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Festa, religião e cidade: corpo e alma do Brasil

PEREZ, Léa Freitas. Festa, religião e cidade: corpo e alma do Brasil. Porto Alegre: Medianiz, 2011. 208 p.

Flávia Ferreira Pires

Universidade Federal da Paraíba – Brasil

O Brasil das "confusões intemperantes"

As ideias do livro Festa, religião e cidade: corpo e alma do Brasil foram refinadas ao longo de quase 30 anos de dedicação à pesquisa em história, antropologia e sociologia. O livro tem a vantagem de unir uma série de textos já publicados em um único volume, dando ao leitor a oportunidade de apreciar o desenvolvimento dos argumentos da autora, professora Léa Freitas Perez. Seu argumento central é que festa, religião e cidade são "rochas sobre as quais fo(i) e est(á) erigid(o)" (Mauss, 1974, p. 42) o Brasil. Em outras palavras, são os pilares sobre os quais a sociedade brasileira se fez e se refaz continuamente. O prólogo de Roberto Motta anuncia o empreendimento de monta do livro: interpretar o Brasil. Em direção convergente às pesquisas de uma das referências primordiais do livro, Roberto DaMatta, a pergunta central é: "O que faz o brasil, Brasil?"

Para respondê-la a autora lança mão ao longo do livro do conceito de "double-bind", o duplo-vínculo de Gregory Bateson, conceito difundido no Brasil a partir dos textos de Otávio Velho e que poderia ser entendido como uma "série de experiências insolúveis",1 1 Do original "unresolvable sequences of experiences" (Bateson et al., 1956, p. 253). "injunções paradoxais [aporéticas], dupla postulação" (p. 23). No entanto, o conceito de duplo-vínculo acionado referencia-se sobretudo a Derrida, no sentido de "indecidibilidade": "que remete ao senso mesmo da diferença e da inderterminação" em relação "à solução e ao fechamento de uma questão de pensamento" (p. 23). A festa, a cidade, o Brasil são "duplo-vinculantes", isso quer dizer, impossíveis de serem apreendidos em uma mirada cartesiana baseada na lógica da exclusão "ou isso ou aquilo". O princípio de organização social que impera aqui é o da plasticidade e do movimento. O Brasil, tal qual Dona Flor, no romance de Jorge Amado, escolhe não escolher entre seus dois maridos,2 2 Ideia retomada por Roberto DaMatta na conferência "The world of Jorge Amado" na British Library, em Londres, durante o mês de junho de 2012. acionando a lógica da complementariedade e da simultaneidade. O mesmo vale para a religião e para a festa. De um lado a religião brasileira é sincrética: não escolhe entre orixás e santos católicos, mas os combina. De outro a festa é o reino das ambiguidades, pobres e ricos, reis e plebeus produzindo sociedade, com toda a graça, pompa e êxtase que lhe é de direito.

"[O] encontro da estrutura carnavalizadora com a estrutura do poder" (p. 113) operada pela festa é um exemplo da sua natureza duplo-vinculante. Ao mesmo tempo, simultaneamente (que o leitor perdoe a redundância) a festa é da ordem e da desordem, enfatiza, mas também revê e questiona as estruturas políticas. É um momento que promove a "mística do dom", segundo Mauss (p. 116), "um modo particular de existência", segundo Bakhtine (p. 117), e que ancorou nas terras brasileiras, encontrando solo fértil.

Se Marcel Mauss é referência que permeia todo o livro, Pierre Sanchis – importante pesquisador das religiões no Brasil – está presente da dedicatória ao tema da festa, religião e cidade tratados como intrinsecamente relacionados. Gilberto Freyre, que como ninguém escreveu sobre a religiosidade doméstica, festiva e profana do Brasil colonial, também é presença constante no livro.

O livro é composto de cinco capítulos, além de uma "Nota introdutória".

O capítulo "Por uma póetica do sincretismo tropical" apela para a necessidade de ultrapassar o debate sobre a modernidade inacabada, muitas vezes acionada pelos "mais realistas que o rei" (Velho, 2007) para se compreender o Brasil. Lançando mão da ideia de que plasticidade e paradoxo aqui têm base sólida. Ela diz: "[o] Brasil é um problema para a lógica cartesiana" e opera da mesma forma que o pensamento religioso "pelas confusões intemperantes", mas não ilógicas, para citar Durkheim nas Formas elementares da vida religiosa (p. 44). Essa sociedade que convive com os contrastes enquanto questões que suscitam reflexão e não enquanto problemas é também a sociedade da festa.

O capítulo "Para além do bem e do mal: um novo mundo nos trópicos" reconcilia o Brasil a Portugal, deixando de lado o discurso que culpa nosso passado colonial pelas mazelas que enfrentamos. "A colonização do Brasil foi uma obra de grande envergadura" (p. 53), "tributária da modernidade ocidental e de seu projeto civilizador", todavia "orientada pela ética da aventura e por uma concepção espaciosa e otimista do mundo" (p. 62), cujo objetivo era obter com poucos custos riqueza e títulos sociais.

O capítulo "A constituição da rede urbana brasileira nos quadros da formação do mundo ocidental moderno" discorre sobre como a colonização portuguesa com a empresa da cana-de-açúcar estava ligada a um mercado europeu urbano; de modo que a colonização brasileira desde o início esteve ligada à cidade e não ao campo. Léa Perez fala da centralidade das festas na vida das vilas, arraiais e cidades brasileiras, e como a cidade/urbano é o lugar, por excelência, da festa, em contraposição ao que é próprio da zona rural.

Sobre o desenvolvimento urbano do Brasil a autora argumenta que se trata de um modelo híbrido. Portugal aplicou o esquema clássico inspirado na cidade ocidental, mas o modelo foi transformado pelas condições locais e pela colonização. Vale lembrar, como faz Gilberto Freyre em Casa-grande e senzala, que os portugueses eram eles mesmos "mestiços", vindos de oito séculos de ocupação moura na Península Ibérica.

"Dionísio nos trópicos" destaca o deus Dionísio e sua propensão ao excesso, ao vinho, ao prazer, a festa, enfim. O barroco é aqui pensando como estilo de vida tropical, que une elementos a princípio contraditórios, "um operador de ligações entre diferenças incontornáveis" (p. 102) e uma "expressão do princípio dionisíaco em sua implantação tropical" (p. 119). O barroco tropical é essencialmente duplo-vinculante.

"Breves notas sobre a religiosidade brasileira" é o último capítulo. Nele, Léa Perez afirma que a religiosidade brasileira é "não moderna" e "[v]ivida teatralmente, pública e coletivamente" (p. 122). A religião ocupa lugar central na vida coletiva brasileira, que desde os períodos colonial e imperial desenrolava-se na igreja (p. 143). A despeito dos esforços modernizantes de uma elite anticlerical e secular a população mostra-se ao longo da história fervorosamente religiosa e contradiz a ideia moderna e secular da religião como coisa do foro íntimo. "A religiosidade brasileira, compósita, essencialmente festiva e carnal, é uma das melhores demonstrações do caráter mestiço de nossa sociedade e de sua maneira de operar através de hibridação de códigos e de pessoas."

O livro – que foi organizado e reescrito durante a estadia da autora em Lisboa durante o ano de 2010, como pesquisadora visitante no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE) –, termina com um posfácio que traça a trajetória das ideias desenvolvidas ao longo dos capítulos, através dos cursos ministrados na Universidade Federal de Minas Gerias, projetos de pesquisa coordenados e eventos onde foram debatidas.

O leitor deve ficar atento para não cair na armadilha fácil da crítica rápida aos conceitos de mestiçagem e sincretismo. A autora faz suas ressalvas quanto ao uso dos mesmos, principalmente em função das acepções ligeiras de que foram objeto e diz-se mais inclinada hoje em dia a trabalhar com o conceito de "duplo-vínculo" (p. 43-44). Sincretismo e mestiçagem não implicam uma confusão indistinta de elementos díspares, mas "um modo de operar que é da ordem da simultaneidade" (p. 43), um duplo-vínculo.

Ao mesmo tempo em que são simples, as ideias propostas no livro são inovadoras e funcionam como sopro de vida para os ouvidos acostumados a ouvir falar da festa apenas como reflexo da sociedade. A autora propõe pensar a festa como produtora da sociedade brasileira, como ato de produção da vida. Nesse sentido a festa não reflete o social, mas o funda. É preciso entender que a autora não afirma que a festa acontece em um vazio contextual e histórico, mas que a relação da festa com a sociedade é mais complexa que o simples reflexo. É uma obviedade socioantropológica afirmar que sociedades diferentes produzem festas diferentes. Não é essa a questão aqui em jogo. Muito mais, interessa à autora pensar as festas como "comunhão de sentimentos", produção de vínculo social, na esteira da escola sociológica francesa, para responder a questão: o que nos liga, o que faz a sociedade?3 3 Para um aprofundamento do debate entre "festa-fato" e "festa-questão", ou a "festa em perspectiva" e a "festa como perspectiva", remeto o leitor ao recém-lançado Festa como perspectiva e em perspectiva (Perez; Amaral; Mesquita, 2012). Por tudo isso mesmo, para entender a proposta do livro que "não [é] só sociológica, não [é] só antropológica, mas metassociológica e meta-antropológica"4 4 Roberto Motta, do "Prólogo". (p. 11) é fundamental uma leitura inteligente e criativa.

Liberada por Roger Bastide quando afirmou que para compreender o Brasil é preciso moldar-se em poeta (p. 47), gostaria de terminar parafraseando Chico Buarque citado poeticamente pela autora na sua "Nota introdutória": o livro é bonito, pá, fiquei contente!

  • BATESON, G. et al. Toward a theory of schizophrenia. Behavioral Science, v. 1, n. 4, p. 251-264, 1956.
  • MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In: MAUSS, M. Sociologia e antropologia São Paulo: EPU, 1974. v. 2, p. 37-184.
  • PEREZ, L. F.; AMARAL, L.; MESQUITA, W. (Org.). Festa como perspectiva e em perspectiva Rio de Janeiro: Garamond, 2012.
  • VELHO, O. Mais realistas do que o rei: ocidentalismo, religião e modernidades alternativas. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007.
  • 1
    Do original "unresolvable sequences of experiences" (Bateson et al., 1956, p. 253).
  • 2
    Ideia retomada por Roberto DaMatta na conferência "The world of Jorge Amado" na British Library, em Londres, durante o mês de junho de 2012.
  • 3
    Para um aprofundamento do debate entre "festa-fato" e "festa-questão", ou a "festa em perspectiva" e a "festa como perspectiva", remeto o leitor ao recém-lançado
    Festa como perspectiva e em perspectiva (Perez; Amaral; Mesquita, 2012).
  • 4
    Roberto Motta, do "Prólogo".
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Jul 2014
    • Data do Fascículo
      Jun 2014
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