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MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018. 80 p.

MBEMBE, Achille. . Necropolítica . 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018. 80 p.

A teoria da necropolítica e a colonialidade no Brasil contemporâneo

A obra Necropolítica do filósofo camaronês Achille Mbembe ganhou destaque na antropologia brasileira através de sua consistência teórica com uma interpretação pontual do “Terceiro Mundo”. É um livro cada vez mais necessário no Brasil. A n-1 edições reproduziu o que autor denomina como ensaio em um formato de livro que tem como capa digitais de sangue. Nessa obra o autor lança um olhar diferente para a biopolítica, se aproximando de uma leitura sugerida por Giorgio Agamben (2015)AGAMBEN, G. Estado de exceção: [Homo Sacer II, I]. São Paulo: Boitempo, 2015., autor que formula as políticas gregas como precursoras do controle sobre a morte dos outros. Já Foucault formula o pensamento sobre a biopolítica que opera na vida e sua dinâmica através do controle das vontades e dos corpos. Achille se propõe olhar para as políticas da morte como uma macroestrutura operante em países colonizados, e seu funcionamento através da soberania que gerencia morte.

O filósofo que hoje atua como professor na Universidade de Joanesburgo na África do Sul, um dos maiores centros de excelência em pesquisa do mundo, possui formações diversas inclusive em ciência política, área de conhecimento sobre a qual esse livro se debruça com mais dedicação. O materialismo histórico circunda o pensamento de Mbembe em um mundo que se construiu pela violência contra corpos racializados e escravizados. O autor hoje tem uma produção extensa de quase 60 livros, com destaque a Crítica da razão negra (Mbembe, 2018MBEMBE, A. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018.). É fundamental considerar que o autor nasceu em um país colonizado em 1884 e que na segunda onda imperialista se torna uma colônia alemã, e posteriormente, francesa. A região possuía cerca de 200 grupos linguísticos que foram apagados na dinâmica da exploração do território e dos corpos. Mbembe nasce em 1957, momento de conflitos intensos na África Central; ele se associou à luta armada de oposição à colonização para defender-se de uma guerra sangrenta. Nesse sentido, o contexto de violência racial se destaca em sua obra, a saber, o conceito de necropolítica e seu olhar para uma macroestrutura de base racista.

Achille Mbembe contextualiza a leitura de Agamben do modus operandi do estado de exceção em sua estrutura normativa legal durante o Holocausto. Para Achille esse aspecto de racionalização colado à soberania proporcionou uma falsa ideia de escolha sobre si mesmo, forma romântica em um sentido de autocriação, aspecto que o autor deseja não perquirir. O objetivo nessa obra é fazer uma diligência da soberania enquanto instrumento de morte do outro e da guerra enquanto meio de impor poder. Nesse sentido Achille dialoga com Agamben ao constatar que cabe à soberania fazer um limiar entre o direito e a violência e a morte. Para o autor esse limite ao ser rompido gera uma nova percepção sobre a política:

Política neste caso, não o avanço de um movimento dialético da razão. A política só pode ser traçada como uma transgressão em espiral, como aquela diferença que desorienta a própria ideia do limite. Mais especificamente a política é a diferença colocada em jogo pela violação do tabu. (p. 16).

O direito de matar está estreitamente relacionado às “relações de inimizade” elegendo de forma ficcional grupos inimigos. Percebemos que esse mecanismo foi o primeiro a operar no governo bolsonarista que elegeu os povos indígenas para essa categoria, colocando-os como aqueles que impossibilitam o “progresso”. Os que devem viver e os que devem morrer são selecionados segundo grupos biológicos, apresentando o racismo como sua máxima expressão. No livro existe uma constatação completa de guerra, que se dá através da fusão entre um estado racista, assassino e suicidário. A vida do outro - geralmente animalizado, historicamente destituído de humanidade - passa a encarnar o inimigo ficcional, gerando violência e morte como mecanismos de segurança, eliminando de forma impessoal esse que seria um atentado à existência dos demais. Sobre isso, Mbembe reafirma que hoje se mata mais em um curto prazo de tempo através de processos técnicos silenciosos nas industrializações da morte, tendo em sua expressão máxima câmaras de gás e fornos destinados a queimar humanos, além da burocracia como uma maneira discreta de matar. Em contradição a essas formas de morte, também assistimos a algumas execuções que se prolongam para satisfazer a certo público, nutrindo a ligação entre justiça e vingança. No Brasil a mídia e seu discurso têm o poder de destituir a humanidade através da desqualificação da pessoa que mereça ser punida. Para o autor houve uma democratização dos meios de eliminação que se estenderam à população comum francesa durante a Revolução, o que gerou efeitos para a modernidade. O terror se embaralha com a racionalidade na modernidade no processo de dominação, e muitas vezes de forma simbólica a ação direta supostamente eliminaria o inimigo contrarrevolucionário racionalmente.

A escravidão e o sistema econômico da plantation por só configura um estado de exceção, e nessa parte Achille pontua a tripla perda do homem escravizado: de seu lar, do direito sobre seu corpo e de seu estatuto político, ou seja, ele se torna um morto-vivo. Nessa tríade, não há comunicação ou correspondência e concretiza-se sobre esse corpo o espetáculo da violência como protocolo de controle e disseminação do terror. Dissipou-se a humanidade para que ela se convertesse em propriedade, ou, nas palavras do autor, em uma “sombra personificada”, pois até mesmo sua expressão humana está inclusa na posse. O terror no apartheid promete “salvar” a população através do estado de exceção, pregando a esterilização sem consentimento e políticas de extermínio.

Em uma leitura de Hanna Arendt e Foucault presente no ensaio, o imperialismo é a lógica precursora dos campos de concentração nazistas, ou a simples ampliação da política ocidental, que ao manter colônias já estaria praticando a exceção por si, dando o aval para uma guerra genocida, papel que faz o poder soberano. Desse modo forçaram fronteiras em territórios não europeus onde a população, por tratar-se de “alienígenas” naturalizados e incompletos como humanidade, não roga mediações por leis já que estas estão suspensas automaticamente. Nesse terceiro momento sobre a ocupação e colônias o livro remete diretamente ao pensamento de Frantz Fanon (1968)FANON, F. Os condenados da terra. 42. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. em Os condenados da terra, caracterizando o que seria a espoliação dos corpos e do território através de demarcações de fronteiras, mapeamentos, proibição de acessos a certas zonas, a invenção de uma estrutura destruindo outra, tanto no sentido físico como nos códigos de conduta e ideia de posse. Uma análise espacial emerge no texto evocando fronteiras internas, células isoladas, estradas, pontes, ferrovias rápidas, limites temporários e vigiados. Nesse cenário tão comum em municípios próximos a terras indígenas, temos uma diferença nas táticas de dominação, onde a “terra arrasada” estaria obsoleta, dando lugar à submissão econômica forçada. Nesse cenário global o que vemos é a venda de forças militares, milícias, privatização da segurança pública e até “fornecedores de violência” que ofertam minérios e trabalho convertendo a extração de “recursos” em uma máquina de guerra.

Nas modificações contemporâneas a disciplina e a obediência estão sendo substituídas por tecnologias de eliminação como a familiar e recente proposta de distribuição de armas bolsonarista, onde não são dois Estados soberanos que protagonizam a guerra, são cidadãos comuns em uma inimizade generalizada. Entre os locais citados como exemplo por Achile Mbembe, está Ruanda, alvo de um dos maiores genocídios na história recente, e a Palestina ocupada. Dentro de uma lógica onde resistir é também matar seu inimigo, a emblemática figura do homem-bomba surge, este que transmuta seu corpo em arma, eliminando a possibilidade de vida para todos, cometendo ao mesmo tempo suicídio e homicídio.

Referências

  • AGAMBEN, G. Estado de exceção: [Homo Sacer II, I]. São Paulo: Boitempo, 2015.
  • FANON, F. Os condenados da terra 42. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
  • MBEMBE, A. Crítica da razão negra São Paulo: n-1 edições, 2018.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019
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