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Relações de trabalho nos balatais do Pará

Resumos

Este artigo resulta de pesquisa etnográfica empreendida no Pará junto a dezenas de homens que, nos anos 1940 a 1970, extraíram sistematicamente o látex conhecido como balata. Seu trabalho era fundado em relações altamente hierarquizadas numa cadeia produtiva que os atava a patrões locais e comerciantes estrangeiros, e baseava-se no sistema de aviamento que caracteriza o extrativismo em larga escala na Amazônia brasileira. Os balatais eram seus ambientes de trabalho e morada durante cerca de seis meses por ano, até que seu ofício perdeu interesse no mercado internacional e esses homens viram-se destituídos de profissão e, em muitos casos, de família e patrimônio, já que haviam dedicado longos períodos da vida à estada na floresta. Busca-se, por meio do registro de memórias e narrativas biográficas de balateiros, hoje idosos, reconstituir os contextos, processos, laços e sentidos que o trabalho nos balatais assumiu na experiência social desses homens.

balata; memória; Pará; trabalho


This article results from an ethnographic research implemented in Pará, which involved dozens of men who, from 1940 to 1970, systematically extracted the latex known as balata. Their work, established on highly hierarchical relations, in a productive chain which attached them to local employers and foreign traders, was based on delivery system, which characterized large scale extractivism in the Brazilian Amazon. The balatais were these men's workplace and home for about six months a year, until the moment that their trade was no longer of interest to the international market. Then they found themselves devoid of work and, in many cases, of family and patrimony, as they had spent long periods of their lives in the forest. Recording reminiscences of those extractivists, elderly citizens now, and their biographical narratives, aim at reconstructing the contexts, processes, relations and meanings of the work in the balatais in their social experience.

balata; Pará; reminiscences; work


ARTIGOS

Relações de trabalho nos balatais do Pará* * Artigo resultante de ações de pesquisa e extensão realizadas no âmbito do Programa de Extensão Patrimônio Cultural na Amazônia (Ufopa; Proext/MEC 2010-2011), do qual faz parte o projeto Memórias de Balateiros de Monte Alegre, ao qual está vinculado o bolsista Marcelo Araújo da Silva (Pibic/CNPq).

Luciana Gonçalves de Carvalho

Universidade Federal do Oeste do Pará - Brasil

RESUMO

Este artigo resulta de pesquisa etnográfica empreendida no Pará junto a dezenas de homens que, nos anos 1940 a 1970, extraíram sistematicamente o látex conhecido como balata. Seu trabalho era fundado em relações altamente hierarquizadas numa cadeia produtiva que os atava a patrões locais e comerciantes estrangeiros, e baseava-se no sistema de aviamento que caracteriza o extrativismo em larga escala na Amazônia brasileira. Os balatais eram seus ambientes de trabalho e morada durante cerca de seis meses por ano, até que seu ofício perdeu interesse no mercado internacional e esses homens viram-se destituídos de profissão e, em muitos casos, de família e patrimônio, já que haviam dedicado longos períodos da vida à estada na floresta. Busca-se, por meio do registro de memórias e narrativas biográficas de balateiros, hoje idosos, reconstituir os contextos, processos, laços e sentidos que o trabalho nos balatais assumiu na experiência social desses homens.

Palavras-chave: balata, memória, Pará, trabalho.

ABSTRACT

This article results from an ethnographic research implemented in Pará, which involved dozens of men who, from 1940 to 1970, systematically extracted the latex known as balata. Their work, established on highly hierarchical relations, in a productive chain which attached them to local employers and foreign traders, was based on delivery system, which characterized large scale extractivism in the Brazilian Amazon. The balatais were these men's workplace and home for about six months a year, until the moment that their trade was no longer of interest to the international market. Then they found themselves devoid of work and, in many cases, of family and patrimony, as they had spent long periods of their lives in the forest. Recording reminiscences of those extractivists, elderly citizens now, and their biographical narratives, aim at reconstructing the contexts, processes, relations and meanings of the work in the balatais in their social experience.

Keywords:balata, Pará, reminiscences, work.

No dia 4 de dezembro de 2005 o caminho de volta para a sede municipal de Monte Alegre, no Pará, parecia menos árduo do que se afigurara na ida, talvez mais pela satisfação da curiosidade antropológica em relação ao ambiente e contexto do trabalho executado, num passado não muito distante, por centenas de homens daquela localidade, do que pelas condições objetivas das estradas e dos ramais que tínhamos que vencer em cerca de dez horas de viagem. Elas se mostravam tão ruins quanto na ida, embora o motorista já lhes conhecesse melhor os percalços. A carroceria da Toyota, adaptada com bancos de madeira e espaços calculados para acondicionar caixas de isopor com alimentos e bebidas que seriam consumidas na expedição, levava também, além dos participantes da empreitada: um cão de caça que se juntara ao grupo depois de perseguir incansavelmente o veículo num ramal, um útil e comprido pedaço de pau, que fora retirado da floresta com o fim de ajudar a desatolar o carro em muitas passagens, e grandes cachos de bananas verdes. Apesar da agrura da viagem, dos choques dos bancos e demais objetos em nossas pernas quando o carro literalmente pulava nos buracos do caminho, fazendo que fosse virar, aquela carroceria se tornara um lugar de festa e júbilo. As conversas eram embaladas por sonoras risadas e doses de cachaça, em comemoração ao grande feito do grupo: a expedição bem sucedida ao balatal Água Azul, ao norte de Monte Alegre.

O grupo era formado por um balateiro (extrativista), um mateiro (bom conhecedor da floresta), um artesão que confecciona objetos de balata (látex da árvore popularmente chamada balateira), um motorista, um engenheiro florestal, um fotógrafo e eu.1 1 A expedição teve o objetivo de produzir documentação para a elaboração de um catálogo etnográfico e uma exposição de peças de artesanato de balata no Museu de Folclore Edison Carneiro, ocorrida em 2006 no Rio de Janeiro (Carvalho, 2006). Com exceção do experiente balateiro Pedro Ferreira Rodrigues, unicamente conhecido como Pão, todos eram "marinheiros de primeira viagem" ao Água Azul. O balatal (local na floresta onde há significativa ocorrência de balateiras) parecia um lugar quase mítico: em Pão despertava lembranças de glória, saúde e conquistas; nos demais, uma curiosidade sem igual. O deslumbramento diante das histórias narradas pelo balateiro nos dias anteriores à viagem, os rememorados mistérios e perigos da mata, os encontros com os índios apalai, o fascínio exercido pelo sinuoso curso do rio Maicuru, por onde os homens subiam e "varavam" para as Guianas, tudo isso formava no grupo um clima de ansiedade, excitação e solidariedade, que marcaria toda a viagem. Pão estimulava a imaginação: "Certa vez, vivi nove meses numa aldeia, porque os índios me agarraram. Eu sentia saudade de vir embora, mas não tinha chance. Uma noite, eu fugi deles e ganhei o mato. Eu levo na gíria dos índios..." (Carvalho, 2011, p. 170).

Pão, durante décadas, havia extraído - "tirado" ou "cortado", como se diz entre os envolvidos no ofício - toneladas de balata para grandes patrões de Monte Alegre. Ao longo das muitas safras em que trabalhou, amealhou poucos ganhos e não chegou a constituir patrimônio. Também não fez família, morava com a irmã e contava 66 anos à época da expedição. Com aparência debilitada, às vezes ainda subia o Maicuru para cortar balata para o artesão que nos acompanhara em viagem, o qual tomara o lugar dos antigos patrões depois que o negócio da balata declinou, a partir da década de 1970, quando o produto perdeu espaço e preço no mercado internacional e passou a ser explorado exclusivamente para a confecção de um tipo de artesanato (de figuras moldadas com o látex, em forma de animais e tipos humanos amazônicos) que é encontrado em Monte Alegre, Santarém e Belém (Carvalho, 2006; Simonian, 2006).

O esquema de trabalho era tão duro em 2005 quanto nas áureas épocas em que essa matéria-prima constituiu um dos principais produtos de exportação do Pará, entre os 1950 e 1970. Baseado no aviamento (Aramburu, 1994; Buclet, 2008), o sistema de trabalho que imperou nos balatais desse estado assemelhou-se àqueles que regeram a exploração de outros recursos naturais da Amazônia brasileira, em especial a seringa, que em outros aspectos também lhe é comparável. O modelo analítico do "seringal do apogeu", cunhado por João Pacheco de Oliveira Filho (1979, p. 126) em contraste com o do "seringal caboclo", ilustra bem as características do trabalho nos balatais paraenses: privilegiamento do uso da mão de obra do trabalhador isolado,2 2 Registram-se casos de casais e de pais e filhos que seguiram juntos para os balatais, mas, de praxe, o homem subia sozinho, deixando à mulher e aos filhos, quando os tinha, a tarefa de cuidar da lavoura de subsistência da família. elevando-se sua produtividade e especializando-o na função extrativista, muito embora nos balatais a grande maioria dos exploradores fosse nativa, ao contrário do que se passara no empreendimento descrito pelo autor como sendo baseado em mão de obra "quase totalmente importada".

Não se sabe ao certo quantos homens trabalharam nos balatais do Pará, mas não é demais cogitar que seu número tenha alçado a casa do milhar: Lins (2001) menciona cerca de 500 atuando entre os anos 1940 e 1960 em Almeirim; a missionária Sally Koehn estimara 100, no Paru, em 1989 (Lopes, 1994); em Monte Alegre, desde 2005 já identificamos uma centena deles, ainda vivos, que relembram um sem número de companheiros que partiram. Em Alenquer também se encontram facilmente, e houve outros, em menor número, em Óbidos (Simonian, 2001) e Abaetetuba (Instituto do Desenvolvimento Econômico-Social do Pará, 1986).

São poucas as fontes disponíveis para uma reconstituição segura de fatos expressivos da exploração de balata no Brasil, destacando-se entre elas análises botânicas e econômicas (Brannt, 1900; Hubert, 1907; Instituto do Desenvolvimento Econômico-Social do Pará, 1986; Le Cointe, 1947), e alguns relatos históricos e literários (Almeida, 1979; Brilhante, 1998; Lins, 2001; Meira, 1984; Reis, 1999). Estudos sobre os Yanomami e os Wayana-Aparai indicam os balateiros como precursores dos contatos desses indígenas com a população cabocla ou não índia da Amazônia, mas não revelam muito sobre o cotidiano dos intercursos mantidos por esses diferentes grupos. Lopes (1994) menciona núcleos regionalistas constituídos por barracões de balateiros, com os quais os Wayana-Aparai mantiveram contatos na década de 1960, no baixo Paru. Simonian (2001, 2006), por sua vez, tem se dedicado a investigações sobre relações de trabalho e gênero nos balatais, insistindo em fazer notar a importância da mulher nesse universo indiscutivelmente masculino, em que a participação feminina é recorrentemente omitida por estudos científicos, textos literários e narrativas de homens.

Diante da escassez de fontes sobre o tema, o registro de memórias e relatos orais de extrativistas, iniciado em fins de 2005, na expedição ao Água Azul, tem se revelado um método privilegiado para a reconstituição e compreensão dos contextos, processos, laços e sentidos do trabalho realizado nos balatais do Pará. Numerosos e acessíveis, ainda atuantes ou não, os balateiros são facilmente identificáveis nessas localidades: nas biroscas, nas feiras e nos bares, ou nas beiradas de rio, logo são indicados quando procurados. Dispostos a falar, oferecem muitas lembranças para registro sistemático, e não se inibem diante de aparelhos como gravadores e câmeras fotográficas ou filmadoras. Ao contrário, gostam de se arrumar para receber e encontrar os pesquisadores; vestem calças, camisas de abotoar e chapéu, e, de preferência calçam sapatos ou sandálias fechadas, evitando chinelos. Rapidamente põem-se a narrar viagens difíceis, ataques de onças, alagamentos nas corredeiras dos rios, quedas sofridas ao escalarem as árvores para corte, aparecimento de visagens,3 3 Seres sobrenaturais que, na crença regional, povoam florestas, rios, igarapés, cachoeiras, pedreiras, pontas de praias, etc. Podem tomar forma de animais, emitir sons como assovios, gritos ou urros, e dar tapas ou pancadas em pessoas, animais de estimação ou objetos. Geralmente vivem no "fundo" (das águas) ou nas matas, e aparecem para assustar ou afastar os humanos dos lugares dos quais "tomam conta". Clássico da antropologia sobre o tema é o estudo de Galvão (1976) na fictícia comunidade de Itá. e assim vão tecendo lembranças de um trabalho duro, arriscado e sofrido, mas igualmente saudoso. Adelson Braga conta:

Certa vez peguei uma catapora. O mais complicado no balatal é que, quando a gente adoece, não tem como voltar. Também era ruim levantar de madrugada e enfrentar a ianga que aparecia por lá assoviando. A ianga é um bicho invisível, que fica assoviando. Ela bate no cachorro, dá pisa em cachorro e a gente não vê. (Carvalho, 2011, p. 47).

Ao mesmo tempo, relatam a fartura das florestas traduzida em muitos tipos de caças, peixes e frutas, a coragem empenhada no desbravamento de áreas indômitas, o companheirismo nas formas de controlar ou burlar a vigilância, a severidade e a desconfiança dos patrões, a saúde física e mental que só o balatal lhes dava. Eloi Balateiro explica:

No acampamento, a gente fazia uma barraca de palha, o tapiri. Nossa alimentação era café com leite, quando tinha. E o rio era tão farto na baixada que, quando terminava o fogo, o outro peixe já estava fisgado. Tínhamos muitas frutas, tirávamos para manutenção do tapiri. E caça também, de todo tipo. Peixe, então... essa era a boia. Também existiam bichos perigosos, como cobra e onça. (Carvalho, 2011, p. 70).

Emocionam-se e confessam mortificante saudade dos balatais, que relembram como uma espécie de "terra sem males" onde sofrimento se concilia com prazer: "as pessoas nesse lugar não envelhecem e nem morrem, e lá não há sofrimento" (Santos, A., 2012). Não raro, afirmam que gostariam de voltar a eles, mesmo que não possam mais com a lida extrativista por causa das debilidades provocadas pelo avanço da idade e - em alguns casos - mutilações adquiridas nos próprios balatais. Se já não podem ir, desejam ao menos contar como o faziam em outros tempos.

Ouvi-los e registrar seus relatos tem sido a prática da investigação desenvolvida em Monte Alegre, Almeirim e Alenquer a fim de compreender as relações de trabalho nos balatais do Pará. Cerca de 70 balateiros já foram consultados nesta pesquisa, e a seus relatos somam-se levantamentos bibliográficos e documentais realizados em bibliotecas, arquivos públicos e particulares, fóruns de justiça e outros órgãos públicos daqueles municípios.

Neste artigo apresentam-se reflexões sobre as relações sociais que sustentavam a hierarquia da cadeia produtiva da balata e organizavam a estada dos homens no território continuamente explorado dos balatais. As reflexões organizam-se em dois eixos fundamentais das experiências vividas e narradas por esses homens - contextos e processos de extração, e laços e sentidos do trabalho nos balatais - conforme se pode reconstitui-los com o concurso de suas memórias, eventualmente complementadas por documentos. O exercício ilumina aspectos da existência social de trabalhadores pouco conhecidos na literatura antropológica brasileira e aponta possibilidades de uso de relatos orais e biográficos para a compreensão de contextos sociais mais abrangentes, já ponderadas por outros autores (Bertaux, 1980; Bosi, 1999; Bourdieu, 2002; Nogueira, 1952; Queiroz, 1988). Com Halbwachs (1990, p. 45), buscam-se memórias individuais no plano em que

[...] se destacam as lembranças dos acontecimentos e das experiências que concernem ao maior número de seus membros e que resultam quer de sua própria vida, quer de suas relações com os grupos mais próximos, mais frequentemente em contato com ele.

A maioria dos entrevistados está na faixa dos 60 a 80 anos de idade. Residindo em áreas urbanas ou rurais, ainda mantêm alguma atividade produtiva (na roça e em alguns biscates) ou recebem algum valor a título de aposentadoria ou benefício, mas são raros os contemplados com a pensão vitalícia garantida pela Constituição Federal de 1988 aos "soldados da borracha", categoria na qual se enquadrariam pelo tipo de trabalho executado. Ressentem-se do esquecimento a que foram relegados na velhice, após o fim do negócio da balata, e de não terem constituído riquezas ou relacionamentos mais duradouros por conta dos grandes deslocamentos nas safras anuais. Entre esquecimentos e lembranças, se busca compreender experiências desses sujeitos a partir do lugar ocupado pelo ofício de balateiro em suas vidas.

Contextos e processos da extração de balata no Pará

A extração gomífera na Amazônia, dentro e fora do Brasil, é uma atividade econômica estudada desde pelo menos o século XIX, praticada por indígenas mesmo antes da grande exploração das árvores de látex visando ao mercado internacional. Segundo Marcoy (2006, p. 70), "devemos aos Omaguas a descoberta do preparo da seiva da figueira e da Hevea, que eles chamam cahechu, donde o nosso termo caucho. Com esse sumo viscoso eles fazem seringas em forma de pera, tubos, sandálias, braceletes e outros objetos."

Dentre as diferentes espécies cortadas ou "sangradas" para retirada de látex foi a Hevea brasiliensis, popularmente conhecida como seringueira, a que mais recebeu atenção de pesquisadores (botânicos, biólogos, economistas, historiadores, antropólogos e outros), literatos e governos.4 4 Muitas obras foram produzidas sobre o assunto, e não é o momento de discorrer sobre elas. À guisa de referência, consultar Ferreira Reis (1931, 1953), Araújo Lima (1970), Castro (1972) e Tavares Bastos (1975) sobre a economia gomífera no norte do Brasil. Sobre a experiência pretensamente controlada de exploração da borracha no Oeste do Pará, ver recente estudo de Grandin (2010) sobre Fordlândia. Também foi em torno dela que se articularam as maiores e mais densas redes de exploração de recursos naturais e do trabalho humano na Amazônia brasileira, tendo o estado do Pará movimentado significativas quantias em pelo menos dois momentos históricos, recorrentemente designados como o primeiro e o segundo ciclo da borracha - compreendidos de fins do século XIX à primeira década do seguinte e de 1942 a 1945, respectivamente. A noção de ciclo, apesar de ter obtido "consagração científica no plano nacional que garantia estatuto teórico às historiografias que dela se servissem", foi criticada por Oliveira, na medida em que "impôs-se como modelo de organização dos fatos históricos ligados à produção da borracha na Amazônia", funcionando como um "mecanismo de filtragem e incorporação de fatos a uma forma pré-definida, excluindo sistematicamente aqueles fenômenos que pudessem refutar ou relativizar seu valor heurístico" (Oliveira Filho, 1979, p. 102).

Com menos ímpeto e abrangência que a da borracha, a exploração da balata também teve sua importância no Brasil, sobretudo no Pará,5 5 Simonian menciona a ocorrência da extração de balata em Roraima, no Acre e no Amazonas, onde remete a Curt Nimuendaju, para quem: "a riqueza do rio Negro não são para os seus balataes e seringaes; a verdadeira, e única riqueza desta zona são, nas atuaes circunstâncias, estos mesmos índios julgados apenas prestáveis para serem sacrificados até o último, se preciso for, para o bom êxito da próxima safra" (Nimuendaju, 1982 apud Simonian, 2006, p. 203-204). assim como na Venezuela, Costa Rica e nas Antilhas (Brannt, 1900; Hubert, 1907) e, ainda, nas Guianas,6 6 Coudreau (1886) apresentou a balata da Guiana como árvore que dava fruto semelhante à ameixa, na forma, e ao pêssego, no sabor, porém de difícil acesso, posto que aparecia em galhos muito altos. onde Simonian (2006) refere ter sido feita por presidiários em Caiena e por populações arawak e karib, que a usavam na produção de ornamentos. Segundo Brannt (1900), essa matéria-prima se tornou conhecida no meio científico por intermédio de um artigo e de uma comunicação apresentada pelo professor Bleekrode em 1857, na Sociedade das Artes, em Londres. Nos anos seguintes, amostras do leite vegetal colhido na América do Sul foram enviadas para o Kew Bridge Steam Museum, naquela mesma cidade. Logo, antes de findarem os 1800, aplicações industriais na Europa passaram a demandar crescente volume do leite beneficiado para uso na construção civil e naval, em correias de transmissão, materiais telefônicos, odontológicos, telegráficos, isolantes, eletrônicos e de iluminação, além de solas, polias, bolas de golfe e outros artigos impermeáveis que dispensassem vulcanização (Hubert, 1907; Le Cointe, 1947). Até os anos 1970, a exploração da balata seria vultosa na região equatorial, mobilizando populações amazônicas para sangrar árvores e saciar os mercados europeu e norte-americano. Referindo-se à forma de coleta praticada na Venezuela - a balateira era derrubada e seu leite escorria dentro de vasilhas, através de cortes feitos no tronco posto em posição horizontal - Hubert, em 1907, já demonstra preocupação com medidas conservacionistas e de replantio.

A espécie de balateira mais explorada no Brasil foi a Manilkara bidentata, uma árvore da família das sapotáceas cujo tronco atinge entre 30 e 40 metros de altura e seis de circunferência (Lins, 2001). Paul Le Cointe (1947 apud Instituto do Desenvolvimento Econômico-Social do Pará, 1986, p. 1) a descreveu como uma "madeira vermelha, quase roxa, muito compacta e resistente, de primeira qualidade", dotada de alto poder calorífico. Sobre seu látex branco, informa produzi-lo "à razão de 1 kg por árvore sangrada em 1/3 de sua circunferência, de três em três anos". Sua composição, em que entram 42% a 48% de guta, 37% a 44% de resina, 2% a 14% de impurezas e 1% a 8% de água (Instituto do Desenvolvimento Econômico-Social do Pará, 1986), lhe garante atributos como ductilidade e elasticidade.

A principal área de ocorrência e exploração da balateira no Pará corresponde às florestas circunscritas pelos rios Curuá, Maicuru, Paru e Jari. No mapa que fazem os balateiros, a árvore só aparece na "região da linha", isto é, do Equador, e é mais frequente "nos altos", ou seja, no alto curso das águas encachoeiradas daqueles rios, em territórios pertencentes aos municípios de Alenquer, Monte Alegre e Almeirim, situados na margem esquerda do Amazonas. Por isso as expedições de corte tinham que ser feitas no período chuvoso do chamado inverno amazônico, a fim de aproveitar as enchentes e tornar menos árdua a transposição das corredeiras e cachoeiras. Mesmo, assim, em vários trechos de viagem era preciso carregar a canoa por terra, rio acima, para evitar choques fatais com as pedras do caminho. A sazonalidade e a regência das águas são fatos da "morfologia social"7 7 Toma-se a expressão no sentido que Mauss (1995, p. 389, tradução minha), em estudo sobre as variações sazonais das sociedades esquimós, atribuiu à "ciência que estuda, não só para descrever, mas também para explicar o substrato material das sociedades, ou seja, a forma que elas tomam ao se estabelecerem sobre a terra, o volume de densidade da população, a maneira como se distribui, bem como o conjunto das coisas que servem de sede à vida coletiva". da população regional, em especial dos grupos extrativistas. Segundo Benedito Monteiro (1995, p. 104): "Enchente e vazante comandavam toda a vida. Precisava saber, porque - no princípio da enchente - é que se faz muitas coisas." Sobre o ritmo dos trabalhos extrativistas em Alenquer, ele acrescenta:

A turma de balateiros do Mundico Santiago já subiu bem pro alto. Só vão puxar canoa mesmo na praia grande da volta do Igarapé do Inferno. Nas cachoeiras tem que subir por terra e levar a mercadoria no ombro. Subiram também os castanheiros do velho Miléo: quando o velho Miléo sobe com os castanheiros é porque tudo que é Igarapé está dando água. (Monteiro, 1995, p. 104).

Outro motivo para limitar o corte das árvores à época das chuvas é o fato de que, na seca, o látex fica muito concentrado e não escorre, dificultando o trabalho e diminuindo a produtividade do balateiro (Lins, 2001). A produtividade era preocupação central do extrativista e dos agenciadores de seu trabalho. Os ganhos dos balateiros, assim como de todos os elementos da cadeia produtiva, eram calculados com base na quantidade de látex extraído, beneficiado e efetivamente vendido, não se levando em conta o volume de trabalho dispensado pelos homens na obtenção e no transporte da matéria-prima até os galpões onde ela era pesada e repassada aos patrões. Considerando-se as distâncias e dificuldades do percurso rio acima e floresta adentro, que podia durar até um mês em embarcação a remo, e os riscos de perda de matéria-prima no retorno, também pelo rio encachoeirado, os balateiros praticavam expedições com duração de seis meses em média, por ano. Pelo menos quatro deles eram passados na floresta. Deixavam a canoa em algum esconderijo e adentravam a floresta, para ficarem mais perto dos balatais.

O tempo nos balatais era principalmente dedicado ao corte das árvores e beneficiamento do látex, mas também era preciso caçar, pescar, colher frutos e preparar refeições. Alguns balateiros plantavam frutíferas e delas se serviam em safras seguintes. Para habitar construíam barracas com paus sustentados em forquilhas feitas deles próprios, num arranjo angular que se equilibra com o peso dos homens nas redes de dormir. Como cobertura usavam encerados, e essa era toda a estrutura das moradas na mata, chamadas tapiris. A sobrevivência em tais condições resultava de bons instrumentos de trabalho, armas e munição, linhas de pesca, muito esforço físico e alguma sorte. Também era necessário levar consigo alimentos enlatados, farinha, arroz, sal, açúcar, café e medicamentos como analgésico, antiácidos, antibióticos, anti-inflamatórios e contravenenos, a exemplo do sempre lembrado Específico Pessoa. Todo o mantimento era para uso comum dos homens que dividiam um tapiri; da mesma forma, eram coletivizadas as tarefas de obtenção e/ou preparação dos alimentos. Os instrumentos de trabalho, no entanto, eram individuais, assim como as atividades de extração e beneficiamento dos blocos, e os respectivos ganhos.

O corte da balateira se faz com terçado, em formato de "espinha de peixe", no tronco e, às vezes, nos galhos mais grossos, sempre de baixo para cima. Quando a balateira é "boa", o leite escorre pelos sulcos para um saco fixado ao pé da árvore, o embutidor, que é feito de tecido grosso e impermeabilizado por dentro com a própria balata. O extrativista, vestido com calça e blusão de mescla, de caneleiras e botas com esporas presas por francaletes, e portando um cinturão regulado por chavetas, vai escalando a árvore com auxílio de um cabo de aço, que joga para cima à medida dos cortes. As roupas (fardas) e os equipamentos eram feitos em pequenas oficinas domésticas8 8 Para confecção das "fardas" dos balateiros, os patrões locais contratavam costureiras a quem forneciam todos os insumos, desde linhas a peças de tecidos grossos como mescla e brim, geralmente compradas dos patrões nas capitais, que, por sua vez as compravam do estrangeiro. Para produção dos apetrechos de ferro e aço, contratavam ferreiros e soldadores específicos, habituados à confecção de peças customizadas. Esses profissionais faziam parte das redes comerciais estáveis dos patrões e, invariavelmente, no segundo semestre do ano, antes das águas subirem, empenhavam-se em preparar suas encomendas, as quais, nas melhores safras, deveriam atender a até mais de cem balateiros. e somavam mais de 20 quilos, que o balateiro suportava durante oito, dez horas de trabalho. Fadiga, dores musculares, ardência e inchaços nas pernas eram males diariamente experimentados.

As áreas preferenciais de corte eram as "reboladas" ou "reboleiras", onde as árvores se concentravam. Antes de clarear o dia cada homem rumava para esses locais, não raro distantes de sua pousada, e retornava para o tapiri pela tarde. Nesse ínterim, a água para beber era a que se levava em vasilhames, e o alimento era o que se podia conseguir. Segundo Lins (2001), 12 era o número médio de árvores cortadas diariamente por um balateiro. Quando os embutidores estavam cheios, seu conteúdo era transferido para um saco maior, igualmente feito de tecido grosso e impermeabilizado com balata, o "carregador". Cada balateiro trazia nas costas seu carregador e, então, o látex coletado era despejado numa espécie de tanque cavado no chão, que é revestido com balata para impermeabilizar. Numa bacia ao fogo o leite era cozido em torno de duas horas, mexendo-se a massa fina e pegajosa com uma pá de madeira, para não pegar no fundo. Chegada ao ponto, a massa era retirada e jogada no "puxador", uma trave de pau roliço posta acima de um jirau: enquanto é sovada pelo balateiro com as próprias mãos, ela "vem distendendo até o jirau, onde é novamente repetida a operação" (Lins, 2001, p. 127). Segue-se uma lavagem com água para retirar impurezas (gravetos, palhas, areia) que tenham resistido ao "puxador". Com a frieza da água a massa começa a endurecer, então urge tratá-la para a forma final como é comercializada. Lâminas da massa são superpostas em espécies de tanques de madeira atravessados por um pedaço de pau e forrados com folhas verdes, para impedir que a balata grude no recipiente, onde ela enfim endurece formando blocos de 50 quilos em média. O dono ferra nos blocos as iniciais de seu nome, para identificar sua produção. Em contato com água a balata mantém-se hidratada, evitando rachar ou quebrar. Por isso, os blocos podem ser armazenados em igarapés.

Ao fim da safra os blocos eram levados nas costas até o ponto de embarque de volta para casa. Cedendo ao esforço, os balateiros arriavam a carga por vezes ao longo da caminhada: eram os chamados "tombos" ou "estações", unidades de medida da distância do acampamento até o rio.

O trabalho era muito arrebentado. Subindo serra grande, com a balata nas costas. A gente tinha que carregar toda a balata. Tinha trecho com 30, 40, 60 estações. A estação era o seguinte: carregava os blocos daqui até ali, baixava tudo. Era uma estação. Dali continuava a viagem, do mesmo modo, com quantas estações fossem, até chegar na beira do rio. [Depoimento de Manoel Cristo (Luci).] (Carvalho, 2011, p. 138-139).

Como os blocos eram vazados (por causa do pau em torno do qual endureciam), era possível atá-los uns aos outros através cabos de arame. Cerca de 10 blocos enfileirados constituíam um "lingada", e algumas destas, presas a uma estrutura de aço, compunham um "matulão". Remando canoas rio abaixo, os homens traziam-nos "de bubuia", isto é, boiando. Tinha-se que aproveitar ainda as "águas grandes", antes de a vazante comprometer a navegabilidade. O maior risco era perder a carga em choques nas corredeiras e cachoeiras: "a gente era feliz de tirar a balata quando ela não engatava na cachoeira. Aí era bom! Mas quando os blocos engatavam, só no verão é que a gente tirava a balata de dentro d'água" - explica Luci. Se fosse preciso sair da água e levar a canoa por terra, repetiam-se os "tombos" no transporte dos blocos até o ponto de reembarque. Assim, os balateiros seguiam viagem até a cidade, onde a balata seria entregue nos galpões dos patrões.

Laços e sentidos do trabalho nos balatais

Com intuito de não serem trapaceados pelos patrões na pesagem dos blocos de balata, pelos quais recebiam pagamento em dinheiro, alguns balateiros, desprovidos de equipamentos próprios para conferência do peso da mercadoria, lançavam mão de expedientes na floresta para calcularem o peso médio de sua produção. Outros, por sua vez, trapaceavam os patrões, misturando à balata outros leites vegetais de menor qualidade9 9 Muitas vezes a balata foi misturada a outros tipos de leite, como o da maçaranduba ( Manilkara huberi), que não escorre e fica quebradiço após o beneficiamento, ou do amapazeiro ( Hancornia amapa), que origina blocos duros e também quebradiços, ou, ainda, ao do garroteiro ( Bagassa guianiensis), porque os blocos ficam moles e se rasgam facilmente (Lins, 2001). ou até mesmo pedaços de paus, terra, pedras, para aumentar o peso dos blocos. Quando descobertas, essas trapaças eram punidas com descontos e o balateiro era rejeitado nas safras seguintes.

O contingente de homens em busca de trabalho era muito grande, mas os bons extrativistas eram especialmente procurados pelos patrões, que com eles costumavam estabelecer relações de trabalho relativamente duradouras, dentro do limite do interesse do mercado internacional no produto daquela mão de obra. Tais relações, entretanto, eram geralmente intermediadas pelo "encarregado" ou pelo "chefe de turma", que desempenhavam papeis centrais no sistema de aviamento que movimentava toda a cadeia produtiva da balata no oeste do Pará. Como explica um balateiro:

Antes da gente ir pro balatal, tratava com o patrão as mercadorias pra ficar pra mulher, deixava a conta aberta pra todo mês ela tirar a mercadoria, e eu tirava a mercadoria pra levar pro balatal: espingarda, cartucho, terçado, munição completa, sal, sabão, querosene. [Depoimento de João Ferreira da Silva.] (Carvalho, 2011, p. 99).

Aramburu (1994, p. 1) define o aviamento como "um sistema de adiantamento de mercadorias a crédito" que se desenvolveu na Amazônia desde a época colonial e se consolidou no chamado ciclo da borracha, tornando-se modelo estruturante das relações sociais, e não só de trabalho e comércio na região. Miyazaki e Ono (1958, p. 269) registraram não haver "nenhuma produção no Amazonas que não tenha alguma relação com o sistema de aviamento", enquanto Wagley (1977, p. 108) tratou esse último como o padrão de "relações tradicionais entre comerciantes e fregueses, constituindo um forte elo social e econômico". Esse elo baseava-se simultaneamente em dependência material e num senso de lealdade entre as partes.

O grande enigma que a maioria dos autores encontrava no aviamento era a formação de uma moralidade especial, aquela que liga o patrão ao freguês mediante poderosos laços de fidelidade e deveres morais mútuos. A fidelidade comercial do freguês é um termo de uma relação cujo outro termo são as obrigações morais que os patrões têm para com seus clientes em casos de dificuldade. A relação entre o comerciante e o freguês é uma relação social central na vida do interior amazônico, pois não só possibilita a existência de produção mercantil mas constitui relação de poder sujeita a uma moralidade que dispõe prescrições morais de ajuda aos fregueses em casos de perigo (doenças, carestias etc.) em troca de uma relação comercial monopolista. (Aramburu, 1994, p. 2).

É importante salientar que, na economia e na hierarquia da balata, diferentes funções específicas podiam ser designadas pelo termo "patrão", havendo diferenças sutis de acordo com os postos ocupadas na cadeia estratificada do aviamento.

Não, o meu irmão foi patrão; o meu pai foi balateiro, um aviado. Já o meu irmão foi balateiro e depois foi patrão, que chamavam de aviador, porque na época era da seguinte maneira: o Ib Sabá era a firma que financiava, uma firma reconhecida na região aqui. Ele financiava um cidadão por nome Tote Brito, Antonio Brito, então esse Tote Brito fazia a distribuição. Ele aviava os patrões, os chefes de turma, aqui pela região, então eram vários aqui. Então esse pessoal aviava os balateiros. Era a aviação: aviação é aquilo que fornece, o balateiro pegava dinheiro, o abono pra deixar pra família, tirava todo o mantimento pra passar cinco, seis, sete meses no balatal pra fazer a extração. (Bernaldino Elias, entrevista concedida a Marcelo Araújo da Silva).

No topo estavam os patrões estrangeiros, isto é, investidores externos que compravam o produto final e forneciam, para sustentação da cadeia produtiva, itens como tecidos, alimentos industrializados, calçados e outros que não se confeccionavam na região. Esses patrões ficavam em Belém ou Manaus, cuidando das exportações de balata para a Europa e os Estados Unidos, e raramente visitavam as cidades onde mantinham negócios. Mandavam representantes comerciais para o Baixo Amazonas em grandes embarcações chamadas batelões, para negociarem em seu nome, cobrarem dívidas, entregarem mercadorias e recolherem pagamentos dos patrões locais - em blocos de balata. Com as mercadorias recebidas, os patrões locais podiam aviar homens para nova safra, e nesse mister também contavam com intermediários.

A distância mantida pelos patrões estrangeiros em relação a seus subalternos amazônidas era reproduzida pelos patrões locais para com aqueles que estavam na base da hierarquia. A serviço dos patrões locais, o "encarregado" era o responsável pela arregimentação de extrativistas na cidade e nos povoados rurais. Sua tarefa se assemelha em certos aspectos à dos "gatos" contratados por empresários e fazendeiros para aliciar homens para posições de trabalho em regime análogo ao escravo, caracterizado como escravidão por dívida (Esterci; Rezende, 2001; Rezende, 2004; Silva, J., 2008).10 10 A expressão "escravidão por dívida" traduz relações de trabalho baseadas no endividamento compulsório de trabalhadores que dependem dos próprios patrões para aquisição, a preços bem acima do mercado, de bens e serviços indispensáveis à sobrevivência, além de transporte para e moradia no local de execução do trabalho. Tal sistema tem sido encontrado em fazendas do estado do Pará, denunciado por defensores de direitos humanos, criminalizado no sistema judicial e estudado por sociólogos e outros pesquisadores. No caso da balata, o encarregado era frequentemente um pequeno produtor ou comerciante de itens da economia rural e extrativista da localidade, conhecido e relativamente próximo de seus recrutas, dos quais se diferenciava por deter posses suficientes para mandar um explorador à floresta a fim de identificar balatais bons para corte e contratar número adequado de homens para tal serviço.

Em regra, a exploração ficava a cargo de mateiros, gateiros (caçadores de felinos que comercializavam peles) ou balateiros experientes que, trabalhando ou não na safra em questão, faziam reconhecimento das árvores e, abrindo aceiros (caminhos, picos) com terçado, demarcavam o território a ser explorado por tal patrão. Essa demarcação era reconhecida e respeitada pelos demais, de um modo geral. Na volta da mata, o explorador aproveitava para coletar castanha, andiroba e outros produtos vegetais que lhe complementavam os ganhos (Silva, M., 2012). Calculado o número de extrativistas suportado pelo território, o "encarregado" passava à contratação de um "chefe de turma" - em caso de não pretender ele próprio partir no comando dos homens para o balatal, o que era muito comum. Vale ressaltar que, na prática, essas duas funções coincidem com frequência, sendo desempenhadas pelos mesmos sujeitos, e os termos "encarregado" e "chefe de turma" acabam recorrentemente intercambiados no discurso dos trabalhadores da balata, muito embora no balatal o chefe tivesse funções práticas bem definidas e distintas da de um provedor.

Os contratos intermediados pelos encarregados eram informais, mas em relação aos patrões esses empreendedores nativos logo se tornavam presos por dívidas e comprometidos por fidelização. Isso porque, para arregimentarem balateiros, precisavam de dinheiro e gêneros variados à sua disposição, que o patrão adiantava em confiança na palavra do homem e na safra vindoura. Caso algo saísse mal na expedição de coleta, era o encarregado que precisava honrar o compromisso com o patrão. Em relação aos extrativistas, os acordos de trabalho eram verbais, mas sacramentados por dois tipos de papel: papel moeda para pagamento de um "abono" em espécie - em geral para pagar contas ou prover itens que precisavam ser pagos em dinheiro, ou, como muitos contam, "só para beber cachaça" - e folhas de caderno para anotação das dívidas que o balateiro logo começava a fazer, adquirindo alimentos, medicamentos, roupas, calçados e equipamentos dos quais necessitaria nos meses seguintes, no balatal. Nessas folhas também seria aberta uma conta da família do trabalhador, que ao superior recorreria para obter provisões e auxílio emergencial. Dessa maneira, intermediando a circulação de contatos, dinheiro, serviços e mercadorias, o encarregado frequentemente era visto pelos balateiros como o próprio patrão.

Eu trabalhei cinco anos com um velho por nome Memório. Esse velho era o chefe de turma, era ele quem levava a gente pro balatal. Quando chegamos aqui de barco, era 100 mil réis a passagem. Eu soube desse velho, fui lá com mais outros que vieram no barco. Ele recebeu todos que foram falar com ele; quando acabou de atender o pessoal eu fui falar com o homem, expliquei que tinha vindo de Santarém, queria trabalhar, se ele arrumava um trabalho pra mim. Ele disse que estava subindo com uma turma pro balatal, perguntou logo se eu já tinha cortado balata. Eu disse que não, mas que era acostumado com trabalho, perguntei se ele pagava minha passagem do barco. Eu vim de passagem fiada, e o capitão do barco ficou muito brabo quando eu disse que não tinha com que pagar a passagem, quis até me jogar n'água. Aí o outo rapaz que trabalhava com ele disse: "Para com isso, tu vai te sujar por causa de uma passagem? Depois ele vem e paga." Quando terminei de contar pro velho essas coisas ele tirou 500 réis do bolso e me deu, disse que eu não me preocupasse que já ia mandar pagar a passagem. Aí ele disse: "Tu tem roupa boa? Hoje tem uma festa, se tu quiser ir e não tiver roupa, bora ali no compadre que já resolvemos isso." Fui pra lá com ele, comprou logo calça, camisa e sapato social. Era caro, mas ele ia descontar na produção eu não paguei na hora. Numa terça-feira, uns dois dias depois da festa, a turma subiu. Foi assim que eu fui a primeira vez, foi esse velho Memório que me levou.

No balatal o desempenho da função de chefe de turma exigia mais que recursos materiais: conhecimento, experiência, rigor, praticidade e liderança eram pré-requisitos. Embora também pudesse extrair balata, sua principal função era manter a turma ativa e produtiva durante a safra: organizar os homens, conduzi-los até o balatal, cuidar para que permanecessem sãos, manter a paz entre eles, zelar pela qualidade e quantidade da produção. Esta última era fundamental para manutenção da cadeia produtiva da balata, baseada na extrema dependência entre os elos, e a produtividade era o cerne do sistema de aviamento: o balateiro só conseguiria quitar dívidas para com o encarregado e ainda obter algum saldo financeiro se apresentasse uma boa produção; o encarregado só honraria os compromissos adquiridos junto ao patrão local se os "seus" balateiros tivessem produzido saldo em balata; o patrão local, por sua vez, somente com essa matéria-prima pagaria os adiantamentos tomados ao patrão estrangeiro, habilitando-se a novas aquisições de material fiado.

Todo o negócio, portanto, tinha riscos que eram partilhados, em diferentes proporções, por todos os sujeitos envolvidos na rede de prestações e contraprestações. Certamente uma safra ruim causava prejuízos em sequência. Porém, na realidade, a maior cobrança recaía sobre o trabalho dos balateiros, verdadeiro sustentáculo da cadeia produtiva e da hierarquia da balata. Era seu esforço que pagava os riscos assumidos pelos demais. A crônica de J. Santos (1980, p. 80-81) é esclarecedora:

Quando deixava Monte Alegre rumo ao balatal, o balateiro era devedor de uma imensa conta ao patrão que deveria ser paga com a produção e tinha deixado firmado o preço a ser pago pelo seu produto. Ora, o preço fechado nessa ocasião era muito aquém do que seria cotado o produto quando ocorresse a safra. Na ocasião em que o preço era fixado, balata estava sem cotação porque não tinha produção, produto a venda no mercado. Tomando por base o ano de 1948, o preço na pauta alcançou a quantia de Cr$ 19,69. Mas o balateiro deve ter recebido o máximo de Cr$ 10,00, preço que na ocasião de negociar com o patrão era vigente. Para saldar seus compromissos o balateiro deveria produzir de 800 a 1000 quilos, do contrário não teria saldo. Mesmo sem saldar o seu débito, o patrão continua a "aviar" o balateiro. Era evidente que a conta teria sido paga, no lucro da mercadoria fornecida, nos juros do dinheiro adiantado e na diferença do preço pago pelo produto.

O mesmo autor compara os preços locais de alguns produtos com os valores debitados pelos patrões aos balateiros em 1948. Apresenta, respectivamente, as seguintes cifras para: açúcar, 4 e 10 cruzeiros; café, 8 e 20 cruzeiros; feijão, 4 e 10 cruzeiros; farinha de mandioca, 2 cruzeiros e 50 centavos, e 6 cruzeiros; sal, 2 e 5 cruzeiros; carne charque, 18 e 45 cruzeiros. Os preços mais que dobram, conforme os produtos transitam para o elo mais vulnerável da cadeia. Pode-se compreender, assim, como o aviamento "une o mundo do caboclo, por mais isolado que esteja, à sociedade regional e nacional, e em última instância ao mercado mundial", introduzindo "o caboclo na divisão internacional do trabalho" e constituindo-se como "barreira ao desenvolvimento e à modernização da vida e das relações sociais na Amazônia" Aramburu (1994, p. 2). Enfim, além da provisão material, os patrões - categoria ampla em que cabem todos os sujeitos dos quais os balateiros dependem e aos quais respeitam como autoridades - aliciam os extrativistas com bebidas, festas, foguetes e socorros em situações emergenciais como casos de doenças. O balateiro Manoel Braga Costa sabe bem como funcionava a exploração:

O patrão fornecia a mercadoria para a gente poder viajar. Dava espora, cinturão grosso, arame, roupas leves e outras que eram de mescla, esporas, barras de ferro (chaveta). Mas era ele quem dava seu preço assim que a gente chegava. De um valor, eles cobravam quatro, cinco vezes mais para a gente. Assim: se um objeto custava 10 reais, então, para nós levarmos, eles cobravam 45 reais. (Carvalho, 2011, p. 129).

Irmanados no objetivo de "tirar balata para tirar um saldo" com o patrão, os balateiros se empenhavam com afinco no trabalho dentro da floresta, por meses seguidos. As turmas se compunham de cinco homens, em média, e todos eram responsáveis pela viagem até os balatais. Nas canoas e por terra dividiam-se de acordo com suas qualidades: habilidade na navegação em corredeiras, tenacidade para remar, força para transportar cargas, conhecimento dos rios e do mato. Ademais, cada um deles, além de "tirar balata", devia ajudar na manutenção diária dos locais de trabalho e morada. As tarefas se dividiam conforme vocações pessoais para caça, pesca, cozinha, coleta de outros produtos extrativistas. A relação dos sujeitos com o território ia se ordenando, por conseguinte: rio, mato, campo, castanhal, barracão, tapiri, esses eram os lugares privilegiados onde as experiências individuais se organizavam em torno do balatal, de acordo com os perfis. Um fator crucial nesse ordenamento era, evidentemente, a habilidade na lida com a balata: subir na balateira, cortar apropriadamente (não fundo demais, para não matar a árvore), cozinhar e puxar o látex, formar os blocos. Em função dessas habilidades os balateiros se distinguiam em duas categorias básicas: "mansos" (experientes) e "brabos" (iniciantes). A esses os primeiros deixavam funções consideradas menores e mais restritas ao espaço do tapiri, como preparar refeições, embora também se dedicassem a ensiná-los as etapas do ofício. À medida que ganhavam domínio sobre o meio e ampliavam seu raio de ação no território, os "brabos se amansavam". O balateiro Triste relata:

Comecei a trabalhar com 17 anos, em 1958. Já iniciei como balateiro. Trabalhei no Maicuru. Ainda tem muita balata por lá. Aprendi a trabalhar com meu finado pai. No primeiro ano meu patrão foi o Jorge Sadala e o agora finado Cravo. Meus companheiros de turma eram meu pai, Rosa, e o Manoel José. Cheguei a ensinar o corte da balata a um brabo, que atendia por nome de Luiz Franco. Esse eu amansei! (Carvalho, 2011, p. 164).

À metáfora algo animalesca correspondem imagens corriqueiras veiculadas por comentadores, que representam os balateiros como perigosos, destemidos, brutos: "O balateiro era um aventureiro, um perdulário. Em princípio, desperdiçava a sua própria saúde. [...] Não possuía a menor noção do sacrifício que fazia para garantir sua tumultuada sobrevivência." (Santos, J., 1980, p. 81). A despeito da tipificação, os relacionamentos entre os homens são normalmente descritos por eles próprios como sendo baseados em solidariedade, companheirismo, cuidado mútuo. Considerando que a composição das "turmas" tendia a se repetir ano a ano, a intensidade e a duração das vivências compartilhadas por seus integrantes, é compreensível que esses agrupamentos se tornassem unidades sociais básicas no balatal, embora se desfizessem após a volta para casa. Dentro da "turma" se estabeleciam ou se reforçavam não só laços de trabalho, mas também de sociabilidade, amizade, afinidade ou parentesco.

No acampamento, o dia que tinha folga era o dia que chovia. Saía 5h do barraco e só chegava 17h da tarde. No dia que tinha comida, comia. No dia que não tinha, bebia água, chibé. Diversão era o cigarro e ouvir o macaco gritar. Conflito não tinha, nós éramos o mesmo que irmãos. [Pão, entrevista concedida em 2010.] (Carvalho, 2011, p. 169).

Vivendo isolados de seus grupos de origem, cozinhando uns para os outros, apoiando-se diante dos perigos da mata, divertindo-se juntos com o que podiam (cantorias, jogos, pescarias) e trocando cuidados em casos de doença, os homens de uma turma geralmente cultivavam uma relação de cumplicidade reforçada pelo senso de dependência mútua. Há relatos de brigas e até assassinatos, sem dúvida, mas em regra se adotavam mecanismos aparentemente bem sucedidos de evitação e controle de desentendimentos. Francisco Braga conta que "no balatal ninguém brigava, éramos todos amigos. Nosso lazer eram as festas que os índios faziam. A gente ficava só olhando. Não tínhamos medo, porque eram índios mansos. Eles faziam comida assada pra gente, e comíamos com eles." (Carvalho, 2011, p. 75).

A presença de mulheres no balatal, oculta segundo Simonian (2006), é mencionada como um fator de risco de desagregação da unidade social constituída pela turma. Embora na pesquisa tenham sido identificadas mulheres que foram para os balatais do Baixo Amazonas, quer como acompanhantes do marido ou como balateiras, algumas até levando consigo filhos pequenos, seu número é significativamente reduzido. A maioria dos homens explica que manter uma mulher entre eles poderia atrair problemas e até crimes dentro da turma, e raros se mostraram seguros diante da perspectiva de levar esposa ou outra mulher da família para o balatal. Além disso, quando os homens deixavam suas casas rumo à floresta, a economia doméstica recaía em grande parte sobre o trabalho das mulheres, crianças e jovens, tanto no meio rural (nas roças e casas de farinha) quanto no meio urbano (em casas de família, venda de refeições, lavagem e costura de roupas).

São raras as menções a práticas sexuais no espaço do balatal, à exceção de intercursos esporádicos com algumas indígenas apalai e outras poucas referências a prostitutas encontradas "no trecho".11 11 A expressão "de trecho" é usada para designar trabalhadores que estão sempre se deslocando, de um trabalho a outro. Porém, os homens são unânimes ao afirmar que "quando os balateiros voltavam, não ficava puta pobre". Para Francisco Pereira: "Na volta, a gente já sentia o cheiro da mulherada. Aí não tinha tempo ruim, a gente viajava dia e noite até chegar e festejar." (Carvalho, 2011, p. 87).

Narram que, depois de meses fora de casa, voltavam desfigurados, com barbas imensas por fazer, cabeleira sem corte, com as roupas sujas e rasgadas pelo mato. Assim mesmo, eram esperados nos portos e recebidos com fogos de artifício e muita festa. Ancoravam na cidade, pesavam a balata produzida e, se houvesse saldo, pegavam o dinheiro que lhes cabia, já descontados os itens aviados pelo patrão. Então iam comemorar, procurar o barbeiro, beber cachaça nos bares, buscar prostitutas. Para muitos, passavam-se dias até que de fato regressassem à casa - às vezes, já sem nenhum dinheiro, tendo tudo gasto ou perdido com mulheres e bebidas. Mesmo que "tivessem juízo", como dizem, o dinheiro não durava muito, era como "dinheiro amaldiçoado do garimpo, que vem e vai fácil". Mas, na verdade, o que lhes parecia muito e fácil correspondia a meses de trabalho duro e, frequentemente, à carestia e ao endividamento de membros da família com itens pegos junto ao patrão, pelos quais o balateiro devia pagar ao retornar. Logo recomeçavam a se endividar e, assim, perdurava o ciclo de dependência em relação ao patrão, e o balateiro já ficava comprometido por dívidas para a próxima safra de balata. Pão explica que "quando chegava aqui em casa, não fazia mais nada. Mas, assim que acabava o dinheiro da balata, apertava o patrão. Aí então tinha que explorar, voltar pro balatal de novo." (Carvalho, 2011, p. 170).

É preciso observar que esse esquema, embora apresentasse as características básicas da "escravidão por dívida", se sustentava contraditoriamente num forte senso de liberdade e autonomia cultivado pelos balateiros como elementos constituintes de sua identidade masculina e profissional. Era decisão do homem não estar preso à casa ou à roça, que podia ou não render bons frutos de acordo com fatores como chuvas, estiagens, pragas. Esse tipo de risco que lhes parecia incontrolável era deixado às mulheres, idosos e crianças. O balateiro preferia correr outros riscos, nos quais sua força, astúcia, habilidade e coragem seriam determinantes da qualidade de seu desempenho no balatal e, por conseguinte, de seus ganhos financeiros. Assim, extrair balata para um patrão era percebido como uma escolha do homem livre, autônomo e altivo, e não como um trabalho forçado. Ainda que fosse reconhecida a superexploração de sua mão de obra, o balateiro sempre vislumbrava formas de se precaver e até de burlar a ganância do patrão. O balatal, por fim, era visto como lugar de afirmação da masculinidade do indivíduo, entendida como qualidade relativa à capacidade de controlar simultaneamente a si e ao meio, o que se pode resumir na expressão local "amansar-se".

Memórias do trabalho e trabalho com memórias

À decadência da exploração de balata para o mercado internacional, a partir da década de 1970, corresponderam processos de desagregação social em cidades que tiveram suas economias sustentadas por essa matéria-prima. Centenas de balateiros viram-se repentinamente sem função e, pior, sem liberdade de escolher o trabalho que os mantinha longe dos constrangimentos da casa, da carestia da roça e da pescaria incerta. Como explica Manezinho, "não tínhamos mais serviço. Naquela época era muito ruim de emprego. A gente ia pescar pra sustentar a família." (Carvalho, 2011, p. 136). Outro balateiro, de apelido Se Quiser, comenta: "A gente ia trabalhar na colônia, pescar. Assim a gente levava a vida." (Carvalho, 2011, p. 64).

Enquanto toneladas de blocos de balata apodreciam nos portos de Belém e Manaus, patrões (sobretudo os pequenos) faliam em "efeito dominó" e os extrativistas viam suas redes sociais se desmantelarem: não eram mais procurados pelos patrões, nem podiam fiar mercadorias em troca da promessa de tirar balata; não encontravam mais suas "turmas", nem eram festejados na cidade; se não tivessem mulher e filhos, as prostitutas também não estavam mais ao seu dispor. Restavam-lhes os riscos inglórios das atividades cotidianas da lavoura, da pesca, dos biscates. Alguns passaram a fazer bichinhos com a balata que haviam tirado e não encontrara comprador. Solidão, degradação e pobreza, frequentemente acompanhadas pelo alcoolismo, passaram a marcar suas vidas. A dimensão sacrificante do trabalho sobressaiu: "Em tudo havia dificuldade. O serviço era duro e pesado. Não tinha nada de vantagem." [Depoimento de Pão.] (Carvalho, 2011, p. 169).

O artigo 54 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias renovou-lhes as esperanças, reconhecendo direitos aos "soldados da borracha", ou seja, àqueles que trabalharam nos seringais da Amazônia, contribuindo para os esforços de guerra. A lei nº 7.986 de 1989 estipulou o pagamento de benefício a esses trabalhadores, inclusive àqueles que extraíam materiais similares à seringa, a exemplo da balata. Os balateiros contam que, malgrado as determinações legais, o benefício lhes foi praticamente inatingível. Contudo, apontam patrões que "nunca pisaram no balatal, nunca cortaram uma balateira", mas conseguiram se "aposentar como balateiro" graças a articulações com políticos locais. A "aposentadoria", na verdade uma pensão vitalícia, tornou-se ainda mais difícil em 1998, quando a lei nº 9.711 passou a exigir a apresentação de prova documental para a concessão do benefício. Ora, em primeiro lugar, os balateiros foram, na maioria, recrutados entre nativos - não têm, portanto, carteira emitida pela Comissão Administrativa do Encaminhamento de Trabalhadores para a Amazônia (Caeta); em segundo lugar, os contratos de trabalho com os patrões eram informais, verbais, e só ficavam subliminarmente registrados em notas de mercadorias aviadas. Nenhuma prova documental, nenhuma perspectiva de reconhecimento ou mérito pelo que fizeram.

Com o passar do tempo cresceu entre balateiros a sensação de esquecimento, silenciamento, invisibilidade (Pollak, 1989). A desvalorização de sua identidade profissional, de par com o envelhecimento biológico (Elias, 2001), contribuiu para a desarticulação da identidade masculina - centrada em ideais próprios de autonomia e altivez que se relacionavam à "liberdade de escolher o balatal". O impedimento de ser balateiro soa como negação de sua existência social, joga a identidade desses homens para um tempo pretérito, imputando-lhe tamanha dor, que Eloi Balateiro assim expressa: "A partir de 1975, nunca mais fui a nenhuma expedição. Infelizmente, não consegui me aposentar como balateiro. Hoje, sou aposentado por idade. A dor de balateiro é a mesma dor de mulher esquecida." (Carvalho, 2011, p. 71). Eloi fala por si e por todos, no mais perfeito sentido coletivo que Halbwachs (1990, p. 36) identificou nas memórias individuais: pode-se, sem dúvida, afirmar que seus sentimentos e pensamentos "mais pessoais buscam sua fonte nos meios e nas circunstâncias sociais definidas".

Nesse contexto de desarticulação de identidades duramente construídas na lida no balatal, o registro de relatos orais dos balateiros entreabre um universo de práticas e sentidos ainda por revelar e investigar. Vivências, experiências, sentimentos, sonhos, frustrações, noções de tempo e espaço muito particulares, um mapa único do alto dos rios Maicuru, Paru e Jari, um território de encontros e desencontros entre grupos étnicos e culturais tão distintos, enfim, um inestimável material etnográfico está em jogo quando se trata de lhes adentrar o universo de memórias e trajetórias. Como em outras experiências de pesquisa social (Eckert, 1993; Eckert; Rocha, 2005, Leite Lopes, 2004; Nash; Rojas, 1976; Prado, 2008), este trabalho tem revelado universos sociais para além daquele dos indivíduos que rememoram. Remete, assim, ao plano da memória coletiva que "tira sua força e sua duração do fato de ter por suporte um conjunto de homens, não obstante eles são indivíduos que se lembram, enquanto membros do grupo" (Halbwachs, 1990, p. 51).

Os relatos orais de balateiros revelam aspectos do Norte, dos Campos Gerais, da ocupação da Amazônia brasileira, das fronteiras com as Guianas, de contatos interétnicos, para muito além das próprias relações de trabalho aqui enfocadas, iluminando uma rede de trocas e intercâmbios socioculturais ainda pouco conhecida. O trabalho foi uma dimensão essencial, organizadora da existência social desses homens, e, portanto, se mostra como ponto de partida para a reconstituição de suas memórias. Ademais, trabalhar sobre o seu trabalho é uma forma de não esquecê-los e de, assim, abrir-lhes outros planos possíveis de reconstrução de identidades atualizadas.

Recebido em: 31/08/2012

Aprovado em: 17/01/2013

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  • WAGLEY, C. Uma comunidade amazônica: estudo do homem nos trópicos. São Paulo: Editora Nacional, 1977.
  • *
    Artigo resultante de ações de pesquisa e extensão realizadas no âmbito do Programa de Extensão Patrimônio Cultural na Amazônia (Ufopa; Proext/MEC 2010-2011), do qual faz parte o projeto Memórias de Balateiros de Monte Alegre, ao qual está vinculado o bolsista Marcelo Araújo da Silva (Pibic/CNPq).
  • 1
    A expedição teve o objetivo de produzir documentação para a elaboração de um catálogo etnográfico e uma exposição de peças de artesanato de balata no Museu de Folclore Edison Carneiro, ocorrida em 2006 no Rio de Janeiro (Carvalho, 2006).
  • 2
    Registram-se casos de casais e de pais e filhos que seguiram juntos para os balatais, mas, de praxe, o homem subia sozinho, deixando à mulher e aos filhos, quando os tinha, a tarefa de cuidar da lavoura de subsistência da família.
  • 3
    Seres sobrenaturais que, na crença regional, povoam florestas, rios, igarapés, cachoeiras, pedreiras, pontas de praias, etc. Podem tomar forma de animais, emitir sons como assovios, gritos ou urros, e dar tapas ou pancadas em pessoas, animais de estimação ou objetos. Geralmente vivem no "fundo" (das águas) ou nas matas, e aparecem para assustar ou afastar os humanos dos lugares dos quais "tomam conta". Clássico da antropologia sobre o tema é o estudo de Galvão (1976) na fictícia comunidade de Itá.
  • 4
    Muitas obras foram produzidas sobre o assunto, e não é o momento de discorrer sobre elas. À guisa de referência, consultar Ferreira Reis (1931, 1953), Araújo Lima (1970), Castro (1972) e Tavares Bastos (1975) sobre a economia gomífera no norte do Brasil. Sobre a experiência pretensamente controlada de exploração da borracha no Oeste do Pará, ver recente estudo de Grandin (2010) sobre Fordlândia.
  • 5
    Simonian menciona a ocorrência da extração de balata em Roraima, no Acre e no Amazonas, onde remete a Curt Nimuendaju, para quem: "a riqueza do rio Negro não são para os seus balataes e seringaes; a verdadeira, e única riqueza desta zona são, nas atuaes circunstâncias, estos mesmos índios julgados apenas prestáveis para serem sacrificados até o último, se preciso for, para o bom êxito da próxima safra" (Nimuendaju, 1982 apud Simonian, 2006, p. 203-204).
  • 6
    Coudreau (1886) apresentou a balata da Guiana como árvore que dava fruto semelhante à ameixa, na forma, e ao pêssego, no sabor, porém de difícil acesso, posto que aparecia em galhos muito altos.
  • 7
    Toma-se a expressão no sentido que Mauss (1995, p. 389, tradução minha), em estudo sobre as variações sazonais das sociedades esquimós, atribuiu à "ciência que estuda, não só para descrever, mas também para explicar o substrato material das sociedades, ou seja, a forma que elas tomam ao se estabelecerem sobre a terra, o volume de densidade da população, a maneira como se distribui, bem como o conjunto das coisas que servem de sede à vida coletiva".
  • 8
    Para confecção das "fardas" dos balateiros, os patrões locais contratavam costureiras a quem forneciam todos os insumos, desde linhas a peças de tecidos grossos como mescla e brim, geralmente compradas dos patrões nas capitais, que, por sua vez as compravam do estrangeiro. Para produção dos apetrechos de ferro e aço, contratavam ferreiros e soldadores específicos, habituados à confecção de peças customizadas. Esses profissionais faziam parte das redes comerciais estáveis dos patrões e, invariavelmente, no segundo semestre do ano, antes das águas subirem, empenhavam-se em preparar suas encomendas, as quais, nas melhores safras, deveriam atender a até mais de cem balateiros.
  • 9
    Muitas vezes a balata foi misturada a outros tipos de leite, como o da maçaranduba (
    Manilkara huberi), que não escorre e fica quebradiço após o beneficiamento, ou do amapazeiro (
    Hancornia amapa), que origina blocos duros e também quebradiços, ou, ainda, ao do garroteiro (
    Bagassa guianiensis), porque os blocos ficam moles e se rasgam facilmente (Lins, 2001).
  • 10
    A expressão "escravidão por dívida" traduz relações de trabalho baseadas no endividamento compulsório de trabalhadores que dependem dos próprios patrões para aquisição, a preços bem acima do mercado, de bens e serviços indispensáveis à sobrevivência, além de transporte para e moradia no local de execução do trabalho. Tal sistema tem sido encontrado em fazendas do estado do Pará, denunciado por defensores de direitos humanos, criminalizado no sistema judicial e estudado por sociólogos e outros pesquisadores.
  • 11
    A expressão "de trecho" é usada para designar trabalhadores que estão sempre se deslocando, de um trabalho a outro.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Jul 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013

    Histórico

    • Recebido
      31 Ago 2012
    • Aceito
      17 Jan 2013
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