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Novas abordagens para casais sorodiferentes

RESENHAS

FRANCH, Mónica; PERRUSI, Artur; ARAÚJO, Fátima; SILVA, Luziana (Org.). Novas abordagens para casais sorodiferentes. João Pessoa: Grupo de Pesquisas em Saúde, Sociedade e Cultura; Editora Manufatura, 2011. 168 p.

Soraya Fleischer

Universidade de Brasília – Brasil

O vírus não é motivo para ninguém deixar de viver, pelo contrário,

querer ter filhos, querer viver, querer amar e querer ser amado e

passar para as pessoas muito amor. Porque o vírus não é suficiente

para acabar com a vida de ninguém. Quem acaba com a própria

vida somos nós, independente de ter o vírus ou outros vírus, ou não.

(Mulher vivendo com HIV)

Eis que nos chega às mãos uma coletânea que aborda uma temática atual e desafiadora: pessoas que estão em algum tipo de relacionamento afetivo e uma delas tem o vírus do HIV. O livro nos apresenta uma inspiradora discussão sobre as relações entre soronegativos e soropositivos. Em 2010, o Grupo de Pesquisas em Saúde, Sociedade e Cultura, da Universidade Federal da Paraíba, realizou o I Seminário de Casais Sorodiscordantes, em João Pessoa. As apresentações realizadas nas três mesas-redondas do evento viraram as três seções do presente livro: "Sorodiferença: questões para pesquisa e intervenção", "Implicações da sorodiferença na prevenção e no tratamento" e "Implicações da sorodiferença na reprodução". Há relatos pessoais, há pesquisadores falando de seus achados em João Pessoa, Campinas, Moçambique. Há militantes, antropólogos, psicólogos, médicos deixando transparecer o que Ivia Maksud chamou de "redes colaborativas" (antropóloga, p. 34) de pessoas de distintas trajetórias que desejam aprofundar a reflexão sobre a sorodiferença. (Mas o livro não perde de vista que validade, reconhecimento, metodologia, titulação, financiamento e disseminação dos resultados são diferentes e, por vezes, concorrentes ou incompatíveis entre academia, gestão e militância.) Para além de pesquisadores da área, o livro é de grande valia aos que con/ vivem com o vírus e a doença, bem como os profissionais e gestores da saúde, que nem sempre "atentam para a questão da sorodiferença em seu cotidiano de trabalho" (Larissa Polejack, psicóloga, p. 12).

Um primeiro aspecto que é necessário salientar a respeito da sorodiscordância é sua relação com o momento atual da epidemia da Aids. [...] Pode-se dizer que a doença foi ressignificada. [...] A experiência social da Aids vem se deslocando da percepção de morte iminente para a representação de um estado mórbido que necessita de atenção contínua e de tratamento a longo prazo. [...] Uma transformação imediata diz respeito ao significativo aumento na expectativa e na qualidade de vida do portador do HIV. (Mónica Franch e Artur Perrusi, antropóloga e médico/sociólogo, p. 51-52).

Ao longo da obra, se discutem os termos "sorodiscordância", "sorodivergência" e "sorodiferença", este último sendo preferido pela maioria dos autores por evitar a dimensão de conflito na ideia de "discordância" ou "divergência". Outros, como Maksud, se posicionam pelo primeiro termo:

Utilizo neste texto o termo "casais sorodiscordantes" mais ou menos como fez Salem com os "casais grávidos": como uma espécie de "experiência sintetizadora", um tipo ideal weberiano onde cabem experiências singulares de sujeitos inseridos em diferentes formas de relacionamento ou arranjos conjugais, em tempos (cronológico e subjetivo) distintos. (p. 31).

Essa polissemia já nos alerta para a necessidade de avançar nos sentidos e alcances de cada termo. Em geral, há pouca pesquisa sobre sorodiferença e sexualidade soropositiva, não só no Nordeste, como lembra o livro, mas no país como um todo. A pesquisa em João Pessoa é representativa:

Quando começamos a procurar os casais nos serviços de atendimento existentes em João Pessoa, eles eram invisíveis, ninguém os detectava. Entretanto, somente no primeiro serviço foi possível identificar mais de cem casais nessa situação num levantamento inicial feito pela equipe de saúde a pedido nosso. E os números não param de crescer. Isso quer dizer que a sorodiscordância era uma realidade presente, mas se mantinha oculta e, com isso, suas demandas também permaneciam silenciadas. (Franch e Perrusi, p. 52)

Os autores bem lembram que "essa nossa cegueira inicial em relação à dinâmica conjugal reflete, até certo ponto, a própria história social da Aids e a maneira como ela tem sido simbolicamente afastada do casamento [sobretudo o heterossexual], apesar de estar atualmente inserida em muitos relacionamentos" (Franch e Perrusi, p. 53). Os médicos do livro lembraram como a formação médica é insuficiente para lidar com a vida privada dos pacientes, em termos de conjugalidade, desejo de ma/paternidade e, principalmente, sexualidade. Na experiência nos serviços de atendimento especializados, esses profissionais foram deixando o pedestal, como o obstetra Otávio Neto pontuou, e ficando os pés no chão, sobretudo nas relações conjugais de seus pacientes.

O livro traz ótimos desafios para pensarmos, como, por exemplo:

a) O não uso do preservativo por um casal sorodiferente é uma atitude de cuidado com o cônjuge que tem o vírus: "Quando eu falei para o padre que era na saúde e na doença, eu vou estar com ele até o fim, e se eu me proteger dele significa que eu não estou com ele" (p. 23). Ou o preservativo como mácula: "A camisinha é aquele sinal que me lembra que estou doente" (p. 66);

b) Homens de classes populares manejam concepções nativas de imunidade ao "considerarem que não vão 'pegar' o HIV da sua parceira" porque ela é "limpa e [...] mesmo que tenha, ela não me passará o HIV" (p. 45);

c) "Eu tenho pacientes no consultório que têm em média 75 anos. Como vou convencer essas pessoas a usar o preservativo? Como levá-las a adotar uma prática tão distinta da que elas tiveram durante toda a vida?" (Joana Frade, médica infectologista, p. 94);

d) Quando há o conhecimento do diagnóstico, foi lembrado que "o serviço de saúde não tem a preocupação de incluir o parceiro negativo nas consultas. [Há] a necessidade de a pessoa soronegativa acompanhar e entender o tratamento para, inclusive, auxiliar no bom desempenho dele." (Vitor Buriti, militante, p. 101-102);

e) Há ainda muita resistência em aceitar o desejo de casais sorodiferentes por filhos, mesmo que já existam medidas para diminuir a transmissão sexual ou vertical: "um dos pré-requisitos para a adoção é o bom estado de saúde dos pais" (Neto, p. 120) e "um dos critérios de exclusão para o início do tratamento [de reprodução assistida] era se o casal, ou um deles, tivesse a infecção pelo HIV" (Andrea Rossi, psicóloga, p. 127);

f) A sorodiferença é um desafio à cidadania reprodutiva: "O que vem sendo feito em muitos serviços é a coerção. Se uma pessoa é portadora do HIV, ela deve ser castrada, laqueada ou esterilizada." (Neto, p. 120).

Registro essas perguntas não só para mostrar como o livro traz dados instigantes, como para motivar outros pesquisadores a arregaçarem as mangas. Há muito por entender nesse novo momento da epidemia da Aids.

Ao final, algumas das recomendações dos organizadores são preciosas e certamente servirão aos militantes, gestores e pesquisadores. Devemos rever o centramento na mulher como a única cuidadora da família, para que o "casal entre, de fato, na rotina do serviço" (Franch e Perrusi, p. 158). Talvez daí seja possível avançarmos no que tem sido chamado de "prevenção posithiva" (Maksud, p. 30), que considera o casal e não apenas a proteção do parceiro soronegativo, que parecer ser a principal preocupação a nortear as políticas. Como lembram vários dos autores, "a Aids é, por definição, uma doença relacional" (Franch e Perrusi, p. 56).

O serviço precisa ser itinerante e criativo, indo conhecer as pessoas e suas demandas por saúde e não apenas esperando que elas venham até as instituições. Isso se torna importante, sobretudo, quando certos corredores ou consultórios viram "o espaço da Aids", o que dá visibilidade à doença, mas também estigmatiza quem por ali frequenta.

"Estamos no momento de propor mudanças. Temos que ir à procura de um modelo de prevenção mais flexível e sair do paradigma rígido normativo-prescritivo, centrado somente no uso do preservativo." (Juan Raxach, médico, p. 110). O enfoque preventivista, que tem prevalecido nas campanhas do Estado, tende a ser limitado, sobretudo no cenário da sorodiferença, em que menos a camisinha e mais os sonhos reprodutivos fazem parte da relação conjugal. O livro nos inspira com uma grande quantidade de perguntas e cenários para pensar e, oxalá, investir em novas pesquisas e políticas e também formas mais respeitosas de convivência.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Out 2013
  • Data do Fascículo
    Dez 2013
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