loja de Jorgito, não fui muito feliz em fazer contatos significativos, que viessem a permitir minha inserção entre os ambulantes ou buscas. Isso eu só consegui fazer utilizando uma outra rede. No entanto, me foi possível acompanhar a relação entre o dono da loja e os mais variados clientes que buscavam prover-se de mercadorias para seus negócios Nessas observações, me foi possível conhecer o temperamento do comerciante e parte de sua percepção sobre as coisas. E se a forma como a loja se dividia permitia vislumbrar alguns aspectos dessa percepção, do mesmo modo a análise das técnicas de gerenciamento podia revelar não apenas as lógicas imanentes à sua visão de mundo, mas mesmo alguns dos valores que circulavam naquele meio como um todo.

O valor que o dinheiro tem

Como frisei anteriormente, Jorgito mantinha-se muito atento à caixa registradora de sua loja. Na maior parte do tempo, era ele quem a manipulava. Mas havia situações em que seus filhos ou mesmo um funcionário se punham a receber os valores, como também providenciavam o troco para valores pagos a maior, em função do preço das mercadorias. Todas essas operações com dinheiro eram supervisionadas atentamente por ele, que também controlava os estoques, cuidava do fluxo de pedidos dos estabelecimentos, negociava com fornecedores, entre outras atividades que tinham que ver direta ou indiretamente com o desembolso de recursos financeiros. Logo, eram de sua responsabilidade as orientações de como se devia atuar com a manipulação daquilo que era o principal objetivo em torno das trocas que se produziam naquele estabelecimento.

Uma das orientações de Jorgito é que a caixa registradora fosse mantida todo tempo fechada e com as notas de pesos arrumadas. Ao longo do dia ele ia recolhendo os valores e guardando no fundo da loja, até que por volta das três da tarde pudesse ser depositado. Havia dias em que, dependendo do movimento, ele dispensava o depósito. Nesse caso, as somas eram reunidas e levadas para sua casa. Como é regra na maioria dos estabelecimentos comerciais, não se deixava dinheiro no interior da loja de um dia para o outro.

O dinheiro era arrumado na caixa registradora de maneira que as notas ficassem separadas por valor. Igualmente, essa é a forma de se arrumar o dinheiro na maioria dos estabelecimentos comerciais, assim como nos bancos. Assim, as notas de 2, 5, 10, 20, 50 e 100 pesos eram arrumadas em pilhas e acondicionadas no interior da caixa registradora. Com o passar do dia as notas de 10, 20 e 50 podiam ser combinadas a formarem montes no valor de 100 pesos. As de 100 eram empilhadas e caso somassem 500 ou 1000 pesos eram retiradas da caixa registradora. As que ficavam a maior parte do tempo soltas nos estribos correspondentes eram as notas de 2, 5 e 10 pesos, as quais, junto com as moedas, tinham maior circulação em virtude de serem bastante requisitadas como troco. Contudo, havia uma lógica para arrumação dessas e outras notas que chamou minha atenção.

À medida que as notas iam sendo entregues, Jorgito ou outra pessoa que operava a caixa registradora observava se a nota não era falsa e, em seguida, em lugar de depositá-la diretamente sobre a pilha já arrumada, buscava arrumá-la como se estivesse embaralhando cartas. Na verdade, o que se procurava fazer era colocar em ordem decrescente de qualidade. Dessa forma, as notas mais gastas e usadas ficavam por cima e as notas mais novas por baixo. Acevedo me disse uma vez que dessa forma o dinheiro rasgado, amassado, sujo ou rabiscado era posto em circulação, evitando problemas de recusa para possíveis pagamentos de fatura ou quaisquer outros que tivessem que ser feitos na loja. Eu mesmo experimentei inúmeras vezes, durante o período que vivi em Buenos Aires, ocasiões em que os estabelecimentos recusavam notas em mau estado.

Esse era o modus operandi de todos os donos de estabelecimentos. A orientação em geral era que o dinheiro velho era pra ser posto rapidamente em circulação. Dessa forma, os donos de mercados, supermercados, kioscos, cafés, entre outros estabelecimentos buscavam, tanto quanto possível, repassar rapidamente para o público usuário esses bilhetes indesejados. Nem falar das chamadas notas falsas, que eram odiadas e que podiam significar prejuízo certo para um funcionário mais incauto que as recebesse. Aquelas notas que sobrassem em mau estado poderiam ser depositadas no final do dia e, dessa maneira, seriam substituídas pelo banco quando fossem retiradas posteriormente.

Da mesma forma, os transeuntes que compravam com ambulantes e buscas, caso tivessem uma dessas notas indesejadas, sobretudo as de 2 e 5 pesos, passavam-na sem cerimônia. Era possível que um kiosco, mercearia, locutório ou qualquer outro estabelecimento criasse caso com uma nota amassada ou rasgada. Um ambulante ou busca dificilmente o fazia, pois ele tinha seus canais de troca: os atacadistas que queriam mais era vender e caso não conseguissem passar esses bilhetes adiante, sempre podiam depositar no banco e terem seu dinheiro assim renovado. Todavia, segundo o discurso nativo, o dinheiro que chegava amassado, sujo, rabiscado ou mesmo rasgado era qualificado como dinheiro de busca ou de mendigo.

Analisando esse movimento até aqui, o que me parece estar subjacente é que para além do valor monetário que poderia ter determinada nota, na prática havia bilhetes que tinham mais valor que outros no curso diário. Em função das interlocuções dos comerciantes, dos vínculos que queriam manter ou da forma como gostariam de se representar, a utilização de dinheiro velho ou novo fazia certa diferença. Lembro-me que o pagamento das faturas de determinadas aquisições feitas por Jorgito junto a fornecedores, como Hector, eram feitas com maços de dinheiro previamente reservado, cujas notas eram majoritariamente de 20, 50 e 100 pesos. Quando não tinham sido retiradas do banco, eram cuidadosamente escolhidas entre as notas recolhidas ao longo de um ou dois dias. Diferentemente, o dinheiro que Jorgito reservava para pagamento dos policiais era constituído de muitas notas em más condições, além de serem majoritariamente notas de 5 e 10 pesos, ainda que as somas a serem repassadas pudessem ser superiores a 100 ou 200 pesos. Assim, ainda que se repassasse uma grande soma de dinheiro para um pagamento indesejado - mas inexorável, dentro da lógica de funcionamento dos negócios em Constitución - se procurava informar um certo perfil baixo em termos das vendas realizadas no estabelecimento.

O resultado de toda essa operação, de forma resumida, é que pelo menos na loja de Jorgito o dinheiro que era aplicado para o pagamento do arreglo dos policiais era o dinheiro de busca. Para mim, parecia que a operação que Jorgito desenvolvia era utilizar o dinheiro e seus sinais exteriores como símbolo para, em um só movimento, rechaçar duas identidades que ele considerava poluidoras - o busca e o policial. Fazia com que os mesmos circulassem em uma esfera externa à sua vida, bem representada pela calçada em frente à sua loja, lugar de subversão das regras e das representações que ele cultivava em sua identidade enquanto comerciante que experimentara certo sucesso, se comparado com o início de sua trajetória. Diferentemente, mas de acordo com a mesma lógica, o dinheiro dos kioscos era utilizado para pagar certos fornecedores, como também o era o dinheiro do banco. No entanto, este último, constituído em sua maioria de notas novas e seminovas, era utilizado não só para saldar compromissos com fornecedores, como também com os gastos cotidianos da família de Jorgito: universidades, prestações, crediários, entre outros. O dinheiro do banco, assim, transformava-se em dinheiro da família.

Essas relações podem ser pensadas, guardadas as devidas proporções, em relação àquelas observadas por Hutchinson (1998) entre os nuer, em um período compreendido entre 1930 e 1983. A antropóloga, instruída por outras etnografias, como também pelos dados construídos em seu trabalho de campo, analisa os processos de vinculação dos nuer à chamada economia de mercado; particularmente a partir do final da década de 1940, com a introdução das feiras de gados, nas quais passaram a se utilizar moedas de origem britânica.19 19 Segundo Hutchinson (1998), até meados da década de 1960 os nuer não aceitavam fazer suas transações em papel moeda. Isso tinha que ver, por um lado, com a percepção nuer de que o metal seria dotado de maior materialidade. Por outro lado, "a vida ordinária" nuer fazia com que não se pudesse guardar as notas com segurança, pois podiam queimar-se, voar com o vento, ser comidas por formigas ou dissolvidas pelas chuvas. Processos esses onde, gradativamente, o dinheiro passou a fazer parte das trocas, mas sem assumir definitivamente a capacidade de "estender e diversificar a interdependência humana, ao mesmo tempo em que excluir todo o pessoal e específico" (Simmel, 1978 apud Hutchinson, 1998, p. 122, tradução minha).

Nos contextos analisados pela autora, entre 1930 e 1983, o dinheiro britânico passou a ser ressignificado de acordo com a lógica nuer. Em outras palavras, passou a ser contraposto ao gado, que era o que tinha valor transcendental para aquele povo nilota; afinal, era através do crescimento dos seus rebanhos que homens e mulheres construíam suas relações e manifestavam seus desejos de possuir. Esse processo foi sistematizado em três períodos distintos,20 20 Com o fim do colonialismo e o isolamento dos nuer em relação aos dinka, dos quais saqueavam constantemente novos exemplares de gado, além de lhes roubar as mulheres e crianças, os mercadores de origem árabe passaram a querer comprar com dinheiro o gado dos nuer. Como esses não aceitavam dinheiro, a saída foi comprar vacas dos dinkas para serem oferecidas em troca pelos bois dos primeiros. Os nuer valorizavam as vacas, porque com elas poderiam multiplicar as cabeças de gado que possuíam. O dinheiro, com essa operação, não entrava no círculo nuer. Por isso a autora definiu essa primeira fase pela equação G-D-G (Gado-Dinheiro-Gado). As experiências vividas pelos nuer mais jovens, a partir de meados da década de 1950, faz com que o trabalho em plantações, mediante o pagamento de salários, insiram novos sujeitos naquele mercado consumidor de gado, alterando em parte sua lógica de funcionamento: "[...] se establecía una nueva relación entre ganado y dinero: ya no era necesario que un hombre entregara una vaca para obtener otra. El dinero podía dar de sí, directamente, ganado: D-G [...]" (Hutchinson, 1998, p. 137). Com o recrudescimento da guerra civil no Sudão, a partir de 1963, a atividade econômica na região ocupada pelo povo nuer sofreu forte redução, só se estabilizando a situação em 1972 com o tratado de Addis Abeba. O conflito deixou como saldo a redução dos rebanhos de gado e fome. Com a reestruturação da sociedade nuer, baseado em novas regras de convivência, centenas de nuer foram incorporados em postos civis, na polícia e, dessa forma, injetou-se mais dinheiro, retomando o comércio entre dinheiro e gado. Por outro lado, as mulheres nuer obtiveram maior independência e, ao começar a trabalhar, também passaram a formar seu próprio gado, sendo mais um elemento para distanciar os contratos de casamento das regras impostas pelas tradições familiares. Assim, o gado é valorizado como capital e o dinheiro como intercâmbio. tendo como síntese a percepção de que gado e dinheiro nunca chegaram a ser bens totalmente intercambiáveis. Ainda que essas formas de intercâmbio tenham adquirido, com o passar do tempo, maior dinamismo, em função da forma como tais processos foram outorgando distintos valores ao gado, ao dinheiro e à relação entre estes. O dinheiro, nesses contextos, não era um objeto que podia ser utilizado universalmente para o intercâmbio, e o gado, por sua vez, nem sempre podia ser alienável. Fazia-se necessário, portanto, estar atento às distintas categorias de riqueza: o gado das mulheres, o gado do trabalho, o dinheiro do trabalho, o dinheiro do gado e o dinheiro de merda.21 21 Era assim classificado pelos nuer o dinheiro ganho por aqueles que viviam de lavar as latrinas de determinados estabelecimentos e moradias. Não podia ser utilizada para a compra de gado ou, no caso dos homens, para compra do dote de uma noiva. Era dinheiro de merda, de forte potencial poluidor, sendo utilizado especificamente para o consumo de bebidas, segundo Hutchinson (1998). Em outras palavras, à maneira como os nuer concebiam a ideia de dinheiro ou, melhor, como concebiam as relações sociais e os valores que circulavam nas transações que envolviam o dinheiro.

Eu acredito que é possível pensar que também Jorgito tinha uma forma de utilizar o dinheiro que, ainda que não fosse calcado em uma lógica socialmente instituída, não deixava de reverberar acúmulos e conhecimentos para mais além de suas concepções individuais. Como disse, não é de todo um equívoco pensar na possibilidade de que utilizar o dinheiro de busca para meu interlocutor podia ter, como lógica, a conjuração das identidades busca e policial. Sendo que o distanciamento social com relação a esta última identidade não é algo partilhado apenas por buscas, mas por muitos e distintos segmentos sociais.

Entretanto, considerando a hipótese para este último caso, penso se Jorgito também não acionava um pouco de seu conhecimento enquanto busca ao qual, avesso ao pagamento da coima, recorria para expressar, com a entrega das notas em mau estado, a contrariedade com aquelas regras que, afinal, eram impostas pelas agências policiais para permitir que os negócios fluíssem. Tratar-se-ia, assim, de utilizar dinheiro para realizar uma troca originada em contextos de relações assimétricas, em função da posição social dos sujeitos. A entrega daquelas notas, assim, teria como sentido não se submeter à lógica policial e, desse modo, não praticar a reciprocidade.

Basta pensar uma possível cena na qual um policial, com um volume considerado de notas nessas condições,22 22 Como aprendi em meu trabalho de campo, o dinheiro arrecadado com o chamado arreglo é encaminhado à sede policial de uma região - a comisaria - e lá ele é acumulado para ser destinado a diferentes operações. Desde a compra de utensílios, pagamento de informantes, até a remessa de quantia significativa para os escalões superiores. Ver Pires (2011b). se dirija a um negócio para consumir, ou mesmo a um banco para trocá-los por notas em melhores condições. É possível que seu interlocutor, observando o estado precário dos bilhetes, faça conexão com a representação social negativada da corporação policial, conforme pude testemunhar em diferentes contextos, em Buenos Aires. Nesse caso, o que percebi como uma certa intenção de Jorgito, em termos de comunicação, pode obter algum êxito.

Conclusão

A loja de Jorgito, bem sei, era um lugar muito particular. E isso tinha que ver com sua origem social, sua história, que envolvia um passado como busca e a superação dessa identidade pela de um comerciante que assumiu os valores da classe média portenha. Movimento esse que ele dizia ser compensador do ponto de vista financeiro, mas que significava também, como afirmava, "a escravidão do dono pelo seu negócio". Para Jorgito, sua vida tinha mudado muito nos últimos anos e as pessoas só viam alguns aspectos disso: o carro importado que usava, as casas dele e de seus filhos, suas matrículas universitárias, entre outras coisas. No entanto, sua vida também havia mudado em termos da liberdade.23 23 Em 2009, quando retornei à cidade de Buenos Aires por três meses, para dar continuidade ao meu trabalho de campo, tomei conhecimento por Hector que Jorgito estava frequentando, havia algum tempo, sessões de psicanálise. Segundo a percepção de meu interlocutor, que era íntimo de Jorgito, essa iniciativa buscava interagir com suas dificuldades de assumir definitivamente as mudanças de base identitária, produzidas nos últimos 15 anos de sua vida. Ele se via como um homem aprisionado entre aquelas paredes, atento ao movimento de cada moeda, cada nota, cada mercadoria, em prol do progresso da família.

Caso eu tivesse feito trabalho de campo em outros estabelecimentos em Constitución, provavelmente teria tido a possibilidade de visualizar outras formas de processar os negócios, combinando de maneiras diferenciadas aspectos comuns, como o tratamento aos clientes, o uso dos espaços da loja, entre outros elementos. No entanto, o que mais me chamou a atenção em relação à circulação de determinados valores naquela loja correspondia ao que eu identifiquei como sendo próprio a uma certa classe média portenha. O que foi observado não só na loja de Jorgito, mas em variados contextos da vida em Buenos Aires: a conquista de uma vida melhor mediante o trabalho; o compartilhamento de metas e objetivos em família; a formação escolar, particularmente universitária, como forma de engajamento a valores sociais mais amplos; a casa própria - logo, a propriedade - como base de inserção do indivíduo na sociedade, entre outros. Em outras palavras, a opção por uma vida calcada em requisitos que dotassem os percursos de alguma previsibilidade, ainda que combinados com o gosto por certos riscos.

Nesse fluxo onde discursos, contas, pesos e centavos iam e viam, me parecia que a partir da loja de Jorgito as pessoas (e ele, particularmente) se apresentavam e se representavam, fazendo circular mercadorias e, com elas, seus valores. O conjunto de situações vividas e também as histórias ouvidas naquele estabelecimento me permitiram um conhecimento sobre a organização daquele negócio em particular. No entanto, possibilitaram também, em certa medida, transcender para um conhecimento sobre a maneira como podem se organizar e se relacionar os distintos estabelecimentos responsáveis pela circulação de mercadorias, do atacado ao varejo, e as relações entre os indivíduos nesses contextos. E, mais intensamente, que valores podem circular juntamente com as mercadorias, a partir das distintas perspectivas que possuem os sujeitos responsáveis pelo mundo dos negócios em lugares como Constitución.

Pareceu-me também, e finalmente, que em Constitución, a exemplo do que pôde ser observado por Hutchinson em um momento entre os nuer, nem todo o dinheiro que circulava era para ser utilizado em todas as transações. Pelo menos nas situações que testemunhei, havia distintos dinheiros para diferentes trocas, acionando o desejo de manifestar maior ou menor reciprocidade.

Recebido em: 25/08/2012

Aprovado em: 17/01/2013

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  • WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo Barcarena: Editorial Presença, 2005.
  • 1
    Texto elaborado a partir de extração das notas de caderno de campo, redigido em setembro de 2007, no bairro de Constitución, em Buenos Aires, Argentina.
  • 2
    Na Argentina é chamado de
    negocio mayorista.
  • 3
    Ver Marx (2009).
  • 4
    Em uma passagem ilustrativa dessa construção Weber esgrime argumentos para fundamentar a diferença entre o ascetismo de base luterana e calvinista. Advogando em favor desta última uma maior influência na constituição das características dos espaços públicos e suas sociabilidades que contribuíram para o florescimento do capitalismo, ele afirma que "a tendência de perseguir o contentamento presente, de retardar a organização racional da vida econômica, dependendo de certa previsão do futuro, tem em certo sentido um paralelo no campo da vida religiosa" (Weber, 2005, p. 62).
  • 5
    Pelo menos essa era a minha expectativa nos primeiros meses de trabalho de campo.
  • 6
    Lembrei-me que já havia algum tempo que tinha percebido ser essa a representação dominante sobre a antropologia, na Argentina. Em distintos lugares onde me apresentei como antropólogo, as pessoas faziam referência ao trabalho que, geralmente, é desenvolvido por arqueólogos. Ademais, no caso da Argentina, há o ramo da chamada antropologia forense, muito conhecido por abrigar àqueles que se dedicam à identificação de ossos de pessoas que desapareceram durante a ditadura militar argentina. De fato, ao longo de minha estada no campo, o desaparecimento de 30 mil pessoas durante o período de 1976 a 1983 foi um tema recorrente em, praticamente, todos os lugares em que fui. Com exceção, justamente, naquela que era a loja de Jorgito.
  • 7
    Uma espécie de biscoitos doces, muito populares na Argentina.
  • 8
    A palavra utilizada por Jorgito foi "aburrido", a qual, nesse contexto, pode ter o significado de "sem graça".
  • 9
    Na ocasião Jorgito me disse que seus filhos cometeram "boludezes". Essa palavra deriva do termo castelhano
    boludo. Este signo, de caráter polissêmico, pode se referir a alguém que seja considerado bobo, otário, tonto, engraçado. Em outros contextos, um
    boludo pode ser alguém sacana: "Que boludo que es." Ficar de "boludez", nesse caso, me soou como "ficar de sacanagem" - sendo "sacanagem" um termo que, entre os cariocas, tem distintos significados - como falamos no Rio de Janeiro, em alusão a alguém que não cumpre um compromisso agendado.
  • 10
    Correspondentes a vendedores que utilizavam bancas "fixas" numa localidade e "postos" de venda, também fixados no espaço público.
  • 11
    Em outro lugar enfatizo as diferenças com práticas análogas que observei no Rio de Janeiro. Resumidamente, estas me pareceram apontar para um quadro de menor assimetria nas relações entre policiais e vendedores ambulantes. O
    arreglo me pareceu resultar de um padrão de negociação entre as partes, a qual tomava como referência a existência de uma lei existente sobre convivência urbana, com artigos voltados para uma regulação detalhada da venda ambulante. A
    coima, inclusive, guardava certa correspondência com o valor das multas. No Rio de Janeiro, diferentemente, a exigência de pagamento me pareceu resultar do estabelecimento unilateral por parte dos agentes policiais, sem tomar como referência um padrão socialmente conhecido, seja por lei, seja por um decreto governamental. Essa prática é conhecida enquanto a exigência do arrego. Logo, não é uma coisa que duas partes contratem, mas que uma parte impõe a outra. Sobre o assunto ver Pires (2010, 2011b).
  • 12
    Que incluíram, principalmente, a interlocução prolongada com Victor, um
    busca que atuava como músico nos trens que ligavam a capital federal argentina às cidades ao sul do chamado conurbano bonaerense. Sobre esta experiência ver Pires (2010), especialmente o capítulo 5.
  • 13
    O Ministério Público da Cidade Autônoma de Buenos Aires é uma instituição criada em meados dos anos 1990 e tem como objetivo atuar na prevenção e sanção das práticas classificadas como contravencionais e de falta. Ele se ocupa, por exemplo, de fiscalizar as atividades não legalizadas envolvendo a venda ambulante, sendo auxiliado pela polícia. Estas instituições, em suas atividades, volta e meia se deparavam com as chamadas máfias, ou seja, redes de atores que envolviam comerciantes formais, agenciadores de imigrantes ilegais, representantes de comércio varejista, atravessadores e contrabandistas, entre vários outros, que se consorciavam na estruturação de determinados aspectos relacionados a venda ambulante. Em outro texto (Pires, 2011b) eu explico com maior detalhamento essas relações.
  • 14
    Nesse aspecto, trata-se de um ator similar ao
    hobo, do qual nos deu testemunho Nels Anderson (1923) em uma das mais representativas etnografias da chamada Escola de Chicago.
  • 15
    Um
    busca cantante é um músico que desenvolve suas habilidades nas composições dos trens de Buenos Aires, solicitando contribuições após executar algumas canções em cada um dos vagões. Pelas regras estabelecidas entre os
    buscas, naquele contexto, ao mesmo tempo em que só é admitido um
    busca por vez, comercializando em cada vagão, igualmente só é possível um
    busca cantante por trem. Ou seja, para que um segundo
    busca cantante possa executar suas musicas, é necessário que outro se dirija a outra composição, e não outro vagão. Esse acordo entre os buscas - ou
    arreglo - se deve ao tempo que um músico se demora em um vagão, superior a outros
    buscas que vendem mercadorias.
  • 16
    Era como Jorgito representava, em lugar de uma mera possibilidade. Para ele, conforme anotei em meu caderno de campo, era um tipo de negociação que interessava à sua loja, mas que deveria, ao mesmo tempo, ter como contrapartida a capacidade de trabalho do ambulante para não prejudicar a si mesmo, "empacando" mercadoria, como também em não lesar o consumidor vendendo mercadoria com data vencida.
  • 17
    Uma espécie de cozido que é feito com legumes e carnes de vaca de segunda linha.
  • 18
    Trata-se de uma modalidade de contratação de serviço policial que donos de estabelecimentos comerciais, industriais, representantes de clubes de futebol, entre outros possíveis empreendedores, podem recorrer conforme dispõe a lei em Buenos Aires. Isso significa que, a rigor, um policial pode fazer horas extras, patrulhando particularmente uma determinada área ou guardando uma propriedade. Nesse caso, o contrato é feito entre a
    comisaria em que o policial está lotado e o requerente, ficando o pagamento sob a responsabilidade da iniciativa privada.
  • 19
    Segundo Hutchinson (1998), até meados da década de 1960 os nuer não aceitavam fazer suas transações em papel moeda. Isso tinha que ver, por um lado, com a percepção nuer de que o metal seria dotado de maior materialidade. Por outro lado, "a vida ordinária" nuer fazia com que não se pudesse guardar as notas com segurança, pois podiam queimar-se, voar com o vento, ser comidas por formigas ou dissolvidas pelas chuvas.
  • 20
    Com o fim do colonialismo e o isolamento dos nuer em relação aos dinka, dos quais saqueavam constantemente novos exemplares de gado, além de lhes roubar as mulheres e crianças, os mercadores de origem árabe passaram a querer comprar com dinheiro o gado dos nuer. Como esses não aceitavam dinheiro, a saída foi comprar vacas dos dinkas para serem oferecidas em troca pelos bois dos primeiros. Os nuer valorizavam as vacas, porque com elas poderiam multiplicar as cabeças de gado que possuíam. O dinheiro, com essa operação, não entrava no círculo nuer. Por isso a autora definiu essa primeira fase pela equação G-D-G (Gado-Dinheiro-Gado). As experiências vividas pelos nuer mais jovens, a partir de meados da década de 1950, faz com que o trabalho em plantações, mediante o pagamento de salários, insiram novos sujeitos naquele mercado consumidor de gado, alterando em parte sua lógica de funcionamento: "[...] se establecía una nueva relación entre ganado y dinero: ya no era necesario que un hombre entregara una vaca para obtener otra. El dinero podía dar de sí, directamente, ganado: D-G [...]" (Hutchinson, 1998, p. 137). Com o recrudescimento da guerra civil no Sudão, a partir de 1963, a atividade econômica na região ocupada pelo povo nuer sofreu forte redução, só se estabilizando a situação em 1972 com o tratado de Addis Abeba. O conflito deixou como saldo a redução dos rebanhos de gado e fome. Com a reestruturação da sociedade nuer, baseado em novas regras de convivência, centenas de nuer foram incorporados em postos civis, na polícia e, dessa forma, injetou-se mais dinheiro, retomando o comércio entre dinheiro e gado. Por outro lado, as mulheres nuer obtiveram maior independência e, ao começar a trabalhar, também passaram a formar seu próprio gado, sendo mais um elemento para distanciar os contratos de casamento das regras impostas pelas tradições familiares. Assim, o gado é valorizado como capital e o dinheiro como intercâmbio.
  • 21
    Era assim classificado pelos nuer o dinheiro ganho por aqueles que viviam de lavar as latrinas de determinados estabelecimentos e moradias. Não podia ser utilizada para a compra de gado ou, no caso dos homens, para compra do dote de uma noiva. Era dinheiro de merda, de forte potencial poluidor, sendo utilizado especificamente para o consumo de bebidas, segundo Hutchinson (1998).
  • 22
    Como aprendi em meu trabalho de campo, o dinheiro arrecadado com o chamado
    arreglo é encaminhado à sede policial de uma região - a
    comisaria - e lá ele é acumulado para ser destinado a diferentes operações. Desde a compra de utensílios, pagamento de informantes, até a remessa de quantia significativa para os escalões superiores. Ver Pires (2011b).
  • 23
    Em 2009, quando retornei à cidade de Buenos Aires por três meses, para dar continuidade ao meu trabalho de campo, tomei conhecimento por Hector que Jorgito estava frequentando, havia algum tempo, sessões de psicanálise. Segundo a percepção de meu interlocutor, que era íntimo de Jorgito, essa iniciativa buscava interagir com suas dificuldades de assumir definitivamente as mudanças de base identitária, produzidas nos últimos 15 anos de sua vida.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Jul 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013

    Histórico

    • Recebido
      25 Ago 2012
    • Aceito
      17 Jan 2013
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