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A fixação e a transitoriedade do gênero molecular* * Agradeço os/as pareceristas anônimos/as pela leitura atenta e as valorosas contribuições, que de outro modo teriam passado despercebidas.

The fixation and transience of the molecular gender

Resumo

Este artigo visa refletir sobre o papel dos hormônios ditos sexuais como alicerces de uma visão binária do gênero. Através da análise de dois manuais de ciências básicas adotados com frequência no ensino de graduação em saúde no Brasil (Fisiologia, de Berne et al., e As bases farmacológicas da terapêutica, de Goodman e Gilman), é possível demonstrar uma permanência da concepção dos hormônios sexuais como mensageiros químicos do gênero, num processo que confere características estereotípicas de masculinidade e feminilidade às próprias moléculas. Com isso, pretendo colaborar na discussão acerca dos limites entre natureza e cultura nas descrições do funcionamento do corpo biomédico num nível molecular, além de explicitar o mito de neutralidade científica característico desse campo do conhecimento.

Palavras-chave
ciência; corpo; gênero; hormônios sexuais

Abstract

This article discusses the role of so-called sex hormones as foundations of a binary view of gender. Based on the analysis of two frequently used basic science textbooks used in health undergraduate education in Brazil (Physiology, by Berne et al., and The pharmacological basis of therapeutics, by Goodman and Gilman), it is possible to demonstrate the permanence of a concept of sex hormones as chemical messengers of gender, in a process that gives stereotypical characteristics of masculinity and femininity to the molecules themselves. Thus, I want to collaborate in the discussion about the boundaries between nature and culture in the descriptions of the biomedical body’s functioning on a molecular level, and to explicit the myth of scientific neutrality characteristic of this field of knowledge.

Keywords
body; gender; science; sex hormones

Introdução

A guerra química entre os hormônios masculinos e femininos é como se fosse uma miniatura química da já conhecida guerra eterna entre homens e mulheres.

Paul de Kruif

O presente artigo pretende refletir sobre o papel dos principais hormônios ditos sexuais (o estrogênio e a testosterona) na sedimentação daquela que já foi apontada como a diferença mais básica entre seres humanos – ser anatômica e funcionalmente homem ou mulher. E, por mais que se suponha uma relativa obviedade nessa diferença, as características que podem ser consideradas de fato masculinas ou femininas são alvos constantes de intensas discussões, e servem – como a diferença em si – a finalidades políticas, econômicas e sociais, muito mais do que apenas a uma definição científica (Laqueur, 200111 LAQUEUR, T. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.; Oudshoorn, 199418 OUDSHOORN, N. Beyond the natural body: an archeology of sex hormones. London: Routlegde, 1994.; Rohden, 200819 ROHDEN, F. O império dos hormônios e a construção da diferença entre os sexos. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 15, supl., p. 133-152, jun. 2008.). Na tentativa de problematizar a naturalização da diferença sexual subjacente à teoria hormonal do corpo, analiso manuais de fisiologia e farmacologia, no sentido de demonstrar como, por mais que afirmem claramente que a masculinidade e a feminilidade não são definidas apenas hormonalmente, tais manuais acabam por reiterar a diferença sexual de maneiras mais sutis.

Discutir essa naturalização através dos manuais pode ser bastante estratégico. Segundo Fabíola Rohden (200819 ROHDEN, F. O império dos hormônios e a construção da diferença entre os sexos. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 15, supl., p. 133-152, jun. 2008., p. 145), “[o] tema da criação dos hormônios tem sido […] extremamente poderoso em sua capacidade de nos fazer refletir sobre a ciência […] e sobre as relações de gênero”, e questionar os discursos sobre os corpos sexuados “por dentro” da própria biologia foi um caminho muito profícuo para a teoria crítica feminista. Essa passagem para o interior das ciências biológicas foi essencial para um avanço do pensamento feminista, ao questionar a clivagem entre sexo (biológico) e gênero (cultural), tão cara à teoria feminista num primeiro momento.1 1 Várias autoras poderiam ser citadas aqui, além das que utilizo ao longo do artigo. Dentre elas, destaco Anne Fausto-Sterling (2001), Londa Schiebinger (1987), Ruth Bleier (1997), Ruth Hubbard (1990), entre outras. Como apontado por Nelly Oudshoorn (1994)18 OUDSHOORN, N. Beyond the natural body: an archeology of sex hormones. London: Routlegde, 1994., com a segunda onda feminista nos anos 1970, o determinismo biológico passou a ser duramente criticado. Entretanto, ao invés de questionar a existência de um corpo “natural” defendida pela biomedicina, e o caráter de verdade absoluta intrínseco às formulações desse campo do saber, as feministas se voltam para as ciências sociais. É criada a categoria “gênero”, um conjunto de atributos adquiridos pela socialização, em oposição à categoria “sexo”, que seriam as diferenças inatas, biológicas, expressas em termos anatômicos, hormonais ou cromossômicos.

Nessa perspectiva, o corpo em si permanecia intocável, protegido pelo determinismo biológico, refratário a qualquer relativização. É com os trabalhos das chamadas “feministas biólogas” que o próprio “sexo” passa a ser criticado, expondo como aquilo que soava como inegavelmente natural era também balizado por pressupostos culturais. É portanto nessa direção que se volta este artigo, buscando explicitar como, de maneira quase imperceptível, as ciências mais “moleculares” irão corroborar e sustentar um paradigma binário de diferença sexual.

Para contextualizarmos esse raciocínio, é interessante recuar um pouco no tempo e entender como o corpo passa a ser concebido a partir de um determinado momento histórico. Segundo David Le Breton (2011)13 LE BRETON, D. Antropologia do corpo e modernidade. Petrópolis: Vozes, 2011., é em torno do século XVIII que o corpo se torna “fechado”, estabelecendo um limite entre o indivíduo e seu exterior. Em consonância com a obra de Louis Dumont (1992)4 DUMONT, L. Homo hierarchicus: o sistema de castas e suas implicações. São Paulo: EDUSP, 1992., o autor afirma que essa seria uma característica do corpo moderno, individualizado, e pressupõe uma ideia de corpo-invólucro, contendo uma essência do humano dentro de si e rompendo com a transcendência dos períodos anteriores e o “holismo” das sociedades hierárquicas. Essa mudança epistêmica teria inaugurado a ideia de ter um corpo, e não ser um corpo. Ao dessacralizar o corpo, em certa medida reduzindo-o a uma embalagem que pode ser alterada, ou, como coloca Le Breton (2011)13 LE BRETON, D. Antropologia do corpo e modernidade. Petrópolis: Vozes, 2011., a uma máquina que pode e deve ser consertada (e aprimorada), abrem-se as portas do corpo a um olhar mecanicista, preocupado em desvendar seu funcionamento.

Para Thomas Laqueur (2001)11 LAQUEUR, T. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001., seria a partir dessa mudança ontológica na visão do corpo que a diferença sexual deixa de ser entendida em termos de uma hierarquização entre os sexos (o “modelo do sexo único”, que coloca o homem no ápice da evolução) e passa por uma radical separação de corpos masculinos e femininos, considerados complementares e incomensuráveis (o “modelo dos dois sexos”). Nesse processo, a diferença sexual se estabelece no (e é explicitada pelo) corpo, sendo, portanto, natural e imutável. Assim, os comportamentos e atitudes considerados característicos de homens e mulheres o são pela própria fisiologia desses corpos, contrastando com a noção anterior que descrevia o oposto, ou seja, que o gênero (considerado determinante de comportamentos e atitudes) era o fenômeno primário em relação à conformação dos corpos.2 2 Basta lembrar o famoso caso da menina que, ao correr atrás do porco, vê seus órgãos sexuais “descerem”, tornando-se, então, menino. Tal exemplo demonstra bem a plasticidade dos corpos à época. Ver Laqueur (2001). O corpo e o sexo eram ainda epifenômenos, enquanto o gênero, a categoria cultural, era real. “Ser homem ou mulher era manter uma posição social, um lugar na sociedade, assumir um papel cultural, não ser organicamente um ou o outro de dois sexos incomensuráveis […] o sexo antes do século XVIII era ainda uma categoria sociológica e não ontológica” (Laqueur, 200111 LAQUEUR, T. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001., p. 19).

Mas o que justificava anatomicamente esse modelo de dois sexos? Exatamente onde no(s) corpo(s) estaria o fator de diferenciação? Essa pergunta é respondida de diversas formas, de acordo com os caminhos que o pensamento científico vai tomando a partir do século XVIII. Dessa forma, a diferença já esteve nos ossos, nos músculos e nos “nervos”, para citar alguns exemplos (Schiebinger, 198722 SCHIEBINGER, L. Skeletons in the closet: the first illustrations of female skeleton in eighteenth-century anatomy. In: GALLAGUER, C. (Ed.). Making of the modern body. Berkeley: University of California Press, 1987. p. 42-82.). Atualmente, parece estar no cérebro, como bem demonstrado na pesquisa de Marianne van den Wijngaard (1997)23 WIJNGAARD, M. Reinventing the sexes: the biomedical construction of femininity and masculinity. Bloomington: Indiana University Press, 1997. e de Marina Nucci (2010)17 NUCCI, M. F. Hormônios pré-natais e a idéia de sexo cerebral: uma análise das pesquisas biomédicas sobre gênero e sexualidade. 2010. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva)–Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010..3 3 Paula Sandrine Machado (2005, p. 263), analisando o processo de decisão do sexo de bebês intersexo, também percebe essa “busca incessante para saber onde, afinal, inscreve-se a diferença entre os sexos. É nesse sentido que, nas classificações médicas, o sexo é percebido como impresso em diferentes níveis – molecular, cromossômico, gonadal, hormonal e psicológico – sendo que a construção anatômica aparece como a última etapa de um processo onde se procura realinhar o corpo com a natureza de um sexo que já o habita.” Mas o que parece ter afinal respondido essa pergunta, e que se mantém como “verdade” até os dias atuais, é que a diferença se dá num nível hormonal.

Moléculas generificadas

O primeiro uso do termo “hormônio” foi em 1905, por Ernest H. Starling, professor de fisiologia na University College de Londres, seguindo uma mudança de paradigma na fisiologia onde a regulação nervosa, explicação quase universal até então, foi substituída pela ideia de regulação química.4 4 David Healy (1997) argumenta que essa substituição de “regulações” é fortemente influenciada pelo desenvolvimento da química orgânica em torno desse período. No caso, os mensageiros químicos que se originam nas gônadas (testículos e ovários)5 5 É necessário marcar que a testosterona e outros androgênios (descritos nas seções seguintes do artigo) também são produzidos na zona reticular das glândulas adrenais, porém, em menor quantidade do que nas gônadas. Como os manuais analisados separam as gônadas e as adrenais em diferentes capítulos, deixarei de lado essa produção. foram chamados hormônios sexuais, masculinos quando secretados pelos testículos, e femininos para aqueles secretados pelo córtex ovariano.

Esse movimento corresponde também à passagem de um modelo biológico para um modelo bioquímico de entendimento do corpo humano. Quanto à diferença entre homens e mulheres, se pelo menos até o final do século XIX era nítida a busca por um órgão que a explicasse e fundamentasse, já nas primeiras décadas do século XX o desafio era entender como as substâncias produzidas pelas gônadas operam o processo de diferenciação. Se antes o ovário poderia ser visto como centro condensador da feminilidade, assim como o testículo, da masculinidade, agora se tratava de descobrir o mecanismo de produção da feminilidade e da masculinidade. O paradigma bioquímico de causa e efeito determinava o que se deveria procurar e até onde as explicações deveriam chegar. (Rohden, 200819 ROHDEN, F. O império dos hormônios e a construção da diferença entre os sexos. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 15, supl., p. 133-152, jun. 2008., p. 146).

No trabalho de Oudshoorn (1994)18 OUDSHOORN, N. Beyond the natural body: an archeology of sex hormones. London: Routlegde, 1994., a teoria hormonal é extensamente analisada, desde o surgimento e estabelecimento do conceito de hormônio em si até seu isolamento laboratorial e posterior comercialização e industrialização. Contudo, toda a teoria pressupõe uma assimetria de gênero, e vale destacar o que a autora chama de uma “generificação” dos hormônios sexuais. Uma vez que a diferença entre homens e mulheres passa a ser explicada pelos efeitos desses hormônios, as próprias moléculas ganham características dos gêneros, ou seja, os papéis de gênero passam a ser creditados às substâncias químicas, e seus efeitos são descritos através dos atributos esperados de homens ou mulheres. Logo, os efeitos da testosterona são rápidos e incisivos, encenando a agressividade e praticidade atribuída aos homens, ao passo que o estrogênio age de forma mais discreta e menos visível, simulando a passividade e delicadeza femininas.

No fim das contas, a teoria hormonal traz a ideia de que os hormônios sexuais são “simulacros” ou “essências” de gênero, de alguma forma contendo em si a mensagem que será inscrita no corpo, modelando-o num corpo masculino ou feminino. Essa modelagem daria conta não apenas da questão anatômica, mas também dos comportamentos e até dos “gostos” de homens e mulheres. “O que está por trás disso é uma perspectiva tão radicalmente centrada no poder dos mensageiros químicos, que uma série de outros fenômenos é percebida como englobada por eles” (Rohden, 200819 ROHDEN, F. O império dos hormônios e a construção da diferença entre os sexos. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 15, supl., p. 133-152, jun. 2008., p. 147).

Ao argumentar que fatos anatômicos ou endocrinológicos não são autoevidentes, trabalhos como o de Oudshoorn e Rohden expõem como “não existe uma verdade natural, não mediada do corpo” (Oudshoorn, 199418 OUDSHOORN, N. Beyond the natural body: an archeology of sex hormones. London: Routlegde, 1994., p. 3, tradução minha6 6 No original: “There does not exist an unmediated natural truth of the body.” ); tudo que envolve nossos corpos é mediado pela linguagem, e as ciências biomédicas funcionam como mais um provedor dessa linguagem, ao mesmo tempo em que todo o pensamento científico é também limitado pela linguagem.

Assim, torna-se possível questionar a autoimposta posição da ciência como porta-voz da verdade, e a noção positivista de que os cientistas descortinam a realidade para o público leigo. Olhando por essa ótica, fatos científicos não são dados objetivamente, mas coletivamente criados. Segundo Ludwig Fleck, conceitos não surgem do nada, mas vêm carregados de ideias preexistentes na cultura, “rudimentos de teorias modernas”, e são, portanto, o resultado de um longo desenvolvimento histórico, e não a única possibilidade lógica. Nas palavras do autor: “Muitos fatos científicos e altamente confiáveis se associam, por meio de ligações evolutivas incontestáveis, a protoideias (pré-ideias) pré-científicas afins, mais ou menos vagas, sem que essas ligações pudessem ser legitimadas pelos conteúdos” (Fleck, 20106 FLECK, L. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010., p. 64).

A princípio muito amplas e pouco especializadas, essas protoideias já estão disseminadas muito antes da disponibilidade de provas científicas, que virão a dar-lhes uma expressão moderna; outras vezes, na ausência dessa comprovação, acabam por ser descartadas. Fleck também chama à atenção que, uma vez plenamente desenvolvido e estruturado um sistema de ideias, esse apresenta grande resistência a qualquer coisa que o contradiga. Na verdade, a contradição se torna impensável, e o que não encaixa naquele sistema permanece invisível; caso isso seja impossível, essa “sobra científica” é mantida em segredo e excluída, ou faz-se um enorme esforço para explicar a exceção sem negar a regra. Os pesquisadores, portanto, tendem a ver e descrever apenas aquilo que corrobora os padrões vigentes (científicos, culturais, políticos) e, assim, terminam por legitimá-los e transformá-los em verdades absolutas. A história dos hormônios sexuais, desde seu surgimento no início do século XX até a forma como continua sendo contada no início do século XXI, é um ótimo exemplo disso.

Ciência de manuais

Uma vez estabelecido esse “império hormonal” conforme descrito por Rohden (2008)19 ROHDEN, F. O império dos hormônios e a construção da diferença entre os sexos. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 15, supl., p. 133-152, jun. 2008., é possível avançar para suas definições atuais, que continuam a embasar uma diferença sexual binária. Fazê-lo na linguagem da bioquímica se torna estratégico tanto por ser o discurso mais formal sobre essas moléculas quanto pelo fato desse ramo da ciência ser, obrigatoriamente, molecular. O caráter simbólico dos hormônios sexuais continua em disputa, e espero contribuir com algumas considerações sobre quais transformações ocorrem atualmente no valor atribuído a essas polêmicas moléculas. Não pretendo com isso criar um clivagem entre um caráter simbólico versus um caráter bioquímico do hormônio, que acabaria por colocar o valor simbólico no âmbito do “cultural” ou do “gênero” e alçar a bioquímica hormonal a um patamar de “natural” ou do “sexo”, e, portanto, de essência verdadeira. Diversos autores e autoras citados ao longo deste artigo deixam claro como as definições científicas são marcadas pelos valores do período histórico nos quais são formuladas (Fleck, 20106 FLECK, L. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010.; Haraway, 19918 HARAWAY, D. Simians, cyborgs and women: the reinvention of nature. New York: Routledge, 1991.; Laqueur, 200111 LAQUEUR, T. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.; Latour; Woolgar, 199712 LATOUR, B.; WOOLGAR, S. A vida de laboratório: a produção de fatos científicos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997.), mas é exatamente por isso, para explicitar a inocência de uma separação radical entre natureza e cultura, que um olhar mais atento às descrições técnicas da molécula se faz necessário. Nessa tentativa, o diálogo neste artigo se dá com dois “manuais” comuns nos cursos de graduação em saúde no Brasil, o livro de fisiologia de Berne et al. (2004)1 BERNE, R. et al. Fisiologia. 5. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. e o de farmacologia de Goodman e Gilman (2006)7 GOODMAN, L.; GILMAN, A. As bases farmacológicas da terapêutica. 11. ed. Rio de Janeiro: McGraw-Hill, 2006..

Antes de continuarmos, vale a pena destacar algumas curiosidades sobre o manual de Goodman e Gilman. Esse livro é considerado por muitos o mais completo manual de farmacologia (a décima primeira edição tem 1821 páginas), e uma noção corrente nos cursos de graduação de Farmácia é que este é o único que vale a pena ser usado pelo futuro farmacêutico, sendo os outros livros de farmacologia considerados fracos, muito básicos. O “Goodman” não é nada didático; é um livro de consulta mais do que de ensino, já que pressupõe um conhecimento avançado de fisiologia e química para entendê-lo. Foi difícil descobrir o prenome do autor; não aparece na ficha catalográfica, nem numa busca rápida on-line. Achei seu nome – Louis Goodman – apenas assinando o prefácio da primeira edição, o que é muito curioso, já que os livros-manuais tendem a ser chamados pelo nome do autor principal. Por exemplo, “o Berne” é o livro Fisiologia de Berne et al. (2004)1 BERNE, R. et al. Fisiologia. 5. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004., ou “o Lehninger” se refere ao livro Princípios da bioquímica de Lehninger. Assim, As bases farmacológicas da terapêutica de Goodman e Gilman (2006)7 GOODMAN, L.; GILMAN, A. As bases farmacológicas da terapêutica. 11. ed. Rio de Janeiro: McGraw-Hill, 2006. é, simplesmente, “o Goodman”. É comum ouvir entre estudantes de graduação, e mesmo entre docentes, que “se não está no Goodman, não existe”, uma brincadeira que não esconde seu fundo de verdade. Algo da farmacologia que não esteja no Goodman será de fato questionado, até porque o livro é constantemente atualizado, e tem por hábito citar pesquisas e resultados publicados no mesmo ano de publicação da edição. Essa história sobre o Goodman (o livro e o autor) dialoga muito com a ideia de hereditariedade do nome do Pai na ciência analisada por Donna Haraway (1991)8 HARAWAY, D. Simians, cyborgs and women: the reinvention of nature. New York: Routledge, 1991., e demonstra as complexas e contraditórias relações entre uma pretensa neutralidade (quem é ou foi Goodman?) e a necessidade de autoria para legitimar o conhecimento científico (o livro que ensina sobre um subcampo científico recebe o nome do organizador do manual desse campo).

De toda forma, os manuais cumprem um papel fundamental na formação básica dos cientistas, e por isso é preciso refletir sobre o seu lugar central na estabilização dos fatos científicos. Pensando sobre a formação e a divulgação desses fatos, Fleck (20106 FLECK, L. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010., p. 157) propõe uma imagem de círculos interligados do conhecimento, entre os quais uma proposição se difunde. Assim, “em torno de qualquer formação do pensamento, seja um dogma religioso, uma ideia científica ou um pensamento artístico, forma-se um pequeno círculo esotérico e um círculo exotérico maior” que irão se sobrepor, formando

uma hierarquia gradual de iniciação e muitos fios que ligam tanto cada um dos níveis quanto os diversos círculos. O círculo exotérico não possui uma relação imediata com aquela formação do pensamento, mas apenas através da intermediação do círculo esotérico. A formação da maioria dos participantes […] reside, portanto, na confiança nos iniciados. Mas até esses iniciados não são, de maneira alguma, independentes: dependem mais ou menos, de maneira consciente ou inconsciente, da “opinião pública”, isto é, da opinião do círculo exotérico. (Fleck, 20106 FLECK, L. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010., p. 157).

Porém, Fleck ressalta que apenas esses dois círculos não dão conta de descrever a diversidade de atores, nem seus papéis no fluxo de ideias necessário para o estabelecimento de um fato científico. Ao tentar definir quem ocupa cada círculo, o autor percebe que

o pesquisador altamente qualificado que trabalha de forma criativa num problema (em pesquisas sobre rádio, por exemplo), ocupa, enquanto “profissional especializado”, o centro do círculo esotérico desse problema. Fazem parte desse círculo ainda os pesquisadores que trabalham com problemas afins, na qualidade de “profissionais gerais” – tais como físicos, por exemplo. No círculo exotérico, encontram-se os “leigos mais ou menos instruídos” […] A riqueza da área, no entanto, faz com que, mesmo no interior do círculo esotérico dos profissionais, o setor dos profissionais especializados tenha que ser separado daquele dos profissionais gerais: sugerimos falar em ciência dos periódicos e ciência dos manuais, que compõem a ciência especializada. (Fleck, 20106 FLECK, L. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010., p. 165, grifo do autor).

Ou seja, é possível diferenciar algumas subdivisões ou níveis internos nos círculos que relacionam diferentes formas do pensamento científico: a ciência popular, a ciência dos manuais e a ciência de periódicos.7 7 Fleck (2010) se refere ainda a uma quarta forma, que seria a ciência dos livros didáticos. Essa última não é descrita pelo autor, que a considera menos importante para seus objetivos. Seria possível supor que o conhecimento acerca do funcionamento do corpo sobreponha a ciência dos manuais e a dos livros didáticos, haja vista que aprendem-se as noções básicas através desses manuais. Entretanto, como Fleck não define o que seriam esses livros didáticos, fica a dúvida se esses seriam de fato os manuais das ciências da saúde e exatas utilizados no ensino superior ou os livros do ensino médio, especialmente na realidade brasileira, onde se chamam de “didáticos” prioritariamente os livros usados nas escolas. A ciência dos periódicos é responsável pelas proposições mais brutas do pensamento científico; são afirmações provisórias e pessoais, pois poderão ser questionadas a qualquer momento e possivelmente se contradizem com outras produções simultâneas. Por outro lado, a ciência dos manuais e a ciência popular trazem afirmações mais consensuais entre a comunidade acadêmica. A ciência popular seria, nessa perspectiva, um certo senso comum científico, que influencia a percepção e a formulação dos problemas entre os especialistas, mesmo que não de maneira formal. Seria então uma “ciência para não especialistas, ou seja, para círculos amplos de leigos adultos com formação geral. Por isso, não deve ser vista como introdutória, sendo que, normalmente, não é um livro popular, mas um livro didático que cuida da introdução” aos pressupostos iniciais daquela área (Fleck, 20106 FLECK, L. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010., p. 166). As descrições dos fatos por essa ciência popular são marcadas pela ausência de detalhes e polêmicas, levando a uma “simplificação artificial” característica do círculo exotérico do conhecimento.

Seja qual for a maneira de descrever um determinado caso, a descrição sempre acaba sendo uma simplificação, permeada por elementos apodíticos e ilustrativos: através de cada comunicação, até mesmo de cada denominação, um saber se torna mais exotérico e popular. Caso contrário, teríamos que acrescentar a cada palavra uma nota de rodapé com restrições e explicações, e, a rigor, a cada palavra dessas notas uma segunda pirâmide de palavras, da qual ela é a ponta e assim por diante, da qual surgiria uma formação que só poderia ser representada num espaço de muitas dimensões. (Fleck, 20106 FLECK, L. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010., p. 168, grifo do autor).

Quanto mais elementos forem evidentes e ilustrativos, maior terá sido a capacidade de um dado círculo esotérico em difundir seus fatos para o círculo exotérico. Entretanto, não podemos pensar apenas no tráfego dos especialistas para os leigos, e por isso considero interessante a noção de níveis internos. Entre diferentes ciências e diferentes especialistas também haverá um fluxo dos fatos científicos, e, assim como entre os círculos, nessa transferência “interna”, haverá certa simplificação dos enunciados. Vejamos o exemplo de Fleck (20106 FLECK, L. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010., p. 170-171):

toda a teoria dos lipoides da reação de Wassermann baseia-se no conceito químico popular dos corpos lipoides, que, de maneira alguma, são idênticos ao conceito químico especializado. Assim surgiu o espetáculo curioso segundo o qual a sorologia de hoje concebe como lipoide algo diferente da química.

Analogamente, chamo atenção para o fato de que os dois manuais analisados neste artigo se apoiam em conceitos da química geral, mas esses aparecem de forma naturalizada e simplificada. Assim, se a química apresenta o movimento de moléculas e as ligações químicas como aleatórias e imprevisíveis, os manuais de fisiologia e farmacologia apresentam as reações bioquímicas com uma previsibilidade e uma ordem que em vários momentos vai de encontro à descrição da química básica. A sensação é de que, a cada nova passagem de uma ciência especializada para outra (ou de um nível para outro), os respectivos manuais eliminam ou minimizam o que teria o potencial de perturbar seus próprios sistemas, e mantêm ou destacam aquilo que favorece suas explicações.8 8 Vale ressaltar que Latour e Woolgar (1997) analisam detalhadamente esse processo na estabilização de um enunciado científico a cada nova citação numa publicação subsequente. Porém, suas colocações descrevem os tráfegos internos do que Fleck (2010) chama de ciência dos periódicos. Como foco a análise na ciência dos manuais, escolhi não utilizar neste momento o trabalho de Latour e Woolgar, mas destaco como essa simplificação ocorre mesmo no espaço da ciência de periódicos, que seria em princípio mais fluida e aberta a contradições.

Usando o exemplo de um medicamento, esse tráfego poderia ser descrito da seguinte forma: os manuais de química geral irão descrever as ligações químicas e os movimentos de átomos e moléculas menores; esses conhecimentos irão embasar os manuais de química orgânica, que focam as reações químicas entre moléculas mais complexas presentes nos organismos vivos; com as interações entre esses compostos orgânicos já estabelecidas, é possível à bioquímica focar a sua funcionalidade para os organismos vivos; o entendimento dessas vias metabólicas será utilizado na descrição do funcionamento sistêmico da fisiologia; com base nessa descrição, a farmacologia irá estabelecer onde e como substâncias acrescentadas aos organismos irão modular seu funcionamento; essa proposição permite à prática clínica prescrever uma ou outra dessas substâncias para um paciente diagnosticado; e, em última instância, tal paciente concluirá que aquele remédio serve para combater aquele sintoma. A cada nova parada, o objeto torna-se mais complexo e cresce a preocupação com sua funcionalidade. Porém, à medida que aumenta sua aplicabilidade, aumenta também a objetividade de sua apresentação, até chegar na clínica, onde importa muito pouco a aleatoriedade do movimento dos átomos da química geral que sustenta toda a prática.

Tendo esse fluxo em mente, podemos nos debruçar finalmente sobre as descrições dos hormônios sexuais conforme aparecem nos manuais. Vale ressaltar que, ao analisar tais textos, acabo por reiterar a metáfora fabril aplicada ao corpo e seu funcionamento utilizada pelas ciências da saúde – não à toa, esquemas como o da biossíntese dos hormônios lembram um “manual de instruções”. Porém, não pretendo ignorar a transitoriedade dessa metáfora, nem sua consonância com o sistema político-econômico vigente.9 9 Para uma análise detalhada sobre o uso de metáforas nas descrições do corpo, ver Martin (2006). Lendo os manuais e observando seus esquemas, fica a sensação da ação de uma “mão invisível” que organiza esse corpo, uma metáfora transformada em conceito nas postulações do liberalismo econômico de Adam Smith, nas quais a economia, assim como o corpo, se autorregula. Haraway (1991)8 HARAWAY, D. Simians, cyborgs and women: the reinvention of nature. New York: Routledge, 1991. aborda como esse corpo-máquina vem sendo substituído, a partir do pós-guerra, por uma metáfora de um sistema interativo de comunicações, de acordo com as alterações do sistema capitalista a partir do final do século XX. Essa passagem, mais visível na pesquisa de ponta, ainda não alterou a percepção do corpo e sua descrição na fisiologia básica, de forma que os manuais ainda descrevem o funcionamento do corpo em termos de produção, custo, mecanismos, excesso e escassez. Assim, sigo, preso à metáfora, analisando um dos maiores operários da fábrica corporal, o hormônio sexual.

Conforme descrito nos manuais, os hormônios sexuais são moléculas esteroidais, ou seja, sua estrutura química é formada por um núcleo esteroide (daí vem o uso do termo “esteroide” para se referir aos anabolizantes, por exemplo). Essa estrutura não é incomum na fisiologia humana; outros conhecidos esteroides seriam os glicocorticoides (cuja exemplo mais “famoso” entre os leigos seria a cortisona, um análogo sintético do cortisol produzido pela glândula suprarrenal), os mineralocorticoides e a vitamina D. O corpo humano não sintetiza diretamente todo o núcleo esteroide necessário, dependendo do colesterol absorvido com a dieta para “montar” essas moléculas. Sendo assim, a via biossintética dos hormônios sexuais a partir do colesterol é longa, e diferentes reações em diferentes pontos da via são consideradas críticas, já que irão definir qual classe de hormônios será sintetizada.

Figura 1.
Estrutura do colesterol e o núcleo esteroide.

A biossíntese se inicia na conversão do colesterol em pregnenolona, um hormônio da classe das progesteronas, que, por sua vez, é facilmente convertido na progesterona, considerada um dos dois principais hormônios femininos, e presente nas formulações da pílula anticoncepcional, por exemplo.

Figura 2.
Estrutura molecular da pregnenolona e da progesterona.

A progesterona funciona também como uma encruzilhada metabólica na biossíntese dos hormônios esteroidais, já que, a partir dela, chega-se aos mineralocorticoides e aos glicocorticoides. Deixarei esses “desvios” metabólicos de lado, e focarei a direção que formará os outros hormônios sexuais. A via biossintética resultante pode ser descrita como na Figura 3, a seguir, destacando quais hormônios pertencem à classe das progesteronas, e quais são os estrogênios. Os outros hormônios que compõem a via, não marcados, são os androgênios:

Figura 3.
A via biossintética dos hormônios sexuais (fonte: Berne et al., 20041 BERNE, R. et al. Fisiologia. 5. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004., p. 988, destaque meu).

Algumas reflexões podem ser tiradas dessa imagem. Antes, vale destacar que a posição de cada grupo varia de fonte para fonte, não sendo essa configuração aqui reproduzida a única possível nem a mais correta; ao analisarmos vias metabólicas, o que importa é a direção das “setas” que indicam as reações químicas correspondentes, não a posição das moléculas no esquema.

Retomando os caminhos do pensamento científico na “descoberta” dos hormônios sexuais descritos por Oudshoorn (1994)18 OUDSHOORN, N. Beyond the natural body: an archeology of sex hormones. London: Routlegde, 1994., a ciência define a testosterona como o hormônio masculino, e a progesterona e o estrogênio como os hormônios femininos. A função da progesterona está mais relacionada às alterações endócrinas típicas da gravidez e à regulação do ciclo menstrual, ao passo que o estrogênio estaria mais associado ao que se convencionou chamar de caracteres sexuais secundários; portanto, o hormônio feminino (feminilizante) por excelência seria o estrogênio. À medida que a pesquisa avança, percebe-se que não havia apenas um estrogênio, uma progesterona e uma testosterona, mas algumas moléculas estruturalmente similares capazes de se ligar aos mesmos receptores e desencadear os mesmos efeitos metabólicos. Nesse momento, então, acrescenta-se o plural, indicando que se trata de um grupo ou classe de moléculas – os estrogênios (também chamados estrógenos) ou as progesteronas, conforme indicado na figura. Essa passagem, contudo, é feita apenas em espaços mais técnicos, especialmente na endocrinologia e na bioquímica.

Vale destacar, contudo, algumas especificidades desse processo, que acredito não serem aleatórias. Vejamos as progesteronas, o caso mais simples. A primeira molécula descrita do grupo é a própria progesterona, que manteve o mesmo nome (e a mesma estrutura química), e passou a nomear todo o grupo. Já no caso do estrogênio, descobriu-se que se tratava de duas moléculas, a estrona e o estradiol, com estruturas moleculares ligeiramente diferentes.10 10 É preciso destacar que as funções orgânicas “cetona” (representada pelo sufixo -ona na nomenclatura das moléculas, como em “estrona”) e “álcool” (representado pelo sufixo -ol, “estradiol”) se interconvertem facilmente em solução, como no plasma sanguíneo, a partir de uma reação conhecida como “redução” (de cetona a álcool secundário) ou, na direção oposta, “oxidação” (de álcool secundário a cetona), bastante comuns na química orgânica. A mediação enzimática representada na Figura 3 pelo número 4, contudo, favorece e estabiliza a redução da estrona a estradiol. Nesse processo, estrogênio passou a indicar o grupo, não havendo uma estrutura química específica que seja, de fato, estrogênio. Em situações como essa, a tendência é manter um uso mais informal do nome já consagrado na literatura, corrigindo-o apenas em espaços e publicações mais formais. O caso mais curioso é o da testosterona. Diferente do estrogênio, existe uma molécula chamada testosterona, a mesma “descoberta” no início do século XX, cuja estrutura aparece na Figura 3. Porém, quando outras moléculas similares são descritas, o grupo não passa a ser nomeado “testosteronas”, mas sim, androgênios (ou andrógenos), uma nomenclatura mais bioquimicamente correta, pois destaca a função do grupo. Entretanto, num movimento oposto ao visto nos estrogênios, o termo não ganha popularidade, por mais que não seja completamente desconhecido.

Sendo assim, a testosterona se torna uma metonímia dos androgênios: é uma parte que representa o todo. O estrogênio, ao contrário, é um termo englobante, um todo que representa as partes. Por mais sutil que pareça essa diferença, acredito que ela se baseia numa protoideia nos termos de Fleck (2010)6 FLECK, L. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010., algo de pré-científico disseminado na cultura que permanece na formulação do fato científico. Ou seja, se considerarmos, juntamente com Oudshoorn (1994)18 OUDSHOORN, N. Beyond the natural body: an archeology of sex hormones. London: Routlegde, 1994., que os hormônios sexuais sejam simulacros de gênero, a testosterona deve representar algo forte, direto e objetivo, em contraste com o estrogênio, que seria amplo, difuso e mais discreto, repetindo “a velha dualidade que aproxima o masculino da objetividade e da visibilidade, e o feminino da subjetividade e de uma misteriosa invisibilidade” (Russo et al., 200920 RUSSO, J. et al. O campo da Sexologia no Brasil: constituição e institucionalização. Physis, Rio de Janeiro, v. 3, n. 19, p. 617-636, 2009., p. 632).11 11 Uma demonstração evidente (e gráfica) da força dessa concepção aparece numa figura divulgada em congressos de sexologia que descreve a sexualidade feminina como um painel de avião, composto por dezenas de botões, telas informativas e sinais luminosos; em contraste, a sexualidade masculina aparece na figura como um único botão de on/off, conforme observado na etnografia em congressos de sexologia/medicina sexual feita por Russo et al. (2011, anexo D). Entretanto, para aprofundar esse raciocínio, seria necessário um maior conhecimento sobre como se deu o processo de “descoberta” de cada uma dessa moléculas e as reações da comunidade científica em cada caso. Nessa comparação, a argumentação ganharia corpo, mas essa perspectiva foge ao escopo deste artigo. Mantenho essas inferências apenas para indicar um caminho possível da pesquisa acerca da naturalização do binarismo de gênero interno à teoria bioquímica.

Para além dessa possibilidade, a visão metonímica da testosterona traz consequências mais centrais para o argumento. Quando pensamos em anabolizantes (cujos nomes mais corretos seriam “esteroides androgênicos anabolizantes” ou “EAA”, resgatando o termo “androgênio”), estamos na verdade nos referindo a diversas moléculas similares à testosterona. Anabolizantes são, portanto, a própria testosterona; são todos os outros androgênios da via biossintética representados na Figura 3; são derivados de testosterona de origem animal; são pró-hormônios, ou seja, moléculas que em determinado ponto do organismo serão convertidas no hormônio propriamente dito; são moléculas com pequenas alterações estruturais visando favorecer certos efeitos do hormônio em detrimento de outros. Todas essas possibilidades serão reduzidas a, simplesmente, testosterona. Apenas nos manuais, pouco acessíveis para aqueles fora do iniciático círculo esotérico, as devidas considerações são feitas, como na figura que reproduzo abaixo:

Figura 4.
Estrutura química de androgênios de uso terapêutico (fonte: Goodman; Gilman, 20067 GOODMAN, L.; GILMAN, A. As bases farmacológicas da terapêutica. 11. ed. Rio de Janeiro: McGraw-Hill, 2006., p. 1427).12 12 Os livros de farmacologia não citam os nomes comerciais dos fármacos. A título de curiosidade, coloco a seguir o nome comercial mais comum (é possível que mais de um laboratório comercialize a mesma molécula): o Testoviron da Schering (enantato de testosterona); o Deposteron da EMS (cipionato de testosterona); o Nebido da Bayer (undecanoato de testosterona); o Gabormon da Nikkho (metiltestosterona); o Anavar da BTG (EUA), o antigo Lipidex, que saiu do mercado brasileiro (oxandrolona); o famoso Winstrol da Upjohn (estanozolol); o Halostestin, também da Upjohn (fluoximesserona); o Danogen da Cipla (danazol); a 7α-metil-17-nortestosterona e o THG (tetraidrogestrinona) são comumente utilizados como doping, mas não pude encontrar seus nomes comerciais, talvez por estarem fora de circulação devido ao uso ilegal.

É impossível separar a testosterona-molécula, neutra de valores, da testosterona-essência masculina, construto cultural, não apenas porque não há neutralidade absoluta na ciência, mas porque a divulgação científica unifica as duas conotações. Há um senso comum de que a testosterona seja mais “forte” do que o estrogênio, e isso aparece de forma notável numa suposição bastante disseminada entre pessoas transexuais. Essa concepção confere ao primeiro hormônio um poder de transformar os corpos dos homens trans com mais eficácia do que os corpos das mulheres trans que tomam estrogênio,13 13 Analisando as interações entre ativistas trans, Carvalho (2015, p. 166) afirma: “É comum que nos discursos que conferem uma maior ‘passabilidade’ aos homens trans em relação às travestis e mulheres transexuais, a testosterona figure como peça chave para a compreensão das diferenças nas transformações corporais, sendo caracterizada como um hormônio ‘mais forte’ que o estrogênio.” apesar de não haver nenhuma justificativa fisiológica clara que sustente essa afirmação. Dessa forma, novamente, prioridades exclusivamente culturais são conferidas aos hormônios, reafirmando a hierarquia dos gêneros através de uma escala da importância dada aos seus efeitos.

Por mais que a análise dos processos bioquímicos em si não seja suficiente para essa hierarquização, que não irá aparecer explicitamente em lugar algum dos manuais, a forma como os hormônios são apresentados sutilmente dá margem para a permanência dessa protoideia. Como fica evidente nas figuras acima, a diferença estrutural entre os hormônios sexuais é mínima, e o organismo não funciona de maneira tão causal como a fisiologia apresenta. Isso não é nenhuma surpresa; os próprios cientistas concordariam com essa afirmação, e diriam que a descrição é feita dessa forma por razões didáticas – mas nada é tão inocente. Na prática, esses hormônios se interconvertem facilmente uns nos outros, não sendo portanto uma via de mão única. Convencionou-se na química a utilização de setas para indicar uma reação, e a seta dupla (⇌) indicaria as reações que se dão espontaneamente nas duas direções, ou seja, os reagentes (as moléculas à esquerda da seta) se convertem nos produtos (à direita) e vice-versa. Na representação da biossíntese dos hormônios sexuais, utiliza-se a seta simples porque essas reações são mediadas por enzimas, assim como a reação na direção oposta, ou seja, elas não ocorrem espontaneamente.14 14 A mediação enzimática é um processo comum na bioquímica. Raras reações no organismo se dão espontaneamente, devido à complexidade e tamanho das moléculas e o consequente impedimento estérico. Vale lembrar que enzimas são moléculas proteicas cuja função é catalisar (acelerar) reações químicas que dificilmente aconteceriam na sua ausência, ou favorecer a reação numa direção em detrimento de outra.

Dizer isso não significa de maneira alguma que seja mais simples, ou menos custoso, para o organismo a reação na direção apresentada. É preciso ter em mente que há algo de caótico nas reações químicas, e diversos mecanismos supostamente evolutivos foram desenvolvidos pelos organismos para dar “ordem” às moléculas. Repare-se, contudo, que essa ideia se baseia numa prosopopeia comum na passagem para o nível da fisiologia; atribuir consciência e motivos coerentes ao organismo é uma das maiores parábolas da biologia moderna. Como vimos acima, para a química básica, as moléculas interagem constantemente entre si, e muitas vezes de forma pouco produtiva para um organismo. Entre os mecanismos de controle mais comuns da fisiologia animal está o feedback (ou retroalimentação) negativo, que, de forma leiga, se daria da seguinte maneira: ao identificar o excesso de uma determinada substância, uma alça metabólica é ativada no sentido de inibir a via de produção de tal substância. De forma análoga, pode-se também estimular a produção de outra substância que inative ou degrade aquela em excesso, e constantemente ocorrem ambos os processos simultaneamente. O feedback, entretanto, não é um mecanismo inequívoco, e nem dará conta de todo o excesso produzido (se fosse, não existiria o câncer, por exemplo). Além disso, esses processos (as cascatas bioquímicas) não são rápidos, pois dependem de uma sequência de sinalizações químicas e, possivelmente, da ativação de determinada síntese proteica, a partir de uma transcrição de um trecho específico do genoma. Nesse meio tempo, as moléculas estão livremente interagindo entre si. Portanto, enquanto o onisciente organismo da fisiologia não conseguiu ainda se autorregular, diversas reações aleatórias podem ocasionalmente transformar uma molécula em outra estruturalmente semelhante. Essa interconversão pode ser também um mecanismo de controle do próprio organismo; às vezes, é mais fácil, mais rápido e mais barato transformar uma molécula em outra, ou favorecer sua conversão, do que acionar vários mecanismos paralelos de controle.

No caso dos hormônios sexuais, dada sua semelhança, esse processo acontece com frequência – seja caótica, seja propositadamente; seja à revelia do organismo, seja como mecanismo de controle. Além disso, a proximidade estrutural possibilita que diferentes hormônios acionem mecanismos comuns, o que pode ser bem-vindo, mas pode ser problemático. É possível, portanto, que o excesso de um hormônio leve à sua conversão em outro, causando efeitos contraditórios. Um exemplo comum é o desenvolvimento de ginecomastia por usuários de anabolizantes – nesse caso, o excesso de testosterona é convertido em estrógenos, que irão agir sobre as glândulas mamárias causando seu crescimento, um efeito obviamente adverso para esse uso. Afinal, o corpo, assim como a economia, dá conta de guardar e reaproveitar as sobras. Tentei destacar com esse exemplo a concomitância de dois discursos aparentemente conflitantes acerca do movimento das moléculas, e como a passagem do nível químico para o fisiológico exclui as contradições inerentes aos dois campos do saber em prol da ordem necessária para uma descrição coerente da fisiologia humana.

Efeitos dos hormônios sexuais

O manual de Berne et al. (2004)1 BERNE, R. et al. Fisiologia. 5. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. segue numa extensa descrição anatomofuncional das gônadas e do processo de gametogênese e fecundação,15 15 É possível perceber mais uma vez como a descrição dos gametas e seu “encontro” na fecundação são marcados pelo binarismo de gênero, confirmando os achados de Emily Martin (1991) em seu famoso artigo “The egg and the sperm: how science has constructed a romance based on stereotypical male-female roles”. até a descrição dos efeitos de cada hormônio. Comparar a representação dos efeitos dos androgênios e estrogênios nos manuais traz ainda novos argumentos. Reproduzo a seguir uma figura que indica a amplitude da ação da testosterona no corpo. A Figura 5 indica não apenas os efeitos diretos da molécula de testosterona (representados pelas setas diretas do “T” central para os quadros correspondentes), mas também seus efeitos via diihidrotestosterona (DHT), um dos metabólitos mais ativos do hormônio, e os efeitos do estradiol (E2), que, como vimos na Figura 3, é convertido a partir da testosterona. O primeiro ponto que merece destaque é a própria organização do esquema. A testosterona aparece como um grande T, centralizado, e seus efeitos são indicados por setas retas, passando a sensação de um efeito direto e objetivo, sem mediações.

Figura 5.
Espectro de atividades da testosterona (fonte: Berne et al., 20041 BERNE, R. et al. Fisiologia. 5. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004., p. 1009).

É notável que o único momento em que há uma referência direta ao gênero na Figura 5 (o quadro no centro, à direita, que destaca a “marca do padrão masculino de gonadotropinas, impulso sexual, comportamento”), os efeitos da testosterona são mediados pelo próprio hormônio e seu metabólito, mas também pelo estradiol. Seria apenas ocasional que os efeitos que aparecem no centro da figura se refiram à produção de espermatozoides e ao padrão masculino? Curiosamente, em ambos, o estradiol tem um efeito central. Apesar disso, ao descrever o aumento de libido após a administração de estradiol a um homem hipogonádico, Goodman e Gilman (20067 GOODMAN, L.; GILMAN, A. As bases farmacológicas da terapêutica. 11. ed. Rio de Janeiro: McGraw-Hill, 2006., p. 1424, grifo meu) afirmam apenas que esse dado “sugere que o efeito da testosterona sobre a libido pode ser mediado pela sua conversão em estradiol”. Também chama a atenção o pouco destaque dado à ação da testosterona sobre o depósito de gordura, considerado atualmente um dos pontos inequívocos de uma diferença anatômica dos sexos.

O mesmo manual não traz uma figura correspondente para os estrogênios ou as progesteronas. Os efeitos dos hormônios ditos femininos vêm divididos em várias figuras, e essa fragmentação em si já favorece uma ideia de “menor força”. O mais parecido com a representação da testosterona pode ser visto na Figura 6, abaixo:

Figura 6.
Efeitos do estradiol (fonte: Berne et al., 20041 BERNE, R. et al. Fisiologia. 5. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004., p. 1021).

Na legenda dos esquemas já aparece uma diferença: a Figura 5 representa o “espectro de efeitos da testosterona”; a Figura 6 mostra “funções do estradiol”. O termo “espectro” já traz a ideia de uma gama maior, que é evidente comparando as figuras. A testosterona media 15 efeitos, contra 5 do estradiol. Obviamente, o manual não deveria repetir informações, e, portanto, como a Figura 5 está 12 páginas antes da Figura 6, o texto sintetizado nas figuras já explicou que alguns (4) daqueles 15 efeitos são mediados pelo estradiol, e não haveria motivo para repeti-los na Figura 6. É inevitável, porém, que essa divisão deixe uma sensação do estradiol como “mais fraco”, inclusive porque alguns efeitos acabam sendo conferidos à testosterona (mesmo que no texto fique mais claro quem faz o quê, ou melhor, que ambos os hormônios têm atuação sobre um mesmo mecanismo). O fato dos efeitos do estradiol na figura virem sob a forma de textos e não de ilustrações também colabora para a impressão de menor objetividade do hormônio “feminino”. Aliás, ao longo do capítulo, é comum que, ao invés de esquemas, os efeitos dos estrogênios e progesteronas apareçam sob a forma de diferentes gráficos, o que dificulta seu entendimento, pois demanda uma leitura mais calma, não um óbvio “olhar-e-ver” como na Figura 5.

Outra diferença é que o centro da Figura 6 não representa o estradiol como um grande E2, mas destaca o local de maior produção do estrogênio (o folículo dominante). Para que as representações fossem iguais, o centro da Figura 5 poderia ser “testículo”, e não a letra T. Além disso, como os efeitos sistêmicos, não relacionados ao sexo/gênero, são colocados na primeira figura, os efeitos que aparecem na Figura 6 são aqueles relativos às gônadas e à reprodução. Com isso tudo, reitera-se, mesmo que não propositalmente, a ideia da sexualidade feminina como difusa, flutuante, instável, menos visível, menos potente, e mais vinculada à reprodução.

Considerações finais

A partir dessas reflexões, podemos concluir que seria um erro tratar os hormônios sexuais como entidades estáveis com efeitos inexoráveis, e o próprio funcionamento endócrino contradiz a insistência do binarismo de gênero de que essas moléculas contenham em si, ou sejam responsáveis por, características consideradas típicas de homens ou mulheres. Ao descrever o espanto da comunidade científica com a presença do “hormônio feminino” no homem e vice-versa, os à época chamados “hormônios heterossexuais” (a ironia não era intencional), Oudshoorn (1994)18 OUDSHOORN, N. Beyond the natural body: an archeology of sex hormones. London: Routlegde, 1994. demonstra as voltas que foram necessárias para manter o dimorfismo e a generificação dos hormônios. Conforme a autora, os hormônios deixaram de ser chamados de heterossexuais, a diferença sexual se tornou mais quantitativa do que qualitativa, mas as moléculas permaneceram paradoxalmente generificadas. Como vimos na Figura 5, os efeitos do estradiol no homem continuam sendo colocados sob a rubrica de “efeitos da testosterona”, assim como os da DHT. E comportamentos dificilmente redutíveis a explicações exclusivamente biológicas seguem descritos como efeitos hormonais. “Os homens tendem a ter um melhor senso das relações espaciais do que as mulheres e a exibir um comportamento que difere do comportamento das mulheres em certos aspectos, entre os quais maior agressividade” (Goodman e Gilman, 20067 GOODMAN, L.; GILMAN, A. As bases farmacológicas da terapêutica. 11. ed. Rio de Janeiro: McGraw-Hill, 2006., p. 1424). Curiosamente, o mesmo manual não confere aos estrógenos nenhum efeito sobre comportamentos.

Parece que mesmo com todo o avanço da pesquisa científica, a necessidade da justificativa biológica para a assimetria de gênero sobrepuja a evidência científica, apesar de traída pela própria estrutura química.

Na década de 1930, ainda se descreviam, com espanto, […] a presença de hormônios femininos em machos, e notadamente com menos importância, se descrevia a presença de hormônios masculinos em fêmeas […] Como sabemos, o que prevalece até os dias de hoje é a noção comum que, se não reafirma a existência de hormônios específicos, postula uma relação íntima entre determinados tipos de hormônios e determinados tipos de corpos. (Rohden, 200819 ROHDEN, F. O império dos hormônios e a construção da diferença entre os sexos. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 15, supl., p. 133-152, jun. 2008., p. 146-147).

Porém, se nos mantivermos sob o ponto de vista da bioquímica (em oposição ao da fisiologia), os hormônios estão constantemente em “trânsito de gênero”, a separação química entre masculino e feminino se dilui, quebrando a hierarquia sexual das moléculas. É no tráfego para o nível da fisiologia que podemos perceber como as protoideias de masculinidade e feminilidade do círculo exotérico retornam para o círculo esotérico, e conduzem a uma interpretação específica do fato científico.

Assim, percebemos como a estabilização da diferença sexual no discurso científico será feita através desses fluxos entre círculos. Nos círculos mais internos, a diferença aparece um pouco mais aberta, menos rígida, e, na passagem para um nível mais exotérico, ganha fixidez. Os manuais cumprem o papel de divulgação interna, diminuindo os “ruídos” da ciência dos periódicos, minimizando as contradições de forma a apresentar um discurso linear – e significativamente mais rígido. É a partir desse ponto de vista que surge uma incômoda diferença entre os pesquisadores mais especializados e os divulgadores de uma dada proposição científica, conforme vimos entre os químicos gerais, os bioquímicos e os fisiologistas.

O risco dessa afirmação, porém, é atribuir a um ou outro discurso um caráter mais “genuíno”, mais próximo da “verdade”, que resultaria de uma percepção equivocada de que as ciências mais básicas (portanto, os círculos mais esotéricos) seriam mais desprovidas de interferências, ou, inversamente, que as ciências mais aplicadas (os círculos mais exotéricos) trariam um conhecimento mais elaborado exatamente por unir referências de áreas diversas. Ao contrário, o objetivo dessa análise é justamente levar à reflexão de como o conhecimento científico, ao se ampliar nos círculos mais externos, vai sendo paulatinamente estabilizado; e, no caso da diferença sexual, irá simultaneamente estabilizar corpos e gêneros dentro daquilo que a ciência convenciona como propriamente masculino ou feminino.

Referências

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  • *
    Agradeço os/as pareceristas anônimos/as pela leitura atenta e as valorosas contribuições, que de outro modo teriam passado despercebidas.
  • 1
    Várias autoras poderiam ser citadas aqui, além das que utilizo ao longo do artigo. Dentre elas, destaco Anne Fausto-Sterling (2001)5 FAUSTO-STERLING, A. Sexing the body: gender politics and the construction of sexuality. New York: Basic Books, 2001., Londa Schiebinger (1987)22 SCHIEBINGER, L. Skeletons in the closet: the first illustrations of female skeleton in eighteenth-century anatomy. In: GALLAGUER, C. (Ed.). Making of the modern body. Berkeley: University of California Press, 1987. p. 42-82., Ruth Bleier (1997)2 BLEIER, R. Science and gender: a critique of biology and its theories on women. New York: Teachers College Press, 1997., Ruth Hubbard (1990)10 HUBBARD, R. The politics of women’s biology. New Brunswick: Rutgers University Press, 1990., entre outras.
  • 2
    Basta lembrar o famoso caso da menina que, ao correr atrás do porco, vê seus órgãos sexuais “descerem”, tornando-se, então, menino. Tal exemplo demonstra bem a plasticidade dos corpos à época. Ver Laqueur (2001)11 LAQUEUR, T. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001..
  • 3
    Paula Sandrine Machado (200514 MACHADO, P. S. O sexo dos anjos: um olhar sobre a anatomia e a produção do sexo (como se fosse) natural. Cadernos Pagu, Campinas, n. 24, p. 249-281, jan./jun. 2005., p. 263), analisando o processo de decisão do sexo de bebês intersexo, também percebe essa “busca incessante para saber onde, afinal, inscreve-se a diferença entre os sexos. É nesse sentido que, nas classificações médicas, o sexo é percebido como impresso em diferentes níveis – molecular, cromossômico, gonadal, hormonal e psicológico – sendo que a construção anatômica aparece como a última etapa de um processo onde se procura realinhar o corpo com a natureza de um sexo que já o habita.”
  • 4
    David Healy (1997)9 HEALY, D. The antidepressant era. Cambridge: Harvard University Press, 1997. argumenta que essa substituição de “regulações” é fortemente influenciada pelo desenvolvimento da química orgânica em torno desse período.
  • 5
    É necessário marcar que a testosterona e outros androgênios (descritos nas seções seguintes do artigo) também são produzidos na zona reticular das glândulas adrenais, porém, em menor quantidade do que nas gônadas. Como os manuais analisados separam as gônadas e as adrenais em diferentes capítulos, deixarei de lado essa produção.
  • 6
    No original: “There does not exist an unmediated natural truth of the body.”
  • 7
    Fleck (2010)6 FLECK, L. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010. se refere ainda a uma quarta forma, que seria a ciência dos livros didáticos. Essa última não é descrita pelo autor, que a considera menos importante para seus objetivos. Seria possível supor que o conhecimento acerca do funcionamento do corpo sobreponha a ciência dos manuais e a dos livros didáticos, haja vista que aprendem-se as noções básicas através desses manuais. Entretanto, como Fleck não define o que seriam esses livros didáticos, fica a dúvida se esses seriam de fato os manuais das ciências da saúde e exatas utilizados no ensino superior ou os livros do ensino médio, especialmente na realidade brasileira, onde se chamam de “didáticos” prioritariamente os livros usados nas escolas.
  • 8
    Vale ressaltar que Latour e Woolgar (1997)12 LATOUR, B.; WOOLGAR, S. A vida de laboratório: a produção de fatos científicos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997. analisam detalhadamente esse processo na estabilização de um enunciado científico a cada nova citação numa publicação subsequente. Porém, suas colocações descrevem os tráfegos internos do que Fleck (2010)6 FLECK, L. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010. chama de ciência dos periódicos. Como foco a análise na ciência dos manuais, escolhi não utilizar neste momento o trabalho de Latour e Woolgar, mas destaco como essa simplificação ocorre mesmo no espaço da ciência de periódicos, que seria em princípio mais fluida e aberta a contradições.
  • 9
    Para uma análise detalhada sobre o uso de metáforas nas descrições do corpo, ver Martin (2006)16 MARTIN, E. A mulher no corpo: uma análise cultural da reprodução. Rio de Janeiro: Garamond, 2006..
  • 10
    É preciso destacar que as funções orgânicas “cetona” (representada pelo sufixo -ona na nomenclatura das moléculas, como em “estrona”) e “álcool” (representado pelo sufixo -ol, “estradiol”) se interconvertem facilmente em solução, como no plasma sanguíneo, a partir de uma reação conhecida como “redução” (de cetona a álcool secundário) ou, na direção oposta, “oxidação” (de álcool secundário a cetona), bastante comuns na química orgânica. A mediação enzimática representada na Figura 3 pelo número 4, contudo, favorece e estabiliza a redução da estrona a estradiol.
  • 11
    Uma demonstração evidente (e gráfica) da força dessa concepção aparece numa figura divulgada em congressos de sexologia que descreve a sexualidade feminina como um painel de avião, composto por dezenas de botões, telas informativas e sinais luminosos; em contraste, a sexualidade masculina aparece na figura como um único botão de on/off, conforme observado na etnografia em congressos de sexologia/medicina sexual feita por Russo et al. (201121 RUSSO, J. et al. Sexualidade, ciência e profissão no Brasil. Rio de Janeiro: CEPESC, 2011., anexo D).
  • 12
    Os livros de farmacologia não citam os nomes comerciais dos fármacos. A título de curiosidade, coloco a seguir o nome comercial mais comum (é possível que mais de um laboratório comercialize a mesma molécula): o Testoviron da Schering (enantato de testosterona); o Deposteron da EMS (cipionato de testosterona); o Nebido da Bayer (undecanoato de testosterona); o Gabormon da Nikkho (metiltestosterona); o Anavar da BTG (EUA), o antigo Lipidex, que saiu do mercado brasileiro (oxandrolona); o famoso Winstrol da Upjohn (estanozolol); o Halostestin, também da Upjohn (fluoximesserona); o Danogen da Cipla (danazol); a 7α-metil-17-nortestosterona e o THG (tetraidrogestrinona) são comumente utilizados como doping, mas não pude encontrar seus nomes comerciais, talvez por estarem fora de circulação devido ao uso ilegal.
  • 13
    Analisando as interações entre ativistas trans, Carvalho (20153 CARVALHO, M. F. L. “Muito Prazer, Eu Existo!”: visibilidade e reconhecimento no ativismo de pessoas trans no Brasil. 2015. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva)–Instituto de Medicinal Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015., p. 166) afirma: “É comum que nos discursos que conferem uma maior ‘passabilidade’ aos homens trans em relação às travestis e mulheres transexuais, a testosterona figure como peça chave para a compreensão das diferenças nas transformações corporais, sendo caracterizada como um hormônio ‘mais forte’ que o estrogênio.”
  • 14
    A mediação enzimática é um processo comum na bioquímica. Raras reações no organismo se dão espontaneamente, devido à complexidade e tamanho das moléculas e o consequente impedimento estérico. Vale lembrar que enzimas são moléculas proteicas cuja função é catalisar (acelerar) reações químicas que dificilmente aconteceriam na sua ausência, ou favorecer a reação numa direção em detrimento de outra.
  • 15
    É possível perceber mais uma vez como a descrição dos gametas e seu “encontro” na fecundação são marcados pelo binarismo de gênero, confirmando os achados de Emily Martin (1991)15 MARTIN, E. The egg and the sperm: how science has constructed a romance based on stereotypical male-female roles. Signs, Chicago, v. 16, n. 3, p. 485-501, 1991. em seu famoso artigo “The egg and the sperm: how science has constructed a romance based on stereotypical male-female roles”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    28 Fev 2016
  • Aceito
    30 Set 2016
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