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Experiências maternais de Geni: a trajetória de uma mulher transexual e sua relação com a Justiça da Infância e Juventude

Geni’s motherhood experiences: the story of a transsexual woman and her relationship with the Court of Children and Youth

Resumo

O objetivo deste artigo é analisar como sujeitos produzem agenciamentos sociais na interface entre identidades, sexualidades, direitos e família. Para tanto, partimos de diferentes trajetórias de Geni, uma mulher transexual, mãe por adoção, portadora de registro de nascimento, sem modificação de gênero, que vive em união estável com Jonas, com quem adotou cinco filhos, nos últimos 30 anos. Os dois primeiros estiveram sob seus cuidados, sem o aval do Poder Judiciário. Os três últimos foram tornados filhos de Geni, com a chancela da Vara da Infância e Juventude, ao ajuizar com Jonas uma ação de adoção na qualidade de “família homoafetiva”. Geni age dentro de um campo de possibilidades que a vida ordinária lhe possibilita. Sua atuação não se manifesta de uma forma heroica, parafraseando Veena Das (2007)DAS, V. Life and words: violence and the descent into the ordinary. Berkeley: University of California Press, 2007., mas por meio da mobilização estratégica que sua identidade de gênero lhe configura nos cenários pelos quais transita, segundo suas diferentes experiências maternas.

Palavras-chave:
adoção; transexualidade; maternidade; moralidades

Abstract

The objective of this article is to analyze how subjects produce social agency at the interface between identities, sexualities, rights and family. Our argument revolves around Geni’s different trajectories as a transsexual woman and mother by adoption whose birth certificate does not include any gender modification. Geni lives in a long-term relationship with Jonas with whom she has adopted five children in the last 30 years. She took the first two into her care informally, having had no contact with the courts. The last three became Geni’s children with the full approval of the Juvenile Court, when she and Jonas filed an adoption action as a “same-sex couple”. Geni acts within a field of possibilities produced by ordinary life. Her action is not manifested in a heroic way, paraphrasing Veena Das (2007)DAS, V. Life and words: violence and the descent into the ordinary. Berkeley: University of California Press, 2007., but through the strategic mobilization of her gender identity as configured in the various scenarios through which she transits, and according to her different maternal experiences.

Keywords:
adoption; transsexuality; motherhood; moralities

Introdução1 1 Este artigo contou com a colaboração das pesquisadoras Doutora Lívia de Barros Salgado e doutoranda Thainá Rosalino de Freitas.

O objetivo deste artigo é analisar de que forma sujeitos produzem agenciamentos sociais na interface entre identidades, sexualidades, direitos e família. Para tanto, partimos das diferentes trajetórias maternais de Geni,2 2 Usamos nomes fictícios ao longo do texto. uma mulher transexual, mãe por adoção, portadora de registro de nascimento, sem modificação de gênero, que vive em união estável com Jonas, desde o início da vida adulta. Trata-se de uma pessoa com mais de 50 anos de idade, oriunda da região metropolitana da cidade do Rio de Janeiro, pertencente à camada popular e que se manteve financeiramente por meio de trabalhos informais. Nos últimos 30 anos, vivenciou com seu parceiro cinco diferentes experiências parentais, sendo as três últimas vividas após os anos 2000 e referendadas pelo Poder Judiciário.

A primeira adoção proposta na década de 1990, apesar de veladamente negada em razão da transexualidade, não a impediu de manter a “guarda de fato” da criança, à revelia do entendimento dos agentes da Justiça da Infância e Juventude. A segunda experiência adotiva, também iniciada no mesmo período, foi exercida sem que Geni e Jonas tenham buscado o Poder Judiciário. Tanto o primeiro quanto o segundo filho passaram aos cuidados do casal e com eles permaneceram sem que a “guarda” tenha sido transformada em adoção. Por fim, Geni, em momentos distintos, torna-se mãe de três crianças com o aval da Vara da Infância e Juventude ao ajuizar com Jonas uma ação de adoção na qualidade de “família homoafetiva”. Tais requerimentos foram realizados, por meio de seu registro de nascimento não retificado, após 2010, momento posterior à promulgação da chamada Nova Lei de Adoção.

Ao longo de sua experiência conjugal e maternal, Geni teve sua vida afetada por diferentes eventos. Os dispositivos legais que versam sobre a adoção no Brasil transformaram-se significativamente nos últimos 30 anos. Nesse período houve a promulgação da Lei nº 8.060/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente) (Brasil, 1990BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, 1990. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm . Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990. Acesso em: 10 out. 2020.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/le...
). Além disso, foi promulgada a Lei nº 12.010/2009 (conhecida como Nova Lei de Adoção) (Brasil, 2009BRASIL. Lei nº 12.010, de 3 de agosto de 2009. Dispõe sobre adoção; altera as Leis nos 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente, 8.560, de 29 de dezembro de 1992; revoga dispositivos da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, e da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943; e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, 2009. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12010.htm . Acesso em: 10 out. 2020.
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). Esta dispôs novas conduções sobre a prática adotiva, possibilitando, conforme o art. 39 § 2º, que não só os casados civilmente, mas também os que mantivessem união estável “comprovada à estabilidade da família”, pudessem adotar conjuntamente.

Em paralelo, os movimentos LGBTs (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) provocaram os alargamentos de sentidos de famílias. Em parte, tais ampliações foram incorporadas por agências estatais culminando na decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), proferida em 2011, quando reconheceu a união civil homossexual análoga à união estável. Com isso, tal decisão, apesar de não contemplar os direitos das pessoas transexuais no que tange às relações parentais, abriu brechas legais para que casais do mesmo sexo adotassem conjuntamente.

Propomos mostrar nos seguintes parágrafos que esses eventos foram potentes nos caminhos que levaram nossa interlocutora aos seus projetos parentais. Aventamos também a hipótese de que, chegando no terceiro filho, a escolha de Geni em ajuizar uma adoção “homoafetiva” pode ter sido um caminho para se fazer sujeito de direito à família, através do reconhecimento do Estado (Aguião, 2014AGUIÃO, S. R. Fazer-se no “Estado”: uma etnografia sobre o processo de constituição dos “LGBT” como sujeitos de direitos no Brasil contemporâneo. 2014. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2014.). Trata-se de alargamento de uma possibilidade adotiva, que, entretanto, não a referenda legalmente como mãe. Contudo, apesar de certos avanços, as vivências que constituem sua identidade de gênero, bem como suas experiências maternais, extrapolaram os limites normativos organizados pelas leis instituídas e por um sistema binário de sexo e gênero (Butler, 2010BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.).

Metodologia e percursos analíticos

Tomando como premissa a perspectiva crítica do fazer antropológico (Clifford; Marcus, 2016CLIFFORD, J.; MARCUS, G. A escrita da cultura: poética e política da etnografia. Tradução de Maria Claudia Coelho. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens: EdUFRJ, 2016.), conduzimos a etnografia de modo a compreender as razões que levavam pessoas e casais a um projeto parental por via da adoção. A pesquisa foi realizada em Grupos de Apoio à Adoção (GAAs), no município do Rio de Janeiro. Para tanto, mantínhamos uma interlocução com pretendentes e adotantes, a partir de pesquisa de campo e de entrevistas feitas por meio da participação em reuniões nesses espaços. Conhecemos nossa interlocutora em 2013, durante algumas incursões nesse campo.

A etnografia, iniciada em 2009, tinha originalmente como lócus privilegiado as Varas da Infância e Juventude, mas ao entrarmos nesse cenário percebemos que os GAAs adquiriam importância nos cenários nacional e municipal. Pudemos notar o empenho de seus integrantes, mostrando aos pretendentes como proceder ao longo do percurso adotivo. Além disso, foi possível apreender sua relevância na sensibilização dos adotantes para que pudessem filiar meninos e meninas considerados “dificilmente adotáveis” (crianças com mais de 6 anos de idade; em grupo de irmãos; negros; portadores de doenças crônicas e/ou necessidades especiais).3 3 Segundo o Diagnóstico sobre o Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento, do Conselho Nacional de Justiça (2020), a grande maioria dos pretendentes à adoção buscam filiar bebês e /ou meninas “pequenas”, brancas, saudáveis e sem irmãos. Dessa forma, aqueles que se encontram fora desse perfil são classificados como “dificilmente adotáveis”.

Dessa forma, ampliamos a pesquisa, procurando apreender ao longo do trabalho de campo as estruturas de significação, tensões, ambiguidades, indeterminações que circulam nos GAAs quando são formulados os sentidos sobre o projeto de filiação adotiva. A etnografia foi se delineando numa experiência colaborativa entre nós pesquisadores e alguns interlocutores, pais e mães por adoção e, sobretudo, psicólogos e advogados que atuavam nos GAAs. Essas pessoas abriam as portas das entidades que coordenavam, assim como as salas de suas casas, seus escritórios e consultórios, para que pudessem nos contar um pouco sobre o tema e/ou nos indicar “alguém que havia feito uma adoção”. Por meio desses caminhos encontramos outros pais adotivos e pretendentes à adoção.

Ao longo da condução da pesquisa de campo, as entrevistas foram um recurso metodológico do qual fizemos uso. Por ser uma pesquisa qualitativa, não houve escolhas amostrais da população interrogada. Os critérios de “representatividade” ligaram-se ao fato de serem pessoas que desejavam ou já possuíam filhos por adoção, independentemente da orientação sexual e/ou estado civil. Além disso, poderiam ser indivíduos que atuavam profissionalmente nas práticas adotivas e ativistas voluntários da causa.

Entre 2009 e 2020 realizamos 48 entrevistas, das quais 9 dizem respeito ao universo de pessoas que pleitearam adoção sem uma/um parceira/o; as outras 39 tratam de pessoas inseridas em um arranjo conjugal e que pleitearam a adoção com seus respectivos parceiros e, dentre essa população, 26 compõem uma conjugalidade heteroparental; 12 vivem arranjos homoparentais4 4 De acordo com Zambrano (2006, p. 127), “homoparentalidade é um neologismo criado em 1997 pela Associação de Pais e Futuros Pais Gays e Lésbicas (APGL), em Paris, nomeando a situação na qual pelo menos um adulto que se autodesigna homossexual é (ou pretende ser) pai ou mãe de, no mínimo, uma criança”. No entanto, o termo é restrito quando diz respeito às parentalidades travestis e transexuais. e 1 constitui um arranjo transparental.5 5 Levando em consideração o que já foi discutido por Zambrano (2006, p. 128) sobre a categorização homoparental, a opção pelo uso do termo “transparental” é uma escolha estratégica, pois coloca “em evidência uma situação cada vez mais presente na sociedade atual” e que valoriza a identidade de gênero desses sujeitos, não os resumindo à uma diversidade que se restringe a um imperativo sexual.

Ao longo dos anos a pesquisa passou por vários desdobramentos.6 6 “A genetização do parentesco, adoção e o impacto na questão da infância e adolescência no município do Rio de Janeiro”, realizada com apoio da Faperj entre os anos de 2009 a 2011; “Adoção em seus múltiplos sentidos”, também apoiada pela Faperj entre 2012 e 2013; “Laços desfeitos, vínculos construídos e ‘socioafetividade’: um estudo sobre valores morais e práticas legais no cenário da adoção no Rio de Janeiro”, apoiada pelo CNPq (bolsa de produtividade - 302046/2015-1) entre 2016 e 2018 e pela Faperj (APQ1 E-26/010.002184/2015); e, atualmente, conta o fomento do CNPq através do projeto “Sentidos de famílias, adoção e políticas para infância e juventude” (bolsa de produtividade - 305518/2018-6), realizado entre 2019 e 2022. No entanto, o desejo de entender as razões que levam à adoção, assim como a vontade de apreender a maneira como as pessoas vivem essa relação parental permaneceram como pontos centrais. À luz dessas questões buscamos entender os motivos que levaram Geni a esse projeto parental. Fizemos a escolha de destacar sua trajetória, em face de sua singularidade no cenário pesquisado. Por meio de nosso encontro etnográfico, pudemos notar a densidade e a relevância de suas narrativas, que ultrapassavam sobremaneira nossas propostas originais.

Ao longo da pesquisa, compreendemos que essa entrevista despontava em uma reflexão diferente das demais, principalmente das que foram movidas sob a noção em torno da “adoção homoafetiva”. Identificamos que essa experiência nos possibilitaria atentar sobre as suas diferentes trajetórias maternais, suas tessituras e suas relações com a administração da burocracia estatal. Além disso, nos possibilitaria apreender a presença ou ausência das normatividades identitárias e seus efeitos na vida das populações que desejam a filiação adotiva, mas se distanciam do tradicional binarismo de gênero (Butler, 2010BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.).

Em face dessas reflexões, almejamos entender como as experiências maternais de Geni se relacionava com as práticas de justiça no Juizado da Infância e da Juventude (Schuch, 2009SCHUCH, P. Práticas de Justiça: antropologia dos modos de governo da infância e juventude no contexto pós-ECA. Porto Alegre: EdUFRGS, 2009.). A partir disso, questionamentos foram levantados: a ideia de maternidade, constantemente associada à natureza, seria um impedimento ao reconhecimento legal dos múltiplos arranjos familiares, que não os pautados em um binarismo de gênero? Como a maternidade de pessoas transexuais é tradada nas práticas do Estado, no âmbito da Justiça da Infância e Juventude? De que forma o percurso trilhado por nossa interlocutora em face das agências estatais produziu efeitos sobre os sentidos atribuídos ao seu exercício maternal?

Tomamos como ponto de partida as trajetórias de Geni para tornar-se mãe, os percursos trilhados em seu círculo de sociabilidade e nas Varas da Infância e Juventude, assim como as disputas e os conflitos vividos por ela e seu esposo nesses cenários. Acabamos por apreender as diferentes sensibilidades jurídicas (Geertz, 2001GEERTZ, C. O saber local: novos ensaios de antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 2001.) ao longo dos anos, por meio de reflexões sobre as contestações, as aceitações e gestão dessa maternidade nas práticas de justiça no Juizado da Infância e da Juventude. Com esses caminhos almejamos compreender os limites entre sua vida pública e privada, os deslocamentos entre o centro e a periferia, a manipulação estratégica de apropriação entre o formal e o informal, etc., pautados em relações que se modularam através de procedimentos conduzidos por sujeitos, subjetividades, disputas de poder e economias morais (Fassin, 2014FASSIN, D. Compaixão e repressão: a economia moral das políticas de imigração na França. Ponto Urbe, São Paulo, v. 15, p. 1-22, 2014.).

Laços de solidariedade

De acordo com Geni, ela e Jonas viveram diversas experiências de “cuidado” de filhos que “circulavam” entre parentes e amigos.7 7 Ver trabalhos de Fonseca (1993, 2013) sobre circulação de crianças em famílias de camadas populares no Rio Grande do Sul. A partir de uma perspectiva comparativa com outras regiões do país, a antropóloga nos convoca a pensar esses arranjos não como “colapso dos valores tradicionais”, mas como “uma estrutura básica de organização de parentesco […] vinculada a uma cultura popular urbana” (Fonseca, 1993, p. 116). Foi dessa forma que os dois primeiros filhos chegaram, na década de 1990, em suas vidas. O primeiro lhes foi “dado” ainda com menos de três anos de idade, junto com uma folha de papel “registrando o ato”. A mãe de nascimento era solteira, usuária de drogas e não tinha como cuidar do bebê.

Passado algum tempo, quando o laço parental estava consolidado, a mãe biológica retornou requerendo dinheiro em troca do “contrato”, fato que conduz Geni à Vara da Infância e Juventude de sua cidade. Chegando ao Judiciário explicou a situação aos funcionários presentes. Lá foi informada sobre os procedimentos burocráticos e trâmites necessários à regularização de sua adoção feita “à brasileira”.8 8 A “adoção à brasileira” consiste no registro do nome da criança como se ela fosse seu filho biológico, com a ciência de que não é (Finamori; Silva, 2019). Nesse ato tomou ciência que o “papel que lhe garantia a posse do filho” não possuía valor algum.

Após uma conversa ao “pé de ouvido” foi aconselhada pela assistente social que a atendeu a desistir do pleito. De acordo com essa técnica da Vara da Infância e Juventude, mesmo que o requerimento de adoção fosse proposto, o processo ficaria “engavetado”. Ou seja, na prática, os profissionais responsáveis em dar andamento aos trâmites burocráticos, à luz de uma moralidade que considerava impossível associar transexualidade e maternidade, criariam artifícios para que a ação ajuizada não transitasse de forma regular. Apesar de não mencionar que o “conselho” se devia à sua transexualidade, essa profissional deixa claro que o reconhecimento de uma parentalidade dependeria dos sentidos morais construídos sobre os demandantes à adoção. Em face disso, nossa interlocutora declinou da ação legal, mas não desistiu de manter a “guarda de fato” da criança, agindo contrariamente ao entendimento dos agentes da Justiça da Infância e Juventude, como Geni nos conta:

[…] acho que eu sofri preconceito. Eles dificultaram muito as coisas pra mim, muito, muito, muito. As pessoas que me atenderam disseram que eu não podia, que eu não deveria. Uma assistente social me chamou num cantinho e me falou meia dúzia de coisas fora da consulta, que eu não iria conseguir. Depois que eu passei por todo o processo, passei pela assistente social, ela me deu os papéis, me deu tudo na sala, mas quando eu saí, ela me chamou, separado. Ela disse, em outras palavras, que o processo ia ficar engavetado e eu não ia conseguir nada, nem pela Justiça, se eu quisesse adotar uma criança assim que fosse de creche, de orfanato e nem o meu próprio filho, ia rolar durante anos e eu não ia conseguir.

Consideramos que a postura da assistente social, antes de ser um ato isolado, é a materialização da visão que recusa reconhecer, conforme Zambrano (2006ZAMBRANO, E. Parentalidades “impensáveis”: pais/mães homossexuais, travestis e transexuais. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 12, n. 26, p. 123-147, jul./dez. 2006., p. 129), que travestis ou transexuais possam constituir famílias com filhos. Segundo a antropóloga, essas moralidades negam aos arranjos compostos por pessoas trans e sua prole, seu estatuto legal, fixando-as às margens dos arranjos de parentesco. Nesses termos, é possível compreender o enunciado da assistente social. Não há para Geni, naquele momento, possibilidade legal para o exercício dessa maternidade, por tratar-se de um parentesco “dificilmente reconhecível” (Butler, 2015BUTLER, J. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.).

Mesmo a partir desse limite traçado pelos agentes da Justiça da Infância e Juventude, Geni cria seu filho até os 17 anos de idade. Naquele momento, surge outro evento para abalar a relação entre eles. O menino possuía um irmão mais velho, que teve uma influência negativa em sua vida, segundo nos relatou:

[…] apareceu um tal do irmão mais velho dele, que eu também ajudei a criar. Aí enfiou o garoto em baile funk, ensinou o garoto a fumar, beber, aí já não era mais uma criança, o garoto saiu totalmente do meu controle, saiu da nossa vida. Ele só queria vir pra “panhar”: “Eu queria dinheiro pra comprar uma calça, eu queria dinheiro pra tênis”, então eu me decepcionei com isso. Fiquei sofrendo assim uns cinco anos, chorava, queria me matar, foi tudo pra mim, foi o fim da minha vida. Esse garoto quando foi embora, quando ele foi, eu queria a morte, preferia morrer. Tudo o que ele queria eu dava, dava dinheiro, dava roupa, dava tudo escondido dele [Jonas]. Eu queria morrer, mas queria que o menino voltasse.

Essa experiência produziu marcas em sua história. Sentiu-se “traída” pelo filho, que demonstrava “interesse” por seu dinheiro e não por seu afeto maternal. Uma vez que nesse contexto social dinheiro e afeto são compreendidos como excludentes (cf. Zelier, 1994 apudFonseca, 2013FONSECA, C. Lucro, cuidado e parentesco: Traçando os limites do “tráfico” de crianças. Civitas: revista de ciências sociais, Porto Alegre, v. 13, p. 269-291, 2013.), o domínio da família, visto como o campo dos afetos, ao ser invadido pela lógica do dinheiro, é tornado poluído. Para Geni, o fato de o filho ter priorizado seus bens ao seu amor a fez cair em depressão e desejar a morte, sentimento atenuado ao longo dos anos.

Passado algum tempo, o segundo menino chegou em sua vida em razão de uma gramática moral de cunho caritativo. Geni nutria o hábito de cuidar de crianças em situação de vulnerabilidade social. Deprimida com sua experiência adotiva anterior, encontra, no caminho de seu trabalho, um adolescente de 16 anos dormindo na rua. Resolve ajudá-la, acolhendo-a daquela situação em que se encontrava. Informando-se sobre a sua mãe de nascimento, ao saber que ela não possuía condições de ficar com ele, acabou por filiá-lo.

Botei na escola, levei para o quartel. Hoje tá um galalau enorme, um homem enorme, muito lindo. É a minha paixão, assim, ele é a minha cara. O garoto parece que realmente foi feito pra mim, da minha cor, cabelo igual ao meu, é meu filho escrito. Acho que eu nunca vou ter um filho igual àquele. É, enfim, minha alma gêmea. […] E é o filho que Deus me deu mesmo.

Segundo Geni, “parecia que tinham sido feitos um para o outro”. Ao longo do tempo essa experiência de cuidado foi sendo transformada em parentalidade. Tal mudança aconteceu sem que a Justiça da Infância e Juventude fosse acionada para legalizar a relação fática. Segundo nos conta sobre esse filho:

Esse não botei no papel, nem nada. Continua com o nome da mãe, do pai, me dou muito com a mãe dele, me dou muito com o pai dele. Fiz ele retornar com a mãe dele, a amizade. Ele hoje tá com 27 anos, entende mais a mãe dele, que a mãe dele tem problema de nervo muito sério. Ele já casou, já separou, nos deu um netinho, o netinho já tá com 6 anos.

Acreditamos que a escolha de “não botar no papel” possa ter relação com o “preconceito” que Geni tinha sofrido quando tentou regularizar o primeiro filho. Além disso, supomos que, por estar inserida em um modelo de parentesco organizado de forma distinta daquele pautado na exclusividade de filiação (Ouellette, 2000OUELLETTE, F.-R. Parenté et adoption. Sociétés Contemporaines, [s. l.], n. 38, p. 49-65, 2000.),9 9 De acordo com a antropóloga Françoise Ouellette (2000, p. 51, tradução nossa), “o modelo genealógico de reprodução estabelece que um indivíduo não possa ser filho de mais de um pai e de uma mãe”. escolheu que seu filho mantivesse relações legais e afetivas com sua mãe de nascimento.

Geni faz parte de um contexto em que o exercício parental, as formas de constituir família e os sentidos do que seja uma adoção não são pautados exclusivamente pelos limites traçados pelas leis e pelas práticas jurídicas. Sendo assim, ter um filho pela via adotiva pode ser uma experiência construída independentemente do Poder Judiciário. Além disso, pode ser algo constituído de forma aditiva, contemplando arranjos múltiplos de filiação e parentalidade (Yngvesson, 2007YNGVESSON, B. Parentesco reconfigurado no espaço da adoção. Cadernos Pagu, Campinas, n. 29, p. 111-138, 2007.), sem com isso apagar informações (Strathern, 2015STRATHERN, M. Parentesco, direito e o inesperado: parentes são sempre uma surpresa. São Paulo: Unesp, 2015.) ou relações de parentesco daqueles que porventura vierem a ocupar o lugar de filho.

O momento de passagem

Era o início dos anos 2000 e a vida do casal estava tranquila. Nesse período Jonas propôs à Geni que se cadastrassem junto à Vara da Infância e Juventude para ingressarem no Programa Família Acolhedora,10 10 De acordo com Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária, aprovado pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e o Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) em dezembro de 2006, esse programa visa o acolhimento de jovens e infantes afastados de suas famílias de origem, em razão de medida protetiva, em residências e não em instituições de acolhimento. Pauta-se na “proteção integral às crianças e aos adolescentes até que seja possível a reintegração familiar” (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, 2006, p. 42), garantindo a estes a inserção na vida comunitária. e Geni concordou. Realizaram o cadastro e tomaram parte no programa. Segundo contou, tal atitude serviu para formalizar o que já era de seu “costume”: cuidar de crianças e adolescentes vulneráveis.

A participação nesse programa pode ser entendida como alteração da trajetória maternal de Geni. Em um primeiro ciclo de sua vida, torna-se mãe em razão de laços de solidariedade e de relações de cuidado nas quais está inserida. No segundo, a maternidade é produto de um projeto parental formulado entre ela e Jonas. De acordo com Geni, “a vontade de adotar sempre fez parte da vida do casal”. Segundo ela, o “destino” foi conduzindo-a aos seus filhos.

Para tanto, ao mesmo tempo que atuam como família acolhedora, após 2011, com base na informação sobre a decisão do Supremo Tribunal Federal, buscam a Vara da Infância e Juventude para a realização do procedimento de habilitação em adoção11 11 De acordo com a Lei nº 13.509/2017 (Brasil, 2017), que dispõe sobre adoção e altera a Lei nº 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente) (Brasil, 1990), a habilitação é um procedimento administrativo que, após a promulgação da Lei nº 12.010/2009 (Brasil, 2009), conhecida como a Nova Lei da Adoção, foi transformada em etapa obrigatória para uma adoção, sendo essa obrigatoriedade a mesma nos dias atuais. Esse é um procedimento iniciado com uma petição, entregue em cartório da Vara de Infância e Juventude, pelo interessado, junto com certidões negativas de feitos cíveis e criminais e atestado de sanidade física e mental. Depois de depositada, essa petição será remetida à equipe técnica (psicólogos e assistentes sociais das varas) que, de acordo com as determinações administrativas locais, conduzirá a participação dos requerentes em programas de capacitação à parentalidade adotiva. como “família homoafetiva”. Em face disso, participam de Grupos de Apoio à Adoção (GAAs), pois, de acordo com as legislações que versam sobre o tema,12 12 Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), art. 50, Lei nº 8.069/1990 (Brasil, 1990), alterada em 2009 pela Lei nº 12.010/2009 (Brasil, 2009) e, novamente, modificada em 2017 por meio da promulgação da Lei nº 13.509/2017 (Brasil, 2017). está determinado que os pretendentes devam realizar “programas de capacitação à paternidade socioafetiva”, organizados pelo Poder Judiciário. Em função dessa determinação legal, as comarcas brasileiras devem escolher a modalidade de curso a ser ofertada aos pretendentes, podendo ser a participação em Grupos de Apoio à Adoção ou em outras formas de preparação parental.

Essa participação em reuniões dos GAAs fez com que conhecessem a história de muitas crianças e começassem a repensar o perfil desejado: “A gente tinha um perfil, a gente queria criança de 0 a 5 anos, não tinha preferência de sexo, cor, nada”, como Geni nos conta. Assim como outros casais, ambos foram sensibilizados pelas políticas adotivas promovidas por integrantes dos GAAs. Isso porque, segundo Rinaldi (2019)RINALDI, A. de A. Adoção: políticas para a infância e juventude no Brasil? Sexualidad, Salud y Sociedad, Rio de Janeiro, n. 33, p. 273-294, 2019., puderam ser afetados por integrantes dessas entidades sobre as possibilidades de filiação de meninos e meninas considerados “dificilmente adotáveis”.

O desejo pela parentalidade presente na história de Geni, dissociando sexualidade, procriação e parentalidade, também permeia a realidade de outras pessoas LGBTs, como aborda Tarnovski (2013)TARNOVSKI, F. L. Parentalidade e gênero em famílias homoparentais francesas. Cadernos Pagu, Campinas, n. 40, p. 67-93, 2013. em suas pesquisas sobre o tema. Acreditamos, como dito no início do artigo, que abordar a sua trajetória adotiva nos possibilita refletir sobre suas experiências de maternidade e sobre realidades semelhantes, constituídas no decorrer das “negociações” de direitos e de cidadania desses sujeitos historicamente marginalizados no Brasil.

Os movimentos sociais LGBTs e suas significativas reorganizações em torno da construção de suas políticas de identidades e sentidos sobre famílias (cf. Aguião, 2014AGUIÃO, S. R. Fazer-se no “Estado”: uma etnografia sobre o processo de constituição dos “LGBT” como sujeitos de direitos no Brasil contemporâneo. 2014. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2014.; Facchini, 2005FACCHINI, R. Sopa de letrinhas?: movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.) produzem efeitos na vida de nossa interlocutora. Por meio de agentes, que variaram conforme as épocas, esses movimentos elaboram diferentes regimes de visibilidade. Além disso, afetam os modos de fazer política, provocando junto aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário interpretações, moralidades e atuações diversas em torno dos cruzamentos entre as temáticas da “família”, da “sexualidade” e dos “direitos”.

Na esteira dos efeitos produzidos por esses movimentos, destacamos a decisão do STF, proferida em 2011. A decisão foi decorrente do ajuizamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF 132 e da Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI 4277.13 13 A ADPF - Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - tem em seus objetivos viabilizar, em âmbito jurídico, ações com vistas a evitar ou, em última instância, reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público. Já a ADI - Ação Direta de Inconstitucionalidade - objetiva compreender se uma lei, ou parte dessa lei, está sendo operada de forma inconstitucional. Cabe ao Supremo Tribunal Federal concentrar seus esforços no desempenho da constitucionalidade frente à Carta da República. Ver em Vecchiatti (2012). Nessa oportunidade, serviram como base interpretativa os artigos 226 da Constituição Federal e 1.723 do Código Civil na relação com as mudanças sociais, os princípios constitucionais e a perspectiva “garantista” mais ampla que compõe a Constituição Federal. Pelo entendimento unânime dos ministros da Suprema Corte, foram reconhecidas as “uniões homoafetivas” como um quarto14 14 O art. 226 da Constituição Federal reconhecia, até aquele momento, três modelos de família: (i) o casamento, (ii) a união estável, constituída entre homem e mulher, e (iii) a família monoparental, formada por qualquer dos pais e seus descendentes. modelo de entidade familiar (cf. Coitinho Filho; Rinaldi, 2015COITINHO FILHO, R.; RINALDI, A. de A. A ‘homoafetividade’ no cenário adotivo: um debate antropológico. Revista Mediações, Londrina, v. 20, p. 285-306, 2015., 2018COITINHO FILHO, R.; RINALDI, A. de A. O Supremo Tribunal Federal e a “união homoafetiva”: onde os direitos e as moralidades se cruzam. Civitas: revista de ciências sociais, Porto Alegre, v. 18, p. 26-42, 2018.).

Esse advento promoveu importantes desdobramentos sobre a noção de família e de direitos para a referida população. Para além da formalização dos relacionamentos conjugais estáveis, a configuração da entidade familiar entre dois homens ou duas mulheres também impactou na possibilidade de adoção conjunta, conforme art. 39 § 2º, da Lei nº 12.010/2009 (Brasil, 2009BRASIL. Lei nº 12.010, de 3 de agosto de 2009. Dispõe sobre adoção; altera as Leis nos 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente, 8.560, de 29 de dezembro de 1992; revoga dispositivos da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, e da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943; e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, 2009. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12010.htm . Acesso em: 10 out. 2020.
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). Mediante a decisão da Suprema Corte, pares “homoafetivos” passaram a ser elegíveis para a adoção conjunta,15 15 Vale ressaltar que, mesmo antes desse novo dispositivo em âmbito jurídico, decisões favoráveis ao pleito já eram deferidas em circunstâncias isoladas. Ver Cristo (2015). impactando efeitos sobre a prática adotiva e nos direitos dos LGBTs.

Consideramos que Geni teve sua vida afetada pela emergência da ideia de família “homoafetiva”. Coitinho Filho (2014COITINHO FILHO, R. Sobre a possibilidade de se tornar uma ‘boa família’: afirmações e representações no pleito à adoção movido por gays e lésbicas. Novos Debates: fórum de debates em antropologia, Brasília, v. 1, p. 34-39, 2014., 2015COITINHO FILHO, R. O lugar do afeto na produção do ‘homoafetivo’: sobre aproximações ao familismo e à aceitabilidade moral. Revista Ártemis, João Pessoa, v. 19, p. 168-178, 2015.) argumenta que a construção do sujeito “homoafetivo” e o uso dessa categoria na esfera legal são resultados da compreensão do afeto como valor jurídico. E que, em razão disso, gays e lésbicas, ao serem tratados por “homoafetivos”, estariam sendo realocados na esfera normativa, aproximando-se do “familismo e da aceitabilidade moral” (Coitinho Filho, 2015COITINHO FILHO, R. O lugar do afeto na produção do ‘homoafetivo’: sobre aproximações ao familismo e à aceitabilidade moral. Revista Ártemis, João Pessoa, v. 19, p. 168-178, 2015., p. 176).

Levamos em conta também que as transformações da política nacional de convivência familiar e comunitária para a infância e juventude, que possibilitaram a Geni e Jonas participarem do Programa Família Acolhedora, impactaram seus projetos parentais via adoção. Segundo nos disse:

Há muitos anos isso, mais de 30 anos, que estamos juntos. Aí, quase 30 anos! Desde então, que a gente se conheceu, tinham nossos projetos de vida, mas… a adoção, no caso, ter um filho, sempre foi um projeto nosso. Desde que a gente se assumiu realmente como casal e tal. Então, isso sempre estava nos nossos planos […] Essa questão [participação no Programa Família Acolhedora] fez a gente repensar a coisa da adoção: “Poxa, por que não adotar agora também? A gente já tá cuidando e tal dessas crianças” e também teve essa abertura da lei [decisão do STF] que já facilitou bastante. E a gente aproveitou! Então foi uma coisa juntando com a outra, e a gente aproveitou e estamos aí, com três adotados aí. Um já tá no nosso nome. (Grifo nosso).

Apesar de persistir a ideia de que as parentalidades travestis ou transexuais são ininteligíveis, às margens dos arranjos de parentesco, aquele era um período histórico no qual começavam a surgir brechas que possibilitaram o exercício de demandas parentais plurais. No caso específico de Geni, essa brecha foi construída por meio da propositura da ação de adoção na qualidade de família “homoafetiva”.

Por se tratar de uma mulher transexual, vivendo relação conjugal consensual com um homem heterossexual, seu arranjo conjugal poderia ser classificado, em termos de reconhecimento jurídico, como união estável. No que tange ao ajuizamento de uma proposição adotiva, o casal poderia requerer a adoção sem quaisquer referências à identidade de gênero e/ou orientação sexual. Assim, munindo-se do registro de nascimento, e em razão da sua não retificação de identidade de gênero, Geni agenciou seu desejo parental ao enquadramento (Butler, 2015BUTLER, J. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.) possível naquele contexto: o de pleitear a adoção enquanto família “homoafetiva”.

Essa gestão efetivada pelos agentes da Justiça da Infância e Juventude, apesar de endossar o pleno exercício parental de Geni, não legitimou, no fluxo de tramitação burocrática do processo, sua identidade de gênero. Nesses termos, apesar de a condução dessa ação de adoção ter ampliado as possibilidades de reconhecimento de maternidades diversas por parte dos agentes do Estado, não houve deslocamento de um imperativo biológico dos corpos na conformação das identidades de gênero (Butler, 2010BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.).16 16 Para adensar essa discussão, nos pautamos em Érica Souza (2013). A autora apresenta importantes questões a partir da problematização em torno das categorias êmicas “parentalidade transgênero”, no Canadá, e “homoparentalidade”, no Brasil. Seus interlocutores transgêneros, participantes de movimentos sociais LGBTs, nos dois cenários pesquisados, manifestavam o sentimento de deslocamento quanto ao pertencimento à sigla LGBT, conforme as diversas configurações entre gênero e sexualidade que podem ser associadas na constituição das suas identidades. No Brasil, o neologismo utilizado, designado indiscriminadamente para gays, lésbicas, travestis e transexuais, desconsiderava as especificidades em torno das identidades desses sujeitos, tratados como “iguais” em suas diferenças, o que invisibilizava discursivamente a existência em torno das suas parentalidades e as negociações que envolvem essas experiências. Em ambos os contextos, as demandas de travestis e transexuais na esfera do ativismo era tratada de forma marginalizada, relegando a parentalidade transgênero como algo de menor importância ainda.

Para Geni e seu esposo, a assunção à identificação como “família homoafetiva” não era um problema.17 17 No âmbito das relações sociais de travestis (Cardozo, 2007; Silva, 1993) há uma ambiguidade que permeia a associação entre suas corporalidades e sociabilidades. Cardozo (2007, p. 241) identificou haver uma “duplicidade de gênero” nas relações familiares, que resultam em nomeações terminológicas masculinas (tio, primo, etc.), ou passíveis de negociação (irmão), destinadas às travestis, embora suas participações sejam vivenciadas no âmbito doméstico, em espaços vistos como femininos. Nessa seara, a decisão do Supremo Tribunal Federal referente ao reconhecimento de pares “homoafetivos” despontava simplesmente como uma realidade coincidente com as experiências parentais que nossos interlocutores já vivenciavam episodicamente com as crianças das quais “cuidavam”. Tal feito os fez se perceberem elegíveis para vivências ordinárias da parentalidade adotiva. É como se essa ampliação de direitos fosse uma extensão possibilitada a todos aqueles que compõem as letrinhas LGBT.

Eugênio18 18 Decidimos pelo nome Eugênio para tentar explicar a forte ligação afetiva entre Geni e seu filho, que originalmente possuem nomes parecidos. e Geni: o encontro de almas

Geni conheceu o terceiro filho através do Grupo de Apoio à Adoção que frequentava. De acordo com o casal, o perfil desejado era de crianças entre 0 a 5 anos, não importando sexo e nem raça. Nos GAAs, os coordenadores trabalham essa escolha para que os pretendentes sejam mais receptivos às outras crianças fora do perfil hegemonicamente procurado no Brasil. Segundo os dados produzidos pelo Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento19 19 Serviço ligado ao Conselho Nacional de Justiça, responsável pela produção de dados sobre adoção em contexto nacional. as buscas preferenciais são por meninas com menos de 5 anos, sem doenças e/ou necessidades especiais, sem irmãos, brancas e sem memórias de suas famílias de origem.

Segundo Geni, durante sua participação em um desses encontros, uma assistente social contou a história de Eugênio, “devolvido” 20 20 O termo “devolução” significa que há meninos e meninas que foram conduzidos por meio das Varas da Infância e Juventude à casa de pessoas e casais “pretendentes à adoção” que, ao conviverem com eles, foram tomados de arrependimento, “devolvendo-os” às instâncias jurídicas responsáveis. três vezes por ser classificado como “um garoto muito difícil”. Na época, estava em uma casa de acolhimento prestes a ser transferido para outra entidade, pois iria completar 8 anos e a instituição só cuidava de crianças com até 7 anos de idade.

Nossa interlocutora, comovida com aquela história, decidiu visitar Eugênio. Antes dessa visita manifestou à Justiça da Infância e Juventude o interesse em adotá-lo. Chegando à casa de acolhimento, todo seu nervosismo aflorou. Outros casais foram conhecer as crianças acolhidas. Ela, ao entrar naquela instituição, notou a presença de um menino isolado, sentado numa cadeira sozinho, com um semblante triste.

Naquele momento “soube” que aquele garotinho era seu filho. Segundo Rinaldi (2021)RINALDI, A. de A. L’idéal et le réel: la parentalité adoptive et les expériences d’adoptants à Rio de Janeiro. In: CHARTON, L.; BAYARD, C. (dir.). Des imaginaires aux réalités conjugales et familiales: perspectives interdisciplinaires et internationales. Québec: Presses de L’Université du Québec, 2021. p. 11-34., há uma máxima que transita no cenário adotivo brasileiro, segundo a qual as pessoas que almejam a filiação percebem que aquela criança disponível à adoção é “a sua”. Isso ocorrerá através de uma espécie de revelação, da ordem do sobrenatural. E, nesse momento, os pretensos pais seriam tocados por uma história, por um nome pronunciado, um sentimento, um som, um cheiro ou algo do gênero capaz de demonstrar verdadeiramente uma relação de parentalidade e de filiação. Podemos supor que assim como outras mães por adoção, Geni se enquadraria nesse sentido de parentalidade que ultrapassa a biogenética.

Baseada nesse sentimento, perguntou à assistente social se aquela criança acuada e sozinha estaria disponível à adoção,21 21 Nem todas as crianças acolhidas estão disponíveis à adoção. Essas podem estar afastadas temporariamente de suas famílias de origem sem que tal ato determine a destituição de poder familiar e o encaminhamento à família substituta. ao que essa lhe respondeu tratar-se de um menino que aguardava a visita de outro casal que pretendia adotá-lo. Frente a essa informação, ressaltou o seu desejo de “ficar” com ele. Nesse momento foi tomada por uma emoção que a fez chorar por “pena”. Imediatamente foi advertida pela inadequação da expressão dos sentimentos (Mauss, 1979MAUSS, M. A expressão obrigatória dos sentimentos. In: CARDOSO DE OLIVEIRA, R. (org.). Marcel Mauss: antropologia. São Paulo: Ática, 1979. p. 147-153.) na frente das crianças. Geni, ao lembrar desse dia, nos conta:

Aí quando ela abriu a sala eu vi, tinha um monte de menino, uma televisão só e um sofá, foi quando eu vi aquele garoto gordinho jogado no cantinho assim, sentado, ele tava de castigo. Quando abriu a porta que entrou o grupo todo, tinha uma meia dúzia de casais, a assistente social, eu tava do lado dela porque eu fui a última, e ele [Jonas] foi logo na frente, que ele tava ansioso pra ver a criança, aí eu fui a última, eu tava muito nervosa, “deixa eu ficar por último”, tava tremendo, tava uma tremedeira só, um estado de nervos, aí quando todo mundo entrou, todo mundo passou assim direto, foram lá ver as criancinhas e o garotinho tava lá sentado, aí eu segurei assim a assistente social que abriu a porta pra mim e falei: “Meu Deus do céu, quem é esse garotinho? Ele tá ali tão triste”, eu vi que os olhinhos dele tava assim choroso. Meu Deus, eu me apaixonei por ele.

Passado esse momento de chegada à instituição de acolhimento, foi iniciado outro procedimento. A assistente social que recebia as pessoas e casais pretendentes à adoção começava seu trabalho de destiná-los até as crianças e adolescentes “escolhidos” anteriormente, via procedimento jurídico iniciado na Vara da Infância e Juventude.

É chegado o momento de Geni e de Jonas conheceram Eugênio, o menino de que tinham ouvido falar no encontro do Grupo de Apoio à Adoção, mas cuja feição não conheciam. A assistente social aproxima-se do casal, ao lado da criança que Geni havia visto assim que chegou àquele lugar. Nesse ato, percebeu que o garoto triste, mobilizador de sua atenção, era o menino que o casal havia programado para conhecer. Ao perceber a “coincidência”, Geni se emocionou e instantaneamente decidiu “ficar” com Eugênio. Após a decisão, procuraram a juíza responsável e ajuizaram, como casal “homoafetivo”, o processo legal de adoção. Como se fosse um “encontro de almas”, ela nos conta que o “destino” os uniu. Por questões que nunca teremos a capacidade de compreender, e muito menos explicar, o laço entre eles transcende qualquer comportamento “não desejável” do menino que havia sido motivo de suas rejeições anteriores.

No decorrer do “estágio de convivência”, etapa que antecede a mudança definitiva de uma criança para a casa da família substituta, Eugênio passava os finais de semana com o casal. Durante esse período, manifestou o desejo de não voltar à instituição de acolhimento. Em paralelo, a psicóloga da Vara da Infância e Juventude responsável pela escuta de Eugênio “trabalhou a questão da possível adoção por casal homoafetivo”. De acordo com Geni “era essencial que a criança estivesse a par de tudo que estava acontecendo”, ou seja, deveria saber que sua nova família “fugia de uma configuração tradicional”. Além disso, do ponto de vista daquela equipe técnica, era fundamental que tivessem “certeza” de que aquela seria uma “adoção bem-sucedida”. Ou seja, Eugênio não seria “devolvido” mais uma vez. Para tanto, mantinham “cautela”, buscando garantir que Geni e Jonas desejavam o filho e este, por sua vez, os aceitaria como pais.

Nesse momento, Geni sente-se “mimada” pela equipe técnica, “em razão de ser conhecida por todos pelo seu trabalho como família acolhedora”. Era chegada a hora de buscar Eugênio. O estágio de convivência havia terminado. Sendo assim, estavam no momento de obter a guarda provisória e dar andamento ao processo de adoção. Ao iniciar esse novo encaminhamento, a requerente foi comunicada pela psicóloga que só poderia sair da instituição com o menino caso “falasse quem ela realmente era” para a criança.

Em outras palavras, aos olhos daqueles agentes da Justiça da Infância e Juventude, a identidade de gênero de Geni não estava devidamente legitimada. Em razão desse entendimento, foi aconselhada a contar para o filho sobre a sua “real identidade”. Então, seguindo as instruções que lhe foram dadas explicou a Eugênio que existia “dentro de seu corpo um homem”, mas que isso não a impedia de “na realidade ser sua mamãe”. Ao que Eugênio responde já saber do fato e que Geni continuaria sendo sua mãe.

Essa disputa pela “verdade”, apesar de fundamentada em um discurso de “aceitação”, nos leva a considerar a existência de ambiguidades nas práticas da Justiça quando a questão diz respeito às parentalidades trans. Apesar de Geni ter sido compreendida como pessoa apta a ser mãe, a atitude da psicóloga anteriormente citada nos leva a entender que para os agentes envolvidos nessas formas da administração da Justiça da Infância e Juventude, enquanto mulher transexual, continuava tendo sua identidade de gênero negada, submetida aos estereótipos binários da biologia.

Contudo, esse episódio também permite entender Geni como agente de sua história. Apesar de ser vista como fora da norma, essa mulher resiste, manifestando-se frente a disposições institucionais constrangedoras. Geni atua dentro de um campo de possibilidades que a vida ordinária lhe permite (Das, 2007DAS, V. Life and words: violence and the descent into the ordinary. Berkeley: University of California Press, 2007.). Ironicamente, é por meio do reconhecimento legal de pertencer ao gênero masculino que essa mulher consegue exercer legalmente sua maternidade.

Geni e sua atuação na garantia de direitos às crianças e adolescentes considerados “dificilmente adotáveis”

Após seis meses da chegada de Eugênio na família, Geni e Jonas acolheram João através do Programa Família Acolhedora do qual faziam parte. Conforme visto antes, essa é uma iniciativa aprovada pelos Conselhos Nacionais dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e de Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), pautada no acolhimento de jovens e infantes afastados de suas famílias de origem, em razão de medida protetiva. Nesses casos, os acolhidos são direcionados temporariamente às residências de famílias cadastradas e não para instituições de acolhimento. Até que suas situações familiares sejam decididas pela Justiça da Infância e Juventude, esses meninos e meninas permanecem nas famílias, podendo ter como destino o retorno ao núcleo de nascimento ou o encaminhamento à adoção.

De acordo com a reformulação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) por meio da Lei nº 12.010/2009 (Brasil, 2009BRASIL. Lei nº 12.010, de 3 de agosto de 2009. Dispõe sobre adoção; altera as Leis nos 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente, 8.560, de 29 de dezembro de 1992; revoga dispositivos da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, e da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943; e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, 2009. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12010.htm . Acesso em: 10 out. 2020.
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) foi determinado que aqueles que compõem esse programa não podem estar habilitados à adoção. Esse dispositivo visa impedir que a adesão ao programa seja um caminho para burlar os trâmites necessários a um procedimento adotivo.

Vale lembrar que os pretendentes à adoção devem habilitar-se nas Varas da Infância e Juventude. A depender da pretensão dos cadastrados, o encontro com o filho pode demorar anos. Em face disso, há pessoas que agem às margens dos poderes de Estado, misturando práticas legais e ilegais para encontrarem seus filhos. Um dos caminhos instituídos para encurtar o processo de adoção pode ser a participação em programas sociais dessa ordem. A ideia é que por meio de vínculos afetivos criados com as crianças e adolescentes, as famílias acolhedoras poderiam posteriormente pleitear a adoção. Os dispositivos que versam sobre o tema levam em conta a possibilidade de criação desses arranjos artificiais e produzem mecanismos para limitá-los. Um desses é a vedação da adoção aos que fazem parte do Programa Família Acolhedora.

Como veremos, apesar dessas restrições, as práticas da Justiça são organizadas por “avaliações caso a caso”. Há situações que, segundo a ótica da Justiça da Infância e Juventude, se a decisão for para garantir o “melhor interesse da criança e do adolescente” (Coitinho Filho, 2017COITINHO FILHO, R. Sob o “melhor interesse”: o “homoafetivo” e a criança nos processos de adoção. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 25, n. 2, p. 495-518, 2017.), pode acontecer um alargamento decisório frente aos dispositivos legais. Tal abrandamento aconteceu nas duas últimas adoções, a de João e de Marcelo, propostas por Geni e Jonas.

João chegou na família, segundo Geni “já com uma idade”,22 22 A expressão “já com uma idade” nos leva a entender que não se tratava mais de uma criança na primeira infância, mas sim um menino caminhando para a adolescência. cheio de feridas na cabeça e muito magro, precisando de atenção e cuidado. Assim que chegou, sem entender a natureza de sua estada naquela casa, João passou a nomear Jonas de pai. De acordo com o relato do casal, o menino também viveu experiência adotiva anterior sem sucesso, tendo sido “devolvido” à Justiça da Infância e Juventude.

João entrou para a família no dia do aniversário de Geni e a conexão entre ele e Jonas foi quase instantânea. Segundo nossa interlocutora, “o menino o escolheu como pai, por nunca ter tido uma figura paterna presente em sua vida”. Jonas sentia também forte ligação por ele. Dessa relação nasceu o interesse em adotá-lo. Para tanto, buscaram informações sobre o seu processo e comunicaram às instâncias jurídicas o pleito.

Apesar de cientes de que a eles esse requerimento estaria vedado, Geni busca a Vara da Infância e Juventude para discutir o processo de João com o psicólogo que o acompanhava. Houve um percurso de negociação, traçado nas malhas do Poder Judiciário, até que a posição fosse favorável. Pesou o fato de não haver nenhum pretendente que pleiteasse aquela adoção. Importante lembrar que João não se enquadrava no perfil comumente desejado pela maioria dos adotantes. Ele era negro, tinha 7 anos, era tido como “agitado” e precisava de atenção e cuidado. Geni e Jonas, a partir de então, não encontraram dificuldades para dar seguimento ao processo. Ademais contaram com a ajuda dos profissionais do fórum, como Jonas relata a seguir:

Olha o perfil dele, a idade, tudo, ele não tem pretendente pra adoção, então não tem por que a gente não poder adotar, então, por isso, eles facilitaram a questão do João para gente poder adotar. Eu falei para o pessoal da equipe do Família Acolhedora da prefeitura que eu não queria me sentir punido por ser um adotante, pra tá sendo excluído do projeto, que eu queria continuar acolhendo, como acolhi até hoje, então eles acabaram entendendo e tal e abriram, vamos dizer assim, uma exceção porque, realmente, o João não tinha o perfil pra ser adotado, não tinha pretendente pra ele.

Partimos agora para a última experiência adotiva do casal. Geni foi contactada por uma técnica do fórum, lhe informando que havia encontrado um menino que era “a sua cara”. Segundo lhe disse, “o menino parece que é seu filho!”. Essas foram as palavras que a levaram ao desejo de conhecê-lo. Assim que viu a foto do menino, “soube que precisava encontrá-lo”. O perfil de Marcelo também era um complicador para a adoção. Ele tinha 6 anos e estava tendo problemas com a família acolhedora. A assistente social chegou a mencionar que ele, dificilmente, seria adotado e que não tinha mais o que fazer a esse respeito. Foi então que Geni replica, lhe dizendo: “Tem sim! O filho é meu e eu vou aí buscar ele agora.”

O casal passou a ter contato com Marcelo aos finais de semana. No início, a intenção era apadrinhá-lo,23 23 O apadrinhamento afetivo refere-se a uma estratégia dos Tribunais de Justiça para garantir direitos previstos às crianças e adolescentes que se encontram sob a tutela do Estado, tais como a convivência familiar e comunitária, o provimento material de necessidades básicas e educacionais ou a prestação de serviços especializados (médicos, odontológicos, etc.). Informações institucionais podem ser encontradas em Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (2020). mas isso durou apenas um mês. O casal se afeiçoou a Marcelo e decidiram que ajuizariam uma ação para adotá-lo. O processo de guarda foi requerido e, em seguida, pleitearam a adoção, que ainda corria quando foi realizada nossa entrevista.

Aí com essa guarda eu já fui lá, já dei entrada no papel todo e entrou em processo e o menino tá aí, até hoje. Eu dei graças a Deus. E o menino tá bem, chegou com muita dificuldade, muita dificuldade, na escola, em tudo. Aí arrumei logo uma escola pra ele, matriculei, ensinei tudo. O menino tava com 6 anos, o garoto não sabia contar de um a cinco, não sabia nada. Tava muito debilitado em termos assim de saúde, essas coisas todas. Dei uma melhorada no garoto. Como todas as crianças que vêm, levei no médico, dei injeção, vacina, levei em tudo, fiz um check-up total no moleque. O moleque ficou ótimo, tá aí, começou a me chamar de mãe, realmente o moleque é minha cara, hoje tá com 11 anos e é meu filho que eu amo mesmo e acho que só quero ficar com esses três, acho que vou ficar só com esses três, e a vida vai rolando.

Diferentemente do processo de Eugênio, as adoções de João e Marcelo, apesar de nutridas no âmbito da Justiça da Infância e Juventude, não ocorreram em razão de um projeto parental. Em ambos os contextos, os agentes do Poder Judiciário consideraram que Geni e Jonas seriam pessoas capazes de cuidar desses meninos, na qualidade de padrinhos e/ou como família acolhedora.

João e Marcelo são crianças afastadas de suas famílias de origem, encaminhadas às instituições de acolhimentos e/ou às famílias acolhedoras, aos programas de apadrinhamento afetivo e à adoção. Ao passarem parte de sua primeira infância nesse vaivém institucional foram colocados na posição de “dificilmente adotáveis”. Sob essa condição, conheceram Geni e Jonas. Nesse contexto, os agentes da Justiça da Infância e Juventude, provocados pelos pleitos do casal, deslocaram-nos do lugar de família acolhedora e de padrinhos, respectivamente, para o lugar de mãe e pai.

Podemos supor que esse deslocamento de posição se deva ao fato de a Justiça da Infância e Juventude estar organizada por práticas que visam o estímulo da filiação dos “dificilmente adotáveis”. Quando requerentes concordam em modificar o perfil desejado, aos agentes do Estado compete o esforço para que essas adoções sejam efetivadas. Acreditamos que, nesse caso, houve uma aposta de que esse casal “homoafetivo” poderia ser mais receptivo a um perfil adotivo dissidente.

Considerações finais

A narrativa de Geni, rememorando seu percurso de experiências maternais e os meandros para torná-la reconhecível perante o Estado, via Judiciário, se insere numa dimensão que “não é simplesmente como trazer certas cenas à vida, mas como trazer vida a ideias” (Strathern, 2014STRATHERN, M. O efeito etnográfico e outros ensaios. Tradução de Iracema Dulley, Jamille Pinheiro e Luísa Valentini. São Paulo: Cosac Naify, 2014., p. 175). Nossa interlocutora age dentro de um campo de possibilidades que a vida ordinária lhe possibilita. Sua atuação não se manifesta de uma forma heroica, parafraseando Veena Das (2007)DAS, V. Life and words: violence and the descent into the ordinary. Berkeley: University of California Press, 2007., mas por meio da mobilização estratégica que sua identidade de gênero lhe configurava nos cenários pelos quais transitava e segundo suas diferentes experiências maternas.

O relato de Geni deixa claro que houve mudanças no contexto político e institucional, incluindo certa flexibilização das visões morais que definem os limites de uma “boa família”. Podemos citar, por um lado, o impacto de décadas de ativismo pelos movimentos LGBTs, assim como decisões jurídicas estabelecendo novos rumos na jurisprudência em relação arranjos diversificados de família. Por outro lado, pela “nova cultura de adoção”, consolidou-se uma filosofia política de que, para garantir o “interesse prioritário” das crianças e adolescente em acolhimento institucional, cabia facilitar seu deslocamento para famílias substitutas.

Contudo, o ato de tornar-se mãe para Geni não se deve exclusivamente ao reconhecimento de seu pleito pelos agentes do Estado. Ela tece suas experiências maternais através de tensionamentos, resistências e, por vezes, concordâncias com os gestores da Justiça da Infância e Juventude e suas múltiplas formas de avaliarem sua potencialidade ao exercício parental.

Ao concluir nossa análise, nos ocorreu identificar nossa interlocutora como homônima da personagem central da música de Chico Buarque “Geni e o zepelim” (1979)GENI e o zepelim. Intérprete e compositor: Chico Buarque. In: ÓPERA do malando. Intérprete: vários. Rio de Janeiro: PolyGram Discos, 1979. 2 discos vinil. Disco 2, lado A, faixa 5.. Compreendemos haver similitudes que favorecem possíveis analogias. São mulheres que agenciam no cotidiano uma identidade marginalizada, excluídas de certos espaços e, por vezes, hostilizadas por atores sociais que as veem, mas insistem em não enxergar suas humanidades. São tidas como sujeitos improváveis, alijadas das relações sociais. No entanto, a depender do contexto, podem até circular pela esfera fronteiriça da normalização, transfigurando-se momentaneamente como possível redenção em prol de um bem comum.

É nesse sentido que se faz necessário romper com práticas que legitimam o modus operandi de “enquadrar” sujeitos a convenções e moralidades de gênero, sexualidade, identidades, performances e construções corporais como forma de reconhecimento social e político. O fato de Geni ser uma mulher transexual que não redesignou seu corpo nem retificou seus documentos contribuiu para que ela se transformasse, nas malhas da Justiça da Infância e Juventude, numa mãe cujo registro civil era masculino. Essa mulher borra e coloca em suspenso a preexistência normativa, para que, ao “raiar [um novo] dia”, ela não continue a ser apenas a “maldita Geni”.

Referências

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  • 2
    Usamos nomes fictícios ao longo do texto.
  • 3
    Segundo o Diagnóstico sobre o Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento, do Conselho Nacional de Justiça (2020)CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Diagnóstico sobre o Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento. Brasília: CNJ, 2020. Disponível em: Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/05/relat_diagnosticoSNA2020_25052020.pdf . Acesso em: 10 out. 2020.
    https://www.cnj.jus.br/wp-content/upload...
    , a grande maioria dos pretendentes à adoção buscam filiar bebês e /ou meninas “pequenas”, brancas, saudáveis e sem irmãos. Dessa forma, aqueles que se encontram fora desse perfil são classificados como “dificilmente adotáveis”.
  • 4
    De acordo com Zambrano (2006ZAMBRANO, E. Parentalidades “impensáveis”: pais/mães homossexuais, travestis e transexuais. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 12, n. 26, p. 123-147, jul./dez. 2006., p. 127), “homoparentalidade é um neologismo criado em 1997 pela Associação de Pais e Futuros Pais Gays e Lésbicas (APGL), em Paris, nomeando a situação na qual pelo menos um adulto que se autodesigna homossexual é (ou pretende ser) pai ou mãe de, no mínimo, uma criança”. No entanto, o termo é restrito quando diz respeito às parentalidades travestis e transexuais.
  • 5
    Levando em consideração o que já foi discutido por Zambrano (2006ZAMBRANO, E. Parentalidades “impensáveis”: pais/mães homossexuais, travestis e transexuais. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 12, n. 26, p. 123-147, jul./dez. 2006., p. 128) sobre a categorização homoparental, a opção pelo uso do termo “transparental” é uma escolha estratégica, pois coloca “em evidência uma situação cada vez mais presente na sociedade atual” e que valoriza a identidade de gênero desses sujeitos, não os resumindo à uma diversidade que se restringe a um imperativo sexual.
  • 6
    “A genetização do parentesco, adoção e o impacto na questão da infância e adolescência no município do Rio de Janeiro”, realizada com apoio da Faperj entre os anos de 2009 a 2011; “Adoção em seus múltiplos sentidos”, também apoiada pela Faperj entre 2012 e 2013; “Laços desfeitos, vínculos construídos e ‘socioafetividade’: um estudo sobre valores morais e práticas legais no cenário da adoção no Rio de Janeiro”, apoiada pelo CNPq (bolsa de produtividade - 302046/2015-1) entre 2016 e 2018 e pela Faperj (APQ1 E-26/010.002184/2015); e, atualmente, conta o fomento do CNPq através do projeto “Sentidos de famílias, adoção e políticas para infância e juventude” (bolsa de produtividade - 305518/2018-6), realizado entre 2019 e 2022.
  • 7
    Ver trabalhos de Fonseca (1993FONSECA, C. Criança, família e desigualdade social no Brasil. In: RIZZINI, I. (org.). A criança no Brasil hoje: desafio para o terceiro milênio. Rio de Janeiro: Editora Universitária Santa Úrsula, 1993. p. 113-131., 2013FONSECA, C. Lucro, cuidado e parentesco: Traçando os limites do “tráfico” de crianças. Civitas: revista de ciências sociais, Porto Alegre, v. 13, p. 269-291, 2013.) sobre circulação de crianças em famílias de camadas populares no Rio Grande do Sul. A partir de uma perspectiva comparativa com outras regiões do país, a antropóloga nos convoca a pensar esses arranjos não como “colapso dos valores tradicionais”, mas como “uma estrutura básica de organização de parentesco […] vinculada a uma cultura popular urbana” (Fonseca, 1993FONSECA, C. Criança, família e desigualdade social no Brasil. In: RIZZINI, I. (org.). A criança no Brasil hoje: desafio para o terceiro milênio. Rio de Janeiro: Editora Universitária Santa Úrsula, 1993. p. 113-131., p. 116).
  • 8
    A “adoção à brasileira” consiste no registro do nome da criança como se ela fosse seu filho biológico, com a ciência de que não é (Finamori; Silva, 2019FINAMORI, S.; SILVA, A. B. M. da. Identidade e pertencimento: grupos de apoio à adoção e direito às origens. Sexualidad, Salud y Sociedad, Rio de Janeiro, n. 33, p. 295-317, 2019.).
  • 9
    De acordo com a antropóloga Françoise Ouellette (2000OUELLETTE, F.-R. Parenté et adoption. Sociétés Contemporaines, [s. l.], n. 38, p. 49-65, 2000., p. 51, tradução nossa), “o modelo genealógico de reprodução estabelece que um indivíduo não possa ser filho de mais de um pai e de uma mãe”.
  • 10
    De acordo com Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária, aprovado pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e o Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) em dezembro de 2006, esse programa visa o acolhimento de jovens e infantes afastados de suas famílias de origem, em razão de medida protetiva, em residências e não em instituições de acolhimento. Pauta-se na “proteção integral às crianças e aos adolescentes até que seja possível a reintegração familiar” (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, 2006CONSELHO NACIONAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária. Brasília: Conanda, 2006. Disponível em: Disponível em: https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Cadernos/Plano_Defesa_CriancasAdolescentes%20.pdf . Acesso em: 10 out. 2020.
    https://www.mds.gov.br/webarquivos/publi...
    , p. 42), garantindo a estes a inserção na vida comunitária.
  • 11
    De acordo com a Lei nº 13.509/2017 (Brasil, 2017BRASIL. Lei nº 13.509, de 22 de novembro de 2017. Dispõe sobre adoção e altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). Brasília: Presidência da República, 2017. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13509.htm . Acesso em: 10 out. 2020.
    https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_a...
    ), que dispõe sobre adoção e altera a Lei nº 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente) (Brasil, 1990BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, 1990. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm . Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990. Acesso em: 10 out. 2020.
    https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/le...
    ), a habilitação é um procedimento administrativo que, após a promulgação da Lei nº 12.010/2009 (Brasil, 2009BRASIL. Lei nº 12.010, de 3 de agosto de 2009. Dispõe sobre adoção; altera as Leis nos 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente, 8.560, de 29 de dezembro de 1992; revoga dispositivos da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, e da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943; e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, 2009. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12010.htm . Acesso em: 10 out. 2020.
    https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_a...
    ), conhecida como a Nova Lei da Adoção, foi transformada em etapa obrigatória para uma adoção, sendo essa obrigatoriedade a mesma nos dias atuais. Esse é um procedimento iniciado com uma petição, entregue em cartório da Vara de Infância e Juventude, pelo interessado, junto com certidões negativas de feitos cíveis e criminais e atestado de sanidade física e mental. Depois de depositada, essa petição será remetida à equipe técnica (psicólogos e assistentes sociais das varas) que, de acordo com as determinações administrativas locais, conduzirá a participação dos requerentes em programas de capacitação à parentalidade adotiva.
  • 12
    Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), art. 50, Lei nº 8.069/1990 (Brasil, 1990BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, 1990. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm . Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990. Acesso em: 10 out. 2020.
    https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/le...
    ), alterada em 2009 pela Lei nº 12.010/2009 (Brasil, 2009BRASIL. Lei nº 12.010, de 3 de agosto de 2009. Dispõe sobre adoção; altera as Leis nos 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente, 8.560, de 29 de dezembro de 1992; revoga dispositivos da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, e da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943; e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, 2009. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12010.htm . Acesso em: 10 out. 2020.
    https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_a...
    ) e, novamente, modificada em 2017 por meio da promulgação da Lei nº 13.509/2017 (Brasil, 2017BRASIL. Lei nº 13.509, de 22 de novembro de 2017. Dispõe sobre adoção e altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). Brasília: Presidência da República, 2017. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13509.htm . Acesso em: 10 out. 2020.
    https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_a...
    ).
  • 13
    A ADPF - Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - tem em seus objetivos viabilizar, em âmbito jurídico, ações com vistas a evitar ou, em última instância, reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público. Já a ADI - Ação Direta de Inconstitucionalidade - objetiva compreender se uma lei, ou parte dessa lei, está sendo operada de forma inconstitucional. Cabe ao Supremo Tribunal Federal concentrar seus esforços no desempenho da constitucionalidade frente à Carta da República. Ver em Vecchiatti (2012)VECCHIATTI, P. R. Manual da homoafetividade: da possibilidade jurídica do casamento civil, da união estável e da adoção por casais homoafetivos. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2012..
  • 14
    O art. 226 da Constituição Federal reconhecia, até aquele momento, três modelos de família: (i) o casamento, (ii) a união estável, constituída entre homem e mulher, e (iii) a família monoparental, formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
  • 15
    Vale ressaltar que, mesmo antes desse novo dispositivo em âmbito jurídico, decisões favoráveis ao pleito já eram deferidas em circunstâncias isoladas. Ver Cristo (2015)CRISTO, I. Adoção por casais homoafetivos e o melhor interesse da criança. IBDFAM, [s. l.], 10 jun. 2015. Disponível em: https://ibdfam.org.br/artigos/1043/Ado%C3%A7%C3%A3o+por+casais+homoafetivos+e+o+melhor+interesse+da+crian%C3%A7a. Acesso em: 20 out. 2020.
    https://ibdfam.org.br/artigos/1043/Ado%C...
    .
  • 16
    Para adensar essa discussão, nos pautamos em Érica Souza (2013)SOUZA, E. R. Papai é homem ou mulher? Questões sobre a parentalidade transgênero no Canadá e a homoparentalidade no Brasil. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 56, n. 2, p. 397-430, 2013.. A autora apresenta importantes questões a partir da problematização em torno das categorias êmicas “parentalidade transgênero”, no Canadá, e “homoparentalidade”, no Brasil. Seus interlocutores transgêneros, participantes de movimentos sociais LGBTs, nos dois cenários pesquisados, manifestavam o sentimento de deslocamento quanto ao pertencimento à sigla LGBT, conforme as diversas configurações entre gênero e sexualidade que podem ser associadas na constituição das suas identidades. No Brasil, o neologismo utilizado, designado indiscriminadamente para gays, lésbicas, travestis e transexuais, desconsiderava as especificidades em torno das identidades desses sujeitos, tratados como “iguais” em suas diferenças, o que invisibilizava discursivamente a existência em torno das suas parentalidades e as negociações que envolvem essas experiências. Em ambos os contextos, as demandas de travestis e transexuais na esfera do ativismo era tratada de forma marginalizada, relegando a parentalidade transgênero como algo de menor importância ainda.
  • 17
    No âmbito das relações sociais de travestis (Cardozo, 2007CARDOZO, F. Performatividades de gênero, performatividades de parentesco: notas de um estudo com travestis e suas famílias na cidade de Florianópolis. In: GROSSI, M; UZIEL, A. P.; MELLO, L. (org.). Conjugalidades, parentalidades e identidades lésbicas, gays e travestis. Rio de Janeiro: Garamond, 2007. p. 233-251.; Silva, 1993SILVA, H. R. S. Travesti: a invenção do feminino. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993.) há uma ambiguidade que permeia a associação entre suas corporalidades e sociabilidades. Cardozo (2007CARDOZO, F. Performatividades de gênero, performatividades de parentesco: notas de um estudo com travestis e suas famílias na cidade de Florianópolis. In: GROSSI, M; UZIEL, A. P.; MELLO, L. (org.). Conjugalidades, parentalidades e identidades lésbicas, gays e travestis. Rio de Janeiro: Garamond, 2007. p. 233-251., p. 241) identificou haver uma “duplicidade de gênero” nas relações familiares, que resultam em nomeações terminológicas masculinas (tio, primo, etc.), ou passíveis de negociação (irmão), destinadas às travestis, embora suas participações sejam vivenciadas no âmbito doméstico, em espaços vistos como femininos.
  • 18
    Decidimos pelo nome Eugênio para tentar explicar a forte ligação afetiva entre Geni e seu filho, que originalmente possuem nomes parecidos.
  • 19
    Serviço ligado ao Conselho Nacional de Justiça, responsável pela produção de dados sobre adoção em contexto nacional.
  • 20
    O termo “devolução” significa que há meninos e meninas que foram conduzidos por meio das Varas da Infância e Juventude à casa de pessoas e casais “pretendentes à adoção” que, ao conviverem com eles, foram tomados de arrependimento, “devolvendo-os” às instâncias jurídicas responsáveis.
  • 21
    Nem todas as crianças acolhidas estão disponíveis à adoção. Essas podem estar afastadas temporariamente de suas famílias de origem sem que tal ato determine a destituição de poder familiar e o encaminhamento à família substituta.
  • 22
    A expressão “já com uma idade” nos leva a entender que não se tratava mais de uma criança na primeira infância, mas sim um menino caminhando para a adolescência.
  • 23
    O apadrinhamento afetivo refere-se a uma estratégia dos Tribunais de Justiça para garantir direitos previstos às crianças e adolescentes que se encontram sob a tutela do Estado, tais como a convivência familiar e comunitária, o provimento material de necessidades básicas e educacionais ou a prestação de serviços especializados (médicos, odontológicos, etc.). Informações institucionais podem ser encontradas em Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (2020)TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Coordenadoria Judiciária de Articulação das Varas de Infância e Juventude e Idoso. Comissão Estadual Judiciária de Adoção Internacional. Programa de Apadrinhamento. In: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Portal da Infância e da Juventude. Rio de Janeiro: TJRJ, 2020. Disponível em: Disponível em: https://web.archive.org/web/20201124152311/http://infanciaejuventude.tjrj.jus.br/informacoes/apadrinhamento.html . Acesso em: 14 out. 2020.
    https://web.archive.org/web/202011241523...
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    28 Out 2020
  • Aceito
    06 Jul 2021
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