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Catarina Alves Costa, antropóloga e cineasta “com certeza”

Catarina Alves Costa, anthropologist and filmmaker “for sure”

Apresentação1 1 O título é uma referência à música intitulada Uma casa portuguesa, com certeza!, cantada por Amália Rodrigues. A transcrição da entrevista foi feita por Marina Bordini, Leonardo Palhano Cabreira, Luísa Dantas, Débora Wobeto.

No dia 17 de abril de 2018, o Núcleo de Antropologia Visual do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS recebeu a antropóloga e cineasta portuguesa Catarina Alves Costa para escutar sua palestra intitulada Antropologia e o uso das imagens nas pesquisas. Sua produção fílmica, com base em pesquisas antropológicas, é apreciada pela rede de pesquisadores da antropologia visual no Brasil, sendo constantemente referida nos programas de aulas e oficinas de antropologia visual nos laboratórios e centros de pesquisa. A influência desta antropóloga no ensino e aprendizado de antropologia visual pode ser compreendida pela presença destacada da cineasta nos mais importantes eventos de ciências sociais no Brasil como nas reuniões da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs) e reuniões da Associação Brasileira de Antropologia, além de festivais internacionais e nacionais de filmes etnográficos no Brasil. Dessa forma, Catarina se destaca nesses eventos por sua prestimosa contribuição.

A brincadeira no título desta entrevista é para aludir ao lugar de nascença e de pertença institucional da colega, que é Portugal. Catarina é professora na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas na Universidade Nova de Lisboa.

Sua vinda a Porto Alegre foi subsidiada pela Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul sobre os auspícios das Professoras Marisa Vorraber Costa e Dagmar Meyer. Nesse contexto desenvolveu o curso intitulado “A prática etnográfica e a prática cinematográfica, contributos para a educação do olhar”, assistido por alunos da antropologia.

Graças à sua presença, no dia 25 de abril 2018, foi possível desenvolver uma entrevista com Catarina para ser publicada em Horizontes Antropológicos que prima por registrar os intercâmbios internacionais que honram nosso Programa. Este espaço aberto permite sua divulgação. Votos a todos e a todas de uma boa leitura.


Catarina Alves Costa (foto: Cornelia Eckert, 2018).

Entrevista

Cornelia Eckert: Catarina, uma honra recebê-la em Porto Alegre, e agradeço pela oportunidade desta entrevista. Por favor se apresente para os leitores.

Catarina Alves Costa: No dia mais importante para o Portugal contemporâneo, comemoração da Revolução dos Cravos, estou aqui em Porto Alegre, na casa da minha colega Cornelia. Meu nome é Catarina Alves Costa, sou professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa. Pertenço ainda ao CRIA, Centro em Rede de Investigação em Antropologia. Sou antropóloga e cineasta, realizadora e neste momento coordenadora de um mestrado em culturas visuais em Lisboa, Portugal.

Para falar da minha trajetória como antropóloga visual, destacaria o meu primeiro filme, de 1992, já faz mais de 20 anos. Me refiro ao filme Regresso à terra (1992)REGRESSO À TERRA. Realização: Catarina Alves Costa. Manchester: The Granada Centre for Visual Anthropology, 1992. Hi8, 35min. Edição DVD Midas Filmes.. Esta pesquisa teve lugar em uma pequena aldeia isolada na Serra D’Arga, no norte de Portugal. Trato da chegada dos emigrantes que regressam de férias. Durante dois meses, dá-se este encontro com a família, com os amigos e com o santo padroeiro. Apesar do contraste cultural entre os que ficam e os que partem, a identidade dos emigrantes constrói-se com base nesta ligação ao rural, à terra. Este filme foi desenvolvido durante meu curso de mestrado.

Cornelia Eckert: Nos fale desta trajetória na interface da antropologia e do cinema.

Catarina Alves Costa: Bom, eu primeiro estudei antropologia. Mas antes de estudar antropologia eu já tinha grande interesse pelo cinema, [eu] ia muito ao cinema e via muitos filmes. Foi para mim um pouco óbvio fazer esta ligação, unir esses dois interesses. Mas o filme etnográfico não estava muito desenvolvido em Portugal. Eu resolvi buscar uma especialização. Nos anos 1990 estudei na Inglaterra, na Universidade de Manchester, e fiz o curso no Granada Centre For Visual Anthropology. Lá realizei meus estudos em nível de mestrado com uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian. Depois do mestrado fiz dois filmes, primeiro Senhora Aparecida (1994)SENHORA APARECIDA. Realização: Catarina Alves Costa. Lisboa: SP Filmes, 1994. Apoio financeiro: Instituto Português de Cinema (IPC) e Rádio Televisão Portuguesa (RTP) . 55min. Edição DVD em Portugal Midas Filmes. Edição DVD nos EUA e Ásia Documentary Educational Resourses (DER). e em seguida Swagatam (1998)SWAGATAM. Realização: Catarina Alves Costa. Lisboa: SP Filmes, 1998. Apoio financeiro do IPACA e da Comissão para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses. 55min. Edição DVD Midas Filmes. Disponível em: Disponível em: https://vimeo.com/213886058 . Acesso em: 30 set. 2018.
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. Mas quero contar sobre eles um pouco mais adiante.

Cornelia Eckert: Como era filmar naquela época em pesquisas etnográficas?

Catarina Alves Costa: Eu acho que houve uma mudança importante. Naquele tempo, embora nós não estivéssemos muito preocupados com a questão legal, não havia uma preocupação muito grande com consentimento informado. Não pedíamos um papel assinado. Havia, claro, uma negociação, um consentimento para a pesquisa fílmica por parte dos entrevistados. Nós só filmávamos quando sentíamos que a outra pessoa estava suficientemente empoderada, para que ela pudesse gerir a forma como ela se construía no filme. Nós tínhamos muito essa preocupação que ainda hoje é minha maneira de funcionar. Mas hoje temos todos os cuidados para o consentimento informado.

Eu conecto muito meu trabalho com o pensamento do antropólogo e cineasta David MacDougall. Ele não somente filma, mas também escreve muito sobre essa questão de como o outro interfere no nosso trabalho, embora nos pareça que somos autores, muitas vezes estamos partilhando a autoria, pois estamos em uma relação. E é essa dinâmica, entre quem filma e quem é filmado e, ainda, quem assiste essa filmagem, nesse triângulo, que eu acho que se joga essa questão de partilha da autoria. Acho que só vale a pena trabalhar com imagem se você pensar a interpretação como qualquer coisa aberta, como qualquer coisa que não está fechada. Tem, ou deveria ter, uma abertura que permitisse a quem está nessa relação, sendo filmado, filmando, assistindo, e mesmo editando, quem está nesse processo de fazer um filme, permitir que essas vozes apareçam de alguma maneira e construir uma espécie de polifonia, e não um discurso na direção de uma só maneira de ver o mundo. Isso é muito importante para mim em Senhora Aparecida. Para mim foi um filme muito lindo e surpreendente. Estávamos à espera de filmar uma festa popular, em Aparecida, norte de Portugal, onde há uma tradição notória em que as pessoas de um lugar, de um vilarejo, realizavam uma performance de participar do ritual dentro de um caixão como promessa à santa - os fiéis representando a própria morte. Nós íamos um pouco em busca dessa história e no final aconteceu outra coisa, sobreveio outra história. O filme relata os acontecimentos que se seguiram à proibição, feita por um jovem padre, da realização desta última procissão. Então tivemos que adaptar, tivemos que ir atrás da dinâmica daquilo que estava a acontecer, uma vez que o jovem padre, que estava trabalhando ali, resolve proibir essas promessas. Logo aí aparece essa questão do conflito, do tradicional no contemporâneo, que é uma questão que me interessa bastante.

Cornelia Eckert: A maioria dos seus filmes são em Portugal. Como é que é essa tua experiência de filmar em casa ou filmar o próximo, o familiar?

Catarina Alves Costa: É interessante, porque mesmo ontem estávamos a conversar com os colegas e alunos lá no curso na Educação da UFRGS. O filme em que eu me senti mais distante das pessoas e que foi mais difícil para mim, do ponto de vista do que foi entrar dentro da comunidade, foi o filme que eu fiz em Lisboa, em um bairro hindu. Swagatam, que significa “bem-vindos”, retrata esta comunidade, centrando-se numa família originária de Diu, que depois emigrou para Moçambique e daí, em 1976, para Lisboa. O filme representa o conflito entre famílias da casta de Diu, de casta baixa, com famílias do grupo de Lohanas, a casta dos comerciantes. Um novo templo está a ser construído, no entanto no pátio de sua casa a família Carsane ainda faz as suas festas e rituais alternativos ao do templo oficial.

Eles falavam só um pouco de português, a comunicação não foi fácil. A realidade hindu surgia distante, difícil de compreender. As barreiras linguísticas e culturais, assim como o fechamento próprio de uma pequena comunidade “exilada” do seu país de origem, aliadas a um forte conhecimento por parte das pessoas dos mecanismos cinematográficos, fizeram com que o olhar fosse de uma forma muito mais forte exterior ao mundo que retratava. E, no entanto, a casa da família onde eu estava a filmar ficava a dez minutos da minha casa, ou seja, era muito perto do ponto de vista geográfico, mas era muito longe do ponto de vista cultural.

E talvez onde eu tenha me sentido mais em casa foi nos filmes que eu fiz em Cabo Verde, O arquitecto e a cidade velha (2004)O ARQUITECTO E A CIDADE VELHA. Realização: Catarina Alves Costa. Lisboa: Laranja Azul; Paris: Jour J. Productions, 2004. Betacam digital, 72min. Editado e distribuído em DVD pela Midas Filmes. Distribuído pela Documentary Educational Resources (DER) nos EUA. e Mais alma (2001)MAIS ALMA. Realização: Catarina Alves Costa. Lisboa: Laranja Azul, 2001. Apoio financeiro: ICAM, IPAE, Gulbenkian. Coproduzido RTP. Betacam digital. 56min. Disponível em: Disponível em: https://vimeo.com/316156777 . Acesso em: 30 set. 2018.
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, talvez porque eu tenha aprendido a falar um pouco de crioulo e tenha vivido lá um ano, eu criei uma espécie de vida fora da vida. Porque eu estava de fato lá com as pessoas, sendo como eles naquilo que me parecia muito tempo. Então senti uma relação de muita proximidade, às vezes até uma proximidade um pouco exagerada. Por vezes esta situação não me permitia filmar, porque eu preferia estar com as pessoas do que filmá-las, tinha sempre essa questão de não conseguir encontrar um lugar de observação, que é esse lugar de fazer o filme. Claro que em Portugal e com portugueses e nessas aldeias em que eu filmei o Regresso à terra, o Senhora Aparecida, onde eu filmei o trabalho sobre o ciclo do linho e da seda, e onde fiz meu último filme no Alentejo que é Pedra e cal (2016)PEDRA E CAL = A ROOM IN THE HOUSE. Realização: Catarina Alves Costa. Lisboa: Laranja Azul, 2016. Financiado pelo Campo Arqueológico de Mértola no âmbito do Projecto “Arquitectura tradicional da vila e do termo de Mértola”. 55min. Editado em DVD pelo Campo Arqueológico de Mértola. Disponível em: Disponível em: https://vimeo.com/154631574 . Acesso em: 30 set. 2018.
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, há uma familiaridade com as pessoas, com a cultura, com os não ditos, com a invisibilidade das coisas. Afetações que são mais fortes quando se trata da tua cultura. Mas eu acho que a distância para a pesquisa fílmica é muito significativa. E a própria história da antropologia nos ensina isso, toda antropologia clássica se baseia nessa ideia de você sair do seu lugar e ir para o lugar do outro, e se baseia nessa ideia de que só adquirindo uma nova persona, você relata como observador. Mas, ao mesmo tempo, eu penso que a familiaridade é muito importante. Porque quem filma, o antropólogo, a antropóloga, também somos um personagem, no sentido em que nós criamos essa persona. Na experiência do terreno ela é supercuriosa, interessada por tudo, até um pouco inocente. Então eu acho que essa questão de sair do seu lugar e ir ao encontro do outro é muito fundadora da própria antropologia. Para mim é muito interessante esse lugar, que é o lugar de uma certa inocência, quando você pergunta. Por exemplo, no meu último filme, tem uma cena em que estou a filmar uma senhora já com 90 anos, que vive sozinha na sua casa no meio do campo, em um lugar isolado do Alentejo. E ela vive lá com seus objetos, com suas memórias e eu estou a conversar com ela. Aí chega na hora do almoço, na hora do meio-dia e ela diz: “Bom, agora você vai embora, porque é hora do almoço.” E aí ela vai à horta que ela tem fora da casa, e traz umas ervas aromáticas, orégano. Eu pergunto para ela: “Como é que você faz a açorda?” Açorda é o prato típico do Alentejo, todo mundo sabe, todo mundo conhece. E ela olha para mim e diz: “Açorda?! Não tem nada que saber!” Então essa pergunta que eu coloco dentro do filme e essa resposta, para mim, são muito da ordem do que é a dinâmica do inquérito antropológico. Você vai falando, vai perguntando como se você não soubesse, mas aí a própria pessoa pergunta: “Mas você não sabe!? Tá perguntando por quê?” E eu não posso dizer: “Estou perguntando porque estou fazendo um filme, não estou perguntando porque realmente quero saber.” Então eu acho bem interessante falar dessa proximidade, da troca que nasce no processo da pesquisa no terreno.

Cornelia Eckert: E em Cabo Verde quais foram os filmes?

Catarina Alves Costa: Em Cabo Verde eu fiz dois filmes. Fiz O arquitecto e a cidade velha, em que eu filmo Alvaro Siza Vieira, que é arquiteto português. Ele é muito conhecido, famoso mundialmente. Foi ele quem fez aqui o edifício da Fundação Iberê Camargo, aqui mesmo em Porto Alegre. Pois ele vai fazer o seu primeiro projeto na África, onde ele é chamado para recuperar uma aldeia histórica, um lugar histórico que quer ser tombado como patrimônio da Unesco. Então chamam esse arquiteto para fazer o projeto de recuperação. Ele quer manter as casas com pedra, com palha, com telhado de palha, quer manter toda tradição. Ele tem toda uma ideia romantizada do que é a vida das pessoas. E as pessoas da cidade velha querem casas novas, querem melhorias, enfim, mudar, modernizar. As pessoas locais imaginam que a vinda desse arquiteto vai trazer uma mudança nas suas vidas. Então eu filmei ao longo de três anos esses acontecimentos. Foi um processo muito complicado, em que eu tento mostrar o ponto de vista da população e o ponto de vista da equipe de arquitetos, esse encontro e essa difícil comunicação e negociação entre eles. O filme é muito sobre esse conflito, uma não comunicação. Eles falam realmente a mesma língua, mas não comunicam a partir de quadros mentais semelhantes. Então os espectadores e a câmera ficam no meio desse choque, e vira mesmo um conflito depois. Depois fiz um outro filme que é o Mais alma, que é sobre artistas contemporâneos em Cabo Verde, da música, da dança e da performance. Nele podemos ver o que esses jovens criativos fazem a partir do zero, de não ter nada, não ter meios e como eles produzem uma linguagem que ela tenta ser uma linguagem que é uma procura por identidade também. Porque Cabo Verde é muito híbrido, está entre África e Europa, essa “crioulização”, esse mundo entre continentes. Neste filme eu estou um pouco à procura de encontrar essa identidade. São dois filmes muito diferentes: um teve apoio financeiro, me refiro ao filme sobre o arquiteto Siza, teve apoio nacional e internacional, o outro não teve nada, então foram duas maneiras de fazer também muito diferentes. O Mais alma eu fiz tudo sozinha, tive que fazer tudo sozinha. No outro eu tive realmente acesso a uma equipe, todos os meios; mas são dois filmes muito diferentes.

Cornelia Eckert: Conte mais sobre este filme com o arquiteto Siza Vieira. Três anos de projeto? Como foi a questão do financiamento?

Catarina Alves Costa: O projeto foi financiado por instituições de Portugal e da Espanha, ou melhor, o projeto de recuperação da Cidade Velha é todo financiado por subsídios internacionais. O filme fez parte deste processo. Por isto tem uma questão política no filme também. Um dos personagens do filme é o Ministro de Cultura de Cabo Verde que ele quer, com esse projeto, ganhar as eleições, ele é mais uma entidade que aparece no filme. O que eu acho que foi interessante no filme, para mim, foi que, à medida que o tempo ia passando, o governo ia mudando, as esperanças das pessoas iam ficando cada vez pior, e nós estávamos a fazer esse filme sobre um projeto que não avançava e acompanhávamos o crescimento da decepção dos moradores. Então cada vez que o Siza ia lá, ficava uma semana, e nós íamos junto, e aí quando ele ia embora, nós ficávamos lá a viver junto com a população, certa desesperança. Em um momento há dinheiro para fazer alguma coisa, uma revitalização, projeto de impacto, e aí de repente desaparece, muda o governo, e aí fica tudo meio pelo dito, nada é finalizado, isso acontece por todo o lado, não é? E me interessava muito mostrar também que há uma espécie de esperança, sabe? Esses cabo-verdianos que estão numa ilha onde quase não chove, e eles estão à espera da chuva. Misturam esta expectativa com a vinda do Siza, que vira uma entidade, um pouco quase mítica, eles estão à espera que essa entidade apareça, e, claro, é complicado às vezes esse tipo de trabalho, porque cada vez mais o trabalho do antropólogo aparece entre mundos, num mundo globalizado, e muito dependente do que está a acontecer politicamente no local. Então, nesse filme, eu pude ter um tempo mais largo, como tive algum apoio, isso me permitiu viajar algumas vezes, voltar a Cabo Verde, porque eu, entremeios, fui para Portugal. E voltava a Cabo Verde, e filmava outra vez a situação. Esse tempo largo é muito importante, eu acho, no trabalho do antropólogo, e no trabalho do realizador, porque no cinema também dependemos muito do tempo, nós como espectadores sentimos a passagem do tempo, sentimos que as coisas acontecem, as pessoas vão mudando, não é? No início estão superentusiasmadas no projeto, e aquilo vira um conflito, vira um problema, então é interessante mostrar este processo.

Cornelia Eckert: Vamos falar rapidamente sobre o filme etnográfico e a tua experiência como camerawoman. Como é que você projeta um filme etnográfico? Como escolhe a temática, como escolhe o grupo? Uma vez isso decidido, você roteiriza, escolhe a equipe? Como é que você reflete o cenário, você pensa o cenário, busca-o antes ou deixa as coisas acontecerem mais espontaneamente? Como é que você constrói os personagens? E a experiência da edição?

Catarina Alves Costa: Rapidamente, o que eu posso dizer é que não há uma receita, não há uma maneira de fazer, assim, que o diga “olha, é assim que se faz!”. Eu acho que eu ainda estou à procura de como fazer. Em cada filme, cada projeto que eu tenho eu tento pensar o que que o próprio projeto, o que que a própria pesquisa, mesmo a pesquisa que você faz nos livros, na história, toda a preparação que você faz para a pesquisa, o que ela ensina sobre como fazer. Então, tem momentos em que eu vou lá, no primeiro dia, e vou filmando todo processo, e o filme vira um pouco um making of, vira um pouco um projeto em que o próprio processo de pesquisa entra um pouco dentro do filme, e tem outros que eu decido “não”, aí, sobre esse tema, eu decido o roteiro, eu gostava de preparar, de pensar, “como eu vou fazer?”. Então cada projeto tem uma metodologia diferente, eu acho que não há uma maneira de fazer certa. O que é preciso é entender na pesquisa qual é a relação que se estabelece com essas pessoas e com aquele mundo que você quer filmar, e adaptar a maneira de fazer. Por exemplo, eu fui fazer um filme dentro de uma fábrica de têxteis, onde as pessoas ficam ali a trabalhar em turnos com as máquinas que fazem barulho, então não falam, ficam em silêncio, aí foi preciso pensar “como vou filmar isto?”. Esta experiência foi muito roteirizada, muito pensada antes, porque não tinha como ir lá e improvisar, não é? Mas se você vai fazer um filme em que você vai numa viagem e, no curso dessa, você vai descobrindo um mundo, e faz sentido filmar como um road movie essa viagem, então você altera o modo de fazer. Improvisa e insere questões técnicas. Então eu diria que, para mim, não existem receitas, não existem modelos, e isso que é interessante no nosso trabalho, muda o tema de pesquisa e muda o modo de fazer. Mas para mim é muito importante ter colegas com quem conversar também, e companheiros que filmam, que fazem som, ou que fazem montagem, ou, se você não tiver o dinheiro, colegas de trabalho que você possa discutir “como nós vamos abordar esse tema?”. É complicado, então, “que estratégias são possíveis?”, não é? Agora mesmo eu estou a trabalhar com arquivos, com filme de arquivos feitos nos anos 1950 em África, então é toda uma outra maneira de fazer, fico fechada numa sala com os arquivos, com esses sons, com essas imagens, então eu acho que, eu diria que essa questão de filme etnográfico eu acho que ela está totalmente em aberto, temos que pensar que estamos a trabalhar numa área do conhecimento e da metodologia que ela é ainda muito experimental. Nós temos ainda muita coisa para fazer, não acho que eu possa dizer “ah, para mim interessa um trabalho colaborativo, me interessa um trabalho autoral, me interessa um trabalho sobre memória, etc.”, não, eu acho que nós temos que procurar que o projeto e a pesquisa nos ensine os modos de fazer, e para isso é preciso continuar a descobrir dispositivos até cinematográficos, ver cinema, aprender com o cinema, aprender também com a arte, porque a antropologia está mais próxima da arte, muitos artistas têm desenvolvido linguagens, uma linguagem extremamente nova, interessante. As experiências que encontramos nas periferias da cidade, dentro do mundo artístico, podem também nos ensinar dispositivos para nós trabalharmos, então eu acho que é preciso imaginar tudo que está ainda por fazer.

Cornelia Eckert: Vamos falar um pouco sobre o ensino. Você ensina antropologia com imagens, como é tua experiência de ensino? Como é que é seduzir alunos para o fazer antropológico com imagens?

Catarina Alves Costa: Eu acho que tem uma apetência muito forte dos estudantes por essa área da antropologia, porque talvez, agora falando dos estudantes da graduação: os estudantes da graduação em antropologia sentem que o aprendizado da antropologia, aquilo que eles aprendem, tem um lado de exercício de imaginação enorme. Você lê uma monografia clássica, você fica a imaginar, não é? Como é que são essas paisagens, esses lugares, onde esses antropólogos estiveram. Então, imagens, elas aparecem no ensino como uma ferramenta pedagógica muito importante para o ensino da antropologia. Depois, tem os estudantes da pós-graduação, mestrado, doutoramento, que aí eu acho que é totalmente outra coisa, e são pessoas que querem fazer pesquisas que têm essa demanda da imagem. Nessa fase os estudantes vão à procura de como fazer etnografias, de como encontrar maneiras de inserção e relato. No nosso caso, da pós-graduação, temos estudantes oriundos das artes, do cinema, da fotografia, à procura do método etnográfico, porque eles querem trabalhar com câmera, querem trabalhar com máquina fotográfica, mas eles querem pensar como construir a relação com o outro. Mas eles ainda não sabem muito bem como; por exemplo, do ponto de vista ético, há ainda muitas dúvidas. Então tem muita demanda que vem de outras zonas, até das ciências da comunicação, do jornalismo, que eles procuram a antropologia até como uma base, e eu acho que eles são muitas vezes levados para esses usos da imagem nessa coisa de estarem a trabalhar com temas que pedem imagens, há outros que não, você pode trabalhar temáticas que elas são realmente muito descritivas, são muito da elaboração abstrata, e tem outros que eles têm essa demanda mais empírica. Ensinar é dar conta destas demandas diversas. E a antropologia visual tem muito a contribuir nestas múltiplas demandas.

Cornelia Eckert: Catarina, vamos falar um pouco mais sobre a tua produção de filmes etnográficos e sobre a circulação. Finalizando e editando o filme, como é que você pratica essa circulação do teu filme? Me refiro também a tua participação em festivais, congressos, enfim, pensar a temática da circulação, tua como autora, como antropóloga, e também da tua produção.

Catarina Alves Costa: Há alguns anos, existe uma espécie de “família” de pessoas que trabalham nesta área, e eu sinto isto, mesmo aqui no Brasil, com os colegas brasileiros, esse contato com estas pessoas que trabalham nesta área, não é? Como aqui em Porto Alegre, com você. Mas tem outras pessoas: Sylvia Cayubi Novaes, na Universidade de São Paulo, a Clarice Peixoto, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, o Renato Athias, da Universidade Federal de Pernambuco, tem essa comunidade que nós sentimos, assim, uma coisa de rede de trocas, há uma proximidade e há uma partilha que eu acho que é muito interessante, e para mim é muito importante essa partilha. Eu não me senti sozinha porque justamente eu fui encontrando, noutros lugares no mundo, pessoas que, como eu, estavam à procura de trabalhar nessa área. Existe, hoje, essa circulação, de festivais de filmes etnográficos, nas conferências de antropologia há sempre os visuais que criam grupos de discussão, mesa-redonda, então isso é muito importante para nós, eu acho, encontrar a sua “família acadêmica”, essa partilha, e nós vamos seguindo os trabalhos uns dos outros e vamos, assim, criando laços e reciprocidades. E talvez o fato de eu ter me conectado muito cedo, muito jovem, nessa rede de pessoas, ajudou-me a circular bastante, enfim, por muitos lugares. Por exemplo, estou muito ligada à rede Nórdica de Antropologia Visual, que ela é feita pelos países nórdicos da Europa, Finlândia, Noruega, Dinamarca. E aí eu entro nessa rede porque foi necessário para mim conhecer esses colegas, e ir lá, aprender. Porque é assim que eu acho que se aprende também. É, então, assim, eu acho que o trabalho que eu faço, ele circula muito mais nessas redes de trocas do que em festivais de documentários. Por vezes, tem filmes que eles até vão em festivais de cinema, em festivais de documentários, mas tem outros que não, ficam lá guardados nas gavetas e nunca são mostrados. Depende muito dos projetos, tem filmes e tem projetos que as pessoas, que eu acho que eles não têm essa visibilidade, ou não tiveram, não calhou, não aconteceu, então depende muito também dos projetos. Mas eu acho que é importante manter essa relação, manter essa conexão, esses encontros, fazer parte de, sei lá, por exemplo, ter feito parte de júri de festival, com David MacDougall, com Marc Piault, ter conhecido Jean Rouch. São para mim momentos de aprendizagem e de partilha muito grande! Então, julgo que você não pode esquecer nunca que, quando um jovem antropólogo manda um e-mail a dizer “olha, vi o seu trabalho, gostava de trabalhar com imagem…” é importante dar um retorno. Você tem que lembrar quando era jovem, quando andava também à procura de como fazer. E tentar dar essa orientação.

Neste momento em Lisboa, nós temos esse grupo, a que nós chamamos NAVA - Núcleo de Antropologia Visual e da Arte, e nós tentamos criar nesse grupo e com esse laboratório, um lugar onde os estudantes podem vir e fazer seus projetos, até receber estudantes de fora. E trazer os seus projetos para dentro do grupo, para que o grupo possa ajudar a discutir. Acho que isso é muito importante!

Cornelia Eckert: Isso é interessante, porque no início você disse que, inclusive, a tua formação foi na Inglaterra, exatamente por uma inexistência de uma antropologia visual em Portugal. Então hoje ela estaria em que estado da arte?

Catarina Alves Costa: Eu acho que em Portugal, neste momento existe um grupo interessante, outros colegas que trabalham sobre imagens, sobre cultura visual. Do ponto de vista da realização de filmes continua a ser difícil: você encontrar apoio para produzir filmes, energia e o tempo para fazer esse tipo de trabalho. Mas eu acho que há um grupo, há grupos de trabalho bem motivados: formaram-se núcleos, tanto na Nova, na Universidade Nova de Lisboa, como em outras, por exemplo o ISCTE, onde existem também grupos ligados à cultura visual digital. E muita circulação de interesses pela internet. Começa a ver-se mais, eu diria, pessoas interessadas, a verdade é que nós ainda estamos à procura do nosso lugar. Porque se você fica muito ligada à academia e à forma que nós temos de trabalhar hoje nas universidades, dificulta por vezes o nosso tempo e a energia para fazer esse tipo de trabalho que exige muita dedicação, tempo e busca de financiamento. Então, claro, enquanto você é estudante, e está a fazer doutorado, ou está a fazer mestrado, desenvolve um projeto de imagem, interessante, motivado! Mas depois como é que fica a possibilidade de continuar? É muito complicado hoje, eu acho, para os jovens continuarem a fazer esse trabalho ao finalizarem seus cursos. Então, eu acho que era mesmo importante encontrar dentro desses laboratórios uma possibilidade mais consolidada e aberta, de trabalho com imagens.

Cornelia Eckert: Então você circula mais numa rede, digamos, nórdica, em termos de antropologia visual, do que ibérica. E quanto a França e Alemanha? Tem alguma circulação nessas redes?

Catarina Alves Costa: Sim! Assim, em termos de redes troco muito com colegas na Espanha. Tem um grupo ligado ao Museu do Povo Galego, da Galiza, com quem me identifico muito! E eu mantenho forte relação com eles. Eles fazem também um festival, uma mostra, e nós estamos até agora a trabalhar, a fazer coisas em conjunto. E com França também. Embora, eu acho que há um individualismo na antropologia francesa, mas que é histórico, não é?! Tem algumas exceções, como era o caso do Jean Arlaud, em França. Porque ele sempre chamou colegas pra trabalhar com ele, formava estudantes e os fazia filmar com ele. Algo raro. Eu acho que era da personalidade dele, carismático! Porque, em geral, os pesquisadores, eles ficam muito isolados na sua pesquisa, não criam parcerias. Já na Alemanha, continua a haver um grupo ligado ao festival de Göttingen que continua a fazer trabalho muito parceiro e global, na Holanda também, enfim, há pequenos núcleos também. Mas tem sempre a questão de financiamento! Que é muito importante. E, claro, nos países nórdicos os antropólogos e cineastas têm financiamento, então fica mais fácil para os estudantes trabalharem com imagem. Para nós fica complicado, é difícil conseguir apoio. Então, a minha família de antropologia visual, como eu disse, eu acho que ela está dispersa pelo mundo! Tem Lourdes Roca, por exemplo, que está no México, que circula nos eventos de antropologia visual e no momento estamos a fazer projetos juntas. Então, é interessante criar essas redes. A comunicação é tão fácil hoje, pela internet fica tão fácil nós falarmos uns com os outros. Não é mais preciso ficar fechado no seu país.

Cornelia Eckert: E essa tua relação tão próxima com a antropologia visual no Brasil, volto a esta questão.

Catarina Alves Costa: Olha, para mim foi, assim, uma surpresa! A primeira vez que eu vim no Brasil, eu vim pra Anpocs, onde organizamos uma mesa-redonda. Aliás, estas conferências estão publicadas. E fizemos um vídeo-entrevista, uma roda de conversa, em que você estava também, a Bela Bianco, a Clarice Peixoto, o Renato Athias, a Sylvia Caiuby, a Carmen Rial, a Ana Luiza da Rocha, a Rose Satiko, quem mais? E um pouco para fazer um ponto de situação, já se passaram, não sei, 15, 20 anos? Foi um momento mágico. Então quando eu fui convidada para a Anpocs para mostrar os meus filmes, para mim foi uma surpresa! Porque eu não sabia que os meus filmes circulavam fora de Portugal! Então, aí eu encontrei pessoas com quem eu tive uma comunicação mais fácil, mais direta sobre o meu trabalho, do que eu tinha lá! Então, eu acho que o Brasil, justamente porque aqui tem, por um lado, uma tradição forte do uso da imagem na pesquisa antropológica, por outro, projetos muito consolidados como Vídeo nas Aldeias de Vincent Carelli e sua equipe. Mas também projetos sobre cultura popular, sobre cidades e periferias das cidades, sobre quilombolas, grupos tradicionais, enfim, tem muito trabalho visual feito no Brasil! Acho que aqui é um país rico desse ponto de vista, em que realmente as pessoas não tiveram medo de avançar com essas metodologias de produção audiovisuais. E, então, vindo da Europa para o Brasil, você sente assim uma energia no trabalho que as pessoas estão fazendo, que ela é muito impactante. Impactante e muito importante! E a partir do momento em que eu vim cá pela primeira vez, logo aí eu criei aqui uma rede de amigos, aí fico voltando, às vezes vou para São Paulo, ou vou para o Rio de Janeiro, estive no Recife também; então eu fico assim mantendo essa relação porque para mim essa relação dá-me uma vida. Que eu acho que às vezes lá eu não consigo ter esta motivação, estas trocas. Nós ficamos muito, às vezes, desesperados com essa burocracia acadêmica, que toma conta do nosso trabalho diário. Então, para mim, a relação com o Brasil é muito importante mesmo, muito importante! E eu mantenho, por exemplo, nós fizemos, há dois anos, um encontro no FACA, no Festival da Antropologia, Cinema e Arte, com colegas, os estudantes lá convidaram os estudantes brasileiros a ir a Lisboa mostrar o seu trabalho, e aí eles próprios também mantêm essa comunicação, essa relação. E é assim que a coisa vai! Eu acho. Nós falamos a mesma língua! Quer dizer, faz sentido manter essa comunicação.

Cornelia Eckert: Voltando para características da tua produção fílmica. Mesmo que sejam exibidos no Brasil, você sempre busca legendar o seu trabalho, preferencialmente em inglês. O que você reflete sobre a legendagem?

Catarina Alves Costa: A maior parte dos filmes eu legendo para inglês, alguns para português também, pois são falados em crioulo ou em dialetos ou em outra língua, eu legendo para português. Tem filmes também que estão legendados, por exemplo, a Senhora Aparecida ou O arquitecto e a cidade velha para o francês, porque eles tiveram apoio também de instituições francesas e tiveram circulação no território francês. Então tem filmes que não estão legendados. Depende dos trabalhos, mas em geral, sempre para inglês. Fica fácil legendar, você pode fazer isso tendo uma tradução, fazer isso você próprio no computador, fica fácil de fazer e tem uma circulação mais ampla. E agora eu estou tentando, enfim, colocar também mais filmes meus on-line, e estou a fazer isso, eu mesma faço isso, estou a colocar no Vimeo, os que não estão agora à venda em DVD. Os que estão agora à venda em DVD não posso colocar ainda. Mas os demais eu coloco em Vimeo, para maior circulação. Mas eu ainda acredito muito na sala de cinema, naquela coisa de você projetar numa sala às escuras, estimular o espectador a sentar uma hora, e olhar um filme. Talvez até seguido de debate. Eu acho que isso faz toda a diferença.

Cornelia Eckert: E em termos de um retorno para as comunidades filmadas, comente sobre algum impacto que têm esse filmes para os interlocutores.

Catarina Alves Costa: Sim, claro. Depende dos filmes, não é, sempre nós objetivamos um retorno, projetar no lugar filmado para os interlocutores, dar às pessoas cópias, essas coisas de discutir os filmes, às vezes até na montagem. Depende do projeto. Tem projetos que foram feitos completamente com as pessoas, então as pessoas estiveram lá todos os dias a ver o material, a discutir a produção. Teve filmes que não teve esse processo, então depende muito, mas é curioso porque, como eu já sou um pouco velha, ou seja, já tenho um trabalho mais antigo, agora alguns filmes estão a voltar e a ser vistos nas comunidades 20 anos depois. Isso é curioso, por exemplo, no caso do filme sobre os hindus, sobre a comunidade hindu, assim, esse bairro onde eu filmei, ele foi demolido, porque era uma favela, foi demolido nos anos 1990. Em 1998, esse bairro foi demolido e essas famílias, elas foram realojadas. E agora, por exemplo, teve uma sessão mesmo antes de eu vir, com os jovens que eram crianças nesse bairro, que eles aparecem no filme quando eles eram crianças e agora eles fizeram uma sessão para eles discutirem, assim, o que que aconteceu com essa comunidade. Eles chamaram os mais velhos que entram no filme, e partir desse filme, discutiram as mudanças sobrevindas no tempo. Então, tem história que você produziu para essas comunidades. Esse filme, ele tem uma ressignificação para essa comunidade que é muito interessante, e que você não pensa quando está a fazer. Não imagina a repercussão que pode ter. Como este exemplo, uma reflexão dos interlocutores 20 anos depois. Mas pode ser 30, 50 ou 100 anos. As imagens perduram no tempo. Elas são mesmo histórias para essas pessoas, elas contam uma história agora retomada pelo grupo.

Cornelia Eckert: Vamos falar um pouco sobre a situação de mudança mundial, ou de situação global, que é uma situação de crise, provavelmente inclusive de mudança de paradigmas, em termos de Estados-nações, de eixos econômicos, enfim, o neoliberalismo, são tantas as questões e muita crise econômica e política como a crise política na América Latina, situações de guerra mundial, enfim… O que nós podemos fazer mediante um quadro de crise assim? O que pode ser demandado para a antropologia visual?

Catarina Alves Costa: Olha, talvez um dos fenômenos mais interessantes que têm acontecido com essa crise mundial que nós estamos a viver, que é uma crise econômica, política, enfim, eu acho que foram as formas alternativas de pensar sobre o mundo que foram aparecendo de um jeito espontâneo, nas redes sociais, na internet. Uma maneira de mostrar o mundo de uma forma diferente daquilo que são as mídias e a comunicação social. Acho que houve uma geração que percebeu que era necessário criar alternativas de pensar o mundo, não é vendo notícias da televisão que você vai ter acesso ao que está a acontecer, é preciso, então, procurar outras formas, e eu acho que aí nós temos um papel muito importante. Aliás, de duas, eu diria que esse papel pode ser importante de duas formas: uma, é produzindo nós mesmos esses objetos que servem para pensar o mundo como alternativa a aquilo que nós vemos na mídia e aquilo que é, vamos lá chamar assim, a produção de um conhecimento sobre o mundo que ele vem do lado do poder autoritário, portanto, produzindo esses objetos. E um outro lado seria: nós olharmos para essa produção de imagem, que ela nos chega de uma forma às vezes um pouco caótica, nós não sabemos muito bem como gerir isso, mas a verdade é que todos nós queremos saber o que está a acontecer neste momento na Coreia, nos Estados Unidos, ou queremos saber o que está a acontecer neste momento no Brasil com a prisão do Lula, ou o que está a acontecer neste momento na China. Então, nós vamos procurar nós próprios, vamos à internet procurar, conhecer o que está a acontecer através da opinião da nossa rede de amigos mas também através de uma busca que nós fazemos. E o que são esses materiais visuais? Da onde eles vêm? E como que nós digerimos? Essa contradição que nos chega a todos os lados, como é que nós vamos encontrando o nosso modo de pensar? Então, eu acho que essas duas maneiras são interessantes e, agora mesmo, eu tenho estado a ver filmes, para um festival de filme etnográfico que vai acontecer na Romênia em setembro e aí, por exemplo, ontem, eu vi o filme sobre uma família na Palestina que está a viajar há muitos anos em uma espécie de território fechado, como se fosse uma reserva de índios, na Palestina. E é a história de um pai, de um jovem casal com duas filhas, gurias, como dizem cá, pequenas, e a relação do pai com as meninas e como ele vai mostrando para elas o mundo que existe. Como ele vai ensinando para elas a viver, brincando, rindo em parques, enfim, nesse território em guerra. Como o casal encontrou uma maneira alternativa de transmitir algo do mundo, como eles encontraram uma estratégia para ensinar para essas meninas sobre a vida e como é que eu aprendo, ele fala isso no filme também, que eu achei muito lindo, como é que eu aprendo com as crianças a continuar. Tua filha tem três anos, e quer brincar em um país marcado por conflitos, como é que eu ensino e aprendo? Então tem um lado que nós podemos, enfim, como dizer isso, aprender com a vida tal como ela acontece com as pessoas e eu acho que a nossa, talvez a nossa responsabilidade como antropólogos seja um pouco esse aprendizado do olhar sobre o outro e do que nos chega por todos os lados, e pensar que, hoje, todo mundo produz imagens, todo mundo filma com telemóvel, com som com superboa qualidade, e aí produz uma narrativa, coloca no YouTube e pronto. E é isso que nós temos acesso hoje, essa diversidade de olhares e experiências.

Cornelia Eckert: É uma responsabilidade de narrar no mundo sem cessar, a partir desse campo antropológico talvez, como um grande mote de resistência…

Catarina Alves Costa: Sim, eu acho.

Cornelia Eckert: Talvez pensando agora a partir desse curso que você deu aqui em Porto Alegre, quais foram as questões, o que você conseguiu escutar e responder?

Catarina Alves Costa: Olha, o que eu sinto é que essa coisa de que cada pesquisa traz perguntas muito específicas, muito concretas sobre como eu vou resolver esse problema dentro do meu trabalho, dentro da minha pesquisa, como eu vou encontrar formas de fazer, não é, e eu acho que, sim, esse curso, não foi como ensinar como fazer filmes, nada disso. Também não dei fórmulas. O que eu fiz e posso fazer é contar a minha experiência, falar das aprendizagens e das dificuldades, das realizações e dos problemas, dos questionamentos. Uma coisa que eu falei para eles foi, olha, eu nunca fico assim contente com o meu trabalho, eu fico sempre no final um pouco triste, não era isso que eu queria fazer, não era para ser assim, era outra coisa meu projeto, meu roteiro. Tem um monte de coisas que ficaram de fora e que eu queria ter falado neste filme, então fica assim uma insatisfação que faz que você procure sempre fazer algo novo e nunca fique assim “olha agora já está, vou parar, vou descansar”. Não, fica uma insatisfação. E esse curso foi muito lindo porque eu acho que as pessoas trazem também essas suas dificuldades, mas também o seu entusiasmo Tem muita gente entusiasmada, que está a cursar e a trabalhar e que tem ânimo. Então, o curso foi muito essa coisa mais de partilha da experiência. É dentro de uma pesquisa concreta e baseada nessa relação com o outro que você vai encontrar uma conversa mais universal, mais sobre o mundo, porque o mundo está em zonas pequenas, em microssituações sociais, em microrrelações, e é aí que você descobre um olhar mais universal. Não tem como fazer trabalho como eu quero, doutrinar o outro, fazer com que o outro pense como eu. Enfatizo essa responsabilidade, eu diria, assim, de fazer a revolução, mas fazer a revolução dentro do que nós conseguimos fazer, e não dentro de um todo, dentro de um pensamento total, pelo menos eu não tenho essa cabeça.

Cornelia Eckert: Catarina, muito obrigada por esta entrevista, ela vai ser transcrita e publicada na nossa revista e se você quiser dar uma palavra final, aquela que fecha a entrevista, um recado, ou alguma reflexão em torno, não sei se da experiência aqui em Porto Alegre ou dos teus projetos.

Catarina Alves Costa: Sim, eu diria que, mais do que estar preocupado com os mil papéis que hoje temos que assinar por causa do direito à imagem, toda a gente tem que assinar papel, tudo bem, fazemos isso tudo, mas essa questão da relação com o outro, do respeito ao outro, de uma certa humildade no trabalho, essa questão está dentro de nós, não é uma coisa que você vá propriamente poder governar. Tem que encontrar a relação certa, não é? E estar atenta ao processo de construção e uma boa dose crítica, ou autocrítica. Eu é que agradeço e desejo que nossa rede de trocas permaneça.

Referências

  • O ARQUITECTO E A CIDADE VELHA. Realização: Catarina Alves Costa. Lisboa: Laranja Azul; Paris: Jour J. Productions, 2004. Betacam digital, 72min. Editado e distribuído em DVD pela Midas Filmes. Distribuído pela Documentary Educational Resources (DER) nos EUA.
  • MAIS ALMA. Realização: Catarina Alves Costa. Lisboa: Laranja Azul, 2001. Apoio financeiro: ICAM, IPAE, Gulbenkian. Coproduzido RTP. Betacam digital. 56min. Disponível em: Disponível em: https://vimeo.com/316156777 Acesso em: 30 set. 2018.
    » https://vimeo.com/316156777
  • PEDRA E CAL = A ROOM IN THE HOUSE. Realização: Catarina Alves Costa. Lisboa: Laranja Azul, 2016. Financiado pelo Campo Arqueológico de Mértola no âmbito do Projecto “Arquitectura tradicional da vila e do termo de Mértola”. 55min. Editado em DVD pelo Campo Arqueológico de Mértola. Disponível em: Disponível em: https://vimeo.com/154631574 Acesso em: 30 set. 2018.
    » https://vimeo.com/154631574
  • REGRESSO À TERRA. Realização: Catarina Alves Costa. Manchester: The Granada Centre for Visual Anthropology, 1992. Hi8, 35min. Edição DVD Midas Filmes.
  • SENHORA APARECIDA. Realização: Catarina Alves Costa. Lisboa: SP Filmes, 1994. Apoio financeiro: Instituto Português de Cinema (IPC) e Rádio Televisão Portuguesa (RTP) . 55min. Edição DVD em Portugal Midas Filmes. Edição DVD nos EUA e Ásia Documentary Educational Resourses (DER).
  • SWAGATAM. Realização: Catarina Alves Costa. Lisboa: SP Filmes, 1998. Apoio financeiro do IPACA e da Comissão para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses. 55min. Edição DVD Midas Filmes. Disponível em: Disponível em: https://vimeo.com/213886058 Acesso em: 30 set. 2018.
    » https://vimeo.com/213886058
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    O título é uma referência à música intitulada Uma casa portuguesa, com certeza!, cantada por Amália Rodrigues. A transcrição da entrevista foi feita por Marina Bordini, Leonardo Palhano Cabreira, Luísa Dantas, Débora Wobeto.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    30 Set 2018
  • Aceito
    15 Abr 2019
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