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TSING, Anna. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília: IEB Mil Folhas, 2019. 284 p.

TSING, Anna. . Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília: IEB Mil Folhas, 2019. 284 p.

Fragmentos de vida no mundo em pedaços: uma leitura de Viver nas ruínas

Quando uma vaca - não a profana, mas a sagrada - olhou para mim, fitando-me os olhos, o que parecia silêncio era, na linguagem de seu corpo bovino, uma profusão de sentidos. A forma de seu corpo - enorme, forte, saudável, sem manchas, sem marcas de vergastas ou maus-tratos - expressava a história de sua vida. Foi assim que descobri, na prática, a potencialidade das sugestões analíticas e metodológicas de Anna Tsing para o estudo das socialidades mais que humanas.

No capítulo 5 do primeiro livro de Tsing traduzido no Brasil, a reconhecida antropóloga enfrenta os cruciais problemas na observação de mundos não humanos. Como estudá-los se os seres que os habitam não podem falar conosco? Uma saída é a observação das formas corporais dos não humanos, as quais revelam suas biografias e a “histórias das relações sociais através das quais elas [as formas e as biografias] foram moldadas” (p. 127).

O outro problema é observar as assembleias: quais são as relações sociais estabelecidas entre as diferentes espécies? Quais afinidades há entre elas? Quais as companhias preferidas por cada espécie? A vaca que olhou para mim durante meu trabalho de campo em uma ecovila vaishnava estava acompanhada do boi e de dois bezerros - ela mirava então a lente de minha câmera, atenta a qualquer passo que eu desse em direção a ela, ou aos seus filhotes. Não seria exagero dizer que a vaca protegia seus companheiros.

Não pretenderei aqui esgotar as valiosas sugestões de Tsing ao longo dos dez artigos selecionados para o livro, prenhe de instigantes provocações acerca do fazer antropológico, e de questões relativas à ecologia política, a problemas de gênero, à teoria social e ao Antropoceno. Também não almejo fornecer um roteiro de leitura linear, mas apontar algumas linhas emaranhadas na tessitura coesa do livro, bem como indicar algumas reflexões que permeiam os capítulos, os quais são aliás separados por belíssimos registros fotográficos feitos por Tsing. Entretanto, vale ressaltar que o livro foi composto de duas seções, cada uma precedida por algumas páginas de interlúdio.

A segunda seção, nomeada pelos organizadores do livro de “Ocupe as ruínas”, refere-se a artigos que, mesmo não deixando de lado as histórias críticas tão caras à antropóloga, apresentam, aqui e acolá, mas sempre de modo conectado, lampejos metodológicos e discussão teórica de noções tais como a de escalabilidade (cap. 7), plantation (cap. 8), e/ou paisagem (cap. 10). A primeira seção, que bem poderia ser chamada “Contaminação” (nome do primeiro interlúdio), refere-se às profícuas “descrições críticas” de Tsing acerca das assembleias de fungos e pinheiros em florestas japonesas, mas também em outras partes do mundo.

Contudo, em ambas as seções, ao longo dos textos - que não se espantem as mentes desavisadas! - reflexões teóricas refinadas emergem das descrições, colidindo a divisão entre teoria e empiria a partir de uma sutil referência à ideia de que análise e a observação sempre conformam qualquer “momento etnográfico”, pois “a observação e a análise contêm, em cada uma delas, a relação entre as duas” (Strathern, 2014aSTRATHERN, M. O efeito etnográfico. In: STRATHERN, M. O efeito etnográfico. São Paulo: Cosac Naify, 2014a. p. 345-405., p. 350).

Uma das proposições de Tsing é o delineamento nítido do conceito antropológico de Antropoceno.1 1 É importante lembrar que a noção de Antropoceno foi questionada de forma fecunda por Haraway (2015), que notou suas ambivalências, perscrutou alguns de seus limites e apontou para outras possibilidades. Tal conceptualização envolve questões de complexidade e de escala, nos termos de Strathern (2014b)STRATHERN, M. A relação: acerca da complexidade e da escala. In: STRATHERN, M. O efeito etnográfico. São Paulo: Cosac Naify, 2014b. p. 263-294.. Para Tsing, o aspecto que se levanta com o primeiro ponto é o entendimento das biologias selvagens do Antropoceno como a “força oculta” no “excesso do encontro colonial”, que os herdeiros do Homem iluminista e seus Outros não conseguem explicar e pelo qual nem mesmo se responsabilizam (p. 218). O Antropoceno evoca conexões parciais strathernianas, ambivalentes e por vezes holográficas.

E aqui chegamos ao segundo ponto: Tsing apreende o Antropoceno nas muitas faces de sua proliferação, em analogia com a noção de “Homem”, que somente pode pretender algum sentido de generalidade se “historicamente disposto em camadas” (p. 217). Uma vez que a noção de “Homem” apenas pode ser antropologicamente validada através de sua multiplicidade, Tsing estende a crítica antropológica do “Homem” ao conceito de Antropoceno.

Se o Antropoceno “é encenado em lugares, mesmo quando é uma circulação global” (p. 205), a noção de “Homem” incrustada na primeira palavra somente adquire concretude à medida que se observa suas manifestações em lugares, e não em um sistema global abstrato. Desse modo, “o projeto de uma antropologia do Antropoceno” opera com descrições que enfrentem dois lados - “por um lado, oferece desafios mais que locais; por outro lado, evoca a fricção das conjunturas históricas” (p. 217). Nesse sentido, a modernidade euro-americana universalizada prolifera-se enquanto “efeito provinciano e contingente das histórias vernaculares híbridas de raça, classe, gênero, expansão imperial, governo estatal e muito mais” (p. 217).

Dentro de uma antropologia do Antropoceno ainda em gestação, a perspectiva privilegiada para analisar esses fenômenos correlatos está exatamente nos interstícios abertos pelos efeitos não intencionais dos projetos industriais humanos. E aqui se incluem o “autorreaselvajamento” e a feralidade de espécies nas “paisagens de perturbação humana” (p. 246).

Em um Brasil desgovernado pelo ódio, talvez pareça ingênuo perceber de relance, no sumário, um dos capítulos referindo-se a uma noção como “amor” (cap. 2). Ainda mais quando se trata de amar outras formas de vida não humana - o que se configura um desafio existencial e epistemológico. Porém, a noção aparentemente antiquada revela outra vez as críticas contundentes de Tsing - amor aqui está ligado às práticas dos catadores de cogumelos matsutake.

Eis o quadro ambivalente: nos Estados Unidos neoliberais da era Reagan, os catadores de cogumelos eram “veteranos do Vietnam, trabalhadores demitidos do setor madeireiro e trabalhadores rurais que chamavam a si mesmos de ‘tradicionalistas’” (p. 30). Homens sobreviventes de experiências traumáticas que desejavam estar no meio da floresta, e também alcançar algum lucro com isso. Em Kyoto, voluntários que buscavam defender o cogumelo matsutake e revitalizar florestas de pinheiro vermelho, espécie companheira predileta do cogumelo. A convivência entre voluntários japoneses e as diferentes espécies aparece como exemplo de uma relação respeitosa dos humanos em relação com os não humanos. Em vez de preservacionismo epitomizado nas unidades de conservação de florestas selvagens, há aqui um socioambientalismo que não prescinde da presença humana, mas a enovela no movimento de “linhas de dança” (p. 29).

Metodologicamente, Tsing não descarta simplesmente a descrição dos usos culturais que humanos fazem da floresta, mas busca seguir não humanos agindo em interdependência com outros seres em paisagens multiespécies que incluem humanos, mas que nem sempre são diretamente influenciadas por eles. E nesse caminho, nos enveredamos pela complexidade de um pensamento que conduz à análise por meio de múltiplas escalas, à incomensurabilidade das unidades de comparação, e à indeterminação das paisagens.

O livro foi lançado durante a VII Reunião de Antropologia da Ciência e da Tecnologia (Florianópolis, SC) em 2019, com a presença física de Tsing, que propiciou a memorável conferência de encerramento. O livro preenche uma lacuna ainda existente no reconhecimento amplo de nomes femininos cujos trabalhos apresentam agudas e profusas contribuições. A publicação é evento da maior importância e soma-se a uma e outra tradução de artigos de Tsing para a língua portuguesa (Tsing, 2015TSING, A. Margens indomáveis: cogumelos como espécies companheiras. Ilha: Revista de Antropologia, v. 17, n. 1, p. 177-201, 2015., 2018TSING, A. Paisagens arruinadas (e a delicada arte de coletar cogumelos). Cadernos do LEPAARQ (UFPEL), v. 15, n. 30, p. 366-382, 2018.).

E mesmo assim, ainda que a curadoria cuidadosa do livro tenha escolhido textos que conjugam algumas das noções fundantes na pesquisa de Tsing, não é menos verdadeiro que a obra dessa cativante antropóloga talvez permaneça algum tempo ressonante, sem que se possa aquilatar sua profunda relevância, que a alça ao patamar de Marilyn Strathern, Marisol de la Cadena, Claudia Fonseca, Lélia Gonzalez, Lilia Schwarcz e Manuela Carneiro da Cunha, dentre inúmeras outras em uma infinda lista.

A tom da voz de Tsing, no debate antropológico contemporâneo, apenas se ouve com certo cuidado e atenção. O livro é convite para que apreciemos suas “notas de abertura” e seu “pequeno canto a capella pelo declínio de nossos companheiros indispensáveis” (p. 219).

Referências

  • HARAWAY, D. Anthropocene, Capitalocene, Plantatiocene, Chthulucene: making kin. Environmental Humanities, v. 6, p. 159-165, 2015.
  • STRATHERN, M. O efeito etnográfico. In: STRATHERN, M. O efeito etnográfico São Paulo: Cosac Naify, 2014a. p. 345-405.
  • STRATHERN, M. A relação: acerca da complexidade e da escala. In: STRATHERN, M. O efeito etnográfico São Paulo: Cosac Naify, 2014b. p. 263-294.
  • TSING, A. Margens indomáveis: cogumelos como espécies companheiras. Ilha: Revista de Antropologia, v. 17, n. 1, p. 177-201, 2015.
  • TSING, A. Paisagens arruinadas (e a delicada arte de coletar cogumelos). Cadernos do LEPAARQ (UFPEL), v. 15, n. 30, p. 366-382, 2018.
  • 1
    É importante lembrar que a noção de Antropoceno foi questionada de forma fecunda por Haraway (2015)HARAWAY, D. Anthropocene, Capitalocene, Plantatiocene, Chthulucene: making kin. Environmental Humanities, v. 6, p. 159-165, 2015., que notou suas ambivalências, perscrutou alguns de seus limites e apontou para outras possibilidades.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019
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