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URIARTE, Urpi Montoya; MACIEL, Maria Eunice (Org.). Patrimônio, cidades e memória social. Salvador: EDUFBA: ABA, 2016. 405 p.

URIARTE, Urpi Montoya; MACIEL, Maria Eunice. (Org.). Patrimônio, cidades e memória social. Salvador: EDUFBA: ABA, 2016. 405 p.

A vivência das pessoas na cidade relaciona-se, de uma forma ou de outra, com as memórias ativadas pelo patrimônio local, sejam essas pessoas transeuntes blasés, sejam aqueles que vivem da cidade pelo comércio, moradia, comensalidade e outras formas onde as ruas são palcos dessas relações. Enquanto resultado da colaboração de profissionais e alunos do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da Bahia (PPGA/UFBA) e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGAS/UFRGS), Patrimônio, cidades e memória social é uma coletânea de etnografias e ensaios que busca discutir temas da antropologia urbana em diversas abordagens. Devidamente apresentado por Ruben Oliven, que retoma a urbanização recente do país, a obra traz 17 textos organizados em três partes que ordenam a leitura para debates sobre como a memória social pode iniciar processos de patrimonialização e seus reflexos na cidade.

A primeira parte do livro é dedicada a cinco etnografias que discutem as formas de leitura dos espaços urbanos, além de uma revisão crítica da teoria de como ler a rua e as ruas. No texto de abertura, Urpi Uriarte explica como as imagens mentais e memórias coletivas da urbanidade são formadas, inclusive a ideia de uma cidade plana, projetada para a circulação viária, ainda que a cidade possua um terreno completamente irregular (p. 29). Além disso, a autora retoma as concepções de Gilberto Freyre e Roberto DaMatta sobre a relação da rua e da casa no Brasil. Importante notar que tais noções de público e privado não se limitam às relações brasileiras de rua e casa, mas também ocorrem em Cuba, onde essas fronteiras borram ainda mais por conta do turismo sexual (Alcazar Campos, 2010ALCAZAR CAMPOS, A. “Jineterismo”: ¿turismo sexual o uso táctico del sexo?. Revista de Antropología Social, Madrid, n. 19, p. 307-336, 2010.). Na primeira etnografia dessa seção, Cíntia Müller e Edmundo Machado Júnior apresentam como o processo de territorialização é vivido por taxistas e quilombolas em Porto Alegre e em Salvador: enquanto os primeiros criam raízes observando a demanda urbana, os segundos buscam reconhecimento e a permanência em seus territórios. Outra luta por espaço, mas com outros atores, é apresentada por Juliana Mesomo e Arlei Damo na etnografia que descreve a resistência das famílias que embatem com o Estado ao recusarem-se a deixar suas moradias em detrimento das obras da Copa do Mundo de 2014, reificando os vínculos com o local. No quarto texto da Parte 1, Ana Luiza Carvalho da Rocha e Cornelia Eckert trazem uma etnografia visual de um bairro, antes pujante e industrial, atualmente acolhendo economias do terceiro setor: uma demonstração de como a economia impacta na paisagem urbana ao longo das décadas. O capital imobiliário e as ações do Estado também são debatidos por Ordep Serra ao desvelar o processo de abandono e a relativização de prioridades que atendam aos construtores e empreiteiras em Salvador, durante a Copa do Mundo de 2014. Finalmente, Lorena Volpini demonstra como o imaginário persiste nas populações das palafitas do bairro de Alagados, em Salvador, uma vez que essas memórias fazem parte da identidade local, tornando-se, também, uma forma de resistência.

A segunda parte do livro é composta por críticas aos processos de patrimonialização, em especial aqueles praticados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), onde os técnicos da entidade ignoram certos aspectos antropológicos em suas decisões. Essa situação é bem discutida nos textos, assim como os impactos de tais posturas. Como um primeiro exemplo, Antônio Passos apresenta o conturbado processo de tombamento do Saveiro Sombra da Lua, onde a “comunidade saveirista” não foi devidamente ouvida, desconsiderando os fazeres e saberes durante a patrimonialização. Breno Trindade também traz uma etnografia que demonstra o descaso do Iphan com o saber local e, especificamente, os limites de um território durante o tombamento do samba de roda do Recôncavo baiano. Larissa Guimarães também traz críticas ao instituto, onde o processo de inventariação dos ofícios no Centro Histórico de Belém não apresenta um plano para evitar o desaparecimento de atividades que podem ser extintas. Em outra abordagem, agora crítica ao método, Fernando Firmo demonstra como a antropologia visual pode ser usada como um processo de legitimação e documentação de expressões culturais.

No já citado texto de abertura de Uriarte, a autora diz que “o comércio de víveres torna essa rua um espaço familiar, onde se para, se fica, se conversa, e não apenas se passa” (p. 44) para explicar a “alma da rua” e o pertencimento que as pessoas têm com a cidade. Sobre o viver a cidade, a Parte 3 do livro possui sete textos que, por sua vez, são distribuídos em três categorias: antropologia da alimentação, dos objetos e da religião. Os textos sobre alimentação se iniciam com a etnografia de Maria Giraldo sobre a chicha, uma bebida colombiana de milho moído fermentado, originalmente com propósitos ritualísticos e atualmente com estigmas e preconceitos por parte da sociedade. Helisa Castro etnografou as relações de solidariedade e comensalidade em uma cozinha comunitária de um “lixão” em Porto Alegre. Ana Cláudia Minnaert apresenta um texto sobre a culinária diaspórica chinesa em Lima, Peru, como uma forma de adaptação dos imigrantes, bem como a integração com a urbanidade. Fechando o bloco sobre alimentação, Maria Eunice Maciel discute e desconstrói a ideia do que é típico, usando as relações de feijão e feijoada pelas pessoas. A respeito da antropologia dos objetos, Aline Rochedo apresenta “o Vestido”, com “V” maiúsculo, para falar das relações entre as pessoas que se envolveram na produção da vestimenta apresentada. Os últimos dois capítulos, sobre a antropologia da religião, abordam religiões de raízes africanas. Marlon Passos problematiza como o tombamento de um terreiro de candomblé na Bahia afeta a identidade étnica-racial, especialmente sobre o registro das práticas ritualísticas. Finalmente, Mariana de Moura observa como a produção jornalística afeta a construção do imaginário da umbanda em Salvador.

Ao longo do livro, diversos temas são recorrentes nos textos apresentados. Cito três em especial: a territorialização, a gentrificação e a relação Estado-comunidade nos diversos processos (tombamento, construções, etc.). Sobre o primeiro aspecto, Deleuze e Guattari já discutiram largamente sobre o agenciamento na formação dos territórios (Haesbaert; Bruce, 2002HAESBAERT, R.; BRUCE, G. A desterritorialização na obra de Deleuze e Guattari. Geographia, v. 4, n. 7, p. 7-22, 2002. Disponível em: <Disponível em: http://www.geographia.uff.br/index.php/geographia/article/view/74 >. Acesso em: 15 maio 2017.
http://www.geographia.uff.br/index.php/g...
). Considerando que “a desterritorialização é o movimento pelo qual se abandona o território, […] e a reterritorialização é o movimento de construção do território” (Haesbaert; Bruce, 2002HAESBAERT, R.; BRUCE, G. A desterritorialização na obra de Deleuze e Guattari. Geographia, v. 4, n. 7, p. 7-22, 2002. Disponível em: <Disponível em: http://www.geographia.uff.br/index.php/geographia/article/view/74 >. Acesso em: 15 maio 2017.
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, p. 15), deve-se observar se esses movimentos são forçados pela relação Estado-comunidade, como nos processos de patrimonialização ou nas intervenções para as obras da Copa do Mundo de 2014, o que também promoveria os processos de gentrificação (Mascarello, 2016MASCARELLO, R. P. Cidades à venda: a produção capitalista do espaço e do direito no contexto da Copa do Mundo de 2014. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.).

Uma última consideração a ser feita é sobre a necessidade de estar em campo para saber do que se decide, algo que foi ausente nos processos do Iphan mencionados no livro. Urpi Uriarte, novamente no primeiro capítulo, diz que “é preciso, pois, ‘descer’ às ruas, se jogar nas ruas, para aprender a vida social delas” (p. 48, grifo meu). Afinal de contas, etnografar a cidade do alto de um prédio não é tão diferente das pesquisas de gabinete do século XIX.

Referências

  • ALCAZAR CAMPOS, A. “Jineterismo”: ¿turismo sexual o uso táctico del sexo?. Revista de Antropología Social, Madrid, n. 19, p. 307-336, 2010.
  • HAESBAERT, R.; BRUCE, G. A desterritorialização na obra de Deleuze e Guattari. Geographia, v. 4, n. 7, p. 7-22, 2002. Disponível em: <Disponível em: http://www.geographia.uff.br/index.php/geographia/article/view/74 >. Acesso em: 15 maio 2017.
    » http://www.geographia.uff.br/index.php/geographia/article/view/74
  • MASCARELLO, R. P. Cidades à venda: a produção capitalista do espaço e do direito no contexto da Copa do Mundo de 2014. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017
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