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A reparação por perseguição política e os relatos de violência nas caravanas da anistia

Resumos

Este artigo analisa os relatos públicos de violência e sofrimento na execução de uma política reparatória por perseguições políticas empreendidas durante a ditadura militar brasileira (1964-1985). A partir de uma etnografia nas Caravanas da Anistia, sessões públicas e itinerantes de análise de requerimentos de reparação econômica e anistia política baseados na lei nº 10.559/2002, reflete-se sobre o papel dos relatos e dos testemunhos enunciados em tal configuração pelos diferentes sujeitos envolvidos nesse processo. Sustenta-se que as caravanas conformam uma cena pública peculiar e uma arena de escuta e enunciação de narrativas sobre as experiências de violência sofridas, em uma cadeia discursiva em que as posições de orador e ouvinte alternam-se constantemente. Tais relatos e testemunhos assumem diferentes papéis, podendo ser entendidos ora como argumentos para a concessão da reparação pleiteada, ora como revelação de um sofrimento nunca antes contado ou ainda como atualização de engajamentos e de reivindicações das vítimas por outras formas de reparação.

anistia; ditadura militar; reparação; sofrimento


In this article I analyze the public narratives of violence and grief in the implementation of a reparatory policy related to the political persecutions during the 1964-1985 military government in Brazil. The public and itinerant sessions in which the petitions for economic repair and amnesty policy were analyzed on the bases of the 10559 law, and which came to be known as the 'Caravans da Anistia', were the scenario of the ethnographic research for the reflections on role of the narratives and testimonies brought about in such context. I sustain that the 'Caravanas' constitute a peculiar political scene and an arena for the enunciation and hearing of narratives about the violence suffered by the people involved, in a discursive chain in which the positions of speaker and listener alternate uninterruptedly. Such narratives and testimonies are granted diverse roles; they can be taken as arguments in the struggle for the reparations targeted, as the revelation of some personal grief that had never been spoken out so far or, still, as a form of refreshing the victims' engagements and the claims for some other forms of reparation.

amnisty; military government; reparation; violence


ARTIGOS

IMestre em Antropologia Social - Brasil

IIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul - Brasil

RESUMO

Este artigo analisa os relatos públicos de violência e sofrimento na execução de uma política reparatória por perseguições políticas empreendidas durante a ditadura militar brasileira (1964-1985). A partir de uma etnografia nas Caravanas da Anistia, sessões públicas e itinerantes de análise de requerimentos de reparação econômica e anistia política baseados na lei nº 10.559/2002, reflete-se sobre o papel dos relatos e dos testemunhos enunciados em tal configuração pelos diferentes sujeitos envolvidos nesse processo. Sustenta-se que as caravanas conformam uma cena pública peculiar e uma arena de escuta e enunciação de narrativas sobre as experiências de violência sofridas, em uma cadeia discursiva em que as posições de orador e ouvinte alternam-se constantemente. Tais relatos e testemunhos assumem diferentes papéis, podendo ser entendidos ora como argumentos para a concessão da reparação pleiteada, ora como revelação de um sofrimento nunca antes contado ou ainda como atualização de engajamentos e de reivindicações das vítimas por outras formas de reparação.

Palavras-chave: anistia, ditadura militar, reparação, sofrimento

ABSTRACT

In this article I analyze the public narratives of violence and grief in the implementation of a reparatory policy related to the political persecutions during the 1964-1985 military government in Brazil. The public and itinerant sessions in which the petitions for economic repair and amnesty policy were analyzed on the bases of the 10559 law, and which came to be known as the 'Caravans da Anistia', were the scenario of the ethnographic research for the reflections on role of the narratives and testimonies brought about in such context. I sustain that the 'Caravanas' constitute a peculiar political scene and an arena for the enunciation and hearing of narratives about the violence suffered by the people involved, in a discursive chain in which the positions of speaker and listener alternate uninterruptedly. Such narratives and testimonies are granted diverse roles; they can be taken as arguments in the struggle for the reparations targeted, as the revelation of some personal grief that had never been spoken out so far or, still, as a form of refreshing the victims' engagements and the claims for some other forms of reparation.

Keywords: amnisty, military government, reparation, violence

Estou muito emocionada. Me sinto à vontade para chorar. Porque me lembro que os torturadores falavam "viu como ela é quente?". "É guerrilheira, ela não chora." Sim, eu não derramei uma lágrima na tortura. Porque a gente não chora com o inimigo. A gente chora entre amigos. E eu me sinto entre amigos.

Vestida com um blazer branco com desenhos de folhas azuis, a senhora de cerca de 60 anos que faz esse relato foi presa política durante a ditadura militar brasileira. Militava, à época, em uma organização vinculada à Igreja Católica. É setembro de 2008, e o depoimento é realizado durante a 11ª Caravana da Anistia, na sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em Brasília, destinada a analisar requerimentos de reparação econômica e anistia política de ex-perseguidos políticos com atuação em movimentos religiosos. Em pé, entre a plateia que assiste e a mesa em que estão os conselheiros da Comissão de Anistia, ela fala após um dos conselheiros do órgão ter lido a síntese do seu requerimento de reparação apresentado ao Ministério da Justiça. Antes de passar a palavra à requerente, o relator havia feito menção às sessões de tortura pelas quais ela havia passado. Introduziu o tema justificando que o relato desempenharia um papel importante para evitar a repetição no futuro: "Peço licença para lembrar as atrocidades que sofreu. Lembrar é necessário. Lembrar para nunca mais acontecer." O relator prosseguiu, falando da cadeira do dragão, de socos no estômago, de simulações de fuzilamento, métodos de tortura aos quais a requerente havia sido submetida. Encerrou as descrições com a seguinte pergunta, respondida por ele mesmo: "Quais as consequências da tortura para uma pessoa? Só quem a sofreu sabe."

Quando a requerente tomou a palavra, já passava da metade da tarde. Aquela caravana havia começado pela manhã, com uma interrupção para o almoço - e estender-se-ia até a noite, somando quase dez horas. O caso em apreciação era o terceiro, desde o recomeço dos trabalhos. Respondendo ao chamado do relator, a requerente dirigiu-se ao microfone, conforme os demais requerentes haviam feito anteriormente, e iniciou o relato (transcrito em epígrafe), afirmando que se sentia entre amigos para chorar. Pontuava, assim, a diferença de lugar e de interlocutores. Em seguida, fez referência a outro método de tortura, o "corredor polonês", e a uma amiga com quem esteve presa, contando que, quando retornava à cela após as sessões de tortura, a amiga cedia-lhe a cama para descansar, ficando ela mesma dormindo no chão.

Talvez eu tenha sido covarde, apesar de dizerem que sou forte. Não permiti que minha família viesse. Eu não iria aguentar. Meu irmão não acreditava que existia tortura no Brasil. Ele discutia isso um dia antes da minha prisão. Eu tive de negar durante dois dias que eu era eu [cita seu nome], porque eu tinha de evitar que chegassem na minha família, no meu marido.

Após o relato, o conselheiro responsável pela análise do requerimento fez considerações sobre o valor da indenização, ponderou que poderia ser maior, mas explicou que havia adotado um princípio de razoabilidade e proporcionalidade. Outra conselheira interveio, afirmando que havia procurado na Declaração Universal dos Direitos Humanos os trechos que resgatavam os princípios evangélicos para embasar suas considerações acerca do requerimento. Lido o relatório, ouvida a manifestação da requerente e colocada em discussão a proposta de deliberação do relator, com a fixação dos valores da indenização, fez-se a votação, tendo todos os demais julgadores votado de acordo com o relator. Com a deliberação tomada, o relator dirige-se à requerente e diz: "Nossas justas homenagens. Que sua história de vida possa servir de exemplo a milhares de mulheres e jovens do nosso país." Em seguida à proclamação do resultado do julgamento, várias pessoas aproximam-se da requerente para abraçá-la. Rostos molhados por lágrimas, assim como muitos dos que seguem sentados na plateia, abraços fortes e demorados. Há um silêncio comovido no auditório, rompido apenas pelo som dos flashes disparados pelos fotógrafos.

Este artigo pretende refletir sobre os relatos públicos de sofrimento e violência enunciados na execução de uma política estatal de reparação por perseguição política. Busca-se analisar o papel que tais relatos desempenham nas demandas por reparação e no debate público mais amplo sobre o legado da ditadura. Entende-se que, de um lado, são proferidos como argumentos para a concessão do benefício pleiteado; de outro, as mesmas narrativas atualizam pleitos das vítimas ainda não atendidos, podendo ser entendidos como dispositivos de instalação de discussões públicas sobre a ditadura militar e mesmo de um projeto de política de memória. Em outro aspecto, são sempre apresentados como relatos únicos, histórias nunca antes contadas publicamente e por isso assumem um caráter de revelação - revelação, entretanto, sempre parcial e insuficiente, como destacam os anistiandos, porque trata-se de um relato sobre algo impossível de descrever inteiramente.

Sustenta-se, pois, que os relatos colocados na cena pública desempenham diferentes funções, em um contexto que excede a circunstância específica em que são acionados, passando a integrar e a fazer sentido em disputas acerca de narrativas, memórias e políticas reparatórias referentes ao período ditatorial. Os relatos das experiências de prisão, tortura, exílio e banimento dos requerentes da reparação, de um lado, e as manifestações das autoridades presentes à sessão de julgamento, confluem para tensionar a política reparatória baseada na lei nº 10.559/2002 (Brasil, 2002) e para forjar novas demandas e estratégias políticas, ampliando as pautas de discussão e reivindicação acerca da resposta estatal ao legado da ditadura militar. São relatos performáticos, mas não no sentido de uma cena gratuita, destinada a impressionar um dado público, mas narrativas acerca de experiências concretamente vividas que, enunciadas em circunstâncias tais como aquelas propiciadas pelas caravanas, atualizam-se, politizam-se e assumem papel relevante diante dos demais sujeitos e sugerem a continuidade da luta política. A rememoração da dor, portanto, na cena pública, transforma-se em argumento político de convencimento e de sensibilização dos interlocutores. Assim, o testemunho da violência sofrida pode ser, a um só tempo, veículo de memória individual e substrato para a construção da memória coletiva, além da atualização de pleitos antigos, como é o caso da investigação sobre as circunstâncias de mortes e desaparecimentos, o que seria posto em curso a partir da criação, em 2011, da Comissão Nacional da Verdade.

Nas Caravanas da Anistia, tais relatos de violência e as recordações de sofrimento são colocados em cena por diferentes atores, em narrativas que fazem com que se alternem constantemente as posições de orador e ouvinte: de um lado, e com proeminência, o relato das vítimas; de outro, os relatos enunciados pelos atores do Estado responsáveis por julgar os requerimentos e das autoridades presentes nas sessões públicas. Tem-se, pois, o relato em primeira pessoa e o relato inscrito no procedimento burocrático do Estado, relato que se transforma em "relatório", da mesma forma que a memória enunciada é transformada em "fatos" a embasar a aplicação da norma legal. Numa cadeia cíclica enunciativa, vítima, testemunha, julgador e plateia compartilham a arena construída e dividem enunciações e escutas, alternando-se constantemente em tais posições. A configuração da cena, conforme descrita na sequência do texto, é essencial para a instauração da vítima que desvela, diante de uma plateia, o sofrimento imposto por conta de uma causa política. Ao mesmo tempo, a condição de vítima é em seguida ressignificada, seja pelas homenagens que são feitas e pelo pedido de desculpas formulado pelos representantes estatais, seja pelos discursos dos próprios requerentes, que atualizam pleitos, reivindicações e engajamentos, reafirmando a identidade de militantes.

O presente artigo está dividido em três partes: primeiramente, uma breve síntese da política reparatória baseada na lei nº 10.559/2002, que estabelece os critérios de reparação econômica e perseguição política; em seguida, a apresentação da estrutura das Caravanas da Anistia, sessões públicas e itinerantes de análise dos requerimentos embasados na lei nº 10.559/2002 e que passam a integrar as atividades da Comissão de Anistia a partir de 2008; finalmente, a partir dos dados da etnografia realizada nessas sessões, uma análise das caravanas e dos relatos nelas enunciados, com os sentidos mobilizados, disputados e reconfigurados, no complexo cenário de enfrentamento do legado e das demandas relativas à ditadura militar brasileira. As reflexões apresentadas neste texto são fruto de uma etnografia realizada entre 2008 e 2010 em atividades públicas da Comissão de Anistia, especialmente nas Caravanas da Anistia.1 1 O trabalho de campo foi realizado entre 2008 e 2010 como pesquisa de mestrado, que resultou na dissertação "O Estado pede perdão": a reparação por perseguição política e os sentidos da anistia no Brasil (Rosito, 2010). Neste artigo, os autores propõem reflexões a partir de dados provenientes desse trabalho de campo, mas cujas análises não compuseram o texto final da dissertação. Além das caravanas, estivemos presentes em audiência pública, seminários e oficina realizada pela comissão, em um trabalho de campo marcado pela itinerância e pela multiplicidade de espaços.2 2 O cotidiano de trabalho dos integrantes da Comissão também foi abordado em conversas no trabalho de campo e em entrevistas realizadas ao longo da pesquisa. Outros aspectos relevantes que compõem a aplicação da lei nº 10.559/2002 são discutidos em outros trabalhos, frutos dessa mesma pesquisa (Rosito, 2010a, 2010b, 2012). Não se pretende, por certo, apresentar uma descrição detalhada de todas as Caravanas de que se participou, nem de todos os depoimentos nelas realizados.

Reparação econômica por perseguição política: breve contexto

Como outros países da América do Sul, o Brasil vivenciou uma ditadura militar entre as décadas de 1960 e 1980. Em 21 anos de duração (1964-1985), alternaram-se cinco presidentes militares e uma série de atos institucionais que modificaram o ordenamento jurídico para viabilizar o projeto ditatorial, ancorado em um crescente e organizado aparato repressivo, que recorreu à tortura e à execução de pessoas como políticas de Estado. Ainda que a experiência ditatorial tenha sido comum em países da região - como Argentina, Chile e Uruguai, por exemplo - , cada regime teve suas especificidades e o mesmo pode ser dito em relação aos processos de redemocratização, incluindo-se, nesse caso, as respostas estatais frente ao legado ditatorial e às reivindicações das vítimas (Mezarobba, 2007). A lei nº 10.559/2002, que trata da reparação econômica por perseguição política, compõe um cenário mais amplo tanto das mobilizações das vítimas e familiares quanto das respostas estatais à questão da violência da ditadura militar. Segundo Mezarobba (2007), essa lei deve ser entendida dentro de um processo de transição democrática de longa duração, cujos marcos jurídico-políticos também seriam a lei nº 6.683 de 1979, a Lei de Anistia (Brasil, 1979); e a lei nº 9.140 de 1995, a chamada Lei dos Mortos e Desaparecidos Políticos (Brasil, 1995).

Em 1979, a chamada Lei de Anistia determinou anistia para os "crimes políticos e conexos". Com isso, viabilizou o retorno ao Brasil de significativo número de exilados, o que foi determinante para a reorganização partidária e a efetivação da transição para a democracia. Entretanto, o projeto de lei aprovado por um Congresso ainda conformado pelo regime militar traduzia o ponto de vista dos militares, que à época estavam empenhados em administrar o ocaso do regime, de "forma lenta e gradual", como eles próprios cunharam essa estratégia. A expressão "crimes políticos e conexos", como aprovado pela Lei de Anistia, criou espaço para uma interpretação reivindicada pelos militares, segundo a qual a anistia seria "para os dois lados". Nesse contexto, a anistia de 1979 representa, de um lado, em seus significados sócio-históricos,3 3 A dialética envolvendo os sentidos da anistia política no Brasil e o tensionamento entre "projeto de esquecimento" imposta pelo regime militar e conquista pela mobilização social são abordados nos trabalhos de Greco (2003), Mezarobba (2006, 2007) e Rodeghero, Dienstmann e Trindade (2011). um avanço no processo de democratização, vivenciado como conquista, visto que envolta em amplas mobilizações sociais no Brasil e no exterior. Por outro lado, o sentido que prevaleceu no campo jurídico foi o de anistiar também os militares envolvidos em torturas, sequestros, desaparecimentos e mortes de opositores do regime.

Mais de uma década depois do fim da ditadura, o Estado brasileiro finalmente assumiu a responsabilidade pela morte e desaparecimento de pessoas. A chamada Lei dos Mortos e Desaparecidos, aprovada em 1995, reconheceu a responsabilidade estatal na morte de 136 pessoas e criou a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), para analisar outros casos. Tal comissão terminou seus trabalhos em 2007, tendo apreciado cerca de 470 casos, entre os quais 221 tiveram o reconhecimento de mortes cometidas por agentes do Estado, mas sem a individualização legal da responsabilidade. Tal legislação ainda previa uma reparação financeira, em valor igual para todos os casos. O encerramento dos trabalhos da CEMDP foi marcado com o lançamento do livro Direito à verdade e à memória (Brasil, 2007), em cerimônia no Palácio do Planalto, com a presença do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A publicação e o evento de apresentação dos resultados do trabalho da CEMDP não ocorreram sem tensão entre diferentes setores do governo e os militares, como foi amplamente narrado pelos veículos de comunicação.4 4 A cobertura da imprensa sobre o lançamento do livro enfatizava a posição dos militares acerca da publicação. No portal de notícias UOL, por exemplo, a matéria Lula descarta 'revanchismo' no lançamento de livro sobre mortos e desaparecidos políticos registra: "O 'patrocínio' do presidente Lula ao livro, aceitando-o como documento oficial e concordando com o evento de lançamento no Palácio do Planalto, causou desconforto aos militares. Eles alegam que o livro não traz novidades em relação a tudo o que já foi divulgado sobre os anos de repressão política, e criticaram ao que eles chamam de 'indústria da indenização de criminosos políticos'. Para as Forças Armadas, o livro traz uma versão parcial dos fatos ocorridos no período da ditadura, uma vez que a história foi contada por apenas uma das partes envolvidas." (Lula descarta..., 2007).

A lei nº 10.559/2002 foi instituída como medida provisória, em 2001, e posteriormente convertida em lei pelo Congresso Nacional, em 2002. Essa lei estabelece os parâmetros para concessão de reparação econômica e de anistia política para os casos de perseguição ocorridos entre 1946 e 1988.5 5 O recorte desta pesquisa, que se atém às iniciativas da comissão relacionadas às reparações pelas violências da ditadura militar decorre de um dado de campo, na medida em que as caravanas, os julgamentos assistidos e as demais atividades que se acompanharam tinham como tema as reparações por perseguições políticas empreendidas durante o regime militar (1964-1985). Mezarobba (2007) analisa a conjuntura e as negociações políticas que resultaram na definição, na lei, do lapso temporal de 1946 a 1988. Uma das interpretações possíveis é que o estabelecimento de tal período reflete a intenção de não circunscrever a política reparatória apenas à ditadura militar iniciada com golpe de 1964, do que demonstraria, inclusive, o poder de influência, à época da discussão da legislação no Congresso, das forças políticas que apoiaram o regime. No texto legal, a "anistia política" é entendida como o reestabelecimento da condição anterior à perseguição política, e a reparação econômica assegurada para casos de perda de emprego e/ou impossibilidade de realização de atividade laboral devido à perseguição sofrida. Ao todo, são elencadas 17 situações6 6 O texto legal define o regime do "anistiado político", aqui considerado o termo como retorno à condição anterior à perseguição política empreendida, estabelecendo o direito à "declaração de anistiado político" - o que independe da concessão de reparação econômica; à "reparação econômica, de caráter indenizatório, em prestação única, ou em prestação mensal permanente e continuada [...]"; à "contagem, para todos os efeitos, do tempo em que o anistiado político esteve compelido ao afastamento de suas atividades profissionais, em virtude de punição ou de fundada ameaça de punição por motivos exclusivamente políticos [...]". que ensejam o direito à reparação. Além da perda ou impossibilidade de trabalho, a legislação assegura direitos previdenciários, como contagem do tempo de serviço para aposentadoria, e outras questões administrativas, como possibilidade de regresso à universidade, no caso de alunos expulsos, validação de diplomas de cursos superiores realizados no exterior, entre outros.

Duas modalidades de reparação econômica são previstas: a prestação mensal permanente continuada e a parcela única.7 7 A reparação econômica de caráter indenizatório é prevista em duas modalidades, conforme a legislação. A "prestação única" é garantida "aos anistiados políticos que não puderem comprovar vínculo com a atividade laboral" e consiste no pagamento de trinta salários mínimos por ano de perseguição com o valor máximo de R$ 100 mil. A "prestação mensal permanente continuada" é destinada aos anistiados que "comprovarem vínculo com a atividade laboral", e o valor "será igual ao da remuneração que o anistiado político receberia se na ativa estivesse". No segundo caso, os beneficiários recebem o valor retroativo a cinco anos, a partir da data em que protocolaram o requerimento. A primeira reconstitui o salário perdido pelo perseguido; a segunda contempla aqueles que não puderam trabalhar no período da perseguição sofrida. A legislação tem um explícito viés trabalhista, economicista e legalista, sendo por conta disso motivo de críticas dos movimentos de vítimas e familiares, bem como de tensionamento entre requerentes, governo e mesmo demais órgãos estatais e Poder Judiciário, como retrata Mezarobba (2006, 2007). De parte dos movimentos de vítimas e familiares, questionava-se a ênfase econômica, em detrimento do atendimento às reivindicações de elucidação das circunstâncias dos desaparecimentos e mortes e da responsabilização dos torturadores. O valor das indenizações também ocupou a imprensa, motivou a manifestação do Ministério Público Federal e a atuação do Tribunal de Contas da União, em virtude dos valores das indenizações, considerados, por representantes destas instituições, como demasiadamente altos.

Os requerimentos8 8 Do início do seu funcionamento, em 2001, até dezembro de 2009, a comissão recebeu 66.003 requerimentos, dos quais 54.809 foram apreciados. de reparação são analisados pela Comissão de Anistia, órgão do Ministério da Justiça. Formalmente, trata-se de órgão que assessora o ministro da Justiça, autoridade responsável pela concessão da anistia e reparação, mas na prática cabe à referida comissão analisar e deliberar sobre os requerimentos. Os julgamentos - aqui chamamos de julgamentos, enfatizando uma denominação dos próprios interlocutores da pesquisa, embora não se trate de um julgamento do Poder Judiciário - ocorrem de forma colegiada, isto é, cada requerimento é submetido à apreciação de pelo menos três conselheiros,9 9 Em agosto de 2010, época da finalização dessa pesquisa de campo, a Comissão de Anistia era composta por 24 conselheiros, incluindo o presidente, e por cerca de 90 pessoas que trabalhavam nos demais setores do órgão, como setores de atendimento, protocolo e diligência, análise, julgamento, contadoria e finalização, informações processuais e jurídicas e arquivo e memória. sendo um deles relator. Ainda que o órgão não seja uma instância do Poder Judiciário, sua atuação é caracterizada pela análise de demandas baseadas em uma legislação específica. Assim, os conselheiros fazem às vezes de juízes, ao analisar a demanda, verificar a aplicabilidade da lei no caso em questão e, por fim, redigir um voto com estrutura de sentença. Existe, pois, um conjunto de procedimentos que emerge do campo jurídico e se desenvolve através do discurso jurídico. Nesse sentido, as proposições de Bourdieu (2000, p. 212) sobre o campo jurídico oferecem instrumentos para se compreender a atuação da Comissão de Anistia, visto que, nessa configuração, esses conselheiros, responsáveis por decidir sobre os requerimentos de reparação, têm "o monopólio de dizer o dizer".

Para protocolar um requerimento baseado na lei nº 10.559/2002, não há necessidade de representação por advogado, bastando o interessado endereçar o pedido à Comissão de Anistia. Igualmente, não há um formato definido, cabendo ao requerente reunir os documentos necessários para a comprovação das alegações que embasam o pleito. Ainda que não estejam no escopo de análise deste artigo, os requerimentos escritos apresentados à comissão, no que diz respeito à forma como são construídos e organizados, podem ser entendidos como "[...] um trabalho de reconstrução de si mesmo", no qual "o indivíduo tende a definir seu lugar social e suas relações com os outros" (Pollak, 1989, p. 14). No ano de 2007, houve uma reestruturação da Comissão de Anistia, com a nomeação de um novo presidente e a chegada ao órgão de novos conselheiros. A preocupação do Ministério da Justiça era rever os valores das indenizações, dar celeridade aos julgamentos e criar um projeto que contribuísse para a construção de uma memória da ditadura militar, por meio de iniciativas educacionais. Foi nesse contexto que surgiram as Caravanas da Anistia. Além do julgamento dos requerimentos, que até então eram realizados em Brasília, na sede do Ministério da Justiça, essas sessões agregaram cerimônias de homenagem às vítimas da ditadura e possibilitaram o testemunho público dos requerentes. A manifestação em uma configuração com plateia composta por diferentes atores - de um lado, os próprios conselheiros da comissão e autoridades e agentes estatais presentes; de outro, o público, diferenciado conforme o local em que a Caravana é realizada - estabelece as condições para a configuração de uma arena de enunciação e escuta de narrativas acerca do sofrimento experienciado. Nessa interação, desempenham papel relevante os testemunhos das experiências das vítimas e os relatos das violências sofridas, em muitos dos quais são descritas as sessões de tortura, o período de prisão e, para além da experiência individual, o sofrimento compartilhado pelas famílias.

Tais sessões de julgamento foram concebidas, conforme explicaram os interlocutores de pesquisa, dentro de um projeto de "educação em direitos humanos". Tratava-se de uma tentativa de revestir a política reparatória de conteúdos outros que não apenas o econômico, viés que, à época, era ressaltado pela cobertura jornalística10 10 Ver Sequeira e Valente (2008). Na mesma época, uma coluna no jornal Zero Hora chamou as reparações de "bolsa-ditadura", em alusão ao principal programa assistencial do governo federal, o "Bolsa Família". das reparações concedidas. As caravanas vieram à tona justamente num período em que chamada grande mídia - que no Brasil se concentra em meia dúzia de grandes empresas, sendo parte delas apoiadoras da ditadura - noticiava os trabalhos da comissão em tom crítico, destacando os valores e os beneficiados, entre eles intelectuais, jornalistas e políticos de notoriedade. As caravanas foram concebidas, segundo seus idealizadores, como estratégia para "contar às novas gerações a história da ditadura militar", entendo-as como de viés pedagógico.11 11 Levando em conta que a "memória especificamente política pode ser motivo de disputa entre várias organizações" (Pollak, 1992), tal empreendimento pode ser considerado como um projeto político do Estado brasileiro de tecer uma nova hierarquia para as narrativas sobre a ditadura militar brasileira. Nesse sentido, esse processo colocaria lado a lado a emersão das chamadas "memórias subterrâneas" e um novo "enquadramento da memória" promovido pelo órgão estatal que agora acolhe e valoriza memórias das trajetórias de militantes políticos. Pollak sublinha que tais processos de "revisão", ora ensejados por crises políticas, ora por mudança de orientação ideológica nas esferas diretivas, ocorrem em contextos históricos de disputas em que o passado entra no "combate do presente e do futuro". Entretanto, à medida que elas foram sendo realizadas, se transformaram em instrumentos de consolidação da política reparatória.

A emergência de relatos públicos de sofrimento em mobilizações por direitos e por políticas estatais de reparação por violências sofridas em diferentes contextos têm despertado a atenção e análise por parte da antropologia contemporânea.12 12 Fonseca e Maricato (2013), Jimeno (2010), Jimeno, Varela e Castillo (2011) e Sarti (2009, 2011). Ao analisar o caso das demandas por reparação na Colômbia e a centralidade da noção de vítima - tanto de parte de quem reivindica alguma reparação como no léxico dos procedimentos burocráticos estatais que as implementam - Jimeno (2010, p. 99) considera que a "linguagem do testemunho pessoal tem efeitos políticos". A autora sustenta que a enunciação da violência sofrida nas ações de protesto e reparação constitui-se em um importante "mediador simbólico entre a experiência subjetiva e a generalização social", instaurando "comunidades emocionais".

Para o caso brasileiro, há de se levar em conta que, inicialmente, as Caravanas da Anistia - lócus em que ocorrem os relatos de violência e sofrimento relacionados à ditadura militar - surgem como estratégia de legitimação da política reparatória por parte do próprio Estado, que decide transferir as atividades da comissão para fora da sede do Ministério da Justiça como forma de "dar visibilidade" ao trabalho do órgão. Assim, num primeiro momento, quem instaura a cena pública e recorre à publicização - inclusive apostando em uma concorrência de narrativas no âmbito da própria imprensa - das experiências pessoais das vítimas é o próprio organismo estatal. Tal consideração é relevante para pensar a especificidade do caso brasileiro e as particularidades da cena pública construída para as enunciações das experiências pessoais de perseguição política.

Entretanto, se, de fato, os relatos públicos são possibilitados a partir de uma iniciativa oficial e de uma "necessidade de Estado" de dar publicidade e de "disputar sentidos" acerca da reparação às vítimas da ditadura, tais sentidos e as dinâmicas por eles instaurados não se restringirão a esse aspecto. Como se pretende demonstrar, os testemunhos públicos enunciados durante as caravanas também propiciam a explicitação de tensões próprias da política reparatória embasada na lei nº 10.559/2002, como possibilitam a retomada de reivindicações históricas de familiares de presos e desaparecidos políticos e a emergência de novas demandas, estratégias e alianças. Ainda possibilitam enunciações de relatos e testemunhos que desempenham diferentes funções - eixo central da análise aqui proposta - como rememorar o passado, revelar o até então não contado e atualizar a militância política, estabelecendo relações entre as experiências passadas e o contexto político em que são presentemente enunciados.

As Caravanas da Anistia: os testemunhos na cena pública

As Caravanas da Anistia são realizadas em diferentes cidades e sediadas em uma multiplicidade de entidades, como universidades, parlamentos municipais e estaduais, sindicatos, sedes de movimentos sociais, entidades culturais, entre outros. De forma geral, o roteiro conjuga protocolos burocrático-estatais - como execução do hino nacional e pronunciamento de autoridades - e performances específicas, que permitem a construção de cenografias variadas e léxicos próprios, como será apresentado a seguir.

A transferência das sessões de julgamento da sede do Ministério da Justiça para diferentes espaços, em distintas cidades do país, transforma cada caravana em um evento singular, ainda que seja possível identificar um padrão, dentro do qual as singularidades são tecidas. A organização do local em que ela é realizada, com a formação de uma área reservada para a plateia e a mesa da sessão de julgamento, de onde os conselheiros irão analisar os processos, bem como a disposição de um microfone em um local específico para a manifestação dos requerentes, definem os espaços dos principais atores do evento.

Para além desses lugares fixos, uma série de intervenções permite a criação de uma cenografia de cada caravana, fazendo com que exista uma plasticidade estética, ligada à entidade em que ela é realizada. Assim, se em alguns espaços as intervenções são mínimas - como nas assembleias legislativas e nas câmaras de vereadores, ou auditórios de universidades, em que os cenários limitam-se à inclusão de banners da comissão - , em outros permitem a justaposição de símbolos que por si só produzem um discurso: é o caso da caravana realizada em um assentamento do Movimento Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que ocorreu em uma tenda e com uma mesa de julgamento ornada com flores, frutos e sementes; ou da caravana realizada na CNBB, em que os banners da comissão interagiam com crucifixo, Bíblia e outros símbolos religiosos. Ou ainda da caravana realizada durante o Encontro Nacional dos Estudantes de Direito, em uma universidade, dentro de um amplo ginásio esportivo, no qual se desenvolviam as atividades de discussão do movimento estudantil.

Se uma das expectativas com a realização das caravanas fora do espaço do Ministério da Justiça era dar visibilidade aos julgamentos e promover uma aproximação com a sociedade civil, elas podem ser consideradas mais do que exitosas, pois foram adquirindo, paulatinamente, o contorno das instituições anfitriãs. Assim, as flores, sementes e frutos tornaram a caravana no assentamento do MST não apenas singular, mas simbiótica. Receber as caravanas significava, nesse contexto, aliar-se a ela, emprestando solidariedade e aderindo à causa das reparações e, fundamentalmente, produzindo um cenário compatível para as performances narrativas. O mesmo vale para as Bíblias, crucifixos, velas e outros símbolos religiosos, na CNBB, apenas para citar estéticas bastante particulares e intensas.

Em geral, as caravanas realizavam-se em dois turnos, podendo alcançar até dez horas, como no caso daquela realizada na CNBB. São compostas de duas partes com intensidade discursiva e força dramática diferentes: a instalação da caravana com os discurso das autoridades, os vídeos institucional e de homenagem, e o ato de construção da "Bandeira das Liberdades Democráticas" - composta pela costura de retalhos de panos com os símbolos das entidades anfitriãs - e, na sequência, os julgamentos propriamente ditos. Estes começam com a leitura, por um conselheiro (relator), da demanda apresentada e de seu voto. Ao requerente são disponibilizados até dez minutos para manifestação. É neste momento em que os requerentes, quando presentes, narram suas experiências de perseguição política. Em seguida, os demais conselheiros debatem o caso e, finalmente, votam a deliberação.

Para além das intervenções atinentes ao julgamento propriamente dito, dois outros momentos rituais são constitutivos do roteiro das caravanas e merecem destaque. Um deles é a composição da "Bandeira das Liberdades Democráticas". Em cada edição, na etapa anterior aos julgamentos, representantes da entidade-sede e afins são convidados a entregar um novo retalho que será agregado à bandeira. Gabriela, uma das responsáveis pela realização das caravanas, conta que propôs esse ritual para que "algo fosse ficando" das caravanas. Conta também que se inspirou na Marcha Mundial das Mulheres, em cuja iconografia também consta um mural com diversos pedaços de pano. A fala de Gabriela aponta para a preocupação de preencher com algo perene a efemeridade própria dos eventos. Aqui, destaca-se a relevância da articulação de diferentes temporalidades envolvidas no processo de reparação e da necessidade que surge de dar sentido a esses tempos distintos - os históricos, mas também os intrínsecos à realização das caravanas e dos rituais por elas propiciados - e de simbolizar, a partir da construção de um artefato, tempos que devem ser justapostos: o evento presente, rememorando o passado, que busca um suporte para existir no futuro, integrando as caravanas e as diversas entidades parceiras à memória da luta contra a ditadura.

Também é exibido um vídeo de homenagem aos requerentes, chamado de "sessão de memória", confeccionado especialmente para cada Caravana. Assim, ele garante, de uma certa forma, a singularidade da Caravana em questão e funciona como um recurso de sensibilização dos presentes, ao mesclar imagens e músicas alusivas à militância e à repressão militar nas décadas de 1960 a 1980. Mais do que isso, a exibição do vídeo com imagens de outras épocas opera uma compressão do tempo, remetendo os presentes ao período ao qual as imagens correspondem. A composição das imagens com músicas reconhecidas como canções de resistências instalam uma atmosfera de recordação e emoção e se prestam como dispositivos de sensibilização, uma vez que o público, em sua maioria, partilha dos mesmos valores morais e políticos. Fotos de desaparecidos políticos, imagens de repressão e enfrentamento de manifestantes com a polícia, cenas das prisões e de exilados são projetadas.

Rememorar, desvelar e militar

Brasília, setembro de 2008, 11ª Caravana da Anistia. Na entrada do prédio da CNBB, uma Bíblia e uma vela estão dispostas em frente a um banner da Comissão de Anistia, que traz impresso, sob um fundo branco, uma espécie de bandeira, em desenho difuso em tons de laranja, como marca d'água, e, ao entorno, em formato de círculo, a inscrição "Projeto Educativo, Caravanas, Comissão de Anistia". No interior, uma plateia de cadeiras de plástico foi montada, substituindo as cadeiras que habitualmente são os assentos do auditório. De frente para a plateia, a mesa de julgamentos, decorada com arranjos de flores e, na parede atrás dela, outro banner da Comissão de Anistia - com o mesmo desenho daquele que ladeia a porta de entrada, mas maior. O banner atrás da mesa de julgamento está cuidadosamente colocado sob um crucifixo, que pende no centro da parede. Ao lado desse banner, a alguns metros, outro, em branco e azul, com o símbolo do Memorial da Anistia Política, um dos projetos da comissão, ainda por ser construído naquela época.

Dentro do auditório, Pedro, um assessor da comissão, dá orientações aos presentes: "Quem for doar documentos, sente nas primeiras filas." Os documentos são recolhidos durante as caravanas para compor o acervo do futuro memorial. Um grupo de três senhoras se acomoda nas primeiras fileiras e pede para ser fotografado. Elas explicam que irão doar documentos. Uma delas folheia o dossiê que havia organizado com cópias de documentos e recortes de jornal. Das três, duas já haviam tido requerimentos deferidos.

Nos assentos da plateia, estão colocados alguns materiais impressos. Um deles é um conjunto de cartões que reproduzem, em tamanho postal, cartazes da campanha pela anistia na década de 1970. Ao todo, são seis cartões, acondicionados em um envelope, que traz ainda um pequeno texto explicando que as imagens compõem um acerco iconográfico sobre a luta pela anistia no Brasil. Um dos cartões traz um mural com a foto de dezenas de desaparecidos; outro estampa uma cena de um preso dentro de uma cela, com a inscrição "Anistia para Todos", com um pombo misturando-se às letras. Há um com fundo verde e retângulos amarelos enfileirados ao centro, que lembram uma sequência de cinema e pelas cores remetem à bandeira brasileira. Dentro deles, também em verde, cenas, que parecem a reprodução de fotografias, de um jovem segurando a bandeira do Brasil e sendo reprimido por policiais. É uma sequência de três imagens: o jovem sozinho com a bandeira, policiais se aproximando do jovem com cassetetes e escudos e, finalmente, a terceira, em que ao centro se vê apenas fumaça. No topo do cartão, a inscrição "Brasil: anistia, liberdade, democracia". "Saia da sombra conosco" são os dizeres de outro dos cartazes reproduzidos. Este último mostra o desenho de rostos também enfileirados de mulheres em vermelho, cada uma delas com a boca mais aberta que a anterior, até que na última fila a boca das mulheres desenhadas transforma-se em sílabas. Lê-se, da boca das mulheres, "LI-BER-DA-DE", e logo abaixo "Movimento Feminino pela Anistia - 1975 Ano Internacional da Mulher". Além da reprodução dos cartazes, também está nas cadeiras, para o público, a publicação de uma entidade religiosa. Na cartilha é reproduzida a Declaração Universal dos Direitos Humanos e, para cada trecho do documento, é indicada uma passagem bíblica correspondente. Assim, o livreto sugere que o conteúdo da declaração está encompassado pelo texto bíblico. Há também uma introdução, explicando que, assim como os cartões, trata-se de uma reprodução. A original fora publicada na década de 1970.

Enquanto o auditório vai sendo tomado pelo público, religiosos conversam e folheiam Bíblias. Parecem procurar trechos a serem lidos em suas manifestações. Nas cadeiras das primeiras filas estão colocados pedaços de pano com símbolos das igrejas presentes na caravana. Cada pedaço de pano está em uma cadeira. Serão entregues no momento do ato de construção da bandeira, somando-se aos retalhos costurados nas edições anteriores.

Por volta das 10h inicia-se a cerimônia de abertura da caravana. Primeiro, é exibido o vídeo institucional da comissão e em seguida composta a mesa de abertura. Estão presentes três ministros de Estado - o interino da Justiça, o de Direitos Humanos e a da Igualdade Racial. Além dos ministros, assumem os lugares à mesa os presidentes da Comissão de Anistia, da CNBB e representantes do Colégio Episcopal da Igreja Metodista, do Conselho Nacional Religioso do Brasil e do Centro de Serviço Ecumênico. Realiza-se, então, o ritual de "construção da bandeira", com a entrega dos retalhos simbolizando as entidades participantes. Em seguida, ocorrem as doações para o acerco do Memorial da Anistia Política. Entre as doações, estão um exemplar do livro Brasil: nunca mais13 13 O livro Brasil: nunca mais (1985) foi primeira publicação relatando as situações de violência e perseguição política no Brasil durante a ditadura, cuja confecção foi coordenada por Dom Paulo Evaristo Arns e pelo reverendo Jaime Wright, pastor da Igreja Presbiteriana Unida. Baseia-se em cópias dos processos que tramitavam contra os opositores do regime militar no Tribunal Superior Militar. e a cartilha cuja reprodução foi distribuída à plateia, deixada aos interessados nos assentos do auditório.

Há uma sucessão de discursos, já que a palavra é disponibilizada para todos os integrantes da mesa. Os discursos iniciais fazem referência ao papel atribuído às igrejas na defesa dos direitos humanos e na proteção aos perseguidos durante a ditadura militar. A linguagem utilizada, inclusive por integrantes da Comissão de Anistia e representantes estatais, emprega termos como "evangelização" e "fraternidade", aproximando a luta daqueles que resistiram à ditadura aos preceitos do cristianismo - dado que as entidades presentes pertencem a essa matriz religiosa. O primeiro a falar é o presidente da CNBB:

Acolhemos com muita alegria [...] a Caravana da Anistia. Fraterna saudação de corresponsabilidade pela mesma causa que nos leva a colocar em visibilidade aqueles que escolheram a paz, irmãos e irmãs que sonharam o mesmo sonho que sonhamos hoje. [...] Rememoramos com constrangimento e dor os anos da ditadura militar, de tanto sofrimento. [...] Muitas pessoas, que por causa do Evangelho, não aceitaram que o Brasil fosse invadido pela ditadura, pelo autoritarismo, pela tortura. A Igreja tem a missão de anunciar a boa nova. Felizes aqueles que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino de Deus. Queremos declarar nosso apoio à Comissão de Anistia, que se empenha na memória dos anos que mancharam de sangue a história do Brasil.

Em seguida, manifesta-se o presidente da Comissão de Anistia:

Os templos de culto sempre foram espaços de proteção aos injustiçados e aos perseguidos. [...] Temos clareza que muitos lutaram [contra a ditadura] não apenas por uma ideologia, [mas] porque tinham em sua história de vida optado pelos mais fracos e pelos mais pobres. Lutaram pelo valor maior, que é a vida, contra o autoritarismo e a tortura. Lutaram porque eram cristãos.

O primeiro discurso cria um grande coletivo que agrega, em um nível, os presentes naquela caravana e, em outro, as pessoas que resistiram à ditadura. Assim, o presidente da CNBB refere-se "aos irmãos e irmãs que sonharam o mesmo sonho que sonhamos hoje" e à "corresponsabilidade pela mesma causa". A responsabilidade partilhada é transformada em sentimento de "constrangimento e dor" no ato de rememorar. Já o presidente da Comissão de Anistia, ao descrever os templos religiosos como locais de proteção, oferece um sentimento oposto ao de dor, que seria de acolhida aos perseguidos pela ditadura e, num plano mais geral, aos que lutam pelos mais fracos. É oportuno destacar que é o presidente da Comissão de Anistia e não o da CNBB quem faz referências mais explícitas à cristandade como um valor que, supostamente, estaria na base de todo o desprendimento e de toda a luta.

Na sequência, toma a palavra o ministro de Direitos Humanos. Dessa vez, o discurso reveste-se de reivindicação e difere-se dos anteriores inclusive pela entonação, gestos e intensidade performática. O ministro centra atenção na situação dos desaparecidos políticos, defendendo o direito das famílias de sepultarem seus mortos. Autoridade máxima presente no evento, é ele quem faz reivindicações, conclama à mobilização os presentes e aborda um dos temas mais delicados, que segue sendo a demanda histórica das famílias das vítimas.

O direito sagrado que as famílias não tiveram [de sepultar seus mortos]. O direito que Maria teve [de enterrar Jesus Cristo] e que foi imortalizado pela Pietà. Temos de sair daqui com o compromisso da localização dos corpos. [...] Peço a essa audiência que daqui saíamos com estratégias para a localização dos corpos, porque somente assim teremos certeza do "nunca mais".

Tais discursos ocorreram antes do início da sessão de julgamento dos requerimentos e no momento da caravana em que havia maior número de pessoas assistindo. Assim, são falas que contribuem para a instauração do que, novamente nas proposições de Jimeno (2010), pode ser considerada uma "comunidade emocional", que passa a compartilhar determinada moralidade e funda-se em uma "ética do reconhecimento". Dito de outra forma, são discursos - tanto os verbais como aqueles enunciados a partir das músicas, vídeos, iconografias distribuídas pelo auditório - que implementam determinada sensibilização no público e conformam o tipo de escuta dos relatos que a seguir serão expostos. Desempenham, pois, importante papel na dinâmica ritual da caravana.

Assim, as Caravanas da Anistia, por sua dimensão pública e ênfase na discursividade dos presentes, configuram-se também como arenas de enunciação e escuta de narrativas e de reivindicações de diferentes tipos de reparação em virtude das violências sofridas por conta da ditadura militar brasileira. A itinerância que lhes caracteriza e a multiplicidade de locais em que são realizadas garantem a diversidade de público e de oradores. Em uma mesma caravana, os papéis de orador e ouvinte alternam-se constantemente, e os discursos proferidos conformam sentidos na enunciação relacional deles. Assim, a narrativa do sofrimento e da violência é compartilhada, e as experiências de prisão e tortura de uma mesma vítima podem ser narradas por mais de um orador - como na situação descrita na abertura deste texto, em que vítima e conselheiro repartem a descrição dos métodos de tortura empregados. Seguindo Pollak (1992), pode-se dizer que a vivência direta de um determinado evento não é a única forma de inseri-lo na gama de memórias pessoais que se constrói ao longo da vida. De formas variadas, as memórias também são integradas às lembranças individuais por narrativas de grupos que forjam sentimentos de pertencimento. Na definição do autor, "é perfeitamente possível que, por meio da socialização política, ou da socialização histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou de identificação com determinado passado" (Pollak, 1992, p. 201). Ou, sob outro aspecto também já apontado, a mesma experiência aparece como relato, em primeira pessoa, e como relatório, em sua inscrição em um documento burocrático estatal, que é o voto do conselheiro responsável pela demanda.

O ex-perseguido que narra a violência sofrida, ocupando a condição de vítima em um espaço especialmente destinado a ela - inclusive espacialmente, na cartografia das caravanas, entre os conselheiros e o público que assiste - , cumpre um papel central no ritual, sobretudo nos casos em que pode testemunhar as experiências de dor e sofrimento infringidos pela tortura. A esse respeito, as caravanas ocupam um espaço estratégico, triplamente performático, pois a enunciação da violência sofrida se revela como a antítese da experiência anteriormente vivida. Em primeiro lugar, o depoente é convidado a falar, e como tal pode narrar, entre outras coisas, a dor que outrora lhe foi infringida. O depoimento, nesse contexto tomado como possibilidade de falar, também contrasta com a violência-limite que impede o discurso, ou com o discursivo ilegítimo arrancado pela tortura, contra o qual a vítima duela com o suplício corporal. Em segundo lugar, o narrador está em público e diante de uma plateia predisposta a ouvi-lo e corroborar seu ponto de vista. A audiência cumpre aqui uma função simbólica importantíssima, pois ela possibilita o desnudamento de uma experiência, pela escuta, com a qual também interage. Em todo o caso, é o narrador quem desempenha o papel central: com seu relato, faz o público se reportar, mimeticamente, a um passado que, por todos os discursos proferidos, deve ser coletivamente rechaçado. Assim, criam-se as condições para uma espécie de partilha do trauma a partir da narrativa da vítima, uma vez que ela faz com que todos, a plateia e até os responsáveis por deliberar sobre os requerimentos, se identifiquem com ela e, ao fazê-lo, permite uma nova experiência - pública, coletiva e reparadora - , em que todos dizem, pelo silêncio e/ou pelo choro, que, apesar da dor e do sofrimento, aquela experiência pregressa não foi em vão. Ao partilhar o sofrimento, as experiências individuais de resistência e luta são "interpretadas como experiências cruciais típicas de um grupo inteiro" e nisso se produz o tão almejado "reconhecimento", como sugere Honneth (2003, p. 257). Trata-se de um reconhecimento reparador para as vítimas e dadivoso para o público que acompanha a sessão, podendo ser mais valorizado e significativo do que o montante da indenização propriamente econômica.

Os requerentes que se manifestam depois da leitura dos relatórios sobre seus processos tomam o lugar de oradores para fazerem um relato da violência em primeira pessoa. Pela importância desses relatos no espectro mais amplo da luta contra a violação dos direitos humanos, pode-se afirmar que eles transcendem o indivíduo que os enuncia. Eles devem ser compreendidos dentro de uma cadeia discursiva, em que os demais elementos - cenografia, perfil do público, entidade-sede, imagens projetadas e músicas reproduzidas na sessão de homenagem - conformam de maneira relevante o que será dito pelos requerentes. Além de serem entendidos dentro de uma cadeia específica, interna à caravana, os relatos de perseguição compõem um conjunto discursivo que extrapola os limites daquela sessão. Os testemunhos das vítimas, conforme percebido no trabalho de campo, enfatizam aspectos de rememoração, elaboração e militância, ênfases que podem coexistir em um mesmo discurso. Os testemunhos, então, podem trazer à tona as recordações traumáticas, mas também enunciar renovações do compromisso com uma causa; revelar as experiências nunca antes narradas ou partilhar com determinados ouvintes - muitas vezes, parentes presentes - a violência sofrida.

Sustentamos até aqui que as caravanas propiciam o relato da violência a partir da enunciação de diferentes atores - as autoridades, os conselheiros da comissão e as próprias vítimas - e a produção de sentidos específicos, possibilitados por enunciações e escutas relacionais. Entretanto, ainda que os diversos atores sejam relevantes - e mesmo imprescindíveis - para a configuração da cena pública da caravana, são os requerentes da reparação que tomam lugar de "oradores autorizados" (Bourdieu, 2008), sendo a eles atribuída a centralidade discursiva.

Para analisar as dimensões de rememoração, revelação e militância que os relatos das vítimas podem assumir, conforme apontado acima, segue a descrição do julgamento de dois requerimentos ocorridos na 14ª Caravana da Anistia, realizada em Porto Alegre, na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, em outubro de 2008. Entre os requerimentos analisados nessa ocasião estavam, entre outros, o do ex-governador Leonel Brizola,14 14 Leonel de Moura Brizola, morto em 2002, era governador do Rio Grande do Sul em 1964 e foi cassado pelo regime militar. Em 1961, liderou o movimento da Legalidade, que buscou garantir a posse de João Goulart na presidência da República, após a renúncia do então presidente Jânio Quadros, em um contexto político em que se anunciava uma intervenção militar. Além dos laços políticos - ambos do Partido Trabalhista Brasileiro - , Brizola casou-se com Neuza Goulart, irmã de João Goulart. já falecido, protocolado pela sua "companheira"; de Raul Pont, ex-prefeito de Porto Alegre e deputado estadual pelo Partido dos Trabalhos (PT) em exercício de mandato, que fora preso e torturado durante a ditadura; e de um desaparecido e da viúva dele, que também viveu na clandestinidade durante a ditadura e tornara-se uma liderança na luta dos familiares pelo esclarecimento das mortes e desaparecimentos e pela localização dos corpos, tendo participado, inclusive, da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Ao todo, nove requerimentos foram analisados nessa caravana, mas esses três, por envolver figuras públicas, despertaram maior interesse, além de terem sido julgados em presença de um maior número de pessoas na plateia.

Os atos da caravana realizaram-se no plenário da Assembleia Legislativa, um amplo salão em formato retangular dividido em três áreas, cada qual em um nível: a mesa diretora, de onde os trabalhos eram coordenados; o plenário em si, área em que ficavam dispostas as mesas destinadas aos deputados, as quais ficavam de frente para a mesa diretora; e, finalmente, as galerias, que circundavam o plenário pelas laterais e ao fundo, com assentos destinados ao público. A mesa principal, ocupada pela presidência da Assembleia Legislativa nas sessões do parlamento, foi ocupada por representantes da Comissão de Anistia e autoridades, num primeiro momento, e, posteriormente, pelos conselheiros responsáveis pela apreciação dos requerimentos; as mesas normalmente destinadas aos deputados foram usadas pelos postulantes à reparação e as galerias, como de costume, foram ocupadas pelo público.

A caravana iniciou por volta das 10h (estender-se-ia até as 17h) com a exibição de uma versão atualizada do vídeo institucional da Comissão de Anistia. Após a composição da mesa, houve a entrega dos retalhos de tecido para a composição da "Bandeira das Liberdades Democráticas". Foram entregues símbolos do Comitê Estadual contra Tortura, da Ordem dos Advogados do Brasil, de uma associação de anistiados políticos e a reprodução de uma página de um jornal partidário editado à época do regime militar.

O vídeo da sessão de memória foi dedicado ao ex-governador Brizola. Ele inicia com um depoimento do político sobre a vida no exílio e em seguida mostra cenas de entrevistas e imagens do retorno de Brizola ao país, por ocasião da anistia política, em 1979. Seguiam-se registros em vídeos da fundação de seu partido, de campanhas eleitorais e comícios. Numa sequência de imagens de comícios, a música que acompanhava era o jingle da campanha eleitoral de 1989,15 15 A eleição para presidente da República em 1989 foi a primeira eleição direta para o cargo após 21 anos de ditadura militar no Brasil e após o governo civil de José Sarney (1985-1990), eleito pelo Congresso Nacional. quando o ex-governador candidatara-se à presidência da República. As cenas da multidão ovacionando o político nos comícios foram seguidas por imagens com músicas que lembram o seu estado de origem, o Rio Grande do Sul. As cenas dos comícios foram trocadas por fotografias mais antigas do político, em preto e branco, que retratavam a trajetória dele antes da ditadura militar, destacando sua juventude e cenas campeiras, que reforçavam a identidade regional do político e, com isso, a ligação com o Rio Grande do Sul. Aquela sessão de memória, mesclando cenas coloridas das últimas atuações do político com fotografias antigas em preto e branco, musicadas com uma canção nativista, operava uma justaposição de três tempos e, como em geral ocorria nas sessões de memória, emocionou os presentes, levando muitos deles às lágrimas.

Encerrada a exibição do vídeo, o ministro da Justiça - presença destacada nessa sessão - fez a assinatura simbólica do documento que concedia anistia política e reparação econômica post mortem ao ex-governador. A assinatura pelo ministro foi intensamente aplaudida e motivou cerca de uma dezena de cinegrafistas e fotógrafos a registrarem o ato. Em seguida, concedeu-se a palavra ao presidente regional do partido fundado pelo ex-governador:

Para nós do PDT, reconhecer Leonel Brizola não tem valor patrimonial [...]. Para nós, seguidores do PDT, a importância é o reconhecimento do Estado brasileiro, não deste ou daquele ministro, do cidadão que foi Leonel Brizola. [...] Uma vida política se faz de muitas maneiras, e Leonel Brizola construiu a sua com sacrifício. E aqui temos de ressaltar o papel da mulher e mãe Neuza Goulart. Ela foi a companheira fiel [...]. Creio que quem mais tenha sofrido no exílio foi a esposa e a mãe dos filhos de Leonel Brizola.

A manifestação do líder partidário tornou manifestas tensões atinentes ao processo, pois o requerimento em nome do ex-governador fora feito pela companheira com quem ele viveu dez anos após a morte da primeira esposa, Neuza Goulart. Ao exaltar a figura da esposa, quase que em oposição à da autora do requerimento, coloca na cena a questão de quem teria legitimidade e direito para requerer a reparação. De outra parte, ao diferenciar enfaticamente "valor patrimonial" e "reconhecimento do cidadão", o orador explicita uma lacuna que a reparação econômica parece não superar. A dicotomia entre "dinheiro e homenagem", "reparação e reconhecimento" acaba sendo reiterada em diversas manifestações durante as edições das caravanas.

Após a fala do representante do partido, manifestou-se o presidente da Comissão de Anistia:

A Comissão de Anistia não é uma comissão de governo, é uma comissão do Estado brasileiro, ela pertence à sociedade brasileira. E tem a missão de pedir desculpas e reconhecer os danos que o Estado causou às pessoas. [...] Para a Comissão de Anistia, que reconecta os temas do passado e do presente, é significativo estar no Rio Grande do Sul. Nosso trabalho está pautado pelos princípios da justiça de transição.

E prosseguiu, dizendo que "os verdadeiros arquivos da ditadura eram os arquivos da Comissão de Anistia", pois as sessões de julgamento contavam com a manifestação dos próprios requerentes, que relatavam as violências sofridas. Ainda, enfatizou que o trabalho do órgão pautava-se pelos princípios de "justiça de transição", e brevemente explanou sobre o conceito. Por fim, defendeu a responsabilização dos torturadores. Já o ministro da Justiça enfatizou que "com a anistia não se esquece, celebra-se a democracia" e criticou as interpretações que sustentavam que a Lei de Anistia de 1979 consagrara uma dupla anistia, tanto para os opositores do regime como para os agentes estatais. Criticou atuações violentas das polícias contra movimentos sociais e finalizou saudando a memória do ex-governador homenageado.

Após a fala do ministro, outro vídeo de homenagem foi exibido, dessa vez com imagens de charges que denunciavam as violências do regime militar e fotos de desaparecidos. Decorrida uma hora desde o início, foi declarada aberta a sessão de julgamento e novamente o presidente da Comissão de Anistia pronunciou-se. Dessa vez, ele convidou o público que ocupava as galerias a sentar-se no plenário, já que o número de presentes diminuiu consideravelmente após a participação do ministro da Justiça. Em sua fala, o presidente da comissão explica os critérios de reparação estabelecidos na lei nº 10.559/2002, diz que "a legislação é ruim" e que "o legislador não levou em conta o grau de sofrimento da família, o grau de perseguição" sofrida pelas vítimas do regime militar. Compara a legislação brasileira com experiências de reparação de outros países. Continua a explicação dos critérios legais e enfaticamente assevera que "valor algum repara o sofrimento, mas não queremos que a anistia fique marcada por um viés economicista, laboral. [...] Porque o mais importante é o reconhecimento e o pedido de desculpas oficial."

Em seguida, foi apreciada e concedida a reparação do deputado do PT Raul Pont. Acompanhado da esposa e da filha, ele havia participado no início da caravana do ato de construção da "Bandeira das Liberdades Democráticas" e assistido aos julgamentos que antecederam ao seu. Após a leitura do relatório, que exaltava a trajetória do político e citava os diversos cargos públicos que ele havia ocupado, o deputado pôde se manifestar. Da tribuna do plenário, fez um discurso contundente, denunciando a violência policial atual e referindo-se a incidentes do dia anterior, em que a Polícia Militar reprimira mobilizações de movimentos sociais em Porto Alegre. Acerca da perseguição que sofreu, relatou:

Invadiram meu apartamento. Fui roubado. Roubaram meus livros e objetos pessoais aqui e em São Paulo. Nunca mais reavi minha biblioteca. [...] Faço aqui meu depoimento sobre o coronel Ulstra: sou testemunha de que ele coordenou, e das quais eu fui vítima, sessões de tortura. Estou aqui afirmando que ele comandou pessoalmente uma sessão, quando eu estava sentado naquilo que se chama "cadeira do dragão".

A fala do deputado conjugou diferentes dimensões temporais. Primeiro, fez referência à experiência da perseguição política destacando dois aspectos: o roubo de objetos pessoais, incluindo a biblioteca, e a tortura sofrida. Quanto à tortura, a referência ao nome do militar que conduziu a sessão de tortura de que fora vítima e o método utilizado - cadeira do dragão - recolocou em questão o tema da responsabilização dos torturadores, assunto que já havia sido evocado na fala do presidente da comissão.

Após a manifestação do deputado, a proposição de deliberação do conselheiro foi à votação, e os demais integrantes do colegiado de julgamento passaram a debater os termos da indenização. O deputado foi interpelado sobre um determinado documento que estaria faltando, e a análise técnica estendeu-se por cerca de dez minutos, ao que o relator disse: "O que menos interessa é o que estão discutindo nesse momento. Mas a lei determina uma indenização." O pouco tempo transcorrido não deixou de gerar constrangimento, demonstrado por um silêncio que surgia exatamente da inexistência de um ato para aquela parte da cena.

Os conselheiros então passaram a discutir os valores da indenização, apontando três possibilidades de quantia a ser fixada. Encerrados os debates entre os conselheiros e feita a deliberação quanto ao valor, foi finalizado o julgamento com a formulação de um pedido de desculpas pelas perseguições empreendidas pelo Estado à época da ditadura: "Em nome do povo, do Estado brasileiro, as desculpas oficiais pelo erro que o Brasil cometeu contra o senhor."

Em seguida, foi à apreciação requerimento em nome do desaparecido e da viúva dele. Os requerimentos ficaram a cargo de uma conselheira, uma advogada de cerca de 30 anos, que fez uma compenetrada leitura de seu voto, fazendo pausas para beber água e conter as lágrimas. O voto da conselheira relatava a juventude do militante, o amor do casal, o início da atuação política, os tempos vividos na clandestinidade e reproduzia versos de autoria do jovem morto. Por fim, explanava sobre os critérios adotados, os cálculos e os valores da indenização.

A viúva acompanhou a leitura do relatório sentada na galeria ao lado de um jovem de cerca de 20 anos. De lá, ouviram atentamente a manifestação da conselheira. Ao final da leitura do voto, ela foi convidada a se manifestar. Levantou-se, abraçou forte e demoradamente o rapaz que a acompanhava, beijou-o na face e, visivelmente emocionada, atravessou o plenário para chegar à tribuna:

Não pretendia dizer absolutamente nada, mas o relatório me obriga a agradecer. Até hoje não conseguimos saber onde estão, como morreram, quem matou [os desaparecidos políticos], nem [tivemos] a responsabilização de quem os matou. Infelizmente, nosso país não teve coragem de enfrentar de frente os crimes do Estado. Peço ao presidente da Comissão de Anistia que peça ao ministro da Justiça que franqueie os arquivos da Polícia Federal.

Após a fala, a viúva e militante do movimento de familiares de vítimas é aplaudida pelos presentes. Em seguida, o voto da conselheira é colocado em discussão, sendo aprovado rapidamente por todos os conselheiros presentes, sem discussão quanto a valores e critérios utilizados, ao contrário do que ocorrera no processo anterior. Feita a deliberação, formula-se o pedido de desculpas oficiais pelas perseguições de que foi vítima: "Em nome do Estado e do povo brasileiro, pedimos desculpas e perdão pelos erros e barbáries cometidos contra a senhora e seu companheiro."

As manifestações descritas exemplificam as diferentes dimensões que os testemunhos das vítimas e os discursos de outros oradores desempenham tanto na caravana quanto na configuração mais geral da política reparatória. A fala do líder partidário põe em questão quem teria legitimidade para requerer reparação em nome de uma pessoa já falecida e enfatiza o sofrimento da família, descrevendo a perseguição política como um dano coletivo, que atinge também outras pessoas que não apenas a vítima direta. Os relatos do deputado descrevem as violências em dimensões que afligem o corpo - "estava sentando na cadeira do dragão" - , mas também aquilo que compõe a identidade do sujeito de forma mais ampla, como seus objetos e livros, representantes de gostos e posições políticas. A referência seguinte a uma operação da Polícia Militar diante de uma manifestação faz uma junção temporal e reafirma sua posição de militante atual, atento ao que se passa no tempo presente. Já a fala da viúva, que começa com uma introdução subalterna de agradecimento e logo se transforma em um discurso enfático sobre o que é ali narrado como dívida histórica e descaso das autoridades: a não localização dos corpos dos desaparecidos.

Ainda é de se destacar que, nas caravanas, a questão ligada à reparação econômica sempre é citada com alguma justificativa. No caso da apreciação do requerimento do deputado Raul Pont, o relator responsável pelo caso chega a designar a definição do valor como "a coisa menos importante". Ao longo do trabalho de campo, verificou-se que as referências ao aspecto financeiro da política reparatória foram, paulatinamente, diminuindo. Inicialmente, com o objetivo de dar visibilidade aos trabalhos da comissão, os discursos dos integrantes do órgão buscavam defender a legislação, embora sempre criticassem os critérios dos legisladores. O dinheiro, em um contexto como no outro, sempre aparece com algum incômodo, um empecilho, na fala dos conselheiros e jamais é citado nas manifestações dos requerentes. Seguidamente nomeado como fruto de uma "legislação ruim", como "a coisa menos importante", o dinheiro vai cedendo espaço na cena pública aos relatos da prisão, das torturas, da vida na clandestinidade e no exílio. Os discursos são oriundos de diversos oradores, e a violência descrita pode ser enunciada tanto em primeira pessoa como por meio de outros sujeitos envolvidos no processo de reparação, como os conselheiros, ou por aqueles trazidos ao tema pelas próprias caravanas, como autoridades e representantes das entidades que recebem o evento. Mas é a experiência, o sacrifício, a violência vivenciada no corpo que, além de instaurar a condição de vítima em um relato público - e, em alguns casos, o primeiro - alça, na configuração das caravanas, o requerente à condição de sujeito merecedor de homenagens e pedidos de desculpas.

Ao chamar os relatos das vítimas como "os verdadeiros arquivos da ditadura brasileira", como fez certa vez em uma caravana o presidente da comissão, evidencia-se outro aspecto resultante da configuração narrativa e performática das caravanas e integrante de um projeto de memória mais amplo acerca da ditadura brasileira: a elevação do relato das vítimas ao status de verdade incontestável. Enquanto as investigações se desenvolvem lentamente, com a dificuldade de acesso aos documentos oficiais do período - com a suspeita de que muitos deles tenham sido deliberadamente extintos para não deixar provas - são os relatos das vítimas que vão ocupando as lacunas da história. Na verdade, há uma extensa produção escrita sobre as experiências do período, seja ela acadêmica, jornalística ou autoral. A esse acervo somam-se, evidentemente, os relatos orais e os rituais de reparação. Por serem públicos e oficiais, eles agregam valor simbólico às narrativas individuais. E por serem permeados pela emoção contribuem, sobremaneira, para a fixação na memória das gerações atuais de um passado de luta não apenas pela liberdade individual, mas também por um projeto de nação, talvez utópico ou irrealizável, ainda assim legítimo de ser abertamente defendido.

A constituição de uma cena pública específica para a enunciação de relatos de violência e de sofrimento vivenciados durante a ditadura militar nas Caravanas da Anistia e a elaboração de um ritual específico para a realização dos testemunhos e da escuta deles produzem e mobilizam sentidos que vão além da mera publicidade da política reparatória em curso, como concebida inicialmente por parte dos responsáveis por sua execução. Em certa medida, as Caravanas propiciam, em uma temporalidade comprimida, processos simbólicos que, em uma sequencia ritual, instauram a condição de vítima, num primeiro momento, para em seguida permitir a superação desta condição: a vítima - que se caracteriza por ter tido a liberdade e o corpo violados - passa a ser destinatária das homenagens oficiais do Estado. Assim, trata-se de um ritual que permite uma "dupla conversão" - a instauração da vítima e a superação desta condição, em uma espécie de redenção.

A politização do testemunho a ensejar a generalização social da experiência privada, conforme as proposições de Jimeno (2010) - em que pesem as diferenças do caso em análise pela autora na Colômbia - , resultando em processos de empatia com o sofrimento alheio e de validação de uma política reparatória, indicam o trânsito dos diferentes atores e discursos entre o público e o privado, o íntimo e o coletivo, o secreto e o desvelado - e, também, entre o que é clandestino e criminoso e o legal e o oficial.

Da reparação econômica ao pedido de desculpas: algumas considerações finais

Buscou-se, neste texto, analisar os diferentes papéis que os relatos públicos de violência e sofrimento desempenham na execução de uma política reparatória por perseguições políticas empreendidas durante a ditadura militar brasileira. Entende-se que tais relatos ganharam relevância e proeminência a partir do estabelecimento de sessões públicas de julgamento dos requerimentos de reparação, através das Caravanas da Anistia. Ainda que as vítimas ocupem o local central nos discursos sobre violência, tais relatos também são construídos e colocados na cena por outros sujeitos, tanto os integrantes da Comissão de Anistia como outras autoridades e representantes das entidades que sediam as sessões. A convergência discursiva e os sentidos tecidos de forma relacional conformam e interagem tanto com a cena interna das caravanas quanto com o contexto externo (fora da cena), no qual os sentidos da reparação por perseguição política são disputados por outros atores políticos, tendo relevância inclusive a forma como as caravanas são narradas na imprensa. Segundo os interlocutores de pesquisa, são os relatos das caravanas e aqueles que integram o requerimento de reparação que criam as condições para que a anistia e a reparação sejam formuladas como um "pedido de desculpas por parte do Estado". Essa reconfiguração do sentido jurídico e político da anistia está diretamente relacionada com a colocação em cena de tais relatos, os quais, segundo um dos conselheiros, transformam quem os lê ou quem os ouve em "testemunha" do ocorrido. É um testemunho que instaura a testemunha.

O direito à reparação econômica, que seria a razão de ser da lei nº 10.559/2002, foi englobado, a partir das Caravanas da Anistia, por um sentido mais amplo e profundo de reconhecimento da luta e do sofrimento dos perseguidos pela ditadura. Por isso mesmo elas se tornaram um momento de celebração das lutas empreendidas, tanto no passado quanto no presente. Tanto para o anistiando quanto para o público, um dos pontos mais emocionantes do ritual instaurado pelas caravanas era aquele no qual o presidente da comissão pedia perdão em nome do Estado. Quando os julgamentos aconteciam em Brasília, o presidente não era menos autorizado a fazê-lo, mas não havia público para respaldar tal ato. Do ponto de vista de uma economia moral e emocional, o perdão do Estado não repara - no sentido de retocar ou consertar - o sofrimento, mas o ressignifica. Embora a demanda dos requerentes visasse, legalmente, uma reparação pecuniária, por si só ela não atendia às expectativas de quem foi vítima da violência do Estado, uma vez que a reparação e tampouco a luta política eram pensadas pela lógica econômica. Com a ajuda de Fassin (2012), podemos afirmar que a reparação desejada é melhor compreendida quando pensada a partir dos horizontes de uma economia moral e não de uma economia monetária, como alguns articulistas conservadores com espaço na grande mídia tentaram fazer crer. Como um sistema de normas e de obrigações, a economia moral orienta "les jugements et les actes", colocando em jogo "plus que de règles économiques", mesmo quando o dinheiro pode estar envolvido (Fassin, 2012, p. 27). A "dívida" do Estado e da sociedade não cessa com a reparação pecuniária, pois no registro da economia moral o que está em jogo são princípios de justiça, de dignidade, de respeito e de reconhecimento, como bem sugere Fassin citando Honneth (2003). Porque a identidade dos requerentes se define pela militância política é que o ponto alto do ritual acontecia, na maioria das vezes, quando o presidente da Comissão pedia perdão em nome do Estado. O ato explicitava o fato de que esse Estado era muito diverso daquele que impusera a dor e o sofrimento, e de que a resistência havia sido responsável pela mudança de perspectiva.

Por fim, importante ressaltar que a execução da lei nº 10.559/2002 e as Caravanas da Anistia compõem um processo - e uma disputa - mais amplo acerca do legado da ditadura militar, bem como das respostas estatais em face das reivindicações das vítimas. As atividades públicas da comissão e as caravanas antecedem a criação da Comissão Nacional da Verdade16 16 Criada em 2011 pela lei nº 12.528 (Brasil, 2011) e instituída em 16/05/2012. Página na internet: www.cnv.gov.br. e podem ser interpretadas como instauradores de um debate público sobre o tema, sem o qual a Comissão da Verdade não teria sido possível. Assim, sugerimos que os relatos de violência e sofrimento foram relevantes para a reconfiguração de uma ênfase da política reparatória brasileira, ao mesmo tempo em que reposicionaram a importância do aspecto financeiro, ao colocarem em primeiro plano os atos discursivos e de homenagem às vítimas e ao forjarem sentidos de verdade.

Recebido em: 30/12/2013

Aprovado em: 09/06/2014

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  • A reparação por perseguição política e os relatos de violência nas caravanas da anistia

    João Baptista Alvares RositoI; Arlei Sander DamoII
  • 1
    O trabalho de campo foi realizado entre 2008 e 2010 como pesquisa de mestrado, que resultou na dissertação
    "O Estado pede perdão": a reparação por perseguição política e os sentidos da anistia no Brasil (Rosito, 2010). Neste artigo, os autores propõem reflexões a partir de dados provenientes desse trabalho de campo, mas cujas análises não compuseram o texto final da dissertação.
  • 2
    O cotidiano de trabalho dos integrantes da Comissão também foi abordado em conversas no trabalho de campo e em entrevistas realizadas ao longo da pesquisa. Outros aspectos relevantes que compõem a aplicação da lei nº 10.559/2002 são discutidos em outros trabalhos, frutos dessa mesma pesquisa (Rosito, 2010a, 2010b, 2012).
  • 3
    A dialética envolvendo os sentidos da anistia política no Brasil e o tensionamento entre "projeto de esquecimento" imposta pelo regime militar e conquista pela mobilização social são abordados nos trabalhos de Greco (2003), Mezarobba (2006, 2007) e Rodeghero, Dienstmann e Trindade (2011).
  • 4
    A cobertura da imprensa sobre o lançamento do livro enfatizava a posição dos militares acerca da publicação. No portal de notícias UOL, por exemplo, a matéria
    Lula descarta 'revanchismo' no lançamento de livro sobre mortos e desaparecidos políticos registra: "O 'patrocínio' do presidente Lula ao livro, aceitando-o como documento oficial e concordando com o evento de lançamento no Palácio do Planalto, causou desconforto aos militares. Eles alegam que o livro não traz novidades em relação a tudo o que já foi divulgado sobre os anos de repressão política, e criticaram ao que eles chamam de 'indústria da indenização de criminosos políticos'. Para as Forças Armadas, o livro traz uma versão parcial dos fatos ocorridos no período da ditadura, uma vez que a história foi contada por apenas uma das partes envolvidas." (Lula descarta..., 2007).
  • 5
    O recorte desta pesquisa, que se atém às iniciativas da comissão relacionadas às reparações pelas violências da ditadura militar decorre de um dado de campo, na medida em que as caravanas, os julgamentos assistidos e as demais atividades que se acompanharam tinham como tema as reparações por perseguições políticas empreendidas durante o regime militar (1964-1985). Mezarobba (2007) analisa a conjuntura e as negociações políticas que resultaram na definição, na lei, do lapso temporal de 1946 a 1988. Uma das interpretações possíveis é que o estabelecimento de tal período reflete a intenção de não circunscrever a política reparatória apenas à ditadura militar iniciada com golpe de 1964, do que demonstraria, inclusive, o poder de influência, à época da discussão da legislação no Congresso, das forças políticas que apoiaram o regime.
  • 6
    O texto legal define o regime do "anistiado político", aqui considerado o termo como retorno à condição anterior à perseguição política empreendida, estabelecendo o direito à "declaração de anistiado político" - o que independe da concessão de reparação econômica; à "reparação econômica, de caráter indenizatório, em prestação única, ou em prestação mensal permanente e continuada [...]"; à "contagem, para todos os efeitos, do tempo em que o anistiado político esteve compelido ao afastamento de suas atividades profissionais, em virtude de punição ou de fundada ameaça de punição por motivos exclusivamente políticos [...]".
  • 7
    A reparação econômica de caráter indenizatório é prevista em duas modalidades, conforme a legislação. A "prestação única" é garantida "aos anistiados políticos que não puderem comprovar vínculo com a atividade laboral" e consiste no pagamento de trinta salários mínimos por ano de perseguição com o valor máximo de R$ 100 mil. A "prestação mensal permanente continuada" é destinada aos anistiados que "comprovarem vínculo com a atividade laboral", e o valor "será igual ao da remuneração que o anistiado político receberia se na ativa estivesse". No segundo caso, os beneficiários recebem o valor retroativo a cinco anos, a partir da data em que protocolaram o requerimento.
  • 8
    Do início do seu funcionamento, em 2001, até dezembro de 2009, a comissão recebeu 66.003 requerimentos, dos quais 54.809 foram apreciados.
  • 9
    Em agosto de 2010, época da finalização dessa pesquisa de campo, a Comissão de Anistia era composta por 24 conselheiros, incluindo o presidente, e por cerca de 90 pessoas que trabalhavam nos demais setores do órgão, como setores de atendimento, protocolo e diligência, análise, julgamento, contadoria e finalização, informações processuais e jurídicas e arquivo e memória.
  • 10
    Ver Sequeira e Valente (2008). Na mesma época, uma coluna no jornal
    Zero Hora chamou as reparações de "bolsa-ditadura", em alusão ao principal programa assistencial do governo federal, o "Bolsa Família".
  • 11
    Levando em conta que a "memória especificamente política pode ser motivo de disputa entre várias organizações" (Pollak, 1992), tal empreendimento pode ser considerado como um projeto político do Estado brasileiro de tecer uma nova hierarquia para as narrativas sobre a ditadura militar brasileira. Nesse sentido, esse processo colocaria lado a lado a emersão das chamadas "memórias subterrâneas" e um novo "enquadramento da memória" promovido pelo órgão estatal que agora acolhe e valoriza memórias das trajetórias de militantes políticos. Pollak sublinha que tais processos de "revisão", ora ensejados por crises políticas, ora por mudança de orientação ideológica nas esferas diretivas, ocorrem em contextos históricos de disputas em que o passado entra no "combate do presente e do futuro".
  • 12
    Fonseca e Maricato (2013), Jimeno (2010), Jimeno, Varela e Castillo (2011) e Sarti (2009, 2011).
  • 13
    O livro
    Brasil: nunca mais (1985) foi primeira publicação relatando as situações de violência e perseguição política no Brasil durante a ditadura, cuja confecção foi coordenada por Dom Paulo Evaristo Arns e pelo reverendo Jaime Wright, pastor da Igreja Presbiteriana Unida. Baseia-se em cópias dos processos que tramitavam contra os opositores do regime militar no Tribunal Superior Militar.
  • 14
    Leonel de Moura Brizola, morto em 2002, era governador do Rio Grande do Sul em 1964 e foi cassado pelo regime militar. Em 1961, liderou o movimento da Legalidade, que buscou garantir a posse de João Goulart na presidência da República, após a renúncia do então presidente Jânio Quadros, em um contexto político em que se anunciava uma intervenção militar. Além dos laços políticos - ambos do Partido Trabalhista Brasileiro - , Brizola casou-se com Neuza Goulart, irmã de João Goulart.
  • 15
    A eleição para presidente da República em 1989 foi a primeira eleição direta para o cargo após 21 anos de ditadura militar no Brasil e após o governo civil de José Sarney (1985-1990), eleito pelo Congresso Nacional.
  • 16
    Criada em 2011 pela lei nº 12.528 (Brasil, 2011) e instituída em 16/05/2012. Página na internet:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Nov 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2014

    Histórico

    • Aceito
      09 Jun 2014
    • Recebido
      30 Dez 2013
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