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STAGNARO, Adriana A. Ciencia a pulmón: etnografías de laboratorios argentinos de biotecnología. Buenos Aires: Fundación CICCUS: CLACSO, 2015. 320 p.

STAGNARO, Adriana A.. Ciencia a pulmón: etnografías de laboratorios argentinos de biotecnología. Buenos Aires: Fundación CICCUS: CLACSO, 2015. 320p.

“Ciência a pulmão” é um livro de fôlego. Adriana Stagnaro levou mais de uma década coletando dados etnográficos sobre as condições de produção da ciência e da biotecnologia na Argentina para utilizá-las como base de sua tese de doutorado (defendida em 2012) e como base desse livro publicado em 2015. Foi ao longo dos anos de 1993, 1994, 1995, 1996, 1997, 1998, 1999 e 2006 que Stagnaro colocou para si como questão quais foram os efeitos da década de neoliberalismo argentino para as formas de produzir ciência e biotecnologia. A abertura da economia incluiu a transferência de tecnologias e de ciência para a Argentina Então, ela achou pertinente se perguntar: como se deu essa mudança? Como os cientistas experimentaram esse momento e de que forma se relacionaram com a abertura ao capital externo?

As perguntas propostas pela autora destoam um pouco do que se têm constituído como foco de investigação dos estudos sociais da ciência. Essa área tem animado estudos antropológicos ao longo das últimas três décadas nos EUA e na Europa mais centrados nas formas de produzir ciência a partir dos laboratórios e das práticas dos cientistas em seu cotidiano. A ênfase nesses estudos é dada ao laboratório enquanto um local de produção material da realidade e da criação da ciência como um empreendimento que demanda esforços de associação entre humanos e não humanos em redes de relações. Diferentemente dessa abordagem, Stagnaro propõe pensar a produção da ciência e da biotecnologia a partir das particularidades de um país considerado em desenvolvimento em relação aos considerados centrais. Ela está interessada nas consequências dessa assimetria para o tipo de ciência e de biotecnologia que é produzida na Argentina na década de 90 do século XX, a partir da etnografia de três empresas ou institutos distintos situados em Buenos Aires (Gentec), Santa Fe (Biogen) e Tucumán (Microrgan).

O livro está estruturado em quatro capítulos, com prólogo, uma introdução e um epílogo. No primeiro capítulo, a autora faz uma recuperação da ciência como objeto de estudos nas ciências sociais iniciando pela obra de Merton. Depois tece comentários a respeito do seu posicionamento em relação aos mesmos e suas opções teóricas. Nos três capítulos seguintes ela descreve os três momentos etnográficos, com dados coletados a partir de visitas, observação participante, 94 entrevistas em profundidade e documentação fornecida pelos interlocutores e investigadas pela autora, além de e-mails e conversas fora do ambiente acadêmico. Os temas de destaque na apresentação desses materiais são a respeito da relação entre os pesquisadores, a constituição de seus grupos e empresas e suas trajetórias acadêmicas e profissionais.

No capítulo que a autora dedica a apresentar suas vinculações teóricas, fica evidente sua escolha de utilizar algumas discussões encontradas nos trabalhos dos STS (science and technology studies) e as associar as críticas de Pierre Bourdieu ao construcionismo relativista da “vida em laboratório” (p. 39). A autora faz uso do conceito de habitus para pensar as estratégias internas e externas que influenciam o fazer ciência e nesse sentido ajuda a capturar as lógicas das estruturas que extrapolam o laboratório e que têm peso “no ponto de vista desinteressado” dos acadêmicos (p. 41). Assim sendo, a ciência é produzida desde as dinâmicas internas dos laboratórios, mas sob influência de dinâmicas externas socioculturais que podem tolher ou fomentar o andamento das pesquisas e das práticas dos cientistas. Essa associação de teorias é o recurso da autora para entender e focar sua atenção nas relações de poder nacionais e internacionais que, ao mesmo tempo, estimulam e entravam a produção do conhecimento, a partir dos dados encontrados na pesquisa.

Penso que essa decisão da autora de associar estruturalismo com os STS pode estar ligada à crítica que alguns autores fizeram sobre a forma como o poder e as relações assimétricas são abordados pelos STS (p. 39-42). O que se percebe na obra de Stagnaro é que ela considera insuficiente utilizar somente a tradição teórica e metodológica dos STS para resolver as questões relacionadas ao poder que elaborou a partir do seu campo.

Em relação aos capítulos seguintes, os quais são dedicados a apresentar os resultados dos processos etnográficos, a autora inicia com a descrição da sua entrada em campo, que aconteceu através de um seminário ocorrido na cidade de Buenos Aires, no qual cientistas, empresas farmacêuticas e representantes do governo discutiram os caminhos para produção de ciência e biotecnologia. As discussões circularam por temas como bioética e genética, que estavam em destaque naquele período. Por intermédio de suas relações, a autora toma contato com uma empresa de biotecnologia argentina, e a partir dessa possibilidade ela inicia a sua pesquisa etnográfica. Após essa introdução, ela apresenta nos capítulos seguintes cada uma das três experiências que vivenciou em campo.

No primeiro momento etnográfico, a autora acompanha a saída de um grupo de cientistas de uma empresa privada para produzir biotecnologia no campo farmacêutico. Esse grupo de cientistas abre uma nova empresa, a Gentec, com intuito de ter mais controle desde a criação até o produto final. Eles se intitulam empresários que trabalham com a ciência, todos têm formação superior, mas não almejam voltar ao mundo acadêmico. No campo profissional que vislumbram, se denominam tradutores do mundo científico para o biotecnológico, seu trabalho é de intermediação e está ligado às demandas de mercado.

O segundo local etnografado foi a empresa Biogen, criada numa incubadora universitária na região de Santa Fe. O diretor dessa empresa foi um pesquisador que fez sua pós-graduação na Alemanha e teve dificuldades de retornar ao meio acadêmico argentino. Sua condição de estar ligado a um instituto alemão que tinha um convênio assinado com a universidade argentina possibilitou que ele retornasse nessa forma associada ao mundo acadêmico. Essa relação com o instituto alemão colocou em seu poder recursos que foram utilizados para realizar pesquisas na área biotecnológica nessa parceria público-privada. O diretor da Biogen reconhece que sua posição o habilita a produzir uma boa ciência de “segunda linha” e não uma “ciência de ponta” devido aos recursos limitados (p. 150). Para esse pesquisador, a “ciência de ponta” estaria a cargo dos países europeus e dos EUA. Nesse capítulo, Stagnaro mostra dificuldades que esse diretor encontra, em particular, relacionadas com um certo desprestigio acadêmico local por não pertencer ao quadro de professores da universidade.

No terceiro campo etnográfico, descrito no quarto capítulo, a autora apresenta o instituto Microrgan, ligado à universidade em Tucumán, que é mantido por verbas estatais para pesquisa e bolsas de pós-graduação. Esse instituto foi fundado em 1978 com objetivos de pesquisa definidos durante o período de ditadura, e se manteve fiel a temas iniciais como o desenvolvimento de pesquisas sobre microrganismos que podiam ser utilizados na área ambiental, como controle biológico para agricultura e na área de biocombustíveis (álcool). Nesse instituto, Stagnaro fez 53 entrevistas em profundidade e desenvolveu o perfil dos sete diretores, dos pós-graduandos, dos pesquisadores associados e dos técnicos que formam o corpo de profissionais que atua ali. Por meio dessas entrevistas a autora mostrou disputas e hierarquias internas sentidas pelos integrantes na formação dos recursos humanos, aliadas à busca constante de recursos para manter o local em funcionamento.

A singularidade do livro de Stagnaro pode ser percebida por inúmeras características, contudo, considero que o destaque de sua obra está relacionado com três aspectos: a forma de associação teórica dos STS com os trabalhos de Bourdieu sobre ciência; o fôlego de sua pesquisa de campo ao longo de mais de uma década; e o esforço de entender a dinâmica da produção de ciência e biotecnologia argentina através de etnografia multissituada. Com essas características, e em especial com material etnográfico riquíssimo, essa obra se torna uma referência para quem se aventura nos estudos da ciência na América Latina.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017
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