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Deslocando fronteiras: notas sobre intervenções estéticas, economia cultural e mobilidade juvenil em áreas periféricas de São Paulo e Lisboa* * Aproveitamos este espaço para agradecer especialmente à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp, processo nº 09/50153-2) e à Fundação para a Ciência e a Tecnologia (SFRH/BPD/94011/2013) pelo financiamento das pesquisas que dão lugar ao presente artigo.

Shifting borders: notes on aesthetic interventions, cultural economy and youth mobility in segregated areas of São Paulo and Lisbon

Resumo

Este artigo pretende adensar a reflexão acerca das possibilidades de trocas econômicas e simbólicas que se desdobram da relativa democratização do acesso aos meios digitais, sobretudo, entre as populações jovens e habitantes de áreas socialmente marcadas por processos de precarização nas metrópoles globais. Para tal, tomamos como ponto de partida a análise do modo pelo qual dois coletivos derappers e realizadores audiovisuais vinculados a regiões periféricas de Lisboa e São Paulo se utilizam de uma variedade de ferramentas comunicativas tanto nos espaços urbanos quanto no ciberespaço.

Palavras-chave
juventudes; periferia; redes; tecnologias comunicativas

Abstract

This article aims to reflect upon the effects that have unfolded as a result of the relative democratization of access to digital media, especially in terms of the possibilities for economic and symbolic exchanges, among young people and residents of areas marked by processes of social precariousness in global metropolises. To this end, we analyze the way in which two collectives of rappers and audiovisual producers linked to peripheral regions of Lisbon and São Paulo make use of a variety of communication tools, both in urban spaces and in cyberspace.

Keywords
communication technologies; networks; outskirts; youths

Mobilidades, juventudes e economias culturais emergentes

O tema da mobilidade pode ser considerado um assunto clássico da literatura acadêmica sobre cidades. No entanto, nas últimas décadas, esse campo de discussão tem sido consideravelmente adensado pelos estudos voltados à reflexão sobre o avanço e a popularização das novas tecnologias de comunicação. Isso se deve ao fato de que o desenvolvimento dessas tecnologias e seu uso por parte, sobretudo, de grupos subalternizados, num contexto de intensa aceleração dos processos migratórios e crise dos Estados nacionais, tem favorecido a consolidação de verdadeiras esferas públicas diaspóricas, nas quais a cultura – vista na chave da “diferença” – passa a ser utilizada como instrumento/recurso na luta por reconhecimento e direitos (Agier, 19994 AGIER, M. L’invention de la ville. Paris: Archieves contemporaines, 1999., 20115 AGIER, M. Antropologia da cidade: lugares, situações, movimentos. São Paulo: Terceiro Nome, 2011.; Appadurai, 20056 APPADURAI, A. Après le colonialisme: les consequences culturelles de la globalisation. Paris: Payot, 2005.; Reyes, 201334 REYES, A. Vozes dos porões: a literatura periférica/marginal do Brasil. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2013.). Nesse cenário, onde a imaginação e a criatividade ganham verdadeira preponderância, as mídias tornam-se fontes inesgotáveis para a constituição de uma “reserva rica, sempre mutante de possíveis vidas” (Herzfeld, 201423 HERZFELD, M. Antropologia: prática teórica na cultura e na sociedade. Petrópolis: Vozes, 2014., p. 371) e isso não ocorre apenas na “nuvem”, para utilizar uma metáfora bastante atual.

A exemplo do que afirmam diversos autores (Carmo, 200910 CARMO, R. M. do. Do espaço abstrato ao espaço compósito: refletindo sobre as tensões entre mobilidade e espacialidade. In: CARMO, R. M. do; SIMÕES, J. A. (Org.). A produção das mobilidades: redes, espacialidades e trajetos. Lisboa: ICS, 2009. p. 41-55.; Castells, 201312 CASTELLS, M. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.; Cressell, 200914 CRESSELL, T. Seis temas na produção de mobilidades. In: CARMO, R. M. do; SIMÕES, J. A. (Org.). A produção das mobilidades: redes, espacialidades e trajetos. Lisboa: ICS, 2009. p. 25-40.; Haesbaert, 201022 HAESBAERT, R. O mito da desterritorialização: do fim dos territórios à multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.; Simões, 200937 SIMÕES, J. A. Redes, internet e hip-hop: redefinindo o espaço dos fluxos. In: CARMO, R. M. do; SIMÕES, J. A. (Org.). A produção das mobilidades: redes, espacialidades e trajetos. Lisboa: ICS, 2009. p. 71-89.), os processos de “desterritorialização” das relações e referências culturais, desencadeados pela globalização, tendem a estimular o surgimento de novas formas de representação e ocupação do espaço. Algo que nos leva à necessidade de uma percepção mais complexa e abrangente da noção de “território” (Haesbaert, 201022 HAESBAERT, R. O mito da desterritorialização: do fim dos territórios à multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.), que privilegie sua dimensão relacional. Conforme argumenta Carmo (200910 CARMO, R. M. do. Do espaço abstrato ao espaço compósito: refletindo sobre as tensões entre mobilidade e espacialidade. In: CARMO, R. M. do; SIMÕES, J. A. (Org.). A produção das mobilidades: redes, espacialidades e trajetos. Lisboa: ICS, 2009. p. 41-55., p. 45):

[…] considero que entre o anúncio da morte ou da sua resistência é possível conceber uma outra interpretação que tende a encarar o espaço social como algo mais complexo, passível de ultrapassar o vicioso destino dos lugares, que ora perecem ora teimam em permanecer. Na verdade […] com a globalização os lugares tendem a ultrapassar largamente o perímetro em que se circunscreve (e se inscreve) a sua materialidade. E, neste sentido, estes são constitutivos da própria globalização.

Para o autor, os lugares não devem ser entendidos como universos homogêneos e estanques, passíveis de serem traduzidos por meio de percepções dualistas do tipo global/local, pois se tratam de ambientes de “enrugamento”, produzidos a partir das fricções surgidas dos encontros entre distintas formas de percepção e uso dos mesmos.

Seguindo nessa discussão, é possível dizermos que a maior interconexão global possibilitou que músicas, costumes e estilos de vida atravessassem fronteiras numa velocidade nunca antes vista. A expansão dessa circulação de símbolos por circuitos transnacionais, porém, não implica uma homogeneização cultural, tampouco a perda dos sentidos locais, considerando-se que os mesmos não existem fora dos ambientes onde são consumidos (Abélès, 20121 ABÉLÈS, M. Anthropologie de la globalisation. Paris: Payot, 2012.).

A “heterogeneização do global” (Sansone, 200736 SANSONE, L. Negritude sem etnicidade: o local e o global nas relações raciais e na produção cultural negra do Brasil. Salvador: EDUFBA, 2007., p. 141) configurou novas oportunidades para as manifestações culturais locais ao aprofundar os processos de crioulização e hibridização, fruto da maior conscientização dos diferentes estilos de vida, símbolos, produtos e costumes no planeta. Assim, expressões culturais deixaram de ser determinadas pelas fronteiras nacionais, passando os recursos materiais e simbólicos a serem considerados “glocais” (Robertson, 199535 ROBERTSON, R. Glocalization: time-space and homogeneity-heterogeneity. In: FEATHERSTONE, M.; LASH, S.; ROBERTSON, R. (Ed.).Global modernities. London: Sage, 1995. p. 25-44.).

É o que nos mostra, por exemplo, o estudo de Simões (2009)37 SIMÕES, J. A. Redes, internet e hip-hop: redefinindo o espaço dos fluxos. In: CARMO, R. M. do; SIMÕES, J. A. (Org.). A produção das mobilidades: redes, espacialidades e trajetos. Lisboa: ICS, 2009. p. 71-89., sobre o uso da internet por parte de jovensrappers da periferia de Lisboa. Ao analisar as formas de interação on e off-line, tecidas por estes interlocutores, o autor aponta para o modo pelo qual, ao utilizarem o espaço virtual para reivindicarem a importância simbólica de seus pertencimentos territoriais – através da construção de sites especificamente voltados à apreciação das práticas vinculadas às culturas hip-hop regionais – simultaneamente alargam suas redes e expandem seus circuitos de sociabilidade. Desse modo, ao mesmo tempo em que desvinculam os processos e relações sociais de seus contextos imediatos, reafirmam e consolidam seus vínculos a esses lugares. Nas palavras do próprio pesquisador:

[…] a desterritorialização, e com esta a acessibilidade global, é acompanhada simultaneamente pela constante localização, com alusões explícitas e permanentes à realidade geográfica local. (Simões, 200937 SIMÕES, J. A. Redes, internet e hip-hop: redefinindo o espaço dos fluxos. In: CARMO, R. M. do; SIMÕES, J. A. (Org.). A produção das mobilidades: redes, espacialidades e trajetos. Lisboa: ICS, 2009. p. 71-89., p. 83).

Reyes (2013)34 REYES, A. Vozes dos porões: a literatura periférica/marginal do Brasil. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2013., em sua análise das redes de relações tecidas entre escritores e agentes culturais vinculados a áreas periféricas de São Paulo e Cidade do México chega a conclusões semelhantes, uma vez que aponta para o fato de que a identificação desses atores com as experiências decorrentes dos desdobramentos políticos, econômicos e sociais relacionados ao avanço das políticas neoliberais nos países latino-americanos fez com que os mesmos desenvolvessem um modo particular de conceptualização da noção de “periferia”, capaz de lançar todos na direção de um lugar comum. Esta “periferia” transnacional, por sua vez, vem possibilitando a organização de projetos que se convertem em deslocamentos e trocas materiais e simbólicas capazes de influenciar significativamente as práticas dos sujeitos privilegiados pela investigação, sem que os mesmos percam suas identidades e vínculos originários.

Pesquisas como essas, ao apontarem para o alargamento dos circuitos de sociabilidade e trocas culturais partilhados, sobretudo, por jovens vinculados a regiões marcadas por intensos processos de precarização, mostram que, para além das conexões artísticas já ressaltadas, tais vínculos tendem a estimular verdadeiros câmbios de conhecimento sobre o espaço urbano e os modos de administração política de suas fronteiras.

A posse de dispositivos tecnológicos e digitais por parte desses atores, portanto, parece estar influindo decisivamente no modo através do qual os mesmos passam a representar a alteridade e criticar certas categorias que tendem a estereotipá-los. Nas últimas décadas, muitos dos jovens associados a esses territórios têm se organizado em “coletivos”1 1 O que denominamos aqui como “coletivos” são pequenos agrupamentos, sem estrutura hierárquica e geralmente informais, os quais se constituem da junção de pessoas com certas afinidades, que se organizam, na maior parte das vezes, para realizarem intervenções simultaneamente estéticas e políticas em variados espaços urbanos, com o propósito de ressignificar simbolicamente o sentido social dos locais “ocupados”, que são quase sempre áreas de fronteira, marcadas por intensos processos de segregação. e lançado mão de uma série de ações artísticas e culturais com o objetivo, entre outros, de redefinir suas identidades, reclamar direitos e afirmar um modo específico de viver a juventude. Nesse sentido, vale ressaltar que a noção de “juventude”, do modo como compreendemos, não deve ser confundida com uma essência ou condição natural e universal do desenvolvimento humano, passível de ser resumida à situação etária, mas como uma “posição” a partir da qual as mudanças sociais e culturais podem ser experimentadas (Bourdieu, 20087 BOURDIEU, P. Cuestiones de sociología. Madrid: Istmo, 2008.; Feixa, 199917 FEIXA, C. De jóvenes, bandas y tribus. Barcelona: Ariel, 1999.; García Canclini; Cruces; Urteaga Castro Pozo, 201220 GARCÍA CANCLINI, N.; CRUCES, F.; URTEAGA CASTRO POZO, M. (Org.).Jóvenes, culturas urbanas y redes digitales. Barcelona: Ariel, 2012.; Pais, 200328 PAIS, J. M. Culturas juvenis. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2003.).

Se o ingresso na “vida adulta” estiver atrelado ao momento em que se consolida uma carreira e deixa-se a casa dos pais, por exemplo, é possível dizer que a noção de “juventude” se alargou consideravelmente num cenário de crise do mundo do trabalho, onde se vive cada vez mais de projetos curtos, sem garantia de direitos e a ideia de “futuro” é cada vez menos compreensível.

Em termos econômicos, as formas renovadas de intervenção artística e cultural, fundadas nas novas tecnologias e em processos colaborativos em rede, flexibilizam a noção industrial de copyright e proporcionam uma maior autonomia aos criadores em relação à indústria cultural. Mas é necessário reconhecer que tais facilidades não livram os produtores culturais, sobretudo aqueles menos privilegiados financeiramente, da instabilidade e precarização laboral. Ainda apoiando-nos na pesquisa dirigida por García Canclini, Cruces e Urteaga Castro Pozo (2012)20 GARCÍA CANCLINI, N.; CRUCES, F.; URTEAGA CASTRO POZO, M. (Org.).Jóvenes, culturas urbanas y redes digitales. Barcelona: Ariel, 2012., é de fácil constatação o fato de que a versatilidade no manejo de múltiplas técnicas e linguagens por parte das atuais gerações decorre, em certa medida, justamente desse processo de precarização e da necessidade de atuação simultânea em trabalhos diferentes e efêmeros.

Não por acaso, como mostra De Tommasi (2013 15 DE TOMMASI, L. Culturas de periferia: entre o mercado, os dispositivos de gestão e o agir político. Política & Sociedade, Florianópolis, v. 12, n. 23, p. 11-34, 2013. 201416 DE TOMMASI, L. Tubarões e peixinhos: histórias de jovens protagonistas. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 40, n. 2, p. 533-547, 2014.), as populações consideradas “jovens” e de “baixa renda” vêm se tornando alvo privilegiado de interesses e investimentos públicos e privados na abordagem e configuração da chamada “questão social”. Conforme aponta a autora, muitas ONGs e empresas envolvidas com projetos de “responsabilidade social” cumprem o papel de converter aqueles considerados como “jovens-problema” em “jovens-solução” e o fazem, em grande medida, “capacitando” esse “público-alvo” através de oficinas e cursos voltados à “arte e cultura”.

É dessa maneira que muitos desses jovens ingressam, ainda que sem nenhuma proteção jurídica, no mercado das chamadas “indústrias criativas”. Entretanto, o acúmulo de conhecimentos na manipulação de ferramentas tecnológicas e o surgimento de algumas políticas pautadas pelo princípio da chamada “cidadania cultural”2 2 Referimo-nos aqui a um modelo de fomento baseado numa referência mais ampla da noção de “cultura”, que não compreende o conceito como o resultado da ação de especialistas, mas, sim, como a experiência vinculada à produção de costumes, significados e valores por parte de qualquer população. Tal alargamento conceitual, por sua vez, amplia consideravelmente os perfis de sujeitos aptos a disputar os recursos culturais. Sobre essas políticas e sua diferença em relação aos modelos dominantes de financiamento cultural ver especialmente Lima e Ortellado (2013). também os permite, como já adiantamos, mobilizar projetos culturais autônomos com o propósito (político) de interpelarem a precarização cotidiana de suas vidas.

É essa última dimensão que procuraremos ilustrar nos limites deste artigo, tomando como base duas pesquisas etnográficas recentes (Aderaldo, 20133 ADERALDO, G. Reinventando a “cidade”: disputas simbólicas em torno da produção e exibição audiovisual de “coletivos culturais” em São Paulo. 2013. Tese (Doutorado em Antropologia)–Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013., Raposo, 201033 RAPOSO, O. “Tu és rapper, representa Arrentela, és Red Eyes Gang”. Sociabilidades e estilos de vida de jovens do subúrbio de Lisboa.Sociologia, Problemas e Práticas, Lisboa, n. 64, p. 127-147, 2010.), nas quais buscamos compreender as formas de sociabilidade e os intercâmbios culturais protagonizados por coletivos formados por jovens vinculados a áreas periféricas de São Paulo e Lisboa. Nosso objetivo será apontar para certas regularidades no modo como grupos juvenis de ambas as cidades forjam inovadores circuitos de sociabilidade, produção e consumo, passíveis de dar novos sentidos existenciais a si próprios e aos seus territórios de vivência. Observaremos a maneira através da qual os jovens representam o território onde vivem e pelo qual circulam, levando em conta as amplas diferenças sociodemográficas entre as populações vinculadas a áreas marginalizadas nos dois casos, uma vez que os contextos urbanos abordados demarcam situações bastante particulares.3 3 A proposta deste artigo não é comparar modelos urbanísticos, mas, tão somente, buscar regularidades nas práticas relacionadas ao uso das novas tecnologias comunicativas por parte de jovens vinculados a regiões urbanas marcadas por processos de precarização. Todavia devemos destacar algumas características relacionadas às especificidades demográficas e históricas de cada ambiente, com o intuito de enquadrar as diferenças e semelhanças quanto ao nível das desigualdades vividas por nossos interlocutores. Embora São Paulo e Lisboa sejam reconhecidamente consideradas como “cidades globais”, há uma evidente diferença de escala entre elas. Com quase 3 milhões de habitantes (Instituto Nacional de Estatística, 2014), a região metropolitana de Lisboa é muito menor que a de São Paulo, onde 20 milhões de moradores perfazem quase o dobro de toda a população portuguesa. Essa gigantesca diferença quantitativa certamente traz consequências nas mobilidades e formas de sociabilidade das suas respectivas populações, tal como complexifica as noções de “território”, “lugar” ou “metrópole”. Se a história urbana de São Paulo não pode ser dissociada dos processos migratórios (internos e externos), Lisboa e Portugal têm uma longa história no sentido contrário, ou seja, de emigração; embora desde a independência das antigas colônias tenham-se tornado também cidade e país de imigração. Vale ressaltar que a partir de 2008, com o despoletar da crise econômica mundial, as taxas de emigração cresceram substancialmente, especialmente da sua população juvenil. Só em 2013 e 2014, a taxa de emigração foi superior a 100 mil pessoas por ano (Pires, 2015). Assim, a superação do desemprego e das fronteiras segregadas, para muitos jovens da periferia de Lisboa, inclui também redes transnacionais familiares e de amizade espalhadas por toda a Europa. Já no caso de São Paulo, embora os níveis de desigualdade social sejam bastante superiores aos de Lisboa, é preciso enfatizar que a primeira década dos anos 2000 trouxe uma série de melhorias no tocante à qualidade de vida dos setores menos privilegiados. Como aponta Marques (2015), uma série de mudanças associadas a um período de intenso crescimento econômico e ao aparecimento de algumas políticas redistributivas tornou os bairros periféricos da capital paulista em ambientes mais heterogêneos e menos segregados, ao contrário do que vem ocorrendo nas regiões consideradas como núcleos residenciais da elite. Além disso, o perfil hegemônico das populações residentes dessas regiões não corresponde mais, como ocorreu nas décadas anteriores, à figura do migrante, que chegava à cidade em busca de trabalho. Trata-se de jovens nascidos e criados na cidade e que gozam de maiores possibilidades de consumo e circulação pelo espaço urbano.

Considerando esse quadro e as especificidades de cada caso, buscaremos, no decorrer do texto, debater como nossos interlocutores produzem formas renovadas de identificação e dão suporte a culturas juvenis, por vezes, subvertendo as dinâmicas de segregação urbana, do racismo, da pobreza e da violência. Problematizar usos e apropriações do espaço público, bem como alargar o espectro de análise dos sistemas de troca e dos processos de mobilidade desses agentes, serão outras das finalidades do presente artigo, que também pretende lançar algumas pistas de entendimento sobre a contribuição das redes digitais e dos novos dispositivos tecnológicos para a transformação da relação entre economia e cultura nas metrópoles contemporâneas.

A participação dos sujeitos pesquisados em variadas redes informais e associativas, como buscaremos tornar claro, funciona como um disparador de informação e conhecimento, estimulando seu fluxo pela cidade. Paralelamente, incita uma forma de “estar no mundo” que pode ser reorganizadora de suas posições, na medida em que potencializa a abertura de caminhos na direção de uma “cidadania insurgente” (Holston, 201324 HOLSTON, J. Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.) capaz de desconstruir as representações hegemônicas sobre si próprios e seus lugares de origem. É esse processo que buscaremos esclarecer por meio da análise dos casos que seguem.

Red Eyes Gang: (re)inventando a Arrentela

Red Eyes Gang4 4 O nome Red Eyes Gang é uma referência aos efeitos do cigarro de haxixe nos olhos de quem o fuma, tornando-os vermelhos. Fumar haxixe é uma prática usual entre esses jovens. é o nome de um dos maiores coletivos de rappers de Portugal, influente no circuitohip-hop5 5 O hip-hop é um movimento cultural urbano formado por quatro expressões artísticas: rap,djing (disc-jockey),break dance e grafite. por conta da qualidade e do caráter interventivo das suas músicas. Com idades que variam dos 16 aos 30 anos, os seus integrantes são jovens oriundos de camadas socialmente desfavorecidas, majoritariamente rapazes, negros e moradores da Arrentela, um bairro situado no Seixal, antiga cidade industrial da Região Metropolitana de Lisboa.6 6 A pesquisa sobre o Red Eyes Gang foi realizada entre 2005 e 2007 por um dos autores, Otávio Raposo (2007), no âmbito do mestrado em Antropologia Urbana. Dez anos após a entrada no “terreno”, o autor retomou o contato com antigos interlocutores para conhecer algumas das transformações ocorridas no grupo. Formado em 1995 a partir da emergência de várias bandas de rap na Arrentela – 187Squad, Kombanation, Defensores da Rua, Bronxiano e Revelasom foram os precursores –, o Red Eyes Gang corresponde a um grupo de amigos que faz das ruas do bairro o palco das suas vivências quotidianas, onde forjam estilos de vida próprios e sociabilidades inovadoras. É um grupo informal, não hierarquizado e sem rituais de admissão ou estratégias de ação relacionadas com práticas criminais, o que difere do significado de gangue atribuído por pesquisadores da Escola de Chicago.7 7 O uso da noção de gangue ganhou destaque nos estudos da Escola de Chicago na década de 1920, e é utilizada para designar uma organização com racionalidade instrumental e fins de mobilidade social entre os seus integrantes. Altamente hierarquizadas e com uma identificação a um território, as gangues costumam estar envolvidas com comportamentos violentos, e podem estar ligadas a atos de delinquência (Abramovay et al., 1999). Assim, o Red Eyes Gang deve ser encarado como umacrew8 8 Fortemente territorializadas, as crews correspondem a grupos de jovens que se reveem em práticas comuns e que se juntam sob o mesmo nome, partilhando um estilo de vida semelhante. derappers, resultado da afirmação da amizade no interior do grupo e do sentimento de pertença à Arrentela. A organização numa crewpossibilita, ainda, uma maior projeção das músicas dos jovens que a integram, constituindo-se como o emblema de uma identidade localmente construída.

A estigmatização do bairro, o estatuto social vulnerável dos seus habitantes e as más experiências relacionadas com o racismo, a violência policial e as dificuldades para conseguir a nacionalidade portuguesa9 9 Parte significativa dos jovens de origem africana tem dificuldade em aceder à nacionalidade portuguesa mesmo quando nascidos em Portugal, em consequência das limitações impostas pelo critério jus sanguinis. Ou seja, é preciso ser filho de português para a obtenção da nacionalidade portuguesa. A partir de 2006 houve uma flexibilização da lei, garantindo aos filhos de imigrantes nascidos em Portugal a nacionalidade desde que um de seus pais estivesse regularizado há, pelo menos, cinco anos (cf. Portugal, 2006). constituem algumas das dinâmicas centrais para a apreensão da vida social dessa camada juvenil. Se, num primeiro momento, Red Eyes Gang era um grupo restrito de jovens ligados ao rap – não chegava a 20 pessoas –, a relativa notoriedade de alguns músicos fez crescer a adesão dos jovens àcrew a partir dos anos 2000.10 10 O sucesso do rapper Chullage foi decisivo para o engajamento de mais jovens ao Red Eyes Gang. O seu primeiro disco Rapresálias.Sangue, lágrimas e suor, lançado em 2001, foi um dos grandes expoentes do hip-hopportuguês daquela altura, responsável por difundir o nome dacrew para norte e sul do país. Nos anos posteriores, mais de uma centena de jovens integravam o grupo, dos quais cerca de 40 estavam diretamente ligados à música rap. Composta principalmente por filhos de pais imigrantes de ex-colônias portuguesas na África,11 11 Embora os filhos de cabo-verdianos sejam maioritários, verifica-se uma ampla diversidade de origens nacionais entre os jovens negros que integram o coletivo: Angola, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe. as referências culturais africanas exercem uma importante influência nas expressões artísticas, estilísticas e identitárias desses jovens. Todavia, mais do que meras adaptações da herança cultural dos pais, importa ressaltar o caráter híbrido das suas manifestações culturais e rituais de esquina, resultado de uma socialização cosmopolita num contexto urbano europeu.12 12 Contrariamente a algumas análises essencialistas sobre as identidades dos jovens descendentes de imigrantes africanos, eles não estão preocupados em manter uma uniformidade étnica e cultural, pois as suas referências estão centradas na interação com outras populações e coletividades. O termo segunda geração de imigrantes é exemplar dessa perspectiva ao reificar a diferença étnica dos jovens nascidos e/ou criados em Portugal, ignorando a diversidade de seus percursos biográficos (Raposo, 2005). Não por acaso, a convivência estabelecida pelos jovens do grupo é amplamente misturada, não existindo separações nas suas sociabilidades consoante a cor da pele ou origens nacionais. Por isso, o Red Eyes Gang só faz sentido em ser pensado enquanto cultura juvenil sincrética eworking class, cujas referências africanas são valorizadas e reinventadas num ambiente intercultural.

As gírias e o uso do crioulo13 13 O crioulo é a língua falada no arquipélago de Cabo Verde e na Guiné-Bissau, cuja fonética tem várias semelhanças com o português e múltiplas variações internas. como língua corrente, tal como suas roupas, acessórios (bonés, brincos e cordões) e códigos de conduta (postura, gestos e atitudes) expressam um estilo de vida estruturado em torno de um imaginário associado ao hip-hop e das experiências que os jovens partilham nas ruas da Arrentela. A “cultura de rua” (Bourgois, 20108 BOURGOIS, P. En busca de respeto. Vendiendo crack en Harlen. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2010., p. 38) é basilar para o coletivo, enquadrando-se num contexto de resistência à exploração laboral e de desidentificação com as instituições de ensino.14 14 A escola não articula o seu programa pedagógico com as experiências dos jovens fora dos seus muros, o que a torna distante da realidade e dos anseios de grande parte dos seus alunos. Tanto as dificuldades e os desafios enfrentados pelos jovens no seu dia a dia como a riqueza das suas produções culturais (em que orap é apenas um exemplo) são ignorados ou, no mínimo, pouco aproveitados nas salas de aula. Para os filhos de imigrantes africanos tais questões são ainda mais prementes, dado que as referências culturais dos países de seus pais serem pouco valorizadas. Fechada em si mesma, a escola não promove uma adequada educação intercultural. A situação mais flagrante é a disciplina de História, na qual a ausência de referências positivas vindas de África torna o seu estudo frustrante para os jovens. Os seus antepassados são apresentados como escravos, meros objetos sem valor, fazendo da sua história um motivo de vergonha e não de orgulho. Valorizadora de um “ethos guerreiro” (Zaluar, 200439 ZALUAR, A. Violência, cultura e poder. In: CECCHETTO, F. R. (Org.). Violência e estilos de masculinidade. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2004. p. 7-33., p. 26), as sociabilidades do grupo são fortemente masculinizadas, o que é perceptível nas suas disposições corporais e performances. Quando cantam em showsou improvisam na rua, os seus rostos estão contraídos e os seus gestos exprimem rispidez e agressividade, prevalecendo uma “fachada grupal” (Pais, 200328 PAIS, J. M. Culturas juvenis. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2003., p. 115) com fortes ligações às concepções dominantes sobre a masculinidade. Esta, talvez, seja uma das razões principais para o reduzido número de mulheres entre os Red Eyes Gang.15 15 As mulheres que acedem aos rituais de esquina absorvem a estética masculinizada do Red Eyes Gang, patente na corporalidade, vestimenta e letras derap dos seus integrantes.

A música rap é a “alma” do grupo. Seus integrantes usufruem do estilo para desfrutar do tempo livre, interpretar a realidade à sua volta e gerar ações de visibilidade que denunciam o contexto de racismo e privação econômica em que estão inseridos. De fato, o rap promove a imagem dos jovens enquanto criadores ativos, pondo em causa os estereótipos de passividade e violência a que são sistematicamente associados. Nesse processo, reelaboram o significado de ser jovem (pobre e negro), formulando identidades positivas sobre si próprios que desafiam as visões hegemônicas sobre o seu lugar social. O rapabaixo realça bem a insatisfação ao estatuto social subalterno a que são relegados num país que os trata como cidadãos de “segunda classe”.

Koração lá e korpo ká em pretugal. Mentalmente enkkkarcerados ká em pretugal. Sem pão, mas kom veneno e armas p’ra morrermos em pretugal. Segregados p’ra ñ sermos ninguém em Portugal. (Pretugal, Chullage, 2005).

Participar no Red Eyes Gang passa pelo ato de representar a crew a que pertencem e o bairro em que vivem, quando se apropriam da arte, do esporte e da união para sobressaírem coletivamente do anonimato. Falar da Arrentela nas letras derap e mandar props16 16 É uma forma de agradecer, saudar ou identificar positivamente bandas, pessoas, bairros ou crews tidas como aliadas. Isso geralmente é realizado nos concertos ou na gravação de uma música, quando no meio de uma canção ou no seu intervalo o rapper identifica o nome daqueles que são importantes para ele. à crew, ir ashows para incentivar as bandas, fazer grafites com a sigla do grupo,17 17 As iniciais do nome da crew (REG) podem ser vistas pintadas em várias paredes do bairro, inclusive em outras partes da Região Metropolitana de Lisboa. gritar o nome do bairro após marcar um gol e defender o coletivo de ataques exteriores (tanto da polícia como de bairros rivais) são algumas das múltiplas maneiras de representar Red Eyes Gang. Os jovens da Arrentela aspiram a ser reconhecidos, comorappers, grafiteiros, jogadores de futebol, lutadores ou gângsteres18 18 Esta é uma expressão êmica e refere-se aos jovens que vivem de práticas ilícitas. de umacrew respeitada no “movimento hip-hop”, e por isso representar Red Eyes Gang é tão importante. Cantar rap é a prática por excelência desse ritual de identificação, quando rimam crônicas da vida que subvertem estereótipos e preconceitos. Por meio das suas canções, os jovens exaltam as qualidades da Arrentela e dos seus moradores, impulsionando uma boa imagem de cada um deles para além dos discursos que os representam negativamente. Nas suas músicas fica evidente que as ruas da Arrentela não são uma entidade passiva, e que os “quadros de interação local” (Costa, 199913 COSTA, A. F. Sociedade de bairro: dinâmicas sociais da identidade cultural. Oeiras: Celta, 1999.) permanecem importantíssimos na busca de identificações positivas e soluções adequadas aos problemas quotidianos.

Com mais de 900 mil visualizações no YouTube, o videoclipe O nosso bairro, do rapper Don Nuno,19 19 O referido videoclipe pode ser visualizado no seguinte endereço eletrônico:https://www.youtube.com/watch?v=CrNq7fBjW84. evidencia o profundo sentimento de pertença à Arrentela, vivido como um mundo relacional bem diferente do retratado pelas reportagens sensacionalistas da mídia convencional, onde novos códigos morais e estéticos são criados na perspectiva de quem sofre o estigma de viver num bairro mal-afamado.

Nós aqui temos o dom, é daqui que vem o som. Todos querem vir para aqui, porque isso aqui tá muito bom. Tudo aqui tem o seu nome: esquina, beco, ruela. Má fama não falta quando se fala ARRENTELA. Falam do que não sabem, nunca passaram por cá. Mas já que tu falas tanto quando passar levas um brá. Isto é Chakas, Red Eyes, Arrentela, Muay Thay. Por mais degradado que seja, esse bairro nunca cai. Eles só falavam, não se aproximavam. Porque o jornal e a TV só nos difamavam. Mas eles viram que não era bem assim. E agora acreditam mais em mim. O meu bairro é bonito também. Onde o pobre tem e o rico não tem. Orgulho do nosso bairro. Ooooh! Ooooh! (O nosso bairro, Don Nuno, 2012).

A intensa ligação ao território, porém, não impede que os jovens Red Eyes Gang integrem um circuito amplo de relações e trajetos que ultrapassa as fronteiras da Arrentela. Eles não estão isolados num enclave social alheio ao que se passa em Lisboa e no mundo à sua volta, pelo contrário. Ao cantarem em festas eshows no centro e em bairros da periferia de Lisboa, noutras cidades e até fora do país, intensificam o conhecimento sobre o espaço urbano e expandem as suas redes de amizade, uma forma de auferir reconhecimento e respeito fora da Arrentela.

Ao ter que cantar aqui e ali, conheces muito mais bairros, conheces muito mais gente. Eu acho que o rap te leva a sítios [locais] que não iria se não estivesse no rap, isto é uma verdade, leva-te a ter experiência que não terias se não estivesse norap, conhecer pessoas que não conhecerias. Depois osrappers de cada bairro vão se conhecendo, vão se espreitando, vão se interessando uns pelos outros também. (Chullage, 28 anos, entrevista em 2005).

Vinte anos após a emergência do Red Eyes Gang, as ruas da Arrentela deram lugar a uma outra geração de jovens. São eles os novos “donos do pedaço”, os atuais responsáveis por agitar a “bandeira” da crew. A trajetória para a vida adulta, com o aumento das responsabilidades daí decorrentes, significou, para a maior parte daqueles que estiveram na origem do coletivo, o abandono progressivo da produção artística e do tempo disponível para estar na rua. Uns casaram e tiveram filhos, tendo empregos mais ou menos estáveis. Outros foram presos (alguns deles continuam “de cana”), muitos emigraram para outros países europeus20 20 A emigração para outros países europeus foi a solução encontrada por muitos jovens Red Eyes Gang para lidar com os altos índices de desemprego, fruto do agravamento da crise econômica em Portugal. De fato, as ruas da Arretenela (e de outros bairros da periferia de Lisboa) já não reúnem tantos jovens como em anos anteriores, o que revela a intensificação do fenômeno da emigração juvenil na sociedade portuguesa. e uma minoria ainda para nastreet para conviver, embora não com a frequência de outrora.

Paralelamente, com a popularização das novas tecnologias, assistiu-se a uma transformação no modo como os jovens da Arrentela implementam os seus projetos musicais. A tremenda dificuldade que os rappers mais antigos tinham para adquirir os chamados beats – bases sonoras utilizadas na música rap – deixou de ser uma realidade. A maior intimidade da nova geração com as tecnologias mais recentes revela-se no grande número de produtores que hoje existe na Arrentela, iniciados desde novos nos programas dedicados à produção musical. Importa não ignorar o caminho percorrido pelosrappers mais velhos no sentido de colmatar as dificuldades de criação,21 21 A emergência da Khapaz – Associação Cultural de Jovens Afro Descendentes foi muito importante para os rappers da Arrentela aperfeiçoarem os conhecimentos sobre os programas de produção musical. A organização de váriosworkshops de hip-hop e a criação de um estúdio na associação permitiu aos jovens produzirem autonomamente os seus beats e gravarem as suas músicas, fortalecendo orap da Arrentela. Integrada no Escolhas, um programa governamental de âmbito nacional desenvolvido pelo Alto Comissariado para as Migrações (ACM), a Khapaz foi perdendo o antigo vigor à medida que se institucionalizava, pondo em causa a plena autonomia até então desfrutada. Para mais informações consultar: http://khapaz.org/index.php/. tal como a significativa diminuição dos custos atuais na aquisição de computadores e equipamentos sonoros. Não obstante, os estúdios, antes raros e de difícil acesso, multiplicaram-se dentro e fora do bairro, dando origem a um circuito independente de produção, distribuição e consumo que atua à margem da indústria discográfica.

Assim, a popularização do acesso aos meios digitais abriu novas oportunidades para os artistas periféricos (da Arrentela e demais bairros), que passaram a driblar o bloqueio da indústria cultural através de uma economia da cultura que faz das plataformas digitais – redes sociais, páginas web, YouTube – o modo privilegiado de difusão e venda das suas produções artísticas. As fronteiras que antes separavam os músicos amadores dos músicos profissionais se esbatem, perante uma revolução digital que diminui os custos de produção, ao mesmo tempo em que multiplica as possibilidades deles fazerem-se visíveis (Urteaga Castro Pozo, 201238 URTEAGA CASTRO POZO, M. De jóvenes contemporáneos: trendys, empreendedores y empresarios culturales. In: GARCÍA CANCLINI, N.; CRUCES, F.; URTEAGA CASTRO POZO, M. (Org.). Jóvenes, culturas urbanas y redes digitales. Barcelona: Ariel, 2012. p. 25-44.).

A proliferação de videoclipes entre os rappers da periferia de Lisboa demonstra a maior horizontalidade nas dinâmicas de “fazer cultura” advindas da irrupção tecnológica. Se há dez anos o sonho de qualquer rapperera gravar o próprio disco, uma oportunidade restrita a uma minoria, atualmente, a possibilidade de ter um bom videoclipe já não é tão remota, constituindo-se a forma privilegiada de divulgação dos seus trabalhos. A constante conexão das gerações mais novas às redes digitais, aliada à intensificação do poder da imagem na sociedade contemporânea, tornaram a linguagem audiovisual um recurso imprescindível para qualquer artista. A facilidade de acesso às câmeras digitais abriu novas oportunidades de inserção laboral para os jovens da periferia, conhecedores da estética hip-hop (alguns dos quais rappers), e cujos serviços depressa alcançaram uma qualidade profissional.

O videoclipe Sem mimos, protagonizado pela nova geração derappers Red Eyes Gang,22 22 O referido videoclipe pode ser visualizado no seguinte endereço eletrônico:https://www.youtube.com/watch?v=uCsjW7em_wE. é paradigmático desse fenômeno em Portugal. Com quase dois milhões de visualizações no YouTube, essa canção acaba por ter uma projeção (na internet) superior ao de muitos músicos consagrados no mercado.23 23 Essa cifra surpreende se tivermos em conta a população portuguesa – 10 milhões de habitantes –, e o fato de os seus trabalhos não serem divulgados pela grande mídia: rádio, televisão e grandes editoras.

A realização desse videoclipe ficou a cargo do rapper Don Nuno, membro do Red Eyes Gang, que atualmente tenta se afirmar profissionalmente como realizador audiovisual, ao trabalhar com músicos dentro e fora de Portugal. O caso de Don Nuno é revelador das mudanças estruturais trazidas pelas novas tecnologias, em que artistas independentes passam a ocupar um espaço antes inacessível na chamada indústria criativa.

A convergência cultural dos jovens da crew em torno dohip-hop, ao ser construída no âmbito “glocal” (Robertson, 199535 ROBERTSON, R. Glocalization: time-space and homogeneity-heterogeneity. In: FEATHERSTONE, M.; LASH, S.; ROBERTSON, R. (Ed.).Global modernities. London: Sage, 1995. p. 25-44.), proporciona um imaginário que extravasa as fronteiras de atuação quotidiana,24 24 O hip-hop é exemplar da maior complexidade das atuais práticas culturais, moldadas, simultaneamente, num contexto territorial local e num quadro global. A sua emergência é emblemática de uma nova era informacional (Castells, 2007), responsável por tornar as culturas urbanas bem mais difusas porque os seus elementos estilísticos (da música à moda) deixaram de estar cerceados por âmbitos nacionais ou referências locais (Feixa, 2011, p. 213). conferindo a sensação de eles pertencerem a uma prestigiada cultura transnacional. Nesse espaço de fronteiras fluidas, aderentes de extremidades opostas de Lisboa mesclam referências do contexto local e símbolos (materiais e imateriais) longínquos transmitidos via internet. Itinerários alternativos e pontes de sociabilidade e consumo são criados entre diferentes bairros periféricos da cidade, “numa espécie de expedição que reserva o centro da cidade para ocasiões especiais” (Fradique, 200319 FRADIQUE, T. Fixar o movimento: representações da música Rap em Portugal. Lisboa: Dom Quixote, 2003., p. 66).

Em estreita ligação com as novas tecnologias e meios digitais, portanto, os jovens Red Eyes Gang desenvolvem formas inovadoras de intervenção artística e cultural que invertem os fluxos convencionais organizados pelo poder instituído. Ao valorizarem as áreas marginalizadas da cidade através das suas músicas, transformam a vivência nesses espaços num elemento de prestígio, desestabilizando o campo de poder que privilegia o “centro” em detrimento da “periferia”. É verdade que as suas canções narram, principalmente, o quotidiano vivido nas bordas da cidade. No entanto, suas expressões musicais e estéticas não estão à margem do mercado e da sociedade, mas integradas na cena pública através de circuitos comunicativos que ousam romper com os tradicionais mecanismos de segregação que os querem sem voz e isolados nos ditos “territórios de pobreza”. Fenômeno semelhante àquele que veremos no caso seguinte, relacionado ao coletivo Cinescadão, na cidade de São Paulo.

Cinescadão: alargando a “periferia”

O coletivo Cinescadão formou-se no ano de 2007, a partir do encontro entre o estudante universitário e realizador audiovisual Flávio Galvão25 25 Flávio, que no período da pesquisa vivia com seu pai, serralheiro aposentado, no bairro de Lauzane Paulista – um bairro de classe média situado na área norte da cidade, ao lado de um grande complexo de favelas –, era estudante do curso de Letras na Universidade de São Paulo. Apaixonado por cinema e de perfil profundamente engajado, passou a dedicar-se à produção de vídeos sobre temas como segregação urbana, violação de direitos, entre outros que o conduziram a uma relação bastante próxima com diferentes movimentos de luta social na capital paulista. Além de produzir vídeos, ele também se envolveu com diferentes movimentos culturais da zona norte, entre os quais o coletivo Cinescadão. e os rappers do grupo CaGêBe (Cada Gênio do Beco)26 26 O grupo de rap CaGêBe, cuja formação original contou com as presenças de Cézar “Sotaque”, Shirley “Casa Verde”, DJ Paulinho e André “29”, atualmente conta apenas com os três primeiros integrantes, uma vez que “29” deixou o grupo pouco após a gravação do primeiro álbum, Lado beco, em 2007. Dos três membros atuais, dois deles, Cézar e Shirley, vivem na Favela do Peri, onde também atuam com o coletivo Cinescadão, conforme veremos. Em relação à escolaridade, apenas Cézar possui diploma de nível superior. O mesmo é formado em história numa universidade particular, onde obteve acesso a uma bolsa de estudos integral. em um cineclube que Flávio ajudava a coordenar na Favela do Sapo, situada na região norte de São Paulo, numa área marcada por profundas desigualdades sociourbanas.

Os contatos inicialmente estabelecidos no encontro desdobraram-se numa amizade, decorrente da afinidade entre os projetos audiovisuais de Flávio e as narrativas presentes nas letras das músicas dos rappers. E foi a partir de uma ideia de Cézar “Sotaque”, integrante do CaGêBe, que nasceu o projeto de “ocuparem” uma viela na Favela do Peri27 27 Situada na região norte, a Favela do Peri, assim como a Favela do Sapo, faz parte de um enorme complexo de favelas localizadas no entorno do Parque Estadual da Cantareira. onde este residia – cuja localização ficava em frente a uma grande escadaria, que deu origem ao nome “Cinescadão”28 28 A referida escadaria dava acesso à casa de Rodrigo “Roninha”, um amigo que sempre participava das atividades do coletivo. – para a realização de um evento cultural que envolvesse a integração entre as linguagens do audiovisual, do grafite e do rap.

Para cuidar da parte do grafite, convidaram outro morador da Favela do Peri: o artista Thiago “Go”, também conhecido como “Esbomgaroto” – devido ao nome utilizado na assinatura de suas pinturas – e, gradualmente, outras pessoas foram se somando, como colaboradores eventuais, nas atividades que passaram a ser promovidas pelo coletivo.

Duas dessas pessoas foram os realizadores audiovisuais Rica Saito e Valmir Rodrigues, mais conhecido como “Vras77”.29 29 Outras presenças marcantes eram os rappers Rogério “Batom” e Deivid “Brasilit”, além da educadora Renata Saito, irmã de Rica Saito, os quais sempre contribuíam com as ações do coletivo. Saito, que é formado na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) e dono da produtora Temporal Filmes, havia conhecido Flávio no período em que estudavam na universidade e frequentavam alguns dos mesmos espaços de sociabilidade; já Vras77, cujo aprendizado das técnicas audiovisuais se deu de forma autodidata, era velho conhecido dos integrantes do CaGêBe pelo fato de também residir na zona norte – mais especificamente no Jardim Eliza Maria30 30 O Jardim Eliza Maria é um bairro localizado no subdistrito de Brasilândia, zona norte do município de São Paulo. A região é caracterizada pela precária infraestrutura urbana e pelos acentuados índices de violência. –, ser rapper e dedicar-se à realização de videoclipes para uma série de grupos na cidade, com o auxílio de traquitanas como uma grua que ele próprio construiu a partir do uso de sobras de materiais encontradas em ferro-velho.31 31 Atualmente Vras77 vive da realização de videoclipes para grupos de todo o país. O reconhecimento da qualidade de seu trabalho, aliado aos baixos preços cobrados em comparação ao mercado (Vras77 cobra cerca de dois mil reais por videoclipe finalizado) explicam a razão desse sucesso. Uma reportagem sobre a trajetória e as atividades do realizador pode ser vista no seguinte endereço: https://www.youtube.com/watch?v=qCTw0Gn-IPw.

A junção de pessoas com origens sociais, graus de escolaridade e trajetórias tão diversas em torno de um mesmo núcleo, vinculado a um conjunto de favelas na zona norte de São Paulo, com destaque para a Favela do Peri, gerou oportunidades para que, a partir da soma de suas forças em processos colaborativos, os mesmos furassem certos bloqueios econômicos, normalmente impostos pelo mercado cultural dominante.

Saito e Vras77, juntamente com Flávio, por exemplo, auxiliaram em diversos filmes e vídeos que passaram a ser realizados pelo coletivo, inclusive nos videoclipes das músicas do CaGêBe, cujas letras sempre enfocavam temáticas políticas que refletiam acerca das vivências e experiências associadas às populações oriundas das regiões menos favorecidas da cidade. Tais videoclipes foram visualizados por milhares de pessoas em sites como o YouTube, o que ajudou o grupo a projetar-se profissionalmente, chegando inclusive a participar de programas televisivos32 32 Os rappers participaram em mais de uma edição do programaManos e Minas, exibido semanalmente na emissora TV Cultura. O vídeo de uma dessas apresentações pode ser visto em: https://www.youtube.com/watch?v=SJXtImEM1yo. e contar com a parceria dorapper Edi Rock, do grupo Racionais MCs,33 33 Fundado em 1988 por Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue e KL Jay, os Racionais MCs são considerados um dos grupos mais importantes da história do rapbrasileiro, não apenas pela originalidade sonora, mas pelo modo como suas letras foram capazes de traduzir os sentimentos da parcela menos privilegiada da juventude paulistana, sobretudo na década de 1990. em uma das faixas de seu disco mais recente,O vilarejo, lançado em 2011. Além disso, o material também costumava ser exibido nos eventos organizados pelo Cinescadão.

Entre os trabalhos mais conhecidos está o videoclipe da música “Oba! Clareou” (CaGêBe) que reconstitui a própria história do coletivo e das redes responsáveis por sua consolidação, como podemos ler no trecho destacado abaixo:

Vai dar trabalho sim. Quem falou que não daria trabalho é mentiroso. Comigo, a Shirley, o Go, Roninha e o Flávio. Valmir foi convidado pra filmar. Produção, direção, Valmir assina como Vras. Me lembro bem das palavras do KL Jay. “Vamos fazer a nossa, eu somo com vocês!” Muito louco na ideia, profundo no que disse. Perto do nada vai chegar se não tiver equipe. Batom dirige, põe a parati nos corre. Carapicuíba, do lado de lá corre o Pixote. Na zona norte, nós faz divulgação nos postes. Deu certo! “Imagens Periféricas”, o projeto. Modesto e visivelmente sério. É o bonde! Não aquele que aparece e some. Desde antes, ninguém aqui nasceu ontem. Tem uma data que a retomada foi microfonada. A gente se instala em curto espaço. Cada metro quadrado é conquistado, aproveitado. É o quarteirão que se amplia. Além das esquinas idealistas, aonde a gente realmente cria. Na frente das cortinas, Esbomgaroto pinta. Uma parede ganha vida! Clareou! Clareou! Há quanto tempo rezo pra chuva passar. Oba! Clareou! (Oba! Clareou, CaGêBe, 2011, grifo nosso).34 34 O referido videoclipe pode ser integralmente visualizado no seguinte endereço eletrônico: https://www.youtube.com/watch?v=xCK0xZR46II.

Na música e no vídeo, os rappers narram o modo como as trocas existentes nos vínculos colaborativos que deram origem ao Cinescadão possibilitaram a abertura de novos caminhos e perspectivas relacionadas à circulação de suas produções por diferentes espaços de consumo cultural e enunciação política. Destacam, igualmente, que o acesso às tecnologias comunicativas fortaleceu as oportunidades para um efetivo alargamento de suas redes e formas de mobilidade urbana.

Ao ser ilustrado como um núcleo conectado a outros núcleos e experiências espalhados pela cidade, portanto, o Cinescadão é representado na canção (e no videoclipe), como uma base capaz de fornecer as condições de possibilidade para a ressignificação da própria paisagem segregada de São Paulo, clareando, assim, o ambiente nublado, responsável por impedir a legibilidade das relações que marcam as fronteiras desta metrópole.

É importante destacar que entre 2009 e 2012, o coletivo obteve êxito na seleção de alguns editais públicos voltados ao apoio de iniciativas culturais protagonizadas por grupos não hegemônicos,35 35 Sobre essas políticas, ver o tópico inicial deste artigo. o que possibilitou a aquisição de equipamentos próprios (câmeras, projetor, caixas de som, tela de projeção, etc.) e a ampliação de suas interlocuções com outros movimentos e redes associativas, sobretudo, nas áreas social e urbanisticamente marginalizadas da cidade.

Os membros do Cinescadão, juntamente com outros coletivos locais, também se envolveram na criação de uma associação formal, denominada Associação Cultural Fabrica de Gênios, com o objetivo de captarem maiores recursos e disputarem editais voltados somente a instituições juridicamente constituídas. Pretendiam, com essa iniciativa, criar condições para fomentar projetos de maior alcance na região, bem como formas mais sólidas de atuação profissional no campo da cultura. Tais processos, porém, no momento da pesquisa – entre 2009 e 2012 – encontravam-se em sua fase inicial.

Os equipamentos do coletivo eram, eventualmente, utilizados de forma individual pelos integrantes em suas práticas profissionais independentes, uma vez que a maioria deles não possuía renda fixa, vivendo de pequenos serviços no campo da produção cultural e da função de “arte-educadores”, que costumavam exercer a partir de contratos curtos junto a distintas organizações sem fins lucrativos.

No tocante às práticas decorrentes de seu engajamento, cabe dizer que, mediante a relativa autonomia conquistada, os mesmos passaram a atuar de forma itinerante fazendo o que chamavam de “ocupações audiovisuais” em distintos ambientes.36 36 Inclusive em espaços como o edifício Mauá, que havia sido tomado por diferentes movimentos de luta por moradia na área central da cidade. Tais “ocupações” consistiam na tomada de diferentes espaços localizados em áreas precárias, sobretudo, na zona norte, para a realização de eventos que, a partir do vínculo entre as linguagens dorap, grafite e audiovisual, pudessem atribuir visibilidade pública a uma diversidade de questões relacionadas às problemáticas urbanas.

Um ponto característico dessa prática era a interdição do uso de “palcos” ou qualquer barreira física que pudesse gerar a impressão de uma separação entre aqueles que poderiam ser pensados como “artistas” e o restante da população, justamente para que esta não corresse o risco de ser entendida no papel passivo de “público espectador”. Tal método, discutido em encontros internos eventualmente promovidos pelos integrantes do coletivo, fazia com que os mesmos utilizassem a técnica do “microfone aberto”, para que qualquer um dos presentes pudesse se valer da palavra com o objetivo de cantar ou se pronunciar durante os eventos.

A ideia, ao transformar o território na grande atração das intervenções, conforme os próprios membros do Cinescadão costumavam dizer, era promover “rituais audiovisuais” com vistas a “provocar o inconsciente coletivo da cidade”. Lógica facilmente compreensível quando consideramos que, durante o período pesquisado, o coletivo se abastecia de vídeos que eram produzidos por uma diversidade de associações dedicadas à realização audiovisual politicamente engajada, integradas em torno de uma rede chamada Coletivo de Vídeo Popular (CVP).37 37 Para uma reflexão mais detalhada acerca desta rede ver Aderaldo (2013).

A supracitada rede havia nascido da necessidade que alguns jovens realizadores, oriundos de regiões periféricas de São Paulo e/ou engajados em distintos movimentos de luta popular, passaram a sentir de organizarem-se num espaço autônomo, com a finalidade de criarem um circuito de produção, exibição e distribuição de filmes dedicados à abordagem de temáticas que privilegiassem um olhar crítico da cidade e das questões urbanas. Desse modo, produziam filmes sobre assuntos como luta por moradia, falta de acesso a direitos, além de reconstituições biográficas de intelectuais, artistas e militantes populares, entre outros assuntos. Tais filmes eram distribuídos entre os integrantes da rede, para que fossem exibidos e debatidos em seus respectivos espaços de atuação e, posteriormente, tais experiências eram trocadas nas reuniões presenciais que faziam uma vez ao mês, ou pela lista dee-mails que possuíam na internet.

No caso do Cinescadão, era interessante notar como as mensagens presentes nos vídeos exibidos passavam a ser significativamente potencializadas quando sua projeção na tela – sempre adaptada a espaços situados em regiões marcadas por processos de precarização – era intercalada, durante as referidas “ocupações audiovisuais”, com a execução de músicas cujo conteúdo dialogava com os assuntos abordados. Durante a exibição de vídeos sobre temáticas como a luta por moradia, por exemplo, era frequente o uso de músicas como “Manhã seguinte”, do próprio grupo CaGêBe, de onde destacamos o trecho abaixo:

Lá vem o trem, sem freio e sem direção, destruindo lares, casas em construção. Coração disparou, lágrimas não parou, é um fim trágico, não terminou! Longe, bem distante, fora do alcance. Pra um lugar que eu nunca ouvi falar. Desnecessário, tratores que nos derrubaram. Poeira, o que restou pra mim? Madeira, fogueira, fumaça na estrada, avenida interditada. Briga, polícia intimida, na rua é o rapa, se afasta, recua, viatura, prefeitura, raiva, meia volta. Na revolta o troco me alimenta. O sustento eu garanto, meu adianto sou eu por mim, que fiz, eu entendi, me proibi. Por que me privar, trabalhar, quer se livrar. Cadeia me jogar nem pensar. Guerrear, sair na mão, multidão. O furacão a todo vapor a nosso favor. As câmera escondida, propina, fim da linha. Brava gente denuncia, paralisa. Negócios da China, Coreia, coreano, dominando enfeza, favela quebra-quebra, escorrega, levanta, esperança nas criança caçula a fortuna, de carroça na dificuldade, que dia quente, valente, salve os camelô, força, ratatá barracos, multiplicou. Formigueiro avassalador, periferia, na sintonia certa, Sem Terra, Sem Teto, treta… Lá vem o trem… Lá vem o trem… Lá vem o trem, destruindo, indo… indo… […]. (CaGêBe, 20069 CAGÊBE. Manhã seguinte. In: CAGÊBE. Lado beco. São Paulo: Equilíbrio Discos, 2006. 1 CD. Faixa 5.).

Como vemos, a letra da canção compõe um quadro audiovisual que busca inserir o ouvinte no movimento por trás das cenas descritas. As palavras são aglomeradas e vão colando-se umas às outras sem que para isso se adequem à estrutura gramatical, da mesma forma que os barracos das favelas surgem sem a necessidade de uma adequação à estrutura urbana. Na letra, dois modelos de “cidade” parecem confrontar-se. De um lado vemos a concepção conceitual, hegemônica e administrativa do termo, descrita sob a metáfora de um trem, que passa por cima de outra “cidade”, relacional, cuja presença é sentida na chave de uma experiência de “viração” (Gregori, 200021 GREGORI, M. F. Viração: experiências de meninos nas ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.), da “correria” por parte daqueles que não parecem ter sido beneficiados com o “direito a ter direitos”.

Assim, na música, a fronteira entre as regiões precárias – como favelas e ocupações – e as demais áreas urbanas revela-se não na ótica de uma divisão rígida entre mundos fixos e homogêneos, mas por meio de uma conexão que projeta a todos na direção de um universo comum de mediação que, por sua vez, opõe-se ao modelo urbanístico dominante, o qual cristaliza diferenças na medida em que entende a favela como um contexto totalmente apartado da “cidade legal”.

Dessa maneira, a “cidade” vai, ao longo da canção, perdendo a aparência sólida, normalmente revestida pelo verniz conceitual dos discursos “oficiais” e se desfaz, cedendo lugar às relações que marcam uma conjuntura de experiências violentas, vivenciadas por aqueles que cruzam cotidianamente suas fronteiras.

Logo, ao ser evocada com base na itinerância, a “periferia” representada na música do CaGêBe deixa de ser imaginada apenas como um território fixo (positiva ou negativamente valorizado), na medida em que parece estar em toda parte, seguindo na mesma velocidade da mobilidade das vítimas dos processos de segregação sociopolítica apresentados.

A observação in situ dos efeitos trazidos pela sobreposição de músicas e vídeos como os que foram mencionados de maneira brevíssima aqui, quando os mesmos eram projetados e cantados a plenos pulmões em espaços ilustrados com grafites, ao lado de um conjunto de pessoas direta ou indiretamente vinculadas às áreas periféricas da metrópole paulista, portanto, permitiu a constatação do fato de que, mais do que a “periferia”, era a própria “cidade” que os eventos promovidos pelo Cinescadão buscavam reconstituir simbolicamente.

O acesso às tecnologias digitais, por sua vez, foi o que possibilitou aos membros desse coletivo conectarem suas “ocupações audiovisuais” a uma série de outras experiências associativas com as quais partilhavam certos princípios, consolidando, assim, uma economia de trocas simbólicas capaz de configurar o desenvolvimento de novos circuitos e experiências profissionais, artísticas, bem como em termos de consumo cultural e representação política na cidade de São Paulo.

Considerações finais

O breve tratamento analítico dos dois casos abordados ao longo do presente artigo teve como objetivo apontar para o modo pelo qual a relativa democratização do acesso aos meios de produção digital tem facilitado a constituição de circuitos de trocas econômicas e simbólicas por parte de populações historicamente alijadas dos espaços hegemônicos de consumo cultural.

Se, por um lado, é preciso reconhecer que a maioria de nossos interlocutores – salvo raras exceções – não consegue ganhar a vida por meio das suas práticas artísticas e vive como trabalhadores precarizados, inclusive pelas chamadas “indústrias criativas”, trabalhando em pequenos projetos temporários, sem registro profissional e outras garantias laborais, por outro lado, também devemos considerar o fato de que suas habilidades no manejo de ferramentas tecnológicas e comunicativas têm criado condições para que possam atravessar múltiplas fronteiras, construindo, por meio de seus vínculos colaborativos, campos de interação e mobilidade ampliados.

Atentar para essas experiências torna-se fator importante na medida em que tal conduta nos permite superar determinadas estigmatizações identitárias, as quais buscam encerrar tais sujeitos nos limites de certos espaços geográficos reconhecidos como “periféricos”.

Assim, é correto dizer, portanto, que coletivos como o Red Eyes Gang e o Cinescadão nascem de contextos bastante específicos, onde constituem seus vínculos mais sólidos. Todavia, não podemos negligenciar os processos que ocorrem no momento em que transformam suas regiões de origem em cenários para videoclipes e letras derap. Isso porque, ao compartilharem suas criações emsites como o YouTube, assim como em discos e outros bens simbólicos que produzem colaborativamente, também abrem espaço para que outros atores oriundos de ambientes socialmente (e, em certos casos, economicamente) distintos possam se identificar com o modo pelo qual problematizam, a partir dessas bases locais, uma variedade de desigualdades urbanas às quais encontram-se submetidos. Dessa maneira, passam a conectar lugares como a Arrentela e a Favela do Peri a uma rede de outros territórios, através do modo pelo qual interpelam as relações de alteridade que atravessam a experiência urbana de quem vive à margem dos circuitos econômicos dominantes.

Contudo, embora se valham da ampla utilização de recursos tecnológicos, é no momento em que ocupam, por meio de suas práticas citadinas, os espaços urbanos, olhando-se nos olhos e reconhecendo-se como “parceiros”, que se constituem efetivamente como movimentos coletivos. É o que vemos no caso das “ocupações audiovisuais” organizadas pelo Cinescadão e dos eventos concretizados pelo Red Eyes Gang. Trata-se de momentos rituais que estimulam tanto a celebração de seus vínculos de pertencimento aos espaços dos quais se originam quanto a reafirmação de sua adesão aos coletivos que integram.

A “ocupação” dos espaços físicos da cidade também serve para que possam demonstrar criativamente seu desejo de reagir ao que percebem como sendo uma dominação cultural, urbanística e econômica, responsável pela violação dos direitos de uma parcela bastante significativa da população. Algo que Castells nos ajuda a compreender, ao analisar os chamados “movimentos sociais em rede”. Segundo este autor:

O espaço do movimento é sempre feito de uma interação do espaço dos fluxos na internet e nas redes de comunicação sem fio com o espaço dos lugares ocupados e dos prédios simbólicos visados em seus atos de protesto. Esse híbrido de cibernética e espaço urbano constitui um terceiro espaço, a que dou o nome de espaço da autonomia, porque só se pode garantir autonomia pela capacidade de se organizar no espaço livre das redes de comunicação; mas, ao mesmo tempo, ela pode ser exercida como força transformadora, desafiando a ordem institucional, disciplinar, ao reclamar o espaço da cidade para seus cidadãos. (Castells, 201312 CASTELLS, M. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013., p. 160-161, grifo nosso).

Dessas experiências “autônomas”, se desdobram reflexões e construções solidárias de projetos cujas dimensões são cada vez mais amplas, atingindo, em certos momentos, até mesmo extensões transnacionais. E é nessa interface entre as esferason e off-line que nossos sujeitos de pesquisa esforçam-se para superar a escassez de certos recursos materiais, econômicos e simbólicos.

Referências

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  • *
    Aproveitamos este espaço para agradecer especialmente à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp, processo nº 09/50153-2) e à Fundação para a Ciência e a Tecnologia (SFRH/BPD/94011/2013) pelo financiamento das pesquisas que dão lugar ao presente artigo.
  • 1
    O que denominamos aqui como “coletivos” são pequenos agrupamentos, sem estrutura hierárquica e geralmente informais, os quais se constituem da junção de pessoas com certas afinidades, que se organizam, na maior parte das vezes, para realizarem intervenções simultaneamente estéticas e políticas em variados espaços urbanos, com o propósito de ressignificar simbolicamente o sentido social dos locais “ocupados”, que são quase sempre áreas de fronteira, marcadas por intensos processos de segregação.
  • 2
    Referimo-nos aqui a um modelo de fomento baseado numa referência mais ampla da noção de “cultura”, que não compreende o conceito como o resultado da ação de especialistas, mas, sim, como a experiência vinculada à produção de costumes, significados e valores por parte de qualquer população. Tal alargamento conceitual, por sua vez, amplia consideravelmente os perfis de sujeitos aptos a disputar os recursos culturais. Sobre essas políticas e sua diferença em relação aos modelos dominantes de financiamento cultural ver especialmente Lima e Ortellado (2013)26 LIMA, L.; ORTELLADO, P. Da compra de produtos e serviços culturais ao direito de produzir cultura: análise de um paradigma emergente.Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 56, n. 2, p. 351-382, 2013..
  • 3
    A proposta deste artigo não é comparar modelos urbanísticos, mas, tão somente, buscar regularidades nas práticas relacionadas ao uso das novas tecnologias comunicativas por parte de jovens vinculados a regiões urbanas marcadas por processos de precarização. Todavia devemos destacar algumas características relacionadas às especificidades demográficas e históricas de cada ambiente, com o intuito de enquadrar as diferenças e semelhanças quanto ao nível das desigualdades vividas por nossos interlocutores. Embora São Paulo e Lisboa sejam reconhecidamente consideradas como “cidades globais”, há uma evidente diferença de escala entre elas. Com quase 3 milhões de habitantes (Instituto Nacional de Estatística, 201425 INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA. Tipologia socioeconómica das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto – 2011. Destaque: Informação à Comunicação Social, 24 jul. 2014. Disponível em: <https://www.ine.pt/ngt_server/attachfileu.jsp?look_parentBoui=219321110&att_display=n&att_download=y>. Acesso em: 29 abr. 2015.
    https://www.ine.pt/ngt_server/attachfile...
    ), a região metropolitana de Lisboa é muito menor que a de São Paulo, onde 20 milhões de moradores perfazem quase o dobro de toda a população portuguesa. Essa gigantesca diferença quantitativa certamente traz consequências nas mobilidades e formas de sociabilidade das suas respectivas populações, tal como complexifica as noções de “território”, “lugar” ou “metrópole”. Se a história urbana de São Paulo não pode ser dissociada dos processos migratórios (internos e externos), Lisboa e Portugal têm uma longa história no sentido contrário, ou seja, de emigração; embora desde a independência das antigas colônias tenham-se tornado também cidade e país de imigração. Vale ressaltar que a partir de 2008, com o despoletar da crise econômica mundial, as taxas de emigração cresceram substancialmente, especialmente da sua população juvenil. Só em 2013 e 2014, a taxa de emigração foi superior a 100 mil pessoas por ano (Pires, 201529 PIRES, R. P. Mais de 100 mil saídas pelo segundo ano consecutivo.Observatório da Emigração, 28 set. 2015. Disponível em: <http://www.observatorioemigracao.pt/np4/4581.html>. Acesso em: 16 out. 2015.
    http://www.observatorioemigracao.pt/np4/...
    ). Assim, a superação do desemprego e das fronteiras segregadas, para muitos jovens da periferia de Lisboa, inclui também redes transnacionais familiares e de amizade espalhadas por toda a Europa. Já no caso de São Paulo, embora os níveis de desigualdade social sejam bastante superiores aos de Lisboa, é preciso enfatizar que a primeira década dos anos 2000 trouxe uma série de melhorias no tocante à qualidade de vida dos setores menos privilegiados. Como aponta Marques (2015)27 MARQUES, E. Introdução – São Paulo: transformações heterogeneidades, desigualdades. In: MARQUES, E. (Org.). A metrópole de São Paulo no século XXI: espaços, heterogeneidades e desigualdades. São Paulo: Editora Unesp, 2015., uma série de mudanças associadas a um período de intenso crescimento econômico e ao aparecimento de algumas políticas redistributivas tornou os bairros periféricos da capital paulista em ambientes mais heterogêneos e menos segregados, ao contrário do que vem ocorrendo nas regiões consideradas como núcleos residenciais da elite. Além disso, o perfil hegemônico das populações residentes dessas regiões não corresponde mais, como ocorreu nas décadas anteriores, à figura do migrante, que chegava à cidade em busca de trabalho. Trata-se de jovens nascidos e criados na cidade e que gozam de maiores possibilidades de consumo e circulação pelo espaço urbano.
  • 4
    O nome Red Eyes Gang é uma referência aos efeitos do cigarro de haxixe nos olhos de quem o fuma, tornando-os vermelhos. Fumar haxixe é uma prática usual entre esses jovens.
  • 5
    O hip-hop é um movimento cultural urbano formado por quatro expressões artísticas: rap,djing (disc-jockey),break dance e grafite.
  • 6
    A pesquisa sobre o Red Eyes Gang foi realizada entre 2005 e 2007 por um dos autores, Otávio Raposo (2007)32 RAPOSO, O. Representa Red Eyes Gang: das redes de amizade ao hip hop. 2007. Dissertação (Mestrado em Antropologia Urbana)–ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa, Lisboa, 2007., no âmbito do mestrado em Antropologia Urbana32 RAPOSO, O. Representa Red Eyes Gang: das redes de amizade ao hip hop. 2007. Dissertação (Mestrado em Antropologia Urbana)–ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa, Lisboa, 2007.. Dez anos após a entrada no “terreno”, o autor retomou o contato com antigos interlocutores para conhecer algumas das transformações ocorridas no grupo.
  • 7
    O uso da noção de gangue ganhou destaque nos estudos da Escola de Chicago na década de 1920, e é utilizada para designar uma organização com racionalidade instrumental e fins de mobilidade social entre os seus integrantes. Altamente hierarquizadas e com uma identificação a um território, as gangues costumam estar envolvidas com comportamentos violentos, e podem estar ligadas a atos de delinquência (Abramovay et al., 19992 ABRAMOVAY, M. et al. Gangues, galeras, chegados e rappers: juventude, violência e cidadania nas cidades da periferia de Brasília. Rio de Janeiro: Garamond, 1999.).
  • 8
    Fortemente territorializadas, as crews correspondem a grupos de jovens que se reveem em práticas comuns e que se juntam sob o mesmo nome, partilhando um estilo de vida semelhante.
  • 9
    Parte significativa dos jovens de origem africana tem dificuldade em aceder à nacionalidade portuguesa mesmo quando nascidos em Portugal, em consequência das limitações impostas pelo critério jus sanguinis. Ou seja, é preciso ser filho de português para a obtenção da nacionalidade portuguesa. A partir de 2006 houve uma flexibilização da lei, garantindo aos filhos de imigrantes nascidos em Portugal a nacionalidade desde que um de seus pais estivesse regularizado há, pelo menos, cinco anos (cf. Portugal, 2006)30 PORTUGAL. Decreto-Lei n.º 237-A/2006, de 14 de Dezembro. Lisboa, 2006. Disponível em: <http://www.irn.mj.pt/sections/irn/legislacao/docs-legislacao/decreto-lei-237-a-2006/downloadFile/file/DL_237a-2006.pdf?nocache=1201699362.99>. Acesso em: 29 abr. 2015.
    http://www.irn.mj.pt/sections/irn/legisl...
    .
  • 10
    O sucesso do rapper Chullage foi decisivo para o engajamento de mais jovens ao Red Eyes Gang. O seu primeiro disco Rapresálias.Sangue, lágrimas e suor, lançado em 2001, foi um dos grandes expoentes do hip-hopportuguês daquela altura, responsável por difundir o nome dacrew para norte e sul do país. Nos anos posteriores, mais de uma centena de jovens integravam o grupo, dos quais cerca de 40 estavam diretamente ligados à música rap.
  • 11
    Embora os filhos de cabo-verdianos sejam maioritários, verifica-se uma ampla diversidade de origens nacionais entre os jovens negros que integram o coletivo: Angola, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe.
  • 12
    Contrariamente a algumas análises essencialistas sobre as identidades dos jovens descendentes de imigrantes africanos, eles não estão preocupados em manter uma uniformidade étnica e cultural, pois as suas referências estão centradas na interação com outras populações e coletividades. O termo segunda geração de imigrantes é exemplar dessa perspectiva ao reificar a diferença étnica dos jovens nascidos e/ou criados em Portugal, ignorando a diversidade de seus percursos biográficos (Raposo, 200531 RAPOSO, O. Sociabilidades juvenis em contexto urbano: um olhar sobre alguns jovens do bairro Alto da Cova da Moura. Fórum Sociológico, Lisboa, n. 13-14 (2ª Série), p. 151-170, 2005.).
  • 13
    O crioulo é a língua falada no arquipélago de Cabo Verde e na Guiné-Bissau, cuja fonética tem várias semelhanças com o português e múltiplas variações internas.
  • 14
    A escola não articula o seu programa pedagógico com as experiências dos jovens fora dos seus muros, o que a torna distante da realidade e dos anseios de grande parte dos seus alunos. Tanto as dificuldades e os desafios enfrentados pelos jovens no seu dia a dia como a riqueza das suas produções culturais (em que orap é apenas um exemplo) são ignorados ou, no mínimo, pouco aproveitados nas salas de aula. Para os filhos de imigrantes africanos tais questões são ainda mais prementes, dado que as referências culturais dos países de seus pais serem pouco valorizadas. Fechada em si mesma, a escola não promove uma adequada educação intercultural. A situação mais flagrante é a disciplina de História, na qual a ausência de referências positivas vindas de África torna o seu estudo frustrante para os jovens. Os seus antepassados são apresentados como escravos, meros objetos sem valor, fazendo da sua história um motivo de vergonha e não de orgulho.
  • 15
    As mulheres que acedem aos rituais de esquina absorvem a estética masculinizada do Red Eyes Gang, patente na corporalidade, vestimenta e letras derap dos seus integrantes.
  • 16
    É uma forma de agradecer, saudar ou identificar positivamente bandas, pessoas, bairros ou crews tidas como aliadas. Isso geralmente é realizado nos concertos ou na gravação de uma música, quando no meio de uma canção ou no seu intervalo o rapper identifica o nome daqueles que são importantes para ele.
  • 17
    As iniciais do nome da crew (REG) podem ser vistas pintadas em várias paredes do bairro, inclusive em outras partes da Região Metropolitana de Lisboa.
  • 18
    Esta é uma expressão êmica e refere-se aos jovens que vivem de práticas ilícitas.
  • 19
    O referido videoclipe pode ser visualizado no seguinte endereço eletrônico:https://www.youtube.com/watch?v=CrNq7fBjW84.
  • 20
    A emigração para outros países europeus foi a solução encontrada por muitos jovens Red Eyes Gang para lidar com os altos índices de desemprego, fruto do agravamento da crise econômica em Portugal. De fato, as ruas da Arretenela (e de outros bairros da periferia de Lisboa) já não reúnem tantos jovens como em anos anteriores, o que revela a intensificação do fenômeno da emigração juvenil na sociedade portuguesa.
  • 21
    A emergência da Khapaz – Associação Cultural de Jovens Afro Descendentes foi muito importante para os rappers da Arrentela aperfeiçoarem os conhecimentos sobre os programas de produção musical. A organização de váriosworkshops de hip-hop e a criação de um estúdio na associação permitiu aos jovens produzirem autonomamente os seus beats e gravarem as suas músicas, fortalecendo orap da Arrentela. Integrada no Escolhas, um programa governamental de âmbito nacional desenvolvido pelo Alto Comissariado para as Migrações (ACM), a Khapaz foi perdendo o antigo vigor à medida que se institucionalizava, pondo em causa a plena autonomia até então desfrutada. Para mais informações consultar: http://khapaz.org/index.php/.
  • 22
    O referido videoclipe pode ser visualizado no seguinte endereço eletrônico:https://www.youtube.com/watch?v=uCsjW7em_wE.
  • 23
    Essa cifra surpreende se tivermos em conta a população portuguesa – 10 milhões de habitantes –, e o fato de os seus trabalhos não serem divulgados pela grande mídia: rádio, televisão e grandes editoras.
  • 24
    O hip-hop é exemplar da maior complexidade das atuais práticas culturais, moldadas, simultaneamente, num contexto territorial local e num quadro global. A sua emergência é emblemática de uma nova era informacional (Castells, 200711 CASTELLS, M. A Era da Informação: economia, sociedade e cultura: vol. 1: a sociedade em rede, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007.), responsável por tornar as culturas urbanas bem mais difusas porque os seus elementos estilísticos (da música à moda) deixaram de estar cerceados por âmbitos nacionais ou referências locais (Feixa, 201118 FEIXA, C. Tarzan, Peter Pan, Blade Runner: relatos juvenis na era global. In: PAIS, J. M.; BENDIT, R.; FERREIRA, V. (Org.). Jovens e rumos. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2011. p. 203-222., p. 213).
  • 25
    Flávio, que no período da pesquisa vivia com seu pai, serralheiro aposentado, no bairro de Lauzane Paulista – um bairro de classe média situado na área norte da cidade, ao lado de um grande complexo de favelas –, era estudante do curso de Letras na Universidade de São Paulo. Apaixonado por cinema e de perfil profundamente engajado, passou a dedicar-se à produção de vídeos sobre temas como segregação urbana, violação de direitos, entre outros que o conduziram a uma relação bastante próxima com diferentes movimentos de luta social na capital paulista. Além de produzir vídeos, ele também se envolveu com diferentes movimentos culturais da zona norte, entre os quais o coletivo Cinescadão.
  • 26
    O grupo de rap CaGêBe, cuja formação original contou com as presenças de Cézar “Sotaque”, Shirley “Casa Verde”, DJ Paulinho e André “29”, atualmente conta apenas com os três primeiros integrantes, uma vez que “29” deixou o grupo pouco após a gravação do primeiro álbum, Lado beco, em 2007. Dos três membros atuais, dois deles, Cézar e Shirley, vivem na Favela do Peri, onde também atuam com o coletivo Cinescadão, conforme veremos. Em relação à escolaridade, apenas Cézar possui diploma de nível superior. O mesmo é formado em história numa universidade particular, onde obteve acesso a uma bolsa de estudos integral.
  • 27
    Situada na região norte, a Favela do Peri, assim como a Favela do Sapo, faz parte de um enorme complexo de favelas localizadas no entorno do Parque Estadual da Cantareira.
  • 28
    A referida escadaria dava acesso à casa de Rodrigo “Roninha”, um amigo que sempre participava das atividades do coletivo.
  • 29
    Outras presenças marcantes eram os rappers Rogério “Batom” e Deivid “Brasilit”, além da educadora Renata Saito, irmã de Rica Saito, os quais sempre contribuíam com as ações do coletivo.
  • 30
    O Jardim Eliza Maria é um bairro localizado no subdistrito de Brasilândia, zona norte do município de São Paulo. A região é caracterizada pela precária infraestrutura urbana e pelos acentuados índices de violência.
  • 31
    Atualmente Vras77 vive da realização de videoclipes para grupos de todo o país. O reconhecimento da qualidade de seu trabalho, aliado aos baixos preços cobrados em comparação ao mercado (Vras77 cobra cerca de dois mil reais por videoclipe finalizado) explicam a razão desse sucesso. Uma reportagem sobre a trajetória e as atividades do realizador pode ser vista no seguinte endereço: https://www.youtube.com/watch?v=qCTw0Gn-IPw.
  • 32
    Os rappers participaram em mais de uma edição do programaManos e Minas, exibido semanalmente na emissora TV Cultura. O vídeo de uma dessas apresentações pode ser visto em: https://www.youtube.com/watch?v=SJXtImEM1yo.
  • 33
    Fundado em 1988 por Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue e KL Jay, os Racionais MCs são considerados um dos grupos mais importantes da história do rapbrasileiro, não apenas pela originalidade sonora, mas pelo modo como suas letras foram capazes de traduzir os sentimentos da parcela menos privilegiada da juventude paulistana, sobretudo na década de 1990.
  • 34
    O referido videoclipe pode ser integralmente visualizado no seguinte endereço eletrônico: https://www.youtube.com/watch?v=xCK0xZR46II.
  • 35
    Sobre essas políticas, ver o tópico inicial deste artigo.
  • 36
    Inclusive em espaços como o edifício Mauá, que havia sido tomado por diferentes movimentos de luta por moradia na área central da cidade.
  • 37
    Para uma reflexão mais detalhada acerca desta rede ver Aderaldo (2013)3 ADERALDO, G. Reinventando a “cidade”: disputas simbólicas em torno da produção e exibição audiovisual de “coletivos culturais” em São Paulo. 2013. Tese (Doutorado em Antropologia)–Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Jun 2016

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2015
  • Aceito
    05 Out 2015
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - IFCH-UFRGS UFRGS - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Av. Bento Gonçalves, 9500 - Prédio 43321, sala 205-B, 91509-900 - Porto Alegre - RS - Brasil, Telefone (51) 3308-7165, Fax: +55 51 3308-6638 - Porto Alegre - RS - Brazil
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