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STRATHERN, Marilyn. O efeito etnográfico e outros ensaios. Coordenação editorial: Florencia Ferrari. Tradução: Iracema Dullei, Jamille Pinheiro e Luísa Valentini. São Paulo: Cosac Naify, 2014. 576 p.

STRATHERN, Marilyn. . O efeito etnográfico e outros ensaios. Coordenação editorial: Ferrari, Florencia. . Tradução: Dullei, Iracema; Pinheiro, Jamille; Valentini, Luísa. . São Paulo: Cosac Naify, 2014. 576p.

O livro O efeito etnográfico e outros ensaios1 1 O estudo integral da obra fez parte do programa da disciplina Seminários Avançados em Teoria Antropológica I do curso de Doutorado em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina, ministrado no primeiro semestre de 2015 pelo professor Oscar Calavia Sáez. Parte dos argumentos aqui apresentados foram sistematizados em anotações livres feitas por mim em sala de aula a partir das leituras, das apresentações dos colegas, debates e intervenções promovidas pelo professor e alunos durante as apresentações dos seminários. apresenta uma coletânea de 16 dos artigos mais influentes da antropóloga britânica Marilyn Strathern publicados nas últimas décadas, reunidos num único e denso volume. Parte dos textos tem ampla circulação no meio antropológico brasileiro e alguns deles já haviam sido traduzidos em língua portuguesa. Entretanto, a maior parte do livro apresenta artigos traduzidos em primeira mão, entre o quais, textos de difícil acesso mesmo em língua inglesa, provenientes de publicações antigas há muito tempo esgotadas. Além disso, o volume traz uma introdução totalmente inédita escrita por Strathern, exclusiva para essa edição brasileira.

Por sua densidade e critério na seleção dos textos, pode-se dizer que o livro oferece a possibilidade de uma visão abrangente das ideias, pensamentos e propostas de Strathern. A forma de organização cronológica, que tende a desenhar a trajetória linear das ideias de um autor, nesse caso contribuiu para mostrar a não linearidade de pensamento e articulação das ideias de Strathern, confirmando, nessa edição, sua postura epistemológica.

Marilyn Strathern tem exercido uma influência decisiva sobre os rumos contemporâneos de nossa disciplina. Dona de um estilo analítico denso e original, indiscutivelmente ela é uma das principais responsáveis pela renovação, a partir dos anos 1980, do programa teórico da antropologia britânica. Suas propostas tiveram largo ingresso na antropologia brasileira nos últimos anos (Strathern, 19992 STRATHERN, M. No limite de uma certa linguagem. Mana, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 157-175, 1999.).

Em todo o livro, Strathern não define conceitos, não conclui, não abre nem fecha. Não aponta claramente aonde quer chegar nem exatamente de onde partiu. Quando algo começa a se desenhar enquanto conceito ou categoria, o argumento toma um rumo completamente dissonante de sua partida e caminha para o inesperado, dissolvendo-se em seguida sem deixar muitos rastros. Uma de suas estratégias para deixar as possibilidades nesse estado aberto e instável é o uso recorrente que faz de termos autocomplementares e autorreferentes, termos ampliados e combinados que são um do outro e parte de um mesmo conjunto. Se em algum momento há necessidade de conceituar, afirmar, objetivar, sintetizar, essa é uma tarefa que Strathern relega exclusivamente ao leitor.

O livro confirma Strathern como uma autora decisivamente monotemática. Apesar de o título fazer referência a etnografia, o foco de discussão gira sistematicamente em torno das relações. Entretanto, para tratá-las, Strathern evoca diferentes pontos de vista, em especial as perspectivas melanésias, africanas, ameríndias e inglesa, revelando-se uma pensadora pluriespectral. Para tanto, faz uso de diferentes dispositivos conceituais, como artefatos (cap. 6 e 16); conhecimento (cap. 4 e 5); rede (cap. 9 e 10); gênero (cap. 1, 2 e 3); parentesco (cap. 7 e 8); sociedade (cap. 7 e 15); socialidade (cap. 7 e 8); propriedade (cap. 13 e 15); entre outros.

Em praticamente todos os capítulos, Strathern levanta a problemática da natureza da produção antropológica e do trabalho de campo, apontando tais questões como feridas abertas da antropologia. Seu interesse está nas estruturas de poder que atualizam os paradigmas que orientam a disciplina e ditam o que é válido. Nesse caminho, a autora promove um deslocamento da noção de nativo. Para ela a questão crucial não está nas noções de distanciamento/proximidade ou familiaridade/estranhamento, tão discutidas na antropologia urbana, mas para quem o(a) antropólogo(a) está escrevendo, a quem servirá o conhecimento produzido e o tipo de relação que se estabelece no processo de investigação antropológica. Mais do que pertencer à sociedade estudada, importa, de fato, os “tipos de premissa sobre a vida social que informam a investigação antropológica” e se há “continuidade cultural entre os produtos de seu trabalho e o que as pessoas da sociedade estudada produzem em seus relatos sobre elas mesmas” (p. 134). Em última instância, o objetivo final da antropologia é produzir conhecimento para si, para sua própria reflexão. A acusação recorrente de que os antropólogos frequentemente usam a vida e a experiência de outras pessoas para seus próprios fins, para Strathern, não reside na informação que o antropólogo usa ou obtém, mas na atividade produtiva por trás da informação. “Se nos devemos nos alinhar a algo, deve ser à natureza da atividade produtiva” (p. 138). Importa para Strathern, sobretudo, “o que a forma e o estilo da escrita antropológica têm a dizer sobre os projetos de conhecimento aos quais se vinculam” (Lotierzo; Hirano, 20131 LOTIERZO, T.; HIRANO, L. F. K. Apresentação. In: STRATHERN, M. Fora de contexto: as ficções persuasivas da antropologia. Tradução: Tatiana Lotierzo e Luis Felipe K. Hirano. São Paulo: Terceiro Nome, 2013. p. 9-19., p. 9).

Para Strathern, as relações inerentes ao trabalho de campo que se estabelecem entre escritor, autor, leitor, informante, sujeito cria diversos pontos cegos na escrita etnográfica. Por isso, a etnografia, enquanto produção antropológica, produz diferentes e imprevisíveis efeitos etnográficos dependendo da perspectiva e finalidades tomadas. Em diálogo com Strathern, Viveiros de Castro sublinha que, de fato, somos todos nativos de algum lugar, mas ninguém é nativo o tempo todo. Assim, pensar reflexivamente não significa sempre pensar como pensam os antropólogos: as técnicas de reflexão e autorreflexão podem variar crucialmente. Em suma, independentemente de antropologia feita em casa ou não, ninguém é antropólogo do mesmo jeito (Viveiros de Castro, 20023 VIVEIROS DE CASTRO, E. O nativo relativo. Mana, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, p. 113-148, 2002.) e nem para os mesmos fins.

Strathern não faz uso do modelo narrativo. Não é comum nesse volume a autora contar historinhas ou anedotas para introduzir um assunto ou ilustrar seus argumentos. Pode-se dizer que em quase sua totalidade o livro está constituído essencialmente de teoria antropológica, portanto, direcionado a um público seleto e especializado. A leitura, de interesse restrito às disciplinas acadêmicas, exige intensa concentração e perseverança.

Em relação à tradução, embora traduzir Strathern já seja em si um empreendimento digno de nota, faz-se necessário cuidado com a intepretação de certos termos que nem sempre estão bem contextualizados. A artimanha poderosa de jogar com as ambiguidades, sentidos implícitos, a ironia e outros efeitos típicos da língua inglesa – e deixar ao leitor a escolha final pelos diversos caminhos interpretativos – é empobrecida na tradução dessa primeira edição.

Essa e outras traduções de Strathern desmistificam uma suposição recorrente nos programas de pós-graduação em antropologia no Brasil: até poucos anos atrás, acreditava-se que as dificuldades de compreensão do pensamento de Strathern decorria em parte por ser expresso em outra língua. Essa hipótese agora está amplamente descartada.

Referências

  • 1
    LOTIERZO, T.; HIRANO, L. F. K. Apresentação. In: STRATHERN, M. Fora de contexto: as ficções persuasivas da antropologia. Tradução: Tatiana Lotierzo e Luis Felipe K. Hirano. São Paulo: Terceiro Nome, 2013. p. 9-19.
  • 2
    STRATHERN, M. No limite de uma certa linguagem. Mana, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 157-175, 1999.
  • 3
    VIVEIROS DE CASTRO, E. O nativo relativo. Mana, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, p. 113-148, 2002.
  • 1
    O estudo integral da obra fez parte do programa da disciplina Seminários Avançados em Teoria Antropológica I do curso de Doutorado em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina, ministrado no primeiro semestre de 2015 pelo professor Oscar Calavia Sáez. Parte dos argumentos aqui apresentados foram sistematizados em anotações livres feitas por mim em sala de aula a partir das leituras, das apresentações dos colegas, debates e intervenções promovidas pelo professor e alunos durante as apresentações dos seminários.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017
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