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Tanatopolítica e biossegurança: dois regimes de governo da vida para a leishmaniose visceral canina no Brasil

Thanatopolitics and biosecurity: two regimes of governing life in Canine Visceral Leishmaniasis in Brazil

Resumo

Apesar de ter sua legitimidade contestada nas últimas décadas por defensores de animais, juristas e veterinários que defendem o direito à vida e ao tratamento, assim como por pesquisadores da área da saúde que duvidam de sua eficácia, a “eutanásia profilática” massiva de cães testados como soropositivos para leishmaniose visceral mantém-se firme como política sanitária no Brasil. A partir da análise de documentos oficiais, revisão da literatura, comentários sobre processos judiciais colhidos na imprensa e da etnografia dos impactos do surto de leishmaniose visceral em Porto Alegre, este artigo visa compreender o que está em jogo nessa controvérsia, considerando seus aspectos discursivos na construção de moralidades e práticas biopolíticas. Sugere-se a existência de dois regimes de governo da vida na gestão dos reservatórios caninos da leishmaniose visceral: um tanatopolítico, ligado ao poder público; o outro, um dispositivo emergente de biossegurança, ligado ao mercado farmacêutico e acessível apenas para tratamento privado.

Palavras-chave:
leishmaniose; zoonoses; direitos dos animais; biossegurança

Abstract

Despite having its legitimacy contested during the last decades by animal rights activists, legal experts, and veterinarians who defend the right to life and to treatment, as well as by researchers in health and social care who point out its inefficacy and even its perverse effects as a public policy, the massive “prophylactic euthanasia” of dogs seropositive for Visceral Leishmaniasis (dog culling) is still persistent in Brazil. Based on the analysis of official documents and of the media coverage of certain lawsuits, literature review, and an ethnography of the impact of the outbreak of Visceral Leishmaniasis in Porto Alegre, this paper aims to understand what is at stake in this controversy, considering the discursive aspects of the construction of morals and of biopolitical practices. The existence of two regimes of government of life in the management of canine reservoirs of Visceral Leishmaniasis is suggested: one is thanatopolitical, connected to the public authorities; the second one is an emerging biosecurity apparatus, associated with the pharmaceutical market, and only available for private treatment.

Keywords:
Leishmaniasis; zoonosis; animal rights; biosecurity

As pandemias e endemias provocadas por doenças transmitidas por animais aos humanos, ou zoonoses, são temas de interesse mundial, sendo muito importantes, ao lado do bioterrorismo e da segurança dos laboratórios biológicos, na definição de políticas de biossegurança global e regional (Collier; Lakoff; Rabinow, 2004COLLIER, S. J.; LAKOFF, A.; RABINOW, P. Biosecurity: towards an anthropology of the contemporary. Anthropology Today, v. 20, n. 5, p. 3-7, 2004.; Keck, 2010KECK, F. Un monde grippé. Paris: Flammarion, 2010.; Keck; Lynteris, 2018KECK, F.; LYNTERIS, C. Zoonosis: prospects and challenges for medical anthropology. Medicine Anthropology Theory, v. 5, n. 3, p. 1-14, 2018.; Keck; Ticktin, 2015KECK, F.; TICKTIN, M. La souffrance animale à distance: des vétérinaires dans l’action humanitaire. Anthropologie et Sociétés, v. 39, n. 1-2, p. 145-163, 2015.). As zoonoses têm seu interesse ampliado à medida que lançam luz, tal como o problema das “invasões biológicas” (Lewgoy; Sordi, 2017LEWGOY, B.; SORDI, C. Cosmologia emergente ou humanismo em expansão? Animais e cidadania no Brasil contemporâneo. Etnografías contemporáneas: Revista de Antropología Social y Cultural, año 3, n. 4, p. 156-173, 2017.; Sordi; Lewgoy, 2017SORDI, C.; LEWGOY, B. Javalis no Pampa: invasões biológicas, abigeato e transformações da paisagem na fronteira brasileiro-uruguaia. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 23, n. 48, p. 75-98, maio/ago. 2017.), sobre os “novos regimes da vida” (Keil; Ali, 2007KEIL, R.; ALI, H. Governing the sick city: urban governance in the age of emerging infectious disease. Antipode, v. 39, n. 5, p. 846-873, 2007.), as “novas formas de controle e governo da vida” (Foucault, 1999FOUCAULT, M. El nacimiento de la medicina social - conferencia en la Universidad del Estado de Rio de Janeiro, octubre de 1974. In: FOUCAULT, M. Estrategias de poder: obras esenciales, volumen II. Barcelona: Paidós, 1999. p. 363-384.; Segata, 2017SEGATA, J. O Aedes aegypti e o digital. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 23, n. 48, p. 19-48, maio/ago. 2017.), que desafiam e saltam as barreiras entre as espécies. Dependendo de sua natureza, escala, letalidade e capacidade de propagação, as zoonoses, ao ultrapassarem essas barreiras, criam uma situação percebida como “impureza” e “risco” à saúde pública, despertando a inquietação das autoridades sanitárias com a face animal da biossegurança (Caduff, 2014CADUFF, C. On the verge of death: visions of biological vulnerability. Annual Review of Anthropology, v. 43, p. 105-121, 2014.; Collier; Lakoff; Rabinow, 2004COLLIER, S. J.; LAKOFF, A.; RABINOW, P. Biosecurity: towards an anthropology of the contemporary. Anthropology Today, v. 20, n. 5, p. 3-7, 2004.; Hinchliffe; Bingham, 2008HINCHLIFFE, S.; BINGHAM, N. Securing life: the emerging practices of biosecurity. Environment and Planning A, v. 40, n. 7, p. 1534-1551, 2008.; Keck, 2010KECK, F. Un monde grippé. Paris: Flammarion, 2010.; Keck; Lynteris, 2018KECK, F.; LYNTERIS, C. Zoonosis: prospects and challenges for medical anthropology. Medicine Anthropology Theory, v. 5, n. 3, p. 1-14, 2018.; Keck; Ticktin, 2015KECK, F.; TICKTIN, M. La souffrance animale à distance: des vétérinaires dans l’action humanitaire. Anthropologie et Sociétés, v. 39, n. 1-2, p. 145-163, 2015.).

O Brasil é o líder em casos de leishmaniose visceral nas Américas. Tida e vista como doença negligenciada pela Organização Mundial da Saúde, trata-se de grave zoonose vetorial que predomina em zonas pobres e periferias urbanas de países tropicais. A leishmaniose visceral envolve uma complexa cadeia epidemiológica, cujos entrelaçamentos multiespecíficos envolvem humanos, cães, flebotomíneos e protozoários. Pela condição de reservatório do patógeno e por íntima relação com a espécie humana, o cão doméstico é considerado um dos principais riscos para o alastramento da epidemia. A política brasileira de eutanásia profilática de cães infectados com o parasita Leishmania infantum (syn L. chagasi) colocou, nas últimas décadas, o estatuto sanitário, ontológico e moral desta espécie no epicentro de forte controvérsia entre saúde pública e proteção animal. “Reservatório canino do parasita” para os sanitaristas e “pet” ou sujeito de direitos para a defesa animal, o cão infectado tem sido atravessado pela ambivalência entre as representações de “pária” - “cachorro de rua”, “animal errante” - e de “pet” - animal de estimação - (Antunes, 2011ANTUNES, G. Sobre pets e “párias”: pensando natureza e sociedade através de ontologias caninas. 2011. Trabalho apresentado. Jornadas de Antropologia da Unicamp, Campinas, 2011.), evidenciando forte polarização e conflito entre sistemas de valores biopolíticos.

A política pública brasileira de eutanásia de cães é parte de um repertório tradicional de práticas de gestão de populações de animais indesejáveis, certamente biopolítica, mas dificilmente comparável em concepção e escala aos aparatos e tecnologias globais de biossegurança. Aplicado à leishmaniose, o conceito de biossegurança tem sido associado à perspectiva de integração da saúde humana e animal, conhecida como One Health. Um sensível exemplo de dispositivo de biossegurança aplicado à doença é discutido por Palatnik-de-Sousa e Day (2011)PALATNIK-DE-SOUSA, C.; DAY, M. One health: the global challenge of epidemic and endemic leishmaniasis. Parasites & Vectors, v. 4, n. 1, art. 197, 2011. Disponível em: Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3214158/pdf/1756-3305-4-197.pdf . Acesso em: 12 maio 2019.
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. Os autores mencionam o caso africano como o mais robusto investimento de criação de aparatos de vigilância de leishmaniose em tempo real, com o uso das tecnologias de rastreamento e sensoriamento remoto apoiadas pelos sistemas de informação e infraestrutura da OMS e NASA.

No caso brasileiro, o complexo semântico da biossegurança não se constitui em aparato ou política pública para previsão e controle da leishmaniose visceral zoonótica, servindo, no máximo, como um horizonte intelectual de aggiornamento científico para justificar a permanência da eutanásia profilática de cães sororreagentes, diante da resistência à medida de alguns donos de cães e às crescentes críticas da sociedade civil organizada a respeito de sua eficácia, pertinência ou moralidade. Nesse sentido, a recomendação de eutanásia profilática dos cães nem sempre se coaduna com as políticas públicas de posse responsável de animais de estimação, as quais, acompanhadas de programas de esterilização e vacinação de animais pertencentes às populações mais pobres, têm contrariedades de princípio às eutanásias praticadas em centros de controle de zoonoses.1 1 A criação da Secretaria Especial de Direitos dos Animais de Porto Alegre coincidiu com a descoberta dos primeiros casos de leishmaniose visceral em cães por volta de 2010. Segundo entrevista com gestores da secretaria à época, a prefeitura, então governada por José Fortunatti (PDT), acolheu o pleito da nova secretaria de não eutanasiar os cães, ao contrário da disposição da Secretaria da Saúde, que só veio a ser implementada a partir de 2017 no governo de Nelson Marchezan Jr. (PSDB). Após discutir as linhas gerais dessa controvérsia, sustentaremos que a entrada em cena de novos atores - com especial destaque ao fármaco miltefosina - é o mecanismo central de introdução de um dispositivo de biossegurança, que não apenas privatiza o direito à vida, mas também estabelece redes sociotécnicas (Latour, 2008LATOUR, B. Reensamblar lo social: uma instroducción a la teoría del actor-red. Buenos Aires: Manantial, 2008.) inovadoras e controles cruzados entre Estado, mercado, veterinários e tutores para a vigilância estreita de cães e seus patógenos, redefinindo tanto a ideia de “posse responsável” quanto a percepção da leishmaniose visceral canina - de doença perigosa e fatal para doença crônica e tratável.

A bela ciência e o estado bestial: controvérsias em torno da eutanásia de cães com leishmaniose visceral no Brasil

A leishmaniose visceral, também conhecida como calazar, é uma doença causada por protozoários do gênero Leishmania, transmitida por um vetor da subfamília Plhebotominae, gênero Lutzomyia, popularmente conhecido como mosquito-palha. A enfermidade se apresenta em duas formas: a antroponótica, encontrada na Índia e África Central; e a zoonótica, que atinge regiões da Ásia, África, sul da Europa e Américas, afetando de 400.000 a 600.000 pessoas por ano em 90 países. Mesmo quando corretamente diagnosticada e tratada, a leishmaniose visceral pode ser letal em 10% dos casos; se não tratada, atinge 95% de letalidade (Brasil, 2014BRASIL. Ministério da Saúde. Manual de vigilância e controle da leishmaniose visceral. Brasília, 2014. Disponível em: Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_vigilancia_controle_leishmaniose_visceral_1edicao.pdf . Acesso em: 11 abr. 2019.
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). Considerada pela ONU uma doença tropical negligenciada, ela vem sendo associada a fatores como pobreza, desnutrição, desmatamento e urbanização.2 2 “A doença afeta algumas das pessoas mais pobres da Terra e está associada à desnutrição, deslocamento populacional, moradia precária, sistema imunológico fraco e falta de recursos financeiros. A leishmaniose está ligada às mudanças ambientais, como desmatamento, construção de represas, esquemas de irrigação e urbanização” (World Health Organization, 2019, tradução nossa). Em sua forma zoonótica, outros animais são implicados como reservatórios em seu ciclo epidemiológico, sendo que o cão doméstico é tido como o principal fator de risco para a transmissão humana. O Brasil concentra 90% dos casos de leishmaniose visceral das Américas, sendo considerado um grave problema de saúde pública atingindo todas as regiões do país.3 3 Segundo dados do Ministério da Saúde, “de 1990 a 2016, 84.922 casos de LV foram confirmados no Brasil, com a taxa de letalidade atingindo 7,4% em 2016” (Bezerra et al., 2018, tradução nossa).

O primeiro caso humano de leishmaniose visceral no Brasil foi registrado em 1913 (Costa, C., 2008COSTA, C. Caracterização e especulações acerca da urbanização da leishmaniose visceral no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 24, n. 12, p. 2959-2963, dez. 2008.). Encarada por longo tempo como uma endemia rural (Werneck, 2014WERNECK, G. Visceral leishmaniasis in Brazil: rationale and concerns related to reservoir control. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 48, n. 5, p. 851-855, out. 2014.), a década de 1980 marcou o início da urbanização da doença no país (Costa, C., 2008COSTA, C. Caracterização e especulações acerca da urbanização da leishmaniose visceral no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 24, n. 12, p. 2959-2963, dez. 2008.; Werneck, 2014WERNECK, G. Visceral leishmaniasis in Brazil: rationale and concerns related to reservoir control. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 48, n. 5, p. 851-855, out. 2014.).

Nos anos seguintes, a doença disseminou-se Brasil afora. As cidades mais afetadas foram Fortaleza, Belo Horizonte, Campo Grande e Andradina (SP). A partir de 2008, começam a ser reportados casos nos dois lados da fronteira com a Argentina,4 4 Os casos de leishmaniose visceral na província argentina de Misiones foram pesquisados por Andrea Mastrangelo (2017), que os relacionou aos dinâmicos fluxos de pessoas e animais pelos espaços transfronteiriços entre Argentina, Brasil e Paraguai. na região de São Borja (RS) e em municípios vizinhos, espalhando-se, nos anos seguintes, para outras cidades do Rio Grande do Sul e Santa Catarina.

Diversos métodos têm sido empregados para o controle da leishmaniose visceral: fumigação de inseticida para controle de vetores, medicamentos leishmanicidas e imunomoduladores, como anfotericina B, antimoniato de meglumina, alopurinol, coleiras repelentes, mosquiteiros e - o mais polêmico de todos - a eutanásia sistemática de cães testados como soropositivos para a doença, sintomáticos ou assintomáticos.5 5 Para uma um histórico mais detalhado, ver Carlos Henrique Nery Costa (2011) e Palatnik-de-Sousa e Day (2011).

Werneck (2014)WERNECK, G. Visceral leishmaniasis in Brazil: rationale and concerns related to reservoir control. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 48, n. 5, p. 851-855, out. 2014., Palatnik-de-Sousa e Day (2011)PALATNIK-DE-SOUSA, C.; DAY, M. One health: the global challenge of epidemic and endemic leishmaniasis. Parasites & Vectors, v. 4, n. 1, art. 197, 2011. Disponível em: Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3214158/pdf/1756-3305-4-197.pdf . Acesso em: 12 maio 2019.
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e Machado, Silva e Vilani (2016)MACHADO, C.; SILVA, E.; VILANI, R. O uso de um instrumento de política de saúde pública controverso: a eutanásia de cães contaminados por leishmaniose no Brasil. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 25, n. 1, p. 247-258, 2016. concordam em que, na base das políticas de controle voltadas aos cachorros, está um entendimento generalizado de que os casos caninos anunciam o risco da infecção humana porque aumentam a oferta ambiental do parasita .6 6 Carlos Henrique Nery Costa (2011, p. 236, tradução nossa), ao contrário, é categórico ao afirmar que “nem o papel dos cachorros na transmissão do Leishmania infantum, nem a eficácia de eutanasiar cães chegaram a ter algum consenso na literatura científica”.

Muitos cães infectados apresentam um alto parasitismo cutâneo, ou seja, uma grande quantidade de parasitas nos tecidos da pele. Isso facilita a infecção do mosquito-palha pelo parasita durante a picada (Lima; Grisotti, 2018LIMA, C.; GRISOTTI, M. Relação humano-animal e leishmaniose: repercussões no cotidiano de indivíduos inseridos em região endêmica. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 27, n. 4, p. 1261-1269, 2018.; Palatnik-de-Sousa; Day, 2011PALATNIK-DE-SOUSA, C.; DAY, M. One health: the global challenge of epidemic and endemic leishmaniasis. Parasites & Vectors, v. 4, n. 1, art. 197, 2011. Disponível em: Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3214158/pdf/1756-3305-4-197.pdf . Acesso em: 12 maio 2019.
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/article...
). Todos os surtos de leishmaniose visceral registrados no Brasil envolveram a presença de cachorros infectados (Oliveira; Morais; Machado-Coelho, 2008OLIVEIRA, C.; MORAIS, M.; MACHADO-COELHO, G. Visceral leishmaniasis in large Brazilian cities: challenges for control. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 24, n. 12, p. 2953-2958, dez. 2008.), e “uma alta taxa de infecção entre cães costuma ser registrada logo antes do começo de uma epidemia humana, especialmente em áreas empobrecidas” (Palatnik-de-Sousa; Day, 2011PALATNIK-DE-SOUSA, C.; DAY, M. One health: the global challenge of epidemic and endemic leishmaniasis. Parasites & Vectors, v. 4, n. 1, art. 197, 2011. Disponível em: Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3214158/pdf/1756-3305-4-197.pdf . Acesso em: 12 maio 2019.
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, p. 2, tradução nossa).

A morte induzida de cães domésticos para finalidades religiosas, veterinárias, sanitárias e de controle populacional é tão antiga quanto a história de convívio humano com essa espécie, desde as primeiras domesticações. As transformações nos modos de relação com os animais na modernidade definiram duas grandes tendências em face dessa espécie companheira, elevando-a ao estatuto excepcional de uma hiperespécie. A primeira tendência é a regulação biopolítica por dispositivos sanitários cujo primado intelectual é naturalista, objetivante e coletivista. Seu lócus privilegiado de realização é o controle pelo biopoder no espaço público urbano - em suas ruas e praças. A segunda segue os avatares da sensibilidade romântica, ora em disputa, ora em ambivalente composição ética com o utilitarismo filosófico. Afirma-se uma progressiva incorporação dos cães à condição moral e subjetiva de membros não humanos da família conjugal, cujo primado relacional centra-se na individualização subjetivante, sendo o espaço privado da casa o seu lócus ideal de realização. A nova disposição sensível comove-se com a situação dos animais de rua nas cidades - especialmente cavalos e cães -, cuja defesa contra a crueldade encontra guarida nos movimentos de proteção dos animais desde o século XIX (Baldin, 2014BALDIN, D. Histoire des animaux domestiques: XIXe-XXe siècle. Paris: Le Seuil, 2014.).

A eutanásia de cães pelo poder público é atravessada por tensões e dilemas entre a imposição higienista de uma ordem espacial-sanitária urbana e a crescente antropomorfização dos animais de companhia, os quais têm inspirado as modernas políticas de proteção de animais (Osório, 2015OSÓRIO, A. A cidade e os animais: da modernização à posse responsável. Teoria e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p. 143-176, 2015.). Instigados por epidemias de raiva e inquietações quanto à higiene e comportamento disruptivo de cães nas vias públicas, os centros de controle de zoonoses encarnaram historicamente o ideal higienista de polícia sanitária interespecífica, constituindo espaços de segregação, experimentação e extermínio de populações animais indesejáveis ou inadequadas para a ordem urbana burguesa - abandonados, doentes ou simplesmente desprovidos de laços familiares com seres humanos (Osório, 2015OSÓRIO, A. A cidade e os animais: da modernização à posse responsável. Teoria e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p. 143-176, 2015.; Urich, 2015URICH, S. Los perritos bandidos: la protección de los animales de la Ley Sarmiento a la Ley Perón. Buenos Aires: Tren en Movimiento, 2015.).

As “políticas expulsivas de animais” (Osório, 2015OSÓRIO, A. A cidade e os animais: da modernização à posse responsável. Teoria e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p. 143-176, 2015.) - após um breve período de ascensão de políticas de proteção animal nas últimas décadas - voltaram a ser consideradas em situações de emergência sanitária, agora com a justificativa da proteção da saúde humana de zoonoses. Os centros de controle de zoonoses voltaram a ocupar um lugar central nesse contexto, aplicando dispositivos de normalização de uma biopolítica de exceção para a segregação/eliminação sanitária de vidas animais indesejáveis.7 7 Inspiramo-nos aqui na reflexão de Giorgio Agamben (2015) sobre o papel biopolítico dos campos de concentração no regime nazista.

Como mostra Susan Jones (2003)JONES, S. D. Valuing animals: veterinarians and their patients in modern America. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2003., a partir do século XX, a ética veterinária enfatizou a preocupação de evitar o sofrimento e a crueldade nos protocolos e métodos clínicos de sacrifício de animais, sendo progressivamente afetada pelas transformações científicas e éticas da biomedicina e pelas reivindicações éticas e legais do valor intrínseco da vida animal pelo movimento protecionista. Matar um animal situado no alto da escala de proximidade com o ser humano, como o cão doméstico, tornou-se um importante problema moral e passou a exigir justificação científica, epidemiológica e regulação ética.

O sacrifício profilático de cães com leishmaniose visceral como medida sanitária foi proposto em 1946 na antiga Palestina (Adler; Tchernomoretz, 1946 apud Costa, C. H. N., 2011COSTA, C. H. N. How effective is dog culling in controlling zoonotic visceral leishmaniasis? A critical evaluation of the science, politics and ethics behind this public health policy. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, Uberaba, v. 44, n. 2, p. 232-242, 2011. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0037-86822011000200021&lng=en&nrm=iso . Acesso em: 3 maio 2019.
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). No entanto, seu uso mais dramático foi registrado nos anos 1950, na China, onde, ao lado do massivo emprego de DDT para o controle do vetor, milhões de cães foram sacrificados em diversos centros urbanos regiões do país asiático (Costa, C. H. N., 2011COSTA, C. H. N. How effective is dog culling in controlling zoonotic visceral leishmaniasis? A critical evaluation of the science, politics and ethics behind this public health policy. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, Uberaba, v. 44, n. 2, p. 232-242, 2011. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0037-86822011000200021&lng=en&nrm=iso . Acesso em: 3 maio 2019.
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). A partir de então, embora a recomendação de eutanásia esteja presente em todos os documentos da OMS e da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), apenas o Brasil adotou-a como diretriz de política pública para o controle de reservatórios caninos de leishmaniose.

De matriz higienista, a lei (Brasil, 1963BRASIL. Presidência da República. Casa civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Decreto n. 51.838, de 14 de mar 1963. Baixa normas técnicas especiais para o combate às leishmanioses. Brasília, 1963. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1950-1969/D51838.htm . Acesso em: 17 maio 2019.
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) que regula o combate às leishmanioses no Brasil remonta a 1963. Numa época em que a doença era apenas uma endemia rural confinada ao interior do Nordeste, seu principal objetivo era interromper a transmissão humana da leishmaniose a partir dos cães, para os quais o texto reservava uma atenção muito maior do que aos demais fatores, como as condições sanitárias e os próprios vetores. A lei determinava a busca ativa por cães infectados (Brasil, 1963BRASIL. Presidência da República. Casa civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Decreto n. 51.838, de 14 de mar 1963. Baixa normas técnicas especiais para o combate às leishmanioses. Brasília, 1963. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1950-1969/D51838.htm . Acesso em: 17 maio 2019.
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, art. 4º), campanhas contra os vetores nas áreas endêmicas, tratamento dos casos humanos e a “eliminação dos animais domésticos doentes” (Brasil, 1963BRASIL. Presidência da República. Casa civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Decreto n. 51.838, de 14 de mar 1963. Baixa normas técnicas especiais para o combate às leishmanioses. Brasília, 1963. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1950-1969/D51838.htm . Acesso em: 17 maio 2019.
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, art. 3º, c), que deveria ser feita “evitando a crueldade” (Brasil, 1963BRASIL. Presidência da República. Casa civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Decreto n. 51.838, de 14 de mar 1963. Baixa normas técnicas especiais para o combate às leishmanioses. Brasília, 1963. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1950-1969/D51838.htm . Acesso em: 17 maio 2019.
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, art. 9º). O termo “eutanásia” não era ainda utilizado para a morte induzida de animais. Previa-se ainda o livre acesso das autoridades a quaisquer locais considerados de interesse para o combate à enfermidade, tornando compulsória a notificação às autoridades sanitárias de todos os casos suspeitos ou confirmados, sendo obrigatório o exame dos cães de áreas endêmicas. Desde então, os programas de controle da doença recomendados pelo Ministério da Saúde incorporaram novos critérios e tecnologias, mas mantiveram a eutanásia de cães como um de seus pilares centrais.

O controle da leishmaniose visceral consiste, a partir do diagnóstico de um primeiro caso humano em determinada região, em medidas articuladas em três eixos: ações referentes aos casos humanos, controle dos vetores e controle dos reservatórios (Werneck, 2014WERNECK, G. Visceral leishmaniasis in Brazil: rationale and concerns related to reservoir control. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 48, n. 5, p. 851-855, out. 2014.). Com base nessas premissas, são elaborados os protocolos, recomendações e políticas de vigilância/controle voltados aos vetores e reservatórios da doença. Além do uso de inseticidas, as recomendações que encontramos para o manejo do vetor implicam medidas individuais e domésticas, como remoção de resíduos orgânicos como folhas caídas, poda de árvores frutíferas, isolamento de galinheiros, uso de coleiras repelentes, colocação de telas milimétricas em portas e janelas e o confinamento dos cães no interior do domicílio a fim de evitar a exposição ao amanhecer e crepúsculo (horários em que o flebótomo está mais ativo).8 8 O Manual de vigilância e controle da leishmaniose visceral do Ministério da Saúde, de 2014, recomenda ainda ações de manejo ambiental mesmo que sem a centralidade das medidas anteriormente descritas: saneamento, retirada de lixo e de matéria orgânica, ambientes propícios à proliferação do vetor (cf. Brasil, 2014).

Para Alex Nading (2013)NADING, A. Humans, animals, and health: from ecology to entanglement. Environment and Society, v. 4, n. 1, p. 60-78, 2013., as políticas de eliminação de vetores, especialmente de insetos, ocupam historicamente um lugar central nas narrativas sobre o combate de epidemias. Peste negra, malária, leishmaniose, dengue e zika são exemplos de graves enfermidades vetoriais - doenças de consequências econômicas e sociais muito importantes - transmitidas por insetos, considerados alteridades radicais ou simplesmente inimigos a serem erradicados.

O tropo do mosquito-palha como vetor inimigo, já utilizado no combate à dengue, foi ostensivamente apropriado pela proteção animal de Porto Alegre em sua luta contra a decisão da prefeitura de eutanasiar cães com leishmaniose visceral, confinados no canil municipal, em 2017. Em manifestações de rua, reuniões públicas e campanhas na internet, eram exibidos cartazes com imagens de mosquitos ameaçadores, acompanhados das frases: “Leishmaniose: o mosquito é vilão” e “Não mate o cão, mate o mosquito”. Em outras imagens, cães eram mostrados com destaque para a fragilidade e a inocência estampada em seus rostos, consignadas nas frases “O cão é meu amigo”, “Não mate, trate” e “Leishmaniose tem tratamento”.

A eficácia das ações de combate ao vetor - muitas vezes realizadas de forma ocasional, enfrentando uma série de dificuldades operacionais - também foi alvo de questionamentos por parte de agentes sanitários e de acadêmicos. Em face desses problemas, Werneck (2014)WERNECK, G. Visceral leishmaniasis in Brazil: rationale and concerns related to reservoir control. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 48, n. 5, p. 851-855, out. 2014. ponderou que, no caso da leishmaniose visceral, a opção de manejo dos reservatórios caninos pode ter sido uma opção mais viável aos olhos do poder público.

Nas cidades onde a doença é endêmica, estima-se que, anualmente, milhares de cães testados como sororreagentes para leishmaniose visceral sejam mortos nos centros de controle de zoonoses.9 9 Não encontramos informações consistentes ou sistemáticas sobre o número efetivo de eutanásias realizadas nos animais com suspeita de leishmaniose sob guarda dos centros de controle de zoonoses no Brasil, sendo antes vocalizados por críticos, o que dificulta o aprofundamento do debate em bases mais sólidas. Alguns de nossos interlocutores mencionaram dezenas de milhares por ano. Isso não apenas tem ocasionado acerbas discussões sobre a eficácia dessa política pública, como também demonstrou a emergência de um maior poder de pressão dos ativistas dos direitos dos animais sobre os tomadores de decisão (Lima, 2015LIMA, C. C. M. Entre a estima pelo animal e o risco à saúde: os saberes e as experiências dos proprietários de cães com leishmaniose. 2015. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015.; Machado; Silva; Vilani, 2016MACHADO, C.; SILVA, E.; VILANI, R. O uso de um instrumento de política de saúde pública controverso: a eutanásia de cães contaminados por leishmaniose no Brasil. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 25, n. 1, p. 247-258, 2016.).

Entre 2008 e 2016, na rede pública de atenção à saúde, o tratamento de leishmaniose visceral esteve somente acessível aos humanos, como consequência da portaria interministerial nº 1.426, de 11 julho de 2008, que proibiu o tratamento de animais com produtos de uso humano (anfotericina B, anfotericina lipossomal e antimoniato de meglumina), assim como outros produtos não registrados para essa finalidade (Brasil, 2008BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria interministerial nº 1.426, de 11 de julho de 2008. Proíbe o tratamento de leishmaniose visceral canina com produtos de uso humano ou não registrados no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Brasília, 2008. Disponível em: Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2008/pri1426_11_07_2008.html . Acesso em: 19 maio 2019.
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis...
). A polêmica proibição, cuja consequência direta é a eutanásia profilática de cães soropositivos (mesmo os clinicamente saudáveis), fundamentou-se no temor de que, mesmo sendo tratados, os cães poderiam continuar infectivos, e no receio pelo desenvolvimento de cepas resistentes do protozoário, caso houvesse o uso indiscriminado de medicamentos humanos em animais.10 10 Desde 2003 as políticas de enfrentamento à leishmaniose visceral no Brasil têm sido descentralizadas e municipalizadas (Pinto; Vargas, 2017). Na verdade nunca houve tratamento público de animais doentes, apenas a não proibição do uso de medicamentos humanos em cachorros.

A proibição foi decidida a partir do I Fórum de Discussão sobre o Tratamento da Leishmaniose Visceral Canina, realizado em 2007, sob os auspícios do Ministério da Saúde. O fórum concluiu pela contraindicação do tratamento de leishmaniose visceral em cães, “tendo em vista o risco para a saúde humana que tal conduta pode acarretar” (Brasil, 2009BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. II Forum de Discussão sobre o Tratamento da Leishmaniose Visceral Canina (LVC). Brasília, 2009. Disponível em: Disponível em: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_docman&view=download&alias=319-ii-forum-discussao-sobre-o-tratamento-da-leishmaniose-visceral-canina-lvc-9&category_slug=leishmaniose-visceral-canina-118&Itemid=965 . Acesso em: 20 jun. 2019.
https://www.paho.org/bra/index.php?optio...
).

A primeira resposta da sociedade civil à portaria nº 1.426/2008 (Brasil, 2008BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria interministerial nº 1.426, de 11 de julho de 2008. Proíbe o tratamento de leishmaniose visceral canina com produtos de uso humano ou não registrados no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Brasília, 2008. Disponível em: Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2008/pri1426_11_07_2008.html . Acesso em: 19 maio 2019.
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) veio por meio de manifestação em “Carta da Associação Nacional de Clínica de Pequenos Animais (Anclivepa) à População do Brasil”, assinada por seu presidente, Paulo Carvalho de Castilho. A carta criticava a ineficácia da medida, defendia o direito de tratamento dos cães e apelava para “a concentração das ações em controle do vetor, desfocadas da eliminação de cães” (Rockenbach, 2011ROCKENBACH, L. Carta da Anclivepa Brasil à população. Leishmaniose: Matar Animais Resolve?, 1 fev. 2011. Disponível em: Disponível em: http://matarnaoresolve.blogspot.com/2011/02/carta-da-anclivepa-brasil-populacao.html . Acesso em: 19 maio 2019.
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). A Anclivepa logo recebeu uma resposta oficial no II Fórum de Discussão sobre o Tratamento de Leishmaniose Visceral Canina, realizado em 2 de dezembro de 2009. Reunindo pesquisadores de áreas diversas, como epidemiologia, imunologia, entomologia e parasitologia, o fórum reproduziu os principais argumentos favoráveis à manutenção da eutanásia profilática: a relação matemática do surto canino com o surto humano, a possibilidade de desenvolvimento de cepas resistentes do protozoário e a potencial infectividade de animais sob tratamento (mesmo aqueles sem sinais clínicos da doença), contestando ainda as críticas à efetividade dos testes diagnósticos.11 11 Os testes de diagnóstico disponíveis para cães ainda têm uma margem de erro que é periodicamente revisada pelas autoridades nacionais de saúde. O diagnóstico recomendado pelo Ministério da Saúde é feito com o teste rápido DPP-LVC® para triagem - tem resultado em vinte minutos - e o ELISA para confirmação. Trabalhos demonstram que o DPP-LVC® não é capaz de detectar uma parcela da população de cães infectados com o parasita, o que pode contribuir para a perpetuação da doença nessas áreas (Queiroz de Oliveira, 2013). A insuficiente sensibilidade e especificidade dos exames pode levar a resultados falsos positivos, falsos negativos, além de apresentar reações cruzadas com outras doenças, e ser incapaz de detectar a infectividade dos animais. Baseado na cobrança da evidência científica, subjaz ao documento produzido pelo fórum12 12 Foram realizados fóruns em 2007, 2009 e 2015, com reiteração das mesmas premissas. um ceticismo de natureza precaucionária em relação ao tratamento de cães sororreagentes aos testes. A espera da evidência robusta, da demonstração científica cabal, da minimização absoluta do risco, que perpassam o documento, é o grande fio condutor dos discursos pró-eutanásia no Brasil. O ônus da prova ficaria, como sempre, com os segmentos críticos à política oficial.

A Sociedade Brasileira de Medicina Tropical tem sido uma das principais entidades médicas críticas à política de eutanásia. Para seu ex-presidente Carlos Henrique Nery Costa (2011COSTA, C. H. N. How effective is dog culling in controlling zoonotic visceral leishmaniasis? A critical evaluation of the science, politics and ethics behind this public health policy. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, Uberaba, v. 44, n. 2, p. 232-242, 2011. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0037-86822011000200021&lng=en&nrm=iso . Acesso em: 3 maio 2019.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, p. 239, tradução nossa), “entre questões políticas, éticas e econômicas e falta de consenso científico, a tendência do governo brasileiro vem desconsiderando ou mal interpretando a ciência disponível”, o que, segundo o autor, “revela uma sistemática perda de neutralidade científica na recomendação de uma medida de saúde (eutanásia profilática) altamente discutível”. O artigo assinala ainda que os participantes do fórum de 2009 foram escolhidos por critérios que não se tornaram públicos, incluindo uma grande quantidade de participantes notoriamente favoráveis à eutanásia e excluindo a presença de profissionais de opiniões divergentes. Além disso, é enfatizado que a literatura consultada pelos participantes omitia publicações cujos resultados poderiam levar a conclusões divergentes da posição pró-eutanásia (Costa, C. H. N., 2011COSTA, C. H. N. How effective is dog culling in controlling zoonotic visceral leishmaniasis? A critical evaluation of the science, politics and ethics behind this public health policy. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, Uberaba, v. 44, n. 2, p. 232-242, 2011. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0037-86822011000200021&lng=en&nrm=iso . Acesso em: 3 maio 2019.
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).

Para o autor, o encontro expôs a não aderência às evidências científicas originadas em uma falta de “cultura institucional de fomento à integridade científica” (Costa, C. H. N., 2011COSTA, C. H. N. How effective is dog culling in controlling zoonotic visceral leishmaniasis? A critical evaluation of the science, politics and ethics behind this public health policy. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, Uberaba, v. 44, n. 2, p. 232-242, 2011. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0037-86822011000200021&lng=en&nrm=iso . Acesso em: 3 maio 2019.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, p. 239, tradução nossa). Várias motivações possíveis são conjeturadas: uma mudança de política poderia ser interpretada como sinal de erros passados, o que diminuiria a credibilidade de instituições e governos; a presença de lobbies farmacêuticos e conflitos de interesses; a ausência de alternativas à eutanásia com efeitos reconhecidos; a tomada de decisões irracionais por parte dos legisladores em tempos de crise; o apego às tradições e a resistência às mudanças no pano de fundo de uma doença considerada negligenciada, que afeta as populações mais pobres e “cujo controle e pesquisa dependem quase que exclusivamente da burocracia do Estado” (Costa, C. H. N., 2011COSTA, C. H. N. How effective is dog culling in controlling zoonotic visceral leishmaniasis? A critical evaluation of the science, politics and ethics behind this public health policy. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, Uberaba, v. 44, n. 2, p. 232-242, 2011. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0037-86822011000200021&lng=en&nrm=iso . Acesso em: 3 maio 2019.
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, p. 239, tradução nossa).

As controvérsias enfatizam diversos aspectos do problema: foi observada a reposição de cães encaminhados para a eutanásia por filhotes com o sistema imunológico mais suscetível, ou seja, criando o efeito perverso de incrementar a epidemia em vez de combatê-la; a dificuldade de padronização e acurácia dos diagnósticos; o desafio dos fatores ambientais envolvidos na ecologia e controle do vetor (Mastrangelo et al., 2018MASTRANGELO, A. et al. Respuesta doméstica a las recomendaciones sanitarias de intervención sobre ambiente y perros en una localidad con transmisión de leishmaniasis visceral (Pto. Iguazú, Argentina, 2014-2016). Vigilância Sanitária em Debate: Sociedade, Ciência & Tecnologia, v. 6, n. 3, p. 64-73, 2018.) e a eficácia relativa do uso de coleiras impregnadas de inseticida13 13 O problema das coleiras, em que pese ser reconhecido como o mais eficaz método de controle, repousa na questão de logística e monitoramento: elas são caras, são perdidas ou roubadas e precisam ser trocadas em intervalos de 3 a 8 meses para se manter efetivas. (Troncarelli et al., 2009TRONCARELLI, M. Z. et al. Leishmania spp and/or Trypanossoma cruzi diagnosis in dogs from endemic and non endemic areas for canine visceral Leishmaniasis. Veterinary Parasitology, v. 164, n. 2, p. 118-123, 2009.). Além disso, é crescente a importância de discursos e sensibilidades protecionistas na controvérsia, que apelam às políticas públicas de distribuição de coleiras repelentes, vacinação para os cães, políticas de castração/adoção - ligadas aos programas educativos de posse responsável -, introdução de boas práticas de manejo ambiental, assim como o deslocamento de foco da política pública do reservatório para o vetor (Machado; Silva; Vilani, 2016MACHADO, C.; SILVA, E.; VILANI, R. O uso de um instrumento de política de saúde pública controverso: a eutanásia de cães contaminados por leishmaniose no Brasil. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 25, n. 1, p. 247-258, 2016.; Nunes et al., 2008NUNES, C. M. et al. Dog culling and replacement in an area endemic for visceral leishmaniasis in Brazil. Veterinary Parasitology, v. 153, n. 1-2, p. 19-23, 2008.; Otranto, 2010OTRANTO, D. Guidelines for prevention of leishmaniasis in dogs. Journal of the American Veterinary Medical Association, v. 236, n. 11, p. 1200-1206, 2010.; Otranto; Dantas-Torres, 2013OTRANTO, D.; DANTAS-TORRES, F. The prevention of canine leishmaniasis and its impact on public health. Trends in Parasitology, v. 29, n. 7, p. 339-345, 2013.; Slappendel; Teske, 1999SLAPPENDEL, R. J.; TESKE, E. A review of canine leishmaniasis presenting outside endemic areas. In: KILLICK-KENDRICK, R. Canine leishmaniasis: an update. Barcelona: Hoechst Rousse, 1999. p. 54-59.).

As dificuldades de execução de políticas públicas foram analisadas por Zuben e Donalísio (2016)ZUBEN, A. P. B.; DONALÍSIO, M. R. Dificuldades na execução das diretrizes do Programa de Vigilância e Controle da Leishmaniose Visceral em grandes municípios brasileiros. Cadernos de Saúde Pública, v. 32, e00087415, 2016.. As autoras aplicaram questionários a seis coordenadores municipais de vigilância sanitária, visando entender as diferenças entre as diretrizes federais e as realidades encontradas nos municípios. Foram constatadas dificuldades de todo o tipo, orçamentárias, políticas, recusa dos moradores de entregarem seus cães, “interferências indesejadas” dos veterinários, busca de tratamentos alternativos e discordâncias sobre o valor dos testes.14 14 “Todos os coordenadores relataram terem tido dificuldades na condução das diretrizes do PVCLV também por interferências de clínicos veterinários. Disseram que é comum os clínicos orientarem os proprietários de animais a recusarem as medidas de controle da LV, citando como justificativas: a falta de credibilidade dos exames realizados pela Secretaria de Saúde; a discordância do programa brasileiro com o resto do mundo; medidas alternativas, como o tratamento canino, a vacinação contra LV e o uso de coleira em detrimento da eutanásia. Portanto, alguns clínicos veterinários colaboraram para aumentar ainda mais a desconfiança em relação ao controle de LV nos municípios, segundo os entrevistados” (Zuben; Donalísio, 2016, p. 7). Um estudo similar foi publicado sobre o caso argentino por Mastrangelo (2019).

As intervenções bioéticas sobre a polêmica da eutanásia não apenas manejam argumentos sobre a incerteza de sua eficácia como medida profilática para a contenção da leishmaniose, como também apontam para o reconhecimento dos cães como sujeitos de direito, dotados de senciência e valor moral (Chalfun; Cosenza, 2018CHALFUN, M.; COSENZA, F. Direitos dos animais e controle da leishmaniose: novas perspectivas. Revista de Biodireito e Direito dos Animais, Salvador, v. 4, n. 1, p. 22-41, 2018.). É nesse nicho semântico, atento aos direitos dos animais, que a individualização, subjetivação e vínculos interespecíficos - que envolvem o sofrimento social pela perda da guarda do animal (Lima; Grisotti, 2018LIMA, C.; GRISOTTI, M. Relação humano-animal e leishmaniose: repercussões no cotidiano de indivíduos inseridos em região endêmica. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 27, n. 4, p. 1261-1269, 2018.) - passam a ser objeto de pesquisas e manifestos amparados na filosofia e nas ciências sociais, os quais vêm fornecendo novos subsídios para firmar a jurisprudência contrária à política brasileira de eutanásia preventiva.

Ao avaliarem os aspectos biológicos, epidemiológicos, ambientais e jurídicos da eutanásia profilática, Machado, Silva e Vilani (2016MACHADO, C.; SILVA, E.; VILANI, R. O uso de um instrumento de política de saúde pública controverso: a eutanásia de cães contaminados por leishmaniose no Brasil. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 25, n. 1, p. 247-258, 2016., p. 1) são incisivos em condená-la:

Conclui-se pela imediata suspensão e revisão da prática de extermínio animal em um Estado Constitucional de Direito, e a adoção de métodos preventivos e mais eficazes que garantam a saúde pública sem proporcionar elevados custos emocionais aos proprietários de cães e financeiros aos cofres públicos.

Como em outros textos críticos à eutanásia, termos como extermínio, holocausto ou assassinato entram em circulação na retórica de cientistas e operadores de direito, transbordando dos pequenos círculos de defensores dos direitos dos animais para a academia, a imprensa e os tribunais, introduzindo uma nova gramática moral para a controvérsia. A transição da consideração do animal no Código Civil, como mera propriedade para a ênfase na proteção da fauna, e a menção aos países onde os animais são considerados sujeitos de direito sinalizaram uma tomada de posição contrária ao sacrifício de cães, com base no direito individual da vida, lado a lado com o argumento dos efeitos perversos da medida. Com a entrada do discurso animalista nos textos científicos, o escândalo moral da eutanásia, tida por desnecessária, passa a frequentar com força o nível mais interno da controvérsia epidemiológica sobre as políticas de controle da leishmaniose visceral no Brasil.

A leishmaniose chega aos tribunais

A disputa em torno da eutanásia de cães sororreagentes para leishmaniose não foi a primeira provocação feita à Justiça brasileira quando estiveram em causa os direitos dos animais. Os casos mais emblemáticos envolveram disputas em torno do habeas corpus de chimpanzés (Bevilaqua, 2011BEVILAQUA, C. B. Chimpanzés em juízo: pessoas, coisas e diferenças. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 17, n. 35, p. 65-102, jan./jun. 2011.; Lewgoy; Sordi, 2017LEWGOY, B.; SORDI, C. Cosmologia emergente ou humanismo em expansão? Animais e cidadania no Brasil contemporâneo. Etnografías contemporáneas: Revista de Antropología Social y Cultural, año 3, n. 4, p. 156-173, 2017.), colocando em questão os limites culturalmente estabelecidos entre animalidade e humanidade, pessoas e coisas, natureza e cultura. O Brasil conta com legislação ambiental própria e uma parte do sistema judiciário (promotores, juízes, delegacias de meio ambiente, Ibama, ICMBio) é especializada na proteção de fauna nativa, lidando com casos de caça e pesca proibidas, maus-tratos e tráfico de animais silvestres. No entanto, é só com muita dificuldade que essa legislação protege animais de criação, sujeitos às regulações setoriais e sanitárias de inspiração mercadológica e bem-estarista. Para os animais de companhia, como cães e gatos, a legislação prevê punições muito brandas para abusos e maus-tratos, geralmente multas e detenções, que raramente são aplicadas. A atenção para com o controle e a responsabilização de cães de raças tidas como perigosas, como pit bulls e rottweilers, têm sido objeto de maior atenção legislativa, como mostrou Bevilaqua (2016)BEVILAQUA, C. B. Direito(s) e agências não humanas: como julgar os atos de um animal?. In: BEVILAQUA, C. B.; VANDER VELDEN, F. Parentes, vítimas, sujeitos: perspectivas antropológicas sobre relações entre humanos e animais. Curitiba: Ed. UFPR; São Carlos: Ed. UFSCar, 2016. p. 375-405.. As transformações maiores na relação com os animais de companhia emergem das mudanças nas sensibilidades, na difusão da economia moral de proteção animal (Lewgoy; Sordi; Pinto, 2015LEWGOY, B.; SORDI, C.; PINTO, L. Domesticando o humano: para uma antropologia moral da proteção animal. Ilha: Revista de Antropologia, v. 17, n. 2, p. 75-100, 2015.), na eclosão de políticas municipais de proteção animal em grandes cidades brasileiras, no crescimento do mercado de produtos e serviços pets e na grande ampliação das clínicas veterinárias de pequenos animais, com toda sua plêiade de aproximações pedagógicas, bioéticas e tecnológicas com a biomedicina humana (Segata, 2012SEGATA, J. Os cães com depressão e os seus humanos de estimação. Anuário Antropológico 2011/II, p. 177-204, 2012.).

Não se trata aqui de fazer um levantamento exaustivo dos processos judiciais envolvendo a leishmaniose, mas de chamar a atenção, por meio de alguns exemplos mais significativos, para a crescente judicialização dos conflitos relativos ao direito à vida e ao tratamento dos cães com leishmaniose visceral canina. Nesse sentido, as recentes contendas jurídicas envolvendo a eutanásia de cães testados como soropositivos para a presença do protozoário Leishmania infantum condensam o dilema contemporâneo entre saúde humana e vida animal em surtos de zoonoses: de um lado, o Estado opera no registro de uma biopolítica que assimila o cão infectado a uma praga, um risco objetivo à saúde pública, reduzido à condição de vida nua (zoé no sentido de Agamben, 2015AGAMBEN, G. Estado de exceção: Homo sacer, II, I. São Paulo: Boitempo, 2015.) a ser controlada pela eliminação física. De outra parte, cresce a legitimidade dos clamores animalistas pro-life, que buscam atribuir aos cães direito individual à vida e à dignidade simétrica a alguns seres humanos (Carman, 2017CARMAN, M. Las fronteras de lo humano: cuando la vida humana pierde valor y la vida animal se dignifica. Buenos Aires: Siglo XXI, 2017.).

A partir da vigência da portaria interministerial nº 1.426/2008 (Brasil, 2008BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria interministerial nº 1.426, de 11 de julho de 2008. Proíbe o tratamento de leishmaniose visceral canina com produtos de uso humano ou não registrados no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Brasília, 2008. Disponível em: Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2008/pri1426_11_07_2008.html . Acesso em: 19 maio 2019.
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), uma gama de atores heterogêneos passam a demandar juridicamente o reconhecimento do direito à vida para os cães e à devida proteção legal de veterinários e tutores. Se os cães sororreagentes são incriminados pelo Estado como risco sanitário, eles, por seu turno, passam a ser hipersubjetivados pela imprensa, mercado veterinário, defensores de animais como pets. Na medida em que a transformação do animal doméstico num pet envolve altos níveis de consumo dos donos (banho e tosa, roupas, sapatos, seguro de saúde, hospedagem nas férias, passeios), os cães, sejam de raça ou vira-latas, adquirem uma nova visibilidade e representação social em face de sua inclusão como membros da classe social de seus proprietários.

Bevilacqua et al. (2000)BEVILACQUA, P. et al. Leishmaniose visceral: história jornalística de uma epidemia em Belo Horizonte, Brasil. Interface, Botucatu, v. 4, n. 7, p. 83-102, 2000. analisaram como se construiu o discurso midiático e jornalístico sobre o surto da leishmaniose visceral em Belo Horizonte, entre 1993 e 1996. As primeiras reportagens analisadas já sugeriam uma preocupação com o avanço da doença do campo para a cidade. Importa destacar que os cães só ganham centralidade e simpatia na mídia quando muda o perfil de classe social da epidemia, atingindo os bairros nobres da cidade. A nova imagética do sofrimento e atribuição de “nome, amizade e rosto” (Mastrangelo, 2017MASTRANGELO, A. Rosto, amizade e parentesco: dimensões da relação intersubjetiva humanos-cães em uma área com leishmaniose visceral emergente, (Dpto. Iguazu). Vivência: Revista de Antropologia, Natal, v. 1, n. 49, p. 97-120, 2017.) aos cães foi progressivamente assimilada ao repertório dos grupos de defesa animal para reivindicar a “dignidade de todos os cães perante a epidemia”, independentemente de sua classe social, lado a lado com a mobilização do tropo do “mosquito vilão”.

O período compreendido entre março de 2008 e setembro de 2016 (ano de licenciamento da Milteforan® para o tratamento da leishmaniose visceral canina no Brasil) registrou vários processos judiciais com inéditas decisões suspendendo eutanásias, cujo principal foco esteve no reconhecimento do direito à vida e ao tratamento de cães - baseando-se em questões constitucionais, sem refutar os argumentos de risco à saúde da população humana com quem vivem. Os artigos 5º e 225 da Constituição Federal do Brasil têm sido invocados como fundamentos de decisões jurídicas contrárias à prática de eutanásia de cães com leishmaniose. O artigo 5º articula os direitos à vida, à propriedade (que pode ser usada para contestar a retirada de posse do animal de estimação de seu tutor) e ao exercício profissional, servindo como fundamento doutrinário para assegurar o direito ao tratamento veterinário de animais com leishmaniose. O artigo 225, que dispõe sobre proteção da fauna, foi considerado por Machado, Silva e Vilani (2016)MACHADO, C.; SILVA, E.; VILANI, R. O uso de um instrumento de política de saúde pública controverso: a eutanásia de cães contaminados por leishmaniose no Brasil. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 25, n. 1, p. 247-258, 2016. ao mesmo tempo “antropocêntrico” e “biocêntrico”. Para os autores, os cães urbanos, de estatuto ambíguo perante a noção idealizada de “fauna”, feita a partir da catalogação de animais nativos em ambiente silvestre, deveriam ser protegidos por uma compreensão mais garantista e individualizante na posição de “sujeitos de direito”.15 15 Zuben e Donalísio (2016, p. 6) mencionam a resolução nº 1000, de 11 de maio de 2012, do Conselho Federal de Medicina Veterinária (2012), em que se afirma que a eutanásia apenas deve ser aplicada quando o bem-estar do animal está comprometido ou quando ele constitui ameaça à saúde pública. Para as autoras essa resolução é ambivalente, “dando margem tanto para a defesa da vida animal quanto para respaldar a ação da saúde pública” (Zuben; Donalísio, 2016, p. 6). No contexto de nossa argumentação neste artigo, o fato de as regulamentações federais poderem ser consideradas “antropocêntricas” e “biocêntricas” estabelece as margens da biopolítica: permite ao Estado administrar conflitos sociais relacionados à epidemia com base nessa ambivalência (sem propriamente resolver suas contradições).

Os casos judiciais mais célebres ocorreram em Campo Grande, no estado do Mato Grosso do Sul. Em 2008, logo após a entrada em vigor da portaria nº 1.426/2008, a entidade Abrigo dos Bichos ingressou com uma ação, na Justiça Estadual, reivindicando sua ilegalidade. O processo tramitou até o Tribunal Federal da 3ª Região, que decidiu pela ilegalidade da portaria. No acórdão prevaleceu o entendimento da inconstitucionalidade da proibição do tratamento canino por atentar contra o artigo 5º da Constituição Federal do Brasil, que garante o livre exercício profissional do veterinário. O acórdão citava ainda as leis protetivas ao meio ambiente, especialmente no capítulo dos crimes contra a fauna e seu fundamento na Declaração Universal dos Direitos dos Animais, da qual o Brasil foi signatário.16 16 Na parte final do acórdão é invocada uma concepção biocêntrica como um dos fundamentos da decisão: “Os seres vivos, de maneira geral, e os animais em particular, juntamente com os demais elementos que compõem a ecosfera constituem o planeta Terra. Nada mais é que um organismo vivo, que depende para sua existência da relação equilibrada da fauna, da flora, das águas dos mares e dos rios e do ar. Somente tal compreensão pode garantir a existência das gerações futuras. Disso decorre a responsabilidade que cada um tem com o meio-ambiente. Pouco apreço pela vida ou por aquilo que a pressupõe descomprometimento com o futuro. Sabemos como reproduzir a vida, não como a criar efetivamente. Aquele que desmerece os seres com os quais tudo tem sentido atinge nossa identidade e perdeu ou não adquiriu a essência do que se chama humano. Por isso, é muito grave a edição da portaria de que se cuida nos autos. Produz a concepção de que os seres humanos desconsideram o cuidado necessário ecológico pelo qual somos responsáveis” (Brasil, 2013). No entanto, ao contrário de outras decisões favoráveis ou contrárias à eutanásia, a controvérsia científica sobre o risco não foi ali mencionada, tendo o seu escopo argumentativo restrito a questões constitucionais, doutrinárias e éticas.

Outro caso exemplar envolveu, em 2012, o cão Scooby, que foi resgatado em Campo Grande. Quando descobriu a doença de seu animal, o dono conduziu-o arrastado por uma motocicleta ao centro de controle de zoonoses, mas Scooby conseguiu sobreviver. O caso teve repercussão nacional, despertando grande comoção na opinião pública, sendo objeto de várias reportagens nos maiores veículos de comunicação do país, nas quais circulavam imagens do cão já sadio.

Scooby foi visto como vítima de duas tentativas de assassinato: uma, com extrema crueldade, por seu tutor; outra, pela frieza impessoal do Estado, que assumiu sua tutela apenas para eutanasiá-lo a seguir. Sua morte foi sustada por ação judicial impetrada pela ONG Sociedade de Proteção e Bem Estar Animal. Após interposição de recurso pelo município, o processo foi julgado pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região em 28 de maio de 2015, que acolheu o agravo de instrumento, suspendendo a eutanásia de Scooby (Justiça…, 2015JUSTIÇA proíbe eutanásia de cães com leishmaniose em Campo Grande. G1, 5 jun. 2015. Disponível em: Disponível em: http://g1.globo.com/mato-grosso-do-sul/noticia/2015/06/justica-proibe-eutanasia-de-caes-com-leishmaniose-em-campo-grande.html . Acesso em: 20 maio 2019.
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). Inspirado pela antropomorfização midiática de Scooby, a decisão condena a política de eutanásia, comparando-a a um holocausto:

Não tem o menor sentido humanitário a má conduta do município em submeter a holocausto os cães acometidos de leishmaniose visceral, sem qualquer preocupação com a tentativa de tratar dos animais doentes e menos preocupação ainda com os laços afetivos que existem entre humanos e cães, pretendendo violar o domicílio dos cidadãos sem ordem judicial para, despoticamente, apreender os animais para matá-los (Eutanásia…, 2015EUTANÁSIA de cães com leishmaniose é inconstitucional, diz TRF-3. Consultor Jurídico, 6 jun. 2015. Disponível em: Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-jun-06/eutanasia-caes-leishmaniose-inconstitucional . Acesso em: 20 maio 2019.
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).17 17 Em decisão monocrática sobre recurso extraordinário impetrado pelo Estado contra a decisão do TRF, exarada em 12/12/2018, o ministro Luís Roberto Barroso, de inspiração constitucional garantista, manteve a proibição das eutanásias (Brasil, 2018).

Adotado em 2012 pela veterinária Sibele Cação, que havia sido destituída de seu posto no Conselho Regional de Veterinária de Mato Grosso do Sul justamente por defender o tratamento para leishmaniose (Pavão, 2015PAVÃO, G. Condenado à morte, cão Scooby vive bem após tratar leishmaniose em MS. G1, 6 jun. 2015. Disponível em: Disponível em: http://g1.globo.com/mato-grosso-do-sul/noticia/2015/06/condenado-morte-cao-scooby-vive-bem-apos-tratar-leishmaniose-em-ms.html . Acesso em: 20 maio 2019.
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), Scooby se tornou o símbolo nacional da luta contra a “matança desnecessária de cães” no Brasil. Como na etnografia de Mastrangelo (2017)MASTRANGELO, A. Rosto, amizade e parentesco: dimensões da relação intersubjetiva humanos-cães em uma área com leishmaniose visceral emergente, (Dpto. Iguazu). Vivência: Revista de Antropologia, Natal, v. 1, n. 49, p. 97-120, 2017., com Scooby os cães testados como soropositivos para a doença passaram a ter rosto.

Em direção oposta, decisões favoráveis à eutanásia baseiam-se na premissa de que os direitos individuais - sejam de cães, sejam de veterinários e tutores - não podem sobrepor-se à proteção de saúde pública.18 18 Esta posição fica muito clara no artigo “Dono não pode recusar eutanásia de cães doentes”, publicado no site do Conjur (Dono…, 2010). Excluindo-se elaborações mais formalistas, as alegações precaucionárias sobre “risco de transmissão humana” e a “necessidade de mais estudos científicos”, invocadas nos documentos oficiais do Ministério da Saúde, geralmente acompanham as decisões jurídicas favoráveis à manutenção da política de eutanásia.

Esse foi o caso da ação judicial movida, em maio de 2017, pela deputada Regina Becker (Partido Trabalhista Brasileiro, RS), ativista da causa animal, contra a decisão da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre de eutanasiar 14 cães com suspeita de leishmaniose visceral, confinados no canil da Secretaria Especial de Direitos dos Animais (Seda). Em 2 de maio de 2017, a Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre publicou no Diário Oficial uma dispensa de licitação para contratar serviços veterinários, a fim de realizar a eutanásia de até 300 cães considerados sororreagentes19 19 Como Mastrangelo (2019) aponta no caso do massacre de cães no canil da Gendarmería Nacional em Iguazú, na Argentina, mesmo quando defende os direitos individuais dos cães, a visibilidade social e legal alega a quantidade (50 animais no caso analisado na Argentina, 300 no brasileiro). para a leishmaniose visceral canina, licitação que foi vencida pela clínica Animed. A informação, tornada denúncia pela mencionada deputada estadual - criadora, em 2011 da hoje extinta Secretaria Especial de Proteção dos Animais de Porto Alegre -, repercutiu com força nas redes sociais, suscitando uma imediata mobilização das protetoras de animais. No mesmo dia da denúncia, foi protocolado pedido de liminar no Foro Central de Porto Alegre para suspender as eutanásias, deferida pela Justiça. Na liminar foi enfatizado que não se contrariava a portaria nº 1.426/2008 (Brasil, 2008BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria interministerial nº 1.426, de 11 de julho de 2008. Proíbe o tratamento de leishmaniose visceral canina com produtos de uso humano ou não registrados no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Brasília, 2008. Disponível em: Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2008/pri1426_11_07_2008.html . Acesso em: 19 maio 2019.
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), do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, mas que se acolhia o argumento da inconclusividade dos testes aplicados para a constatação da doença nos cães examinados.20 20 Tratava-se aqui da polêmica em torno dos falsos positivos e dos falsos negativos nos testes diagnósticos detalhada na nota rodapé 11.

A liminar foi revogada em dezembro por decisão do Superior Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. O novo julgamento não foi nada auspicioso para os cães. Alegando riscos à saúde pública, especialmente em relação à transmissão humana, a desembargadora Denise Cezar, relatora do caso, autorizou a eutanásia dos cães. Segundo seu parecer: “Os casos da doença ocorreram em áreas de baixa renda, nas quais os proprietários dos animais não assumiram o compromisso de tratar os animais com a medicação que poderia bloquear a carga parasitária” (Risco…, 2017RISCO à saúde humana permite sacrifício de 12 cães com leishmaniose visceral. Consultor Jurídico, 17 dez. 2017. Disponível em: Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-dez-17/risco-saude-humana-permite-sacrificio-12-caes-leishmaniose . Acesso em: 20 maio 2019.
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). Ou seja, a presumida incapacidade financeira dos tutores em custear o tratamento da doença foi tratada como opção. Nessa compreensão ter ou não dinheiro hierarquiza o direito à vida dos conviventes: quem puder custear o tratamento pode escolher morar com cão doente e com o risco potencial de transmissão de doença para seus filhos humanos, enquanto os pobres devem escolher entre a vida de seus cães e de seus filhos.

É importante ressaltar que, tal como na controvérsia científica, há jurisprudência e argumentos para respaldar as diferentes teses em disputa. De qualquer modo, o aumento de demandas judiciais parece estar ligado à difusão das informações e meios alternativos de tratamento da doença - dificilmente controláveis pela autoridade sanitária -, ao crescimento da sensibilidade e ativismo animalista, e, por último mas não menos importante, ao salto de classe social do patógeno para a infecção de cães pertencentes a classes sociais com maior poder aquisitivo, capazes de mobilizar argumentos e representantes com poder e influência na esfera pública, ter acesso aos recursos judiciais e suscitar empatia mediante os meios de comunicação.

“O remédio salvador”: mercado farmacêutico e biossegurança

Pouco tempo depois de iniciado o conflito em torno dos cães da Seda, realizou-se em 2017, na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, o seminário “Leishmaniose: a Vida é o Bem Maior”, sob os auspícios da deputada Regina Becker. Na plateia, majoritariamente feminina, apoiadoras da causa animal e veterinárias assistiam ao evento. Na mesa reuniram-se, além de membros da rede de proteção animal do Rio Grande do Sul, uma representante do Conselho Regional de Medicina Veterinária, o gerente regional da multinacional farmacêutica Virbac e três veterinários do grupo de pesquisa Brasileish, responsável pelos ensaios clínicos que levaram ao licenciamento do Milteforan® no Brasil, no final do ano anterior. O ambiente estava decorado por cartazes de “Não aceitamos assassinatos”, “Cães têm sentimentos” e “Leishmaniose tem tratamento”. Num dos cantos do palco, encontrava-se um vistoso anúncio do remédio Milteforan®, comercializado pela Virbac, com o texto: “Decisões sobre a vida exigem conhecimento.”

Em outro seminário, realizado em julho desse ano, no auditório da Faculdade de Veterinária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, reuniram-se especialistas em diferentes aspectos da leishmaniose visceral: parasitologia, epidemiologia, clínica veterinária, medicina humana e representantes da Vigilância Sanitária de Porto Alegre. Entre uma apresentação e outra, em que se discutia o estado da arte no conhecimento da doença, representantes de empresas fabricantes de telas protetoras, coleiras repelentes e do Milteforan® faziam breves apresentações de seus produtos, transitando com bastante naturalidade no ambiente. Para quem desejasse obter informações complementares sobre os produtos, havia estandes das firmas montados no hall de entrada do auditório. Em determinado momento daquela fria tarde de inverno, um generoso coffee break foi gentilmente oferecido aos participantes do evento pelos funcionários das empresas.

No comovente relato autobiográfico “Até depois do fim. Uma história de amor e luta pela vida de um cão portador de leishmaniose” (Bezerra, 2018BEZERRA, F. Até depois do fim: uma história de amor e luta pela vida de um cão portador de leishmaniose. São Paulo: Offset, 2018.), acompanhamos as peripécias do autor, Felipe Bezerra, em busca do tratamento de seu cão da raça amstaff, Hércules Quasímodo, diagnosticado com leishmaniose poucos anos antes do licenciamento da miltefosina no Brasil. Depois de muitos esforços e enorme endividamento para o tratamento de seu cão com serviços veterinários e medicamentos, o narrador - já desiludido diante da piora do quadro clínico do animal - enche-se de esperança ao ouvir falar de uma droga fabulosa que poderia salvar a vida de seu amado animal de estimação: o leishmanicida Milteforan®, na época, não aprovado pela Anvisa e disponível apenas por meio de importação.

A portaria nº 1.426/2008 (Brasil, 2008BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria interministerial nº 1.426, de 11 de julho de 2008. Proíbe o tratamento de leishmaniose visceral canina com produtos de uso humano ou não registrados no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Brasília, 2008. Disponível em: Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2008/pri1426_11_07_2008.html . Acesso em: 19 maio 2019.
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), que proibiu o uso de medicamentos humanos para leishmaniose visceral, praticamente impossibilitou o tratamento veterinário de qualquer cão sororreagente, sob o risco de cassação do registro profissional. A portaria é clara ao ser norteada pelo conceito de “risco de transmissão humana”, pela “inexistência de cura da doença” e pelo “potencial de infectividade dos reservatórios”, mesmo os assintomáticos e os que estão em tratamento. Ela ainda regulamentava critérios para a incorporação de novos medicamentos de uso veterinário, condicionando-os a ensaios clínicos aprovados pelo Ministério da Saúde e registrados no Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento.

Já havia vacinas disponíveis no mercado como a Leishmune® - laboratório Fort Dodge -, a LeishTec® - do Ceva - e coleiras repelentes de várias marcas, mas estas não eram suficientes como controle preventivo da infecção. As entrevistas feitas com protetoras que cuidam de cães com leishmaniose mostram que, diante das possibilidades e informações presentes nas redes sociais, houve bastante uso de fármacos proibidos, assim como importação não controlada do Milteforan®, o que despertou a preocupação de autoridades sanitárias.21 21 Trata-se de alopurinol, cetoconazol, levamizol, vitamina A, zinco, aspartato de L-arginina e prednisona, usados por alguns veterinários como tratamento alternativo à proibição, ainda vigente, do uso de antimoniato de meglumina e anfotericina B e de aquisição informal destes últimos (Fonseca, [2008]).

Em 1º de setembro de 2016 foi assinada pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, juntamente com o Ministério da Saúde, a nota técnica conjunta nº 001/2016 (Brasil, 2016BRASIL. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Coordenação de Fiscalização de Produtos Veterinários. Nota técnica nº 11/2016/CPV/DFIP/SDA/GM/MAPA. Brasília, 2016. Disponível em: Disponível em: https://www.sbmt.org.br/portal/wp-content/uploads/2016/09/nota-tecnica.pdf . Acesso em: 1 ago. 2019.
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), autorizando pela primeira vez um medicamento para o tratamento da leishmaniose visceral canina. O fármaco aprovado é a miltefosina, registrada com o nome Milteforan® pela empresa Virbac Saúde Animal. A nota técnica informa que o uso da substância é autorizado porque ela não é utilizada no tratamento de pessoas, e enfatiza que a portaria de 2008, que proíbe o uso simultâneo de fármacos de tratamento humano em cães, continua em vigência. Também destaca que o tratamento dos cães “não se configura como uma medida de saúde pública para controle da doença e, portanto, trata-se única e exclusivamente de uma escolha do proprietário do animal, de caráter individual” (Brasil, 2016BRASIL. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Coordenação de Fiscalização de Produtos Veterinários. Nota técnica nº 11/2016/CPV/DFIP/SDA/GM/MAPA. Brasília, 2016. Disponível em: Disponível em: https://www.sbmt.org.br/portal/wp-content/uploads/2016/09/nota-tecnica.pdf . Acesso em: 1 ago. 2019.
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).

O medicamento, grande esperança para o tratamento da doença, é de alto custo: uma caixa custa cerca de R$ 1.000,00 (US$ 267,00, o equivalente a um salário mínimo em junho de 2019) para um animal de até dez quilos, devendo ser ministrado via oral em ciclos de 28 dias, monitorando-se a condição clínica e a carga parasitária do animal pelo resto de sua vida. Os custos de medicação, exames e atendimento veterinário do animal são suportados pelo dono.

O Conselho Federal de Medicina Veterinária já havia, por intermédio de seu site, manifestado preocupação com a prescrição indevida e as estratégias de controle do uso do medicamento, além de sua rastreabilidade e mapeamento de todas as fases de comercialização e tratamento dos animais.

Não se trata apenas de uma licença privada entre veterinário, tutor e paciente, mas da inserção de um novo dispositivo biopolítico de controle que se inicia com um teste positivo para leishmaniose visceral canina. É ilustrativo nesse sentido o exemplo do guia de orientação para a vigilância da leishmaniose visceral canina de Santa Catarina (2018)SANTA CATARINA. Secretaria de Estado de Saúde. Diretoria de Vigilância Epidemiológica. Guia de orientação para a vigilância da leishmaniose visceral canina (LVC). Florianópolis, 2018. Disponível em: Disponível em: http://www.dive.sc.gov.br/conteudos/zoonoses/publicacoes/Guia_Basico_de_Orientacao_LVC_2018.pdf . Acesso em: 30 jun. 2019.
http://www.dive.sc.gov.br/conteudos/zoon...
, elaborado pela Secretaria Estadual de Saúde. As especificações para o tratamento envolvem a assinatura de “Termo de responsabilidade para a recusa da eutanásia”, “Termo de responsabilidade médico-veterinária” e “Termo de compromisso para tratamento de cão com leishmaniose visceral”.

O “Termo de responsabilidade para a recusa da eutanásia” responsabiliza o tutor pela execução de um conjunto de medidas de segregação e controle vitalício do animal no domicílio: colocação subcutânea de microchip, castração, uso permanente de coleira repelente, restrição do movimento do cão ao perímetro da casa (exceto nos momentos de passeio com guia), assim como a manutenção da limpeza e restrição à criação de outros animais (Santa Catarina, 2018SANTA CATARINA. Secretaria de Estado de Saúde. Diretoria de Vigilância Epidemiológica. Guia de orientação para a vigilância da leishmaniose visceral canina (LVC). Florianópolis, 2018. Disponível em: Disponível em: http://www.dive.sc.gov.br/conteudos/zoonoses/publicacoes/Guia_Basico_de_Orientacao_LVC_2018.pdf . Acesso em: 30 jun. 2019.
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, p. 35).22 22 O texto é concluído com a seguinte declaração: “Estou ciente das consequências que esta decisão implica em termos de saúde pública e assumo os riscos das sanções legais que sobre mim possam ser impostas caso haja descumprimento” (Santa Catarina, 2018, p. 35).

No “Termo de compromisso para tratamento de cão com leishmaniose visceral”, exige-se que o animal tratado com Milteforan® também receba um microchip, que sofra avaliação clínica periódica para comprovar a redução da carga parasitária, que o tutor apresente à autoridade sanitária atestados de saúde e cópias da uma bateria de exames realizados a cada seis meses.

As medidas que visam prevenir que a doença se espalhe são sentidas nos corpos dos animais: o cão tratado precisa ter sua mobilidade restrita ao pátio de casa, ele não pode acasalar, é identificado e individualizado pelo microchip e precisa ser constantemente monitorado. Sua vida é sujeita ao escrutínio de rígida gestão veterinária, do Estado e de seu tutor - que também precisa garantir que todas as orientações sejam cumpridas.

O termo ainda ordena que o tutor “apresente atestado assinado pelo médico veterinário responsável pelo tratamento, confirmando que este foi realizado com Milteforan®, “acompanhado do código de barras com o número existente na etiqueta do produto que possibilita a rastreabilidade do medicamento”, o que reforça as redes sociotécnicas Estado-laboratório multinacional (Santa Catarina, 2018SANTA CATARINA. Secretaria de Estado de Saúde. Diretoria de Vigilância Epidemiológica. Guia de orientação para a vigilância da leishmaniose visceral canina (LVC). Florianópolis, 2018. Disponível em: Disponível em: http://www.dive.sc.gov.br/conteudos/zoonoses/publicacoes/Guia_Basico_de_Orientacao_LVC_2018.pdf . Acesso em: 30 jun. 2019.
http://www.dive.sc.gov.br/conteudos/zoon...
, p. 36, grifo nosso).

Os novos termos de compromisso para tutores que não aceitam a eutanásia e optam pelo tratamento com o Milteforan® são consistentes com as conclusões de Fortané e Keck (2015FORTANÉ, N.; KECK, F. Cómo la bioseguridad redefine la vigilancia de los animales. Revue d’anthropologie des connaissances, v. 9, n. 2, p. I-XX, 2015., p. I-II) quanto à constituição de novos dispositivos de biossegurança na vigilância animal no século XXI:

Asimismo, contrariamente a las formas de gestión de riesgos como la vacunación, la cuarentena o el sacrificio animal, la bioseguridad no pretende edificar fronteras herméticas entre sano e insano, si no que busca desarrollar formas de control del patógeno al interior de lo vivo (Hinchliffe et al., 2013; Hinchliffe et Ward, 2014), imitando así ciertas formas de la biopolítica, como es el caso de la rastreabilidad.

Em palestra durante o seminário “Leishmaniose: a Vida é o Bem Maior”, um dos veterinários do grupo de pesquisa Brasileish explicou: “Para tratar o cão, o veterinário precisa casar-se com o animal, porque é um vínculo para a vida toda.” A imagem não poderia ser mais apropriada da passagem de uma concepção levemente consanguinizante de relação humano-animal - em que os cães são tratados como filhos metafóricos, não humanos (ou seja, membros da família e partícipes da humanidade como condição moral) -, para outra, contratual, simbolizada pelo ingresso permanente de um terceiro termo na relação: o médico veterinário. Trata-se de um novo dispositivo de aliança, em que o animal fica relacionado a uma empresa farmacêutica e ao Estado, ente garantidor virtual do cumprimento de todos os contratos (inclusive o de casamento). Tudo se passa como se a posse responsável fosse apenas a etapa inicial de um novo dispositivo de biossegurança, definido de forma contratual por critérios que envolvem compromissos e parcerias entre mercado farmacêutico, paciente e Estado.

Com a entrada do Milteforan® como único remédio leishmanicida para uso canino no Brasil, o tratamento privado do animal cria duas lógicas oficiais de governo da vida para os cães diagnosticados com leishmaniose visceral. A primeira lógica é a continuidade da tanatopolítica das eutanásias aplicáveis a cães de rua, errantes, comunitários e pertencentes aos tutores pobres; a segunda, o tratamento com fármacos e serviços veterinários, acessível apenas para as pessoas que podem bancar os altos custos do tratamento.23 23 O que difere não em natureza mas em grau de sistematização e controle das demais desigualdades no acesso à saúde no Brasil, em se considerando os serviços veterinários.

O proprietário que pode pagar pelo tratamento de seu cão não fica apenas assujeitado aos saberes, técnicas e controles definidos nos termos, mas também deve se comprometer com um novo modelo de posse responsável em que é convertido a gestor doméstico de uma rede de vigilância de reservatórios e patógenos. De doença fatal, cujo reservatório canino deveria ser sempre eliminado, a leishmaniose visceral canina passa a ser ressignificada como doença crônica, incurável, mas controlável para quem tenha recursos para acessar medicamentos, exames e cuidados veterinários.

Considerações finais

Para Alex Nading (2013)NADING, A. Humans, animals, and health: from ecology to entanglement. Environment and Society, v. 4, n. 1, p. 60-78, 2013. o domínio da saúde, inerente às zoonoses, é o âmbito por excelência do “entrelaçamento” entre humanos, animais e ambiente, sendo um dos principais vetores de operação do biopoder no mundo contemporâneo. Pelo status cultural ambíguo e refratário às classificações, os cães de rua (e, por extensão, os cães comunitários e os pertencentes às famílias de classes subalternas da periferia) dificilmente são reconhecidos como portadores dos mesmos direitos e regulações da fauna nativa, dos animais de criação e dos pets. Na ótica bio(tanato)política, os cães errantes são no máximo distorções numa paisagem não higienizada. Trata-se de frutos colaterais da deterioração de ambientes sociais e urbanos periféricos nos quais os cruzamentos multiespecíficos borram perigosamente os tênues limites entre natureza e cultura, rural e urbano, doméstico e selvagem, sadios e enfermos. A ótica urbana biopolítica desenha as periferias como zonas de fricções incertas e perigosas entre humanos, animais, hospedeiros, vetores, patógenos e doenças em contextos frequentemente estigmatizados pelas representações negativas de violência, desemprego, consumo de drogas, baixo grau de educação formal, desagregação familiar e ambiental e incapacidade de cumprir normas civilizatórias. Aplicada a essas regiões, a vigilância sanitária busca criar, além de fronteiras seguras contra ameaças biológicas, zonas de exclusão social devidamente mapeadas por meio de estratégias de purificação. Essas separam aqueles dignos de viver dos demais, os que se deixam ou fazem morrer. Misturados a um ambiente de “fricções” (Tsing, 2005TSING, A. Friction: an ethnography of global connection. Princeton: Princeton University Press, 2005.), numa perambulação nômade incessante nas vias públicas, os cães errantes de periferias pobres, abandonados ou não, comunitários, semidomiciliados - e mesmo os domiciliados -, misturados à criação de animais, circulam livremente em zonas de lixo e de mata; não castrados, proliferam sem controle. Sem ter quem os cuide adequadamente, não são vacinados nem vermifugados. Além disso, sujeitos à fome e às doenças - também agressores potenciais dos seres humanos, são frequentemente considerados pela ótica de autoridades sanitárias como uma alteridade incontrolável do ponto de vista civilizatório, um obstáculo à saúde que deve ser removido e segregado em zonas de exceção e centros de eliminação.

A sensibilidade animalista, que empresta rosto e personalidade aos cães, é engendrada não apenas pela economia moral da proteção animal ou pelo mercado pet (Lewgoy; Sordi; Pinto, 2015LEWGOY, B.; SORDI, C.; PINTO, L. Domesticando o humano: para uma antropologia moral da proteção animal. Ilha: Revista de Antropologia, v. 17, n. 2, p. 75-100, 2015.; Mastrangelo, 2017MASTRANGELO, A. Rosto, amizade e parentesco: dimensões da relação intersubjetiva humanos-cães em uma área com leishmaniose visceral emergente, (Dpto. Iguazu). Vivência: Revista de Antropologia, Natal, v. 1, n. 49, p. 97-120, 2017.), mas também pelo papel crescente desempenhado por outros atores de uma rede sociotécnica, especialmente os veterinários (Segata, 2012SEGATA, J. Os cães com depressão e os seus humanos de estimação. Anuário Antropológico 2011/II, p. 177-204, 2012.). À medida que os animais são incluídos como pets na ordem moral da família eles vão se convertendo em alvo de saberes, técnicas e relações de poder que lhes inscrevem na ordem biopolítica como sujeitos de discurso e objetos de regulação e normatização. A separação entre os animais sacer, para adaptar o termo de Agamben (2015)AGAMBEN, G. Estado de exceção: Homo sacer, II, I. São Paulo: Boitempo, 2015., sujeitos à tanatopolítica dos centros de controle de zoonoses e aqueles que têm a sorte de serem salvos por ações de vacinação, resgate e adoção - assim como os pets, merecedores de uma boa vida e cuidados veterinários - é o embrião da criação dos dois regimes de governo da vida nos cães com leishmaniose visceral canina.

A política brasileira de controle dos reservatórios caninos via eutanásia profilática tem sido questionada entre as camadas sociais com maior renda e acesso à instrução formal, o que se expressa nas decisões judiciais que se acumulam autorizando o tratamento veterinário, assim como na literatura científica e bioética sobre os efeitos morais e epidemiológicos perversos da política de eutanásia. Do lado da política sanitária, os argumentos pró-eutanásia sustentam-se nas mesmas incertezas que levam ao questionamento de sua legitimidade. Por ser uma doença instável, de difícil diagnóstico, de tratamento caro e complexo e de cura incerta, com possibilidade de infectividade de animais assintomáticos e, finalmente, com sérias dificuldades de coordenação entre as políticas locais, é justamente a alegação precaucionária de um “risco onipresente”, emanada do contexto intelectual da biossegurança, que fundamentará a sua permanência. Para essa ótica, a leishmaniose visceral canina é doença fatal de alto risco de transmissão, uma autêntica sentença de morte, seja quando a doença não é tratada, seja quando o Estado toma posse do animal.

Como vimos, a aprovação de fármacos exclusivos para tratamento individual de cães, ainda que vetada como medida de saúde pública, introduziu um dispositivo de biossegurança no controle da leishmaniose visceral canina que tem o mercado como princípio de inteligibilidade e agente de manejo, constituindo redes de corresponsabilidade entre Estado, empresas, veterinários e tutores. O licenciamento do Milteforan®, em 2016, consagrou o direito à vida e ao tratamento de cães socialmente incluídos: integrados, subjetivados, monitorados e individualizados, pertencentes às famílias das classes médias e superiores que podem pagar o caro tratamento e até arcar com custas judiciais, quando for o caso. Se, num primeiro nível, o acesso ao medicamento (e não apenas a ele, mas a todo um conjunto de serviços e produtos veterinários: vacinas, rações premium, microchipagens, consultas, exames, remédios extras) inscreve-se numa dicotomia de longa duração entre incluídos e excluídos na sociedade brasileira, a introdução de um dispositivo emergente de biossegurança privada propõe uma releitura da “posse responsável”, agora entendida na gramática neoliberal dos contratos, em que se conjugam biopoder e autogoverno, no sentido de Foucault (2008)FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica: resumo dos cursos do Collège de France. São Paulo: Martins Fontes, 2008.. Ao lado da manutenção da antiga tanatopolítica, que tem se exercido eliminando os corpos de hospedeiros caninos, esse novo dispositivo exige não apenas capacidade econômica e compromisso subjetivo como também gestão técnica do espaço doméstico e interiorização de normas biomédicas, a partir de uma lógica de vigilância permanente, que entrelaça cães, patógenos, tutores, veterinários, corporações farmacêuticas e autoridades sanitárias numa mesma rede sociotécnica.

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  • 1
    A criação da Secretaria Especial de Direitos dos Animais de Porto Alegre coincidiu com a descoberta dos primeiros casos de leishmaniose visceral em cães por volta de 2010. Segundo entrevista com gestores da secretaria à época, a prefeitura, então governada por José Fortunatti (PDT), acolheu o pleito da nova secretaria de não eutanasiar os cães, ao contrário da disposição da Secretaria da Saúde, que só veio a ser implementada a partir de 2017 no governo de Nelson Marchezan Jr. (PSDB).
  • 2
    “A doença afeta algumas das pessoas mais pobres da Terra e está associada à desnutrição, deslocamento populacional, moradia precária, sistema imunológico fraco e falta de recursos financeiros. A leishmaniose está ligada às mudanças ambientais, como desmatamento, construção de represas, esquemas de irrigação e urbanização” (World Health Organization, 2019WORLD HEALTH ORGANIZATION. Leishmaniasis. 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.who.int/en/news-room/fact-sheets/detail/leishmaniasis . Acesso em: 17 maio 2019.
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    , tradução nossa).
  • 3
    Segundo dados do Ministério da Saúde, “de 1990 a 2016, 84.922 casos de LV foram confirmados no Brasil, com a taxa de letalidade atingindo 7,4% em 2016” (Bezerra et al., 2018BEZERRA, J. et al. Burden of leishmaniasis in Brazil and federated units, 1990-2016: findings from Global Burden of Disease Study 2016. PLOS Neglected Tropical Diseases, v. 12, n. 9, 2018. DOI: 10.1371/journal.pntd.0006697.
    https://doi.org/10.1371/journal.pntd.000...
    , tradução nossa).
  • 4
    Os casos de leishmaniose visceral na província argentina de Misiones foram pesquisados por Andrea Mastrangelo (2017)MASTRANGELO, A. Rosto, amizade e parentesco: dimensões da relação intersubjetiva humanos-cães em uma área com leishmaniose visceral emergente, (Dpto. Iguazu). Vivência: Revista de Antropologia, Natal, v. 1, n. 49, p. 97-120, 2017., que os relacionou aos dinâmicos fluxos de pessoas e animais pelos espaços transfronteiriços entre Argentina, Brasil e Paraguai.
  • 5
    Para uma um histórico mais detalhado, ver Carlos Henrique Nery Costa (2011)COSTA, C. H. N. How effective is dog culling in controlling zoonotic visceral leishmaniasis? A critical evaluation of the science, politics and ethics behind this public health policy. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, Uberaba, v. 44, n. 2, p. 232-242, 2011. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0037-86822011000200021&lng=en&nrm=iso . Acesso em: 3 maio 2019.
    http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
    e Palatnik-de-Sousa e Day (2011)PALATNIK-DE-SOUSA, C.; DAY, M. One health: the global challenge of epidemic and endemic leishmaniasis. Parasites & Vectors, v. 4, n. 1, art. 197, 2011. Disponível em: Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3214158/pdf/1756-3305-4-197.pdf . Acesso em: 12 maio 2019.
    https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/article...
    .
  • 6
    Carlos Henrique Nery Costa (2011COSTA, C. H. N. How effective is dog culling in controlling zoonotic visceral leishmaniasis? A critical evaluation of the science, politics and ethics behind this public health policy. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, Uberaba, v. 44, n. 2, p. 232-242, 2011. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0037-86822011000200021&lng=en&nrm=iso . Acesso em: 3 maio 2019.
    http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
    , p. 236, tradução nossa), ao contrário, é categórico ao afirmar que “nem o papel dos cachorros na transmissão do Leishmania infantum, nem a eficácia de eutanasiar cães chegaram a ter algum consenso na literatura científica”.
  • 7
    Inspiramo-nos aqui na reflexão de Giorgio Agamben (2015)AGAMBEN, G. Estado de exceção: Homo sacer, II, I. São Paulo: Boitempo, 2015. sobre o papel biopolítico dos campos de concentração no regime nazista.
  • 8
    O Manual de vigilância e controle da leishmaniose visceral do Ministério da Saúde, de 2014, recomenda ainda ações de manejo ambiental mesmo que sem a centralidade das medidas anteriormente descritas: saneamento, retirada de lixo e de matéria orgânica, ambientes propícios à proliferação do vetor (cf. Brasil, 2014BRASIL. Ministério da Saúde. Manual de vigilância e controle da leishmaniose visceral. Brasília, 2014. Disponível em: Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_vigilancia_controle_leishmaniose_visceral_1edicao.pdf . Acesso em: 11 abr. 2019.
    http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoe...
    ).
  • 9
    Não encontramos informações consistentes ou sistemáticas sobre o número efetivo de eutanásias realizadas nos animais com suspeita de leishmaniose sob guarda dos centros de controle de zoonoses no Brasil, sendo antes vocalizados por críticos, o que dificulta o aprofundamento do debate em bases mais sólidas. Alguns de nossos interlocutores mencionaram dezenas de milhares por ano.
  • 10
    Desde 2003 as políticas de enfrentamento à leishmaniose visceral no Brasil têm sido descentralizadas e municipalizadas (Pinto; Vargas, 2017PINTO, L.; VARGAS, E. “Leishmania”: reflexões sobre o manejo do mundo em contextos de risco sanitário. Vivência: Revista de Antropologia, Natal, v. 1, n. 49, p. 121-134, 2017.). Na verdade nunca houve tratamento público de animais doentes, apenas a não proibição do uso de medicamentos humanos em cachorros.
  • 11
    Os testes de diagnóstico disponíveis para cães ainda têm uma margem de erro que é periodicamente revisada pelas autoridades nacionais de saúde. O diagnóstico recomendado pelo Ministério da Saúde é feito com o teste rápido DPP-LVC® para triagem - tem resultado em vinte minutos - e o ELISA para confirmação. Trabalhos demonstram que o DPP-LVC® não é capaz de detectar uma parcela da população de cães infectados com o parasita, o que pode contribuir para a perpetuação da doença nessas áreas (Queiroz de Oliveira, 2013QUEIROZ DE OLIVEIRA, I. Triagem dos antígenos recombinantes de Leishmania infantum utilizando a técnica de multi-antígenos impressos (MAPIA) no desenvovimento de imunodiagnóstico para leishmaniose visceral canina. 2013. Dissertação (Mestrado em Biotecnologia em Saúde e Medicina Investigativa) - Centro de Pesquisas Gonçalo Moniz, Fundação Oswaldo Cruz, Salvador, 2013.). A insuficiente sensibilidade e especificidade dos exames pode levar a resultados falsos positivos, falsos negativos, além de apresentar reações cruzadas com outras doenças, e ser incapaz de detectar a infectividade dos animais.
  • 12
    Foram realizados fóruns em 2007, 2009 e 2015, com reiteração das mesmas premissas.
  • 13
    O problema das coleiras, em que pese ser reconhecido como o mais eficaz método de controle, repousa na questão de logística e monitoramento: elas são caras, são perdidas ou roubadas e precisam ser trocadas em intervalos de 3 a 8 meses para se manter efetivas.
  • 14
    “Todos os coordenadores relataram terem tido dificuldades na condução das diretrizes do PVCLV também por interferências de clínicos veterinários. Disseram que é comum os clínicos orientarem os proprietários de animais a recusarem as medidas de controle da LV, citando como justificativas: a falta de credibilidade dos exames realizados pela Secretaria de Saúde; a discordância do programa brasileiro com o resto do mundo; medidas alternativas, como o tratamento canino, a vacinação contra LV e o uso de coleira em detrimento da eutanásia. Portanto, alguns clínicos veterinários colaboraram para aumentar ainda mais a desconfiança em relação ao controle de LV nos municípios, segundo os entrevistados” (Zuben; Donalísio, 2016ZUBEN, A. P. B.; DONALÍSIO, M. R. Dificuldades na execução das diretrizes do Programa de Vigilância e Controle da Leishmaniose Visceral em grandes municípios brasileiros. Cadernos de Saúde Pública, v. 32, e00087415, 2016., p. 7). Um estudo similar foi publicado sobre o caso argentino por Mastrangelo (2019)MASTRANGELO, A. Amor y enfermedad, etnografía de una zoonosis. San Martín: UNSAM Edita, 2019..
  • 15
    Zuben e Donalísio (2016ZUBEN, A. P. B.; DONALÍSIO, M. R. Dificuldades na execução das diretrizes do Programa de Vigilância e Controle da Leishmaniose Visceral em grandes municípios brasileiros. Cadernos de Saúde Pública, v. 32, e00087415, 2016., p. 6) mencionam a resolução nº 1000, de 11 de maio de 2012, do Conselho Federal de Medicina Veterinária (2012)CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA VETERINÁRIA. Resolução nº 1000, de 11 de maio de 2012. Dispõe sobre procedimentos e métodos de eutanásia em animais e dá outras providências. Brasília, 2012. Disponível em: Disponível em: http://portal.cfmv.gov.br/lei/download-arquivo/id/319 . Acesso em: 20 maio 2019.
    http://portal.cfmv.gov.br/lei/download-a...
    , em que se afirma que a eutanásia apenas deve ser aplicada quando o bem-estar do animal está comprometido ou quando ele constitui ameaça à saúde pública. Para as autoras essa resolução é ambivalente, “dando margem tanto para a defesa da vida animal quanto para respaldar a ação da saúde pública” (Zuben; Donalísio, 2016ZUBEN, A. P. B.; DONALÍSIO, M. R. Dificuldades na execução das diretrizes do Programa de Vigilância e Controle da Leishmaniose Visceral em grandes municípios brasileiros. Cadernos de Saúde Pública, v. 32, e00087415, 2016., p. 6).
  • 16
    Na parte final do acórdão é invocada uma concepção biocêntrica como um dos fundamentos da decisão: “Os seres vivos, de maneira geral, e os animais em particular, juntamente com os demais elementos que compõem a ecosfera constituem o planeta Terra. Nada mais é que um organismo vivo, que depende para sua existência da relação equilibrada da fauna, da flora, das águas dos mares e dos rios e do ar. Somente tal compreensão pode garantir a existência das gerações futuras. Disso decorre a responsabilidade que cada um tem com o meio-ambiente. Pouco apreço pela vida ou por aquilo que a pressupõe descomprometimento com o futuro. Sabemos como reproduzir a vida, não como a criar efetivamente. Aquele que desmerece os seres com os quais tudo tem sentido atinge nossa identidade e perdeu ou não adquiriu a essência do que se chama humano. Por isso, é muito grave a edição da portaria de que se cuida nos autos. Produz a concepção de que os seres humanos desconsideram o cuidado necessário ecológico pelo qual somos responsáveis” (Brasil, 2013BRASIL. Tribunal Regional Federal (3. Região). Acórdão 8268/2013. Diário Eletrônico da Justiça Federal da 3ª Região, São Paulo, n. 11/2013, 16 jan. 2013. Disponível em: Disponível em: http://web.trf3.jus.br/diario/Consulta/VisualizarDocumentosProcesso?numerosProcesso=200860000120313&data=2013-01-16 . Acesso em: 20 maio 2019.
    http://web.trf3.jus.br/diario/Consulta/V...
    ).
  • 17
    Em decisão monocrática sobre recurso extraordinário impetrado pelo Estado contra a decisão do TRF, exarada em 12/12/2018, o ministro Luís Roberto Barroso, de inspiração constitucional garantista, manteve a proibição das eutanásias (Brasil, 2018BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso extraordinário 1.004.876. Origem: Mato Grosso do Sul. Relator: Min. Roberto Barroso. Brasília, 12 dez. 2018. Disponível em: Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15339253539&ext=.pdf . Acesso em: 20 maio 2019.
    http://portal.stf.jus.br/processos/downl...
    ).
  • 18
    Esta posição fica muito clara no artigo “Dono não pode recusar eutanásia de cães doentes”, publicado no site do Conjur (Dono…, 2010DONO não pode recusar eutanásia de cães doentes. Consultor Jurídico, 7 out. 2010. Disponível em: Disponível em: https://www.conjur.com.br/2010-out-07/donos-nao-podem-impedir-eutanasia-caes-leishmaniose . Acesso em: 20 maio 2019.
    https://www.conjur.com.br/2010-out-07/do...
    ).
  • 19
    Como Mastrangelo (2019)MASTRANGELO, A. Amor y enfermedad, etnografía de una zoonosis. San Martín: UNSAM Edita, 2019. aponta no caso do massacre de cães no canil da Gendarmería Nacional em Iguazú, na Argentina, mesmo quando defende os direitos individuais dos cães, a visibilidade social e legal alega a quantidade (50 animais no caso analisado na Argentina, 300 no brasileiro).
  • 20
    Tratava-se aqui da polêmica em torno dos falsos positivos e dos falsos negativos nos testes diagnósticos detalhada na nota rodapé 11.
  • 21
    Trata-se de alopurinol, cetoconazol, levamizol, vitamina A, zinco, aspartato de L-arginina e prednisona, usados por alguns veterinários como tratamento alternativo à proibição, ainda vigente, do uso de antimoniato de meglumina e anfotericina B e de aquisição informal destes últimos (Fonseca, [2008]FONSECA, A. L. S. da. Abordagens atuais no tratamento da leishmaniose visceral canina. [2008]. Disponível em: http://www.fielamigo.com.br/trata/.Acesso em: 25 jun. 2019.
    http://www.fielamigo.com.br/trata/...
    ).
  • 22
    O texto é concluído com a seguinte declaração: “Estou ciente das consequências que esta decisão implica em termos de saúde pública e assumo os riscos das sanções legais que sobre mim possam ser impostas caso haja descumprimento” (Santa Catarina, 2018SANTA CATARINA. Secretaria de Estado de Saúde. Diretoria de Vigilância Epidemiológica. Guia de orientação para a vigilância da leishmaniose visceral canina (LVC). Florianópolis, 2018. Disponível em: Disponível em: http://www.dive.sc.gov.br/conteudos/zoonoses/publicacoes/Guia_Basico_de_Orientacao_LVC_2018.pdf . Acesso em: 30 jun. 2019.
    http://www.dive.sc.gov.br/conteudos/zoon...
    , p. 35).
  • 23
    O que difere não em natureza mas em grau de sistematização e controle das demais desigualdades no acesso à saúde no Brasil, em se considerando os serviços veterinários.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    28 Jun 2019
  • Aceito
    05 Set 2019
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