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REIS, Daniel. Cidade (i)material: museografias do patrimônio cultural no espaço urbano. Rio de Janeiro: Mauad: Faperj, 2015. 244 p.

REIS, Daniel. . Cidade (i)material: museografias do patrimônio cultural no espaço urbano. Rio de Janeiro: Mauad: Faperj, 2015. 244 p.

A expansão do campo do património cultural atingiu contornos vertiginosos nas últimas décadas. Temos assistido ao emergir de políticas públicas das mais variadas anatomias nos âmbitos internacional e local; são inúmeros os projetos que foram recentemente desenvolvidos por instituições estatais, por ONGs, e também por associações e pela sociedade civil; multiplicam-se à velocidade da luz as pesquisas académicas que analisam de perto a transformação do património cultural num fenómeno omnipresente que alimenta os mais diversos processos de apropriação, formatação ou mercantilização.

Sob essa perspetiva, e no que tange às pesquisas académicas, temos vindo a notar um grande interesse pelas políticas desenvolvidas no âmbito nacional e internacional, suas configurações, aplicabilidades e efeitos colaterais. Por outro lado, ainda hoje o interesse em relação às ações de âmbito local continua a ser menor: os princípios de normatividade são altamente elaborados no âmbito nacional e internacional, sendo posteriormente reapropriados e aplicados das mais diversas formas em contextos locais cujas especificidades merecem um olhar atento e um mergulho de profundidade, que dificilmente acontece quando o marco normativo foi simplesmente importado, e quando a adaptação foi feita à medida de uma agenda política, com frequência pouco sensível e experiente na matéria.

Cidade (i)material: museografias do património cultural no espaço urbano surge para nos chamar a atenção sobre essa realidade e sobre os seus ecos (in)desejados. Inúmeras são as questões que justificam a pesquisa: como é que as cidades pensam, escolhem, processam e fabricam os seus patrimónios culturais? Que narrativas e conceções de passado, de história, de identidade ou de cultura estão a ser colocadas em jogo, e quais estão a ser simplesmente esquecidas, ignoradas ou desvalorizadas? Quem são e de que maneira operam os ideólogos do património à frente dos órgãos locais de patrimonialização e preservação? Que tensões e diálogos são pautados no espaço urbano? Quais os cenários que não foram incluídos na performance e quais os atores e atrizes que ficaram fora da peça?

Resultado de uma pesquisa de doutoramento acurada e com farto material empírico, Cidade (i)material parte de um estudo de caso, a cidade de Juiz de Fora no estado de Minas Gerais (Brasil), para investigar as conflituosas relações entre patrimonializadores, patrimonializados e mediadores, e as respetivas políticas públicas entre as décadas de 1980 e 2000, colocando-nos assim perante uma análise aprofundada e sensível do lugar do património cultural na sociedade brasileira contemporânea.

Sob essa perspetiva, e em diálogo com a mais recente literatura da antropologia e da história, a obra apresenta uma noção de património cultural entendido enquanto ação, forma de agir e de intervir no mundo que habitamos, fornecendo-nos assim uma leitura crítica sobre os mecanismos de invenção discursiva do património cultural, sobre as zonas de contacto e conflito, sobre as paixões, as lutas e os interesses envolvidos nas políticas patrimoniais citadinas e sobre os atores e atrizes que protagonizam cada uma das dimensões técnicas e subjetivas do património juizforano.

Interessante é, justamente, a proposta de pensar o património cultural enquanto “processo curatorial da cidade”, enquanto “sobreposição de temporalidades” negociadas, enquanto “nebulosidade de formas” que se configuram ao ritmo da batuta política e mediática, enquanto “alegoria de uma modernidade” utópica que se arrasta a si mesma por percursos que nunca existiram.

A cidade é assim apresentada pelo autor como um sempre inacabado projeto museográfico de exibição do passado e da cultura no espaço urbano, envolvendo - como todos os projetos desta natureza - um sofisticado processo de apagamento dos fenómenos de produção, dos ruídos sociais, culturais ou ambientais, dos embates que assomam em cada canto.

Nesse sentido, o estudo de caso escolhido por Daniel Reis é uma cidade do século XIX que procura reinventar-se construindo uma autoimagem sinónima do progresso, valendo-se para isso de adjetivos importados do início do século XX - como o de “Manchester Mineira” - com o objetivo de salientar os seus potenciais. Juiz de Fora torna-se assim a antítese do projeto levado a cabo pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em busca dos vestígios barrocos e coloniais das cidades mineiras, ignorando as diversas marcas da sua história, para se converter num perfeito exemplo de um casamento fatal que vincula as práticas da visão autorizada do património com a bricolagem identitária.

A partir daqui, e ao analisar a trajetória da política pública da cidade, o autor identifica três momentos. O primeiro, na década de 1980, é norteado por uma perspetiva sensorial e afetiva dos patrimónios da cidade. Trata-se de um olhar lírico calcado na memória e na experiência dos ideólogos do património local sobre o espaço urbano. É o momento de implementação de uma política pública local em que os embates dentro das próprias esferas de governo, contrárias a mecanismos de preservação, iniciam a sua proliferação.

Na sequência o autor aponta um período caraterizado pela consolidação de uma política pública local (entre 1988 e 2004), onde se assiste a um vertiginoso crescimento da lista dos bens preservados e ao aperfeiçoamento desse tipo de mecanismos, substituindo-se o olhar sensível sobre a cidade por uma visão eminentemente técnica. A urbe passa a ser patrimonializada a partir de justificativas pautadas em factos históricos e estilos arquitetónicos, em critérios de excecionalidade e monumentalidade. É a “Era dos Tombamentos” ao serviço da reinvenção da cidade, projetando uma Juiz de Fora industrial e moderna.

Por fim, num terceiro momento o autor refere a implementação do registo de bens imateriais mediante legislação própria a partir de 2004. Se por um lado, a cidade se adequa a partir de então a um novo cenário das políticas públicas voltadas para o património imaterial, o seu projeto - à imagem do que tem vindo a acontecer em muitas das nossas cidades - não deixa de ter peculiaridades próprias da desconexão entre discursos. A isso acrescem dois factos que deixam marcas indeléveis na cidade: os projetos de patrimonialização continuam a ser feitos quase exclusivamente pelos técnicos da comissão de património da cidade ignorando a dimensão participativa norteadora e essencial nesse tipo de processos; o património imaterial de Juiz de Fora atualiza o seu discurso esquecendo a ligação à cultura popular e reincidindo na ideia de cidade moderna associada a uma vanguarda de superfície. Bens registados como o Concurso Miss Brasil Gay e o Festival Internacional de Música Colonial pretendem apresentar, sem diálogo com os seus detentores e detentoras, uma cidade vanguardista e um património cultural desenhado para promover o turismo local.

Ao longo dos seus quatro capítulos, o trabalho de Daniel Reis investiga a trajetória de definição e construção do património cultural em Juiz de Fora, convidando-nos a refletir sobre os mecanismos arbitrários, tendenciais e, com frequência, excludentes das políticas culturais, sobre as divergências internas das comissões de património, sobre a falta de diálogo plural, flexível e atento às causas e às coisas que estão na base desse tipo de processos.

Nesse sentido, a sua importância não se esgota apenas na natureza do seu objeto de estudo (cidade contemporânea versus patrimonialização versus reinvenção cultural local) e no fervoroso debate que emerge da pesquisa crítica, consciente e reflexiva em torno das elaborações desencadeadas a partir da visão autorizada de património, colocando-nos igualmente perante a urgência de democratizar a história, o presente e, consequentemente, o património.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017
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