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GLOWCZEWSKI, Barbara. Devires totêmicos: cosmopolítica do sonho. Tradução: Jamille Pinheiro e Abrahão de Oliveira Santos. São Paulo: n-1 edições, 2015. 352 p. Edição bilíngue.

GLOWCZEWSKI, Barbara. . Devires totêmicos: cosmopolítica do sonho. Tradução: Pinheiro, Jamille; Santos, Abrahão de Oliveira. . São Paulo: n-1 edições, 2015. 352p. Edição bilíngue.

Políticas em sonhares: devir, agir e transformação entre os warlpiri

Como acessar um modo de existência humana que se esvazia se escrito unicamente sob a égide da “cultura”? Como transpor em palavras escritas um mundo que escapa à lógica cartesiana ocidental? O desafio de enredar-se em espaços e tempos colapsados pelos sonhares aborígenes é feito com muita desenvoltura por Barbara Glowczewski, uma das poucas antropólogas francesas a trabalhar atualmente junto aos coletivos warlpiri da Austrália. O leitor é facilmente envolvido pela trama de personagens e experiências movidas por sonhos, devires e transformações, acompanhando a antropóloga em suas relações e seus trajetos etnográficos. Aliás, entre tantos pontos altos do livro, cabe ressaltar a forma como a etnografia é realizada: totalmente imersa na vida de seus interlocutores, Glowczewski não deixa de se situar, não se distancia de modo a objetificar o que vê, o que analisa, mas tampouco se confunde com seus interlocutores. Mantém a distância em seu limite de negatividade, em regime de manutenção daquilo que produz sentido. Ao lermos sua ficção controlada, para pensarmos com Marilyn Strathern, percebemos a produção da alteridade pendendo para o lado da antropóloga, uma vez que a ontologia warlpiri – como bem afirma Glowczewski na página 149 – parece não comportar tal noção, nem mesmo no que concerne às diferenças de gênero.

Ademais de o livro não estar estruturado de forma a apresentar uma continuidade argumentativa, tendo em vista que se trata de uma compilação de textos escritos ao longo dos últimos 32 anos, pode-se pensar que o eixo que conecta aborígenes-antropóloga-escrita e leitores é o da fundição entre nomes e lugares, de homens e mulheres que têm seus devires e agires traçados em palavras. Pode-se também intentar um resumo do que se passa em Devires totêmicos sublinhando que o que por “nós” classificar-se-ia como narrativas míticas, discursos nativos, tempo passado-presente-futuro, experiências pessoais e normas culturais é porta de entrada para sentirmo-nos entre os warlpiri, já que imbricadas e alinhavadas tais categorias na escrita de Glowczewski. Escrita esta somente possível de riqueza fecunda se cuidadosa com aquilo que dificilmente cabe em formato grafado.

No capítulo intitulado “Xamãs”, por exemplo, vemos a antropóloga ser amparada por seus amigos warlpiri quando afligida por uma dor lancinante, como ela mesma descreve, nos rins; sobretudo por um ngangkari, um curandeiro tradicional. A drenagem do sangue, intervenção para restabelecer o bem-estar da pessoa, é levada a cabo: o curandeiro cospe o sangue de má qualidade que estava alojado nas costas da antropóloga e conclui que uma pedra a havia acertado, ensejando uma reflexão acerca do caminho que havia sido percorrido em sua chegada à Lajamanu (localidade onde viveu entre os warlpiri).

Em várias passagens do livro nota-se a possiblidade de aproximações entre a etnografia que realiza junto aos coletivos australianos com estudos etnográficos que tenham como foco cosmologias ameríndias. Práticas xamânicas de extração de objetos de corpos acometidos por doenças, provocadas por ações de subjetividades não humanas, mostram que essas áreas etnográficas possuem confluências significativas no tocante aos modos de socialidades empreendidas. Isso será registrado por Glowczewski no último capítulo, quando em diálogo com o antropólogo Philippe Descola acerca das quatro modalidades ontológicas propostas por ele. Mas até chegarmos em “O paradigma dos aborígenes australianos”, imagino que todos aqueles pesquisadores que tenham tido a oportunidade de viver entre grupos humanos não modernos tenham a impressão de se ver diante de um modo de existência unicamente idiossincrático frente à cosmologia ocidental. Como se vê acontecer em um sistema de pensamento como o ocidental moderno, onde mundos invisíveis são desacreditados e a “razão” devém baluarte de superioridade, a exceção não está na cultura dos Outros. Sublinho também que, já nas primeiras páginas do livro, Glowczewski dedica um tópico às “Cosmopolíticas ontológicas australianas e afro-brasileiras”, tecendo uma outra rede de aproximações cosmológicas.

São ao todo 11 textos, sendo um deles a transcrição de uma conversa entre Barbara Glowczewski e Félix Guattari sobre sonho, sobre o que denomina “método do sonhar” entre coletivos australianos. A influência do psicanalista no trabalho de Glowczewski é evidente a partir do que se lê em “Espaços dos sonhares warlpiri”, texto no qual território, itinerário e sonho formatam relações de transformação entre tempo mítico, heróis viajantes e totem. O primeiro e o último capítulo fazem bem o papel de introdução e de fechamento.

Textos enxutos, ricos em categorias nativas, ganham força em “Agir e Devir”. Jukurrpa, entendido como “uma memória em devir”, busca dar conta das relações entre tempos a partir de um modo de pensá-las como processos de retroalimentação entre passado, presente, futuro e matéria. Outro conceito warlpiri importante é o de maralypi, que é traduzido como uma expressão concentrada de kuruwarri. Nas palavras de Glowczewski: “Maralypi, ainda mais do que uma expressão concentrada de kuruwarri, é o motor mesmo do desdobramento de todas as formas que os kuruwarri podem assumir (totens, pessoas, lugares). Nesse sentido, maralypi é o segredo da vida, um assunto restrito aos homens” (p. 122). Nesse capítulo vemos as diferenças entre homens e mulheres warlpiri não serem essencializadas em gêneros masculino e feminino, respectivamente. Trata-se de “duas faces” de uma mesma força, que tanto estão presentes em humanos quanto em animais e vegetais. A oposição, aparentemente, se dá em categorias como abaixo/acima e é evocada em termos rituais ao longo da vida por homens e mulheres. Em “Agir e Devir” temos um capítulo que condensa o que a antropóloga chama de sistemas reticulares de pensamento warlpiri, dando passagem para o que o último texto do livro discutirá em termos de teoria antropológica.

E é na última frase de “Agir e Devir” que vemos Glowczewski delinear seu objetivo. Propõe-se a “encontrar uma figura topológica cujas propriedades permitam buscar uma lógica comum subjacente aos diferentes aspectos das sociedades australianas” (p. 133). Linhas de uma errância estruturalista? O que se pode aferir é que o livro Devires totêmicos não cabe em escolas antropológicas clássicas, mas delineia trocas. Diverge com elegância e firmeza de Philippe Descola ao afirmar que discorda do modelo de ontologia totêmico advogado por este aos aborígenes. Segundo Descola, imbuído da definição de totemismo lévi-straussiana, essa seria uma ontologia caracterizada pela continuidade entre natureza e cultura: “as semelhanças interiores correspondem à identidade das almas-essências e à conformidade dos membros de uma classe com um tipo, enquanto que as semelhanças físicas se fundam na identidade da matéria e do comportamento dos humanos e das espécies totêmicas que lhe dão nome” (p. 144). Glowczewski afirma, amparada em sua etnografia, ter observado que práticas individuais e coletivas de mitos e ritos aborígenes prolongam-se a partir das polaridades propostas por Descola, porém não lhe parece que isso aconteça “meramente pelas semelhanças físicas e interiores” (p. 145). Existiria uma “fronteira turva” entre totemismo e naturalismo, totemismo e animismo, totemismo e analogismo, segundo a antropóloga, vista a partir de uma perspectiva aborígene. O sistema de pensamento dos aborígenes da Austrália foi estudado por ela tanto em termos de estruturas quanto em termos de discursos sobre eles próprios (p. 147), abordagem que defende dar conta de uma cosmologia onde não há centro explicativo que se propague. São muitos centros reverberados a partir de lugares-sujeitos.

Os sonhares são totens, diz Glowczewski. E a leitura de Devires totêmicos convida a adentrar em um sistema conexionista, no qual traços visuais são interpretados por saberes e agires warlpiri. Desdobramentos epistemológicos podem ser sentidos em uma antropologia contemporânea reversa: quem sabe a oxigenação da criatividade permita destituirmo-nos cada vez mais de anseios purificadores, calcados em longos séculos de investimento na separação entre natureza e cultura.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017
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