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Ouve, meu filho, o silêncio: a experiência racial de Dorival Caymmi e a epistemologia silenciosa dos candomblés

Listen the silence, my son: the racial experience of Dorival Caymmi and the silent epistemology of candomblé religion

Resumo

A discussão sobre relações raciais, no Brasil e em outras margens do Atlântico, tende a privilegiar alguns signos exteriorizados, discursos e traços demarcadores da diferença. Porém, a condição de sujeitos reflexivos, capazes de analisar não apenas suas experiências, mas também de pensar múltiplas relações e alteridades, costuma ser negada a pessoas e grupos negros de diversas formas, mesmo na bibliografia especializada. Proponho neste artigo, na contramão dessas duas tendências, uma reflexão de cunho epistemológico sobre as noções de silêncio e segredo, centrais para o candomblé e para outras comunidades afrorreligiosas, a partir da trajetória do músico baiano Dorival Caymmi. Com isso, pretendo evidenciar certas dimensões não ditas, íntimas, dos processos de racialização brasileiros, que incluem o caráter estratégico do silêncio e das alianças solidárias, micropolíticas. Espero salientar, dessa forma, as possibilidades de agência e sobretudo a importância conceitual das ideias e histórias atualizadas pela vivência dos candomblecistas, suas entidades e seus terreiros.

Palavras-chave:
segredo e silêncio; identidade étnica; Dorival Caymmi; candomblé

Abstract

Race relations debates in Brazil, as well as other Atlantic shores, tend to pay attention to explicit signs of differentiation, discourses or boundaries. Nevertheless, the condition of reflexive subjects - able to analyze not only their own experiences, but also to comprehend multiple relations and alterities - is often denied to black people or communities, even at specialized forums. Against those trends, I propose at this article an epistemological reflection about silence and secret. Both notions, which play a central role at candomblé (an African Brazilian religion), will be addressed here through the trajectory of an important Brazilian musician, Dorival Caymmi. I intend to put in evidence, with those considerations, certain non-verbal and intimate dimensions of Brazilian racializing processes which are characterized, additionally, by the strategic use of silence, solidarity and micro-political alliances. By doing so, I seek to underline the agency and conceptual relevance of the ideas hold by candomblé followers, their entities and their temples.

Keywords:
silence and secret; ethnic identity; Dorival Caymmi; candomblé

Avamunha 1 1 Toque rápido utilizado para abrir e fechar as festas públicas de candomblé.

Uma história verdadeira2 2 As ideias desenvolvidas neste artigo foram apresentadas pela primeira vez no 44º Encontro Nacional da Anpocs, em 2020, numa mesa coordenada por Mário Augusto Medeiros da Silva. Agradeço a este colega e parceiro intelectual pela oportunidade de construir e levar a público o diálogo do qual este trabalho resulta. Sem o financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) - processo n. 2012/22714-2 - a pesquisa que possibilitou sua escrita não teria sido realizada. Dedico-a, como não poderia deixar de fazê-lo, a todos aqueles que, entre 2011 e 2016, contribuíram diretamente para tornar as indagações que fiz sobre a figura e a obra de Dorival Caymmi menos ingênuas e desinformadas. Agradeço, nesse sentido, especialmente à família dele e à de Carybé, pelo apoio constante, aos professores Gustavo Rossi e Heloísa Pontes, à Mãe Detinha, in memoriam, e a todo o povo de santo por compartilhar comigo, sempre com muito afeto e confiança, suas histórias verdadeiras.

Participei, em abril de 2020, de uma atividade religiosa singela num terreiro de candomblé do interior paulista. Tratava-se de uma reza endereçada aos orixás,3 3 “Donos da cabeça” em iorubá (èdè Yorùbá), idioma litúrgico utilizado em muitos candomblés. Tal expressão designa as divindades cultuadas nessas comunidades. Os líderes religiosos masculinos dessa religião são chamados frequentemente de babalorixás e os femininos de ialorixás, “pais” e “mães do orixá”. um pedido para que eles mantivessem a boa saúde dos presentes, fortalecendo-os também para lidar com a pandemia causada pelo novo coronavírus (Covid-19) com muito cuidado e paciência. Depois de todos acenderem suas velas, inclinando as cabeças e tocando com a testa o piso cimentado, o babalorixá contou-nos um mito. Aquele itan (“história verdadeira”, em iorubá) dizia que a Covid-19 ia causar mais estrago do que poderíamos imaginar. A crise duraria muito, vitimando milhares de pessoas. Naquele momento, tais previsões pareciam exageradas.

O mito havia sido contado por outro líder religioso da nação ketu,4 4 Nações são segmentos cultuais distintos, porém inter-relacionados, através dos quais os fiéis destas religiões subdividem-se (Lima, 2010). Seus nomes - jeje, angola, etc. - derivam dos etnônimos utilizados no contexto do tráfico negreiro. Este artigo refere-se apenas à nação ketu ou nagô, que cultua um elaborado panteão de origem oeste-africana. Tal comunidade assumiu um caráter hegemônico no candomblé brasileiro, através das redes e estratégias micropolíticas que serão comentadas adiante. um famoso pai de santo ligado por laços de parentesco religioso (Flaksman, 2018FLAKSMAN, C. “De sangue” e “de santo”: o parentesco no candomblé. Mana, Rio de Janeiro, v. 24, n. 3, p. 124-150, 2018.) àquele terreiro. Nosso sacerdote, extremamente minucioso no que diz respeito a seus métodos de aquisição e transmissão do conhecimento, conforme veremos a seguir, chegou a nos mostrar as mensagens de WhatsApp de seu ilustre parente, comprovando aquilo que dizia. Por fim, ele pediu que mantivéssemos tudo em segredo.

Ao esboçar este artigo, voltei ao terreiro para saber se eu poderia mencionar um trecho daquele itan. O babalorixá recebeu-me com sua receptividade costumeira e logo inverteu nossa relação improvisada de informante e analista, pedindo-me que contasse o mito do meu jeito. Contente com meu desempenho narrativo, o sacerdote disse, para minha surpresa, que eu poderia contar o itan integralmente, dando ainda uma série de sugestões. A única coisa que eu não poderia fazer era revelar a identidade dos seus sucessivos narradores. Resumidamente o mito, tal como o recontei ao babalorixá, era o seguinte.

A Covid-19 é o efeito da ação indireta de Iku sobre o ayê, o mundo das experiências sensíveis. Iku, entidade que não tem morada certa e que é responsável - o pai de santo adicionou esta informação em nossa segunda conversa - por devolver à natureza, à terra, os elementos que constituem os seres vivos, é normalmente associada à morte. Pois bem, Iku está sempre com fome. Dessa vez, uma grande quantidade de insumos lhe havia sido prometida. Ora, a expectativa aguçou seu apetite. Iku então esperou pacientemente a ação antrópica chegar a um ponto crítico, produzindo mais desequilíbrios do que uma guerra qualquer, para iniciar sua culinária reversa. A Covid-19 é uma invenção humana, uma dádiva que inadvertidamente oferecemos à Iku (Queiroz, 2021QUEIROZ, V. Quando o ser-humano cria, Iku vem à Terra: as mediações de Exu, a onipresença da morte e a Covid-19 em dois contextos afro-religiosos. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 34, n. 73, p. 299-319, 2021.). Sendo uma entidade muito antiga, os deuses devem a ela respeito e decidiram aguardar sua satisfação. A pandemia ia durar por muito tempo e todos deveriam se proteger escondendo-se de Iku, que anda por toda parte.

Deixo inteiramente de lado, neste artigo, o conteúdo do itan. Embora ele seja curto, não caberia fazer aqui uma análise de todos seus detalhes, os enredos5 5 Enredo é um conceito operante na maioria das religiões afro-brasileiras. Refere-se às homologias verificáveis entre coisas aparentemente díspares que se cruzam no interior dos mitos ou dos ritos, influenciando-se mutuamente. Além de serem frequentemente contraintuitivos, os enredos são revelados paulatinamente aos fiéis, passando pela política de transmissão do conhecimento que será tematizada no decorrer deste artigo. que essa narrativa mítica traz à tona, relacionando suas ressonâncias menos óbvias para além da advertência moral implícita e da conduta cautelosa que ela sugere. Para realizar essa tarefa satisfatoriamente seria necessário, afinal, adentrar no mato fechado que é a mitologia do candomblé e contar outros itans sobre a relação entre deuses, mortos e humanos. Sabendo, ainda, que os mitos sempre transbordam, produzindo ou sendo produzidos por excedentes simbólicos que se relacionam dialética e transversalmente com gestos rituais e conjunturas históricas específicas, seria também necessário refletir sobre a performatividade envolvida na narração desse itan, a renovação constante do pensamento mítico nas religiões afro-brasileiras e a estrutura ou o devir organizacional das comunidades de terreiro.

Neste artigo, o mito de Iku e da Covid-19 servirá como uma linha de baixo, um bordão que apoiará minhas observações a respeito daquilo que tenho chamado de experiências raciais (Queiroz, 2019bQUEIROZ, V. Dorival Caymmi: a pedra que ronca no meio do mar. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2019b.; 2019cQUEIROZ, V. O corpo do patriarca: uma etnografia do silêncio, da morte e da ausência. Mana, Rio de Janeiro, v. 25, n. 3, p. 743-776, 2019c.), juntamente com os elementos implicados em suas formas possíveis de comunicação. Para tanto, utilizo como exemplo a trajetória de Dorival Caymmi (1914-2008), músico baiano que viveu o século XX praticamente todo e pôde acompanhar processos de racialização bem diversos. Porém, em vez de assumir o aspecto de um samba caymmiano, tomarei emprestado elementos estruturantes de formas musicais mais antigas, dos tempos de Johann Sebastian Bach, compositor da predileção de Dorival segundo o testemunho de seus filhos.6 6 Informação obtida nas entrevistas realizadas com Dorival Tostes Caymmi (Dori) em 03/05/2012, no Rio de Janeiro, e Danilo Caymmi, em 23/05/2012, em São Paulo.

Tentarei fazer uma espécie de invenção em estilo fugado, na qual, além do baixo mítico, o meu tema bipartido - meu duplo sujeito na terminologia musical - será desenvolvido a duas vozes. A primeira delas apresentará, de modo etnográfico-arioso, a expressão da raça no percurso biográfico-profissional de Caymmi enquanto a outra produzirá, em contraponto, algumas variações referentes à epistemologia do candomblé. Pretendo reuni-las, enfim, por meio do debate sobre memória e cultura negra - chamada propriamente de “cultura da fuga” pelo filósofo franco-centro-africano Touam Bona (2016)BONA, D. Fugitif, où cours-tu? Paris: PUF, 2016. - e do diálogo com alguns autores, nomeadamente Fredrik Barth e Mário Medeiros da Silva.

Voltando ao itan, há uma questão intrigante, referente à sua cadeia narrativa descontínua, que talvez tenha chamado a atenção de vocês. Por que, em momentos sucessivos, mas muito próximos, eu deveria manter em segredo a totalidade dessa história, para, em seguida, poder contá-la livremente? Para responder a essa pergunta será preciso, antes tudo, apresentar outro conceito do candomblé, a noção de auô, que envolve um equilíbrio instável entre fazer e poder dizer, entre mostrar e esconder determinadas coisas. Essa ideia, como tudo no candomblé, não é abstrata. Mais do que uma ciência, os cultos afro-brasileiros trabalham com uma filosofia do concreto.7 7 Cf. Viveiros de Castro (2001, p. 3-6). A afirmação de que tais categorias são inseparáveis dialoga, no texto de Viveiros de Castro, com o problema do pensamento na antropologia de Lévi-Strauss. Ainda que este artigo siga a sugestão do primeiro autor de tratar as “ideias [nativas] como conceitos” (Viveiros de Castro, 2001, p. 32) válidos filosoficamente - e não apenas como descrições excêntricas de uma realidade conhecida de antemão -, colocando, também, as ideias de relação e diferença como procedimentos analíticos incontornáveis, não pretendo iniciar uma discussão propriamente filosófica nem intervir no enquadramento original deste debate, a etnologia indígena. O mesmo vale para os outros textos que serão citados e que não discutem nem questões raciais nem cultos afro-brasileiros - como os trabalhos de Strathern, Balandier e Sigaud -, incluindo-se as formulações de Fredrik Barth que norteiam meus argumentos, embora tenham sido produzidas a partir de pesquisas efetuadas na Melanésia e no Sudeste Asiático. Em todos esses casos aproprio-me das sugestões teóricas desses autores e não de seus contextos etnográficos. A próxima seção deste trabalho será dedicada a mostrar como uma série de coisas, práticas e objetos, estão implicadas na ideia de auô que, envolve, sobretudo, a produção de pessoas e corpos.8 8 As noções de corpo e pessoa utilizadas neste artigo devem ser entendidas, a partir das formulações de Marcel Mauss, como fatos morais e/ou categorias do pensamento e não apenas (ou não necessariamente) como elementos biológicos. Cf. Mauss (2003). Para isso, faço alguns comentários relativos à iniciação religiosa de Caymmi e à fala de uma irmã de santo dele.

A base da ideia de auô é a contenção verbal. Apesar de sua simpatia inabalável, Dorival Caymmi foi um homem extremamente reservado. Ele manteve uma discrição duradoura, por exemplo, em relação a quaisquer identidades e vivências raciais, conforme veremos. Este ensaio procede, na verdade, de um imperativo metodológico que sua postura obrigou-me a seguir. Como levá-lo a sério, respeitando seu silêncio e não o racializando à sua revelia? As evasivas do nosso compositor fizeram-me recorrer, enfim, à pedagogia do silêncio (Silveira, 2003SILVEIRA, M. A educação pelo silêncio. Ilhéus: Editus, 2003.) e à epistemologia do segredo dos candomblés, sendo que utilizei tais ferramentas não para explicá-lo - colocando tudo no plano da racionalidade causal, vendo-o de fora e sendo pouco sensível às experiências dele e do povo de santo - mas para verificar o que esteve implicado nas redes e relações que o constituíram.

A adoção de um procedimento analítico desses enseja, contudo, um pequeno desvio em termos de perspectiva teórica. A produção bibliográfica - vale dizer, produzida por intelectuais letrados - sobre as religiões de matriz africana e, de modo geral, sobre as populações negras no Brasil e em outras margens do Atlântico é enorme.9 9 A vasta bibliografia sobre raça e relações raciais no Brasil confunde-se com a constituição do próprio campo intelectual brasileiro (especialmente na seara das ciências humanas). Sugiro, apenas a título de localização, a leitura do último balanço da produção nacional sobre o tema (Pinho; Sansone, 2008). Para situar os debates a respeito das chamadas “religiões/cultos afro-brasileiras(os)”, indico a leitura de Johnson (2002) e Goldman (2012). Para o contexto afro-atlântico, cf., dentre outros, Apter e Derby (2010), Shaw (2002) e Bona (2016). Porém, tanto o debate público quanto a rica seara de estudos sobre o tema muitas vezes abstraem o caráter íntimo de cada experiência particular, os aspectos sensíveis e muitas vezes indizíveis, por estratégia ou sofrimento, através dos quais os processos de racialização se reconfiguram continuamente. Por um lado, não se costuma privilegiar as dimensões não ditas, as memórias privadas (Balandier, 1969BALANDIER, G. Antropologia política. São Paulo: Edusp, 1969.), práticas, rituais e incorporadas (Shaw, 2002SHAW, R. Memories of the slave trade. Chicago: The University of Chicago Press, 2002.) e reservadas dos mencionados processos de racialização. Por outro, a condição de sujeitos reflexivos, capazes de pensar suas experiências e compará-las com outras, costuma ser negada a pessoas e grupos negros de diversas formas, mesmo na literatura especializada.

Por isso, decidi começar minha invenção a duas vozes com uma história de candomblé. Mais do que um simples objeto, essa religião fornecerá as ferramentas analíticas e os conceitos que utilizarei. Trata-se, é claro, de uma tentativa de levar a sério também o pensamento dos terreiros, encarando suas ideias simetricamente, como conceitos (Viveiros de Castro, 2001VIVEIROS DE CASTRO, E. A propriedade do conceito. Apresentação na ANPOCS 2001, ST 23: Uma notável reviravolta: antropologia (brasileira) e filosofia (indígena). [S. l.: s. n.], 2001., p. 32) e não elaborações de segunda ordem que encobrem estruturas e dinâmicas sociais irrefletidas. Espero, com isso, ressaltar tanto o caráter estratégico do silêncio, dos roteiros ocultos [hidden transcripts] (Scott, 1990SCOTT, J. Domination and the arts of resistance: hidden transcripts. New Haven: Yale University Press, 1990.) de artistas, acadêmicos e religiosos negros, quanto a solidariedade e a importância teórica desses intelectuais letrados e não letrados - como, muitas vezes, é o caso dos membros do candomblé e do próprio Caymmi, que não pôde concluir o que nós chamamos hoje de ensino médio - visando repensar a invisibilização histórica/epistêmica e as possibilidades de agência desses sujeitos.

Auô

Na entrevista mais extensa que Dorival Caymmi gravou em sua carreira (Caymmi, 2004aCAYMMI, D. Caymmi, por ele mesmo. Entrevista a João Máximo. Apresentação: Madeleine Alves. Rádio Cultura Brasil, São Paulo, 2004a. Disponível em: Disponível em: http://culturabrasil.cmais.com.br/programas/caymmi-por-ele-mesmo . Acesso em: 23 maio 2021.
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), ele relembrou dessa forma sua iniciação no candomblé:

Eu resolvi, por decisão, ser um filho de santo. Bom, pedi os jogos de Mãe Menininha. […] Ela jogou e disse: […] “Xangô de frente, Oxalá”, viu… todas as águas. […] Quer dizer, assim, “aqui está Iemanjá, aqui está Oxum, ali tem Nanã, Iansã, todas… quer saber de uma coisa, seu moço? O senhor tem tudo o que é orixá, todos eles.” […] E eu resolvi que ia deitar pra fazer o santo, […] me devotei e fui eleito pra filho de quatro orixás: Xangô, Oxalá, Iemanjá e Oxum. Então eu peguei, com a devida licença da mãe de santo, […] eu levei minhas obrigações para o Axé Opô Afonjá e lá fui feito no tempo de mãezinha Ondina Pimentel, essa era a mãe de santo Ondina. Foi nessa época que eu fui feito obá de Xangô, um dos ministros de Xangô. Jorge Amado já era, Carybé, Pierre Verger […] que é um título como ministro de Xangô, junto com onze mais, que estão lá até hoje. (Caymmi, 2004bCAYMMI, D. Caymmi, por ele mesmo: lendas e crenças de um obá de Xangô. Entrevista a João Máximo. Apresentação: Madeleine Alves. Rádio Cultura Brasil, São Paulo, 2004b. Disponível em: Disponível em: http://culturabrasil.cmais.com.br/programas/caymmi-por-ele-mesmo/arquivo/lendas-e-crencas-de-um-oba-de-xango . Acesso em: 23 maio 2021.
http://culturabrasil.cmais.com.br/progra...
).

Todavia, a relação de Caymmi com essa religião não foi simples nem direta. Por razões que desconhecemos, o processo de iniciação descrito acima foi, inclusive, atípico. Tendo deitado num primeiro momento “pra fazer o santo”, como ele mesmo disse, no terreiro do Gantois - cuja ialorixá era então a famosíssima Mãe Menininha - nosso artista teria concluído sua feitura, pouco depois, numa segunda casa de candomblé com outra mãe de santo. De todo modo, ele foi rapidamente agraciado com um dos cargos mais altos do seu novo terreiro, o Opô Afonjá, e do candomblé baiano de modo geral. Junto a seus irmãos de esteira10 10 A expressão “irmão de esteira” faz referência a um grupo de pessoas que saíram de um mesmo “barco”, que foram “feitas” em cima da mesma esteira, no chão da mesma “camarinha”, ou seja, que estão unidas por uma iniciação em comum. Essa locução pode marcar também o compartilhamento de um cargo na hierarquia religiosa do candomblé e/ou um laço forte de amizade entre determinados membros de um terreiro. célebres, os quais ele nomeia no trecho citado, tornou-se um dos ministros de Xangô, recebendo o nome litúrgico de Obá Onikoyi.

Caymmi havia deixado a Bahia em 1938, mudando-se para o Rio de Janeiro. Trinta anos depois, por insistência de Jorge Amado, a Câmara Municipal de Salvador aprovou a doação de uma casa para o compositor (Queiroz, 2019bQUEIROZ, V. Dorival Caymmi: a pedra que ronca no meio do mar. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2019b., p. 55-110). Dessa vez ele viveria em sua terra natal por pouco tempo. Em 1972, Dorival já havia voltado para o Rio. Naquele momento, Caymmi já era um ícone da música popular brasileira. Sua imagem pública já estava suficientemente assentada e estereotipada através de alguns signos recorrentes. A partir de então, Dorival veria sua figura ser retrabalhada ad infinitum por ele e por outros artistas, mantendo por muitas décadas seu êxito inabalável.

As percepções raciais que atravessaram sua carreira formaram algumas dessas imagens icônicas, prototípicas, que são imprescindíveis para a compreensão do seu percurso biográfico-profissional. Caymmi e suas experiências raciais multifacetadas estiveram permanentemente conjugados, como a figura e o fundo de uma imagem. Porém, essa relação sempre foi perpassada por uma série de jogos de cena e silêncios. Para compreender melhor essa disposição peculiar de uma experiência racial e de seus indícios, situando-a no interior de uma perspectiva afrorreligiosa compartilhada por Dorival, recorro a um momento etnográfico (Strathern, 2017bSTRATHERN, M. O efeito etnográfico. In: STRATHERN, M. O efeito etnográfico. São Paulo: Ubu, 2017b. p. 311-376.) que vivenciei no terreiro dele.

Mãe Detinha de Xangô era uma das filhas de santo mais velhas do Opô Afonjá quando a entrevistei, em 2012. Depois de perder a sua desconfiança inicial, a anciã começou a contar uma série de histórias de “Pai Dorival” naquela roça de candomblé. Um dos momentos mais interessantes de sua entrevista, porém, não estava relacionado diretamente com o compositor. Ao fazer alguns comentários sobre a relação nem sempre harmoniosa entre os intelectuais, seus livros e o terreiro, Mãe Detinha acabou sintetizando a definição de segredo que permeia o candomblé dizendo: “Segredo é segredo. Não tem nada de mais, não tem mistério, só tem segredo. Então se você pega e mostra, acaba tudo.

Auô (awo) quer dizer segredo, mistério, em iorubá. Mais do que uma palavra, auô é um conceito estruturante no candomblé brasileiro. Uma vez que o aumento de poder simbólico e mágico na hierarquia religiosa dos terreiros é diretamente proporcional à posse de conhecimentos cuja força está associada à sua circulação restrita (Barth, 1990BARTH, F. The guru and the conjurer: transactions in knowledge and the shaping of culture in Southeast Asia and Melanesia. Man, New Series, London, v. 25, n. 4, p. 640-653, 1990.; Silveira, 2003SILVEIRA, M. A educação pelo silêncio. Ilhéus: Editus, 2003.), o auô (awo) é, de acordo com um trocadilho comum nas roças de ketu, a base do auô (áwo). Essa última palavra, quase homófona, tem uma relação semântica estreita com o segredo. Auô (áwo), enfim, significa fundamento ou assentamento - ou seja, os alicerces que mantêm concretamente um candomblé de pé, os objetos enterrados ali, o que embasa em profundidade o poder daquela casa - e por extensão o próprio culto aos orixás.

Estes objetos são plantados ou guardados cuidadosamente sobre ou ao redor dos otás (pedras), entes dotados de vida e de agência que, normalmente, devem ser encontrados na natureza - “no tempo”, segundo o jargão do candomblé - e, após um ritual de consagração, transformam-se em verdadeiros corpos externos que personificam seres humanos e não humanos individuais ou coletivos. Em outras palavras, é através do manuseio meticuloso de determinados apetrechos (Johnson, 2002JOHNSON, P. Secrets, gossip and gods: the tansformation of Brazilian candomblé. Oxford: Oxford University Press, 2002., p. 35) que toda e qualquer presença - de um terreiro, de um fiel ou mesmo de um orixá - é mobilizada ou conjurada (Barth, 1990BARTH, F. The guru and the conjurer: transactions in knowledge and the shaping of culture in Southeast Asia and Melanesia. Man, New Series, London, v. 25, n. 4, p. 640-653, 1990.), corporificada e colocada em relação com outros elementos, com outras existências.

Tais coisas, rodeadas de interditos, estão carregadas de historicidade, pois marcam momentos precisos da construção das pessoas e dos seus laços de parentesco religioso em sua “materialidade irredutível” (Pietz, 1985PIETZ, W. The problem of fetish, I. RES: anthropology and aesthetics, Chicago, n. 9, p. 5-17, 1985.), mas também implicam negociações constantes, riscos e conflitos em potencial (Goldman, 2012GOLDMAN, M. O dom e a iniciação revisitados. Mana, Rio de Janeiro, v. 18, n. 2, p. 269-288, 2012.; Sansi, 2009SANSI, R. Fazer o santo: dom, iniciação e historicidade nas religiões afro-brasileiras. Análise Social, Lisboa, v. 44, n. 190, p. 139-160, 2009.). Dentre essas tensões, as mais frequentes envolvem, como foi o caso de Caymmi, a mudança das obrigações - ou seja, de toda a parafernália assentada e carregada de poder - de um terreiro para outro (Rabelo, 2012RABELO, M. Construindo mediações nos circuitos afro-brasileiros. In: STEIL, C.; CARVALHO, I. (org.). Cultura, percepção e ambiente: diálogo com Tim Ingold. São Paulo: Terceiro Nome, 2012. p. 103-119.).

Os otás são ritualmente construídos ao longo dos anos, recebendo progressivamente oferendas e sacrifícios que visam manter e ampliar o poder, a força vital (axé) da pessoa ou da comunidade assentada. O axé, contudo, é algo instável e dinâmico. Os limites entre seus diversos estados ou instanciações são pouco definidos, sendo constantemente deslocados (Cardoso; Head, 2015CARDOSO, V.; HEAD, S. Matérias nebulosas: coisas que acontecem em uma festa de Exu. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 35, n. 1, p. 164-192, 2015.). Essa força depende, consequentemente, das posições e relações que produzem as coisas, que as fazem virem à tona. Exatamente por conta disso, a necessidade de controle intensivo sobre a produção dos corpos “nem inteiramente autônomo[s], nem inteiramente construído[s]” (Latour, 2002LATOUR, B. Reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches. Florianópolis: Edusc, 2002., p. 23) dos seres humanos e não humanos, dos otás e das prestações sacrificiais é uma fonte contínua de preocupação nessa religião.

Se as muitas possibilidades abertas pelas conexões variáveis e pelos estados transitórios das coisas (Cardoso; Head, 2015CARDOSO, V.; HEAD, S. Matérias nebulosas: coisas que acontecem em uma festa de Exu. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 35, n. 1, p. 164-192, 2015.) mantêm essa relação de potência e perigo, a fala de Mãe Detinha é plenamente coerente. De fato, “não tem nada demais” na disposição dos auôs. Porém, saber com exatidão tudo aquilo que está assentado, a ordem certa das coisas, a história de cada objeto, etc. equivale a compreender como se construiu um determinado ente e, por reversão, enseja a possibilidade de desconstruí-lo ou alterá-lo à vontade. A posse do conhecimento, da memória e da história é o fundamento do poder no candomblé.

O corpo de Dorival Caymmi foi construído em diversas camadas, dimensões e temporalidades. Tendo crescido na Bahia do início do século passado, ele foi refeito, décadas depois, no espaço fechado dos quartos de santo soteropolitanos. Além disso, sua imagem foi reproduzida incessantemente por LPs, homenagens, estátuas, etc. Seu caso, portanto, é um exemplo paradigmático da distribuição de uma pessoa formada e retroalimentada por suas múltiplas divisões e ramificações (Strathern, 2017aSTRATHERN, M. O efeito etnográfico. São Paulo: Ubu, 2017a.). Nesse processo, além da tensão inerente à construção de si no candomblé, e dos dissabores da superexposição midiática, outros desacordos apareceram no caminho de Dorival. E nosso protagonista sustentou, com maestria, uma economia da comunicação e uma política do conhecimento muito semelhantes ao manejo dos auôs levado a cabo pelos terreiros.

Vales e ecos

É uma sensação estranha, essa consciência dupla, essa sensação de estar sempre a se olhar com os olhos dos outros, de medir sua própria alma pela medida de um mundo que continua a mirá-lo com divertido desprezo e piedade.

W. E. Du Bois (1999DU BOIS, W. E. As almas da gente negra. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999., p. 54)

Em 1972 Dorival lançou um dos seus discos mais importantes (Caymmi, 1972CAYMMI. Compositor e intérprete: Dorival Caymmi. Rio de Janeiro: Odeon, 1972. 1 LP.). O álbum, chamado simplesmente de Caymmi, tinha sido concebido e produzido em paralelo à sua mudança para Salvador, mas, quando chegou às lojas, o compositor já estava longe de sua terra natal. O LP, permeado por músicas sobre orixás e sereias, parece começar e terminar dentro de um terreiro. O toque do gan (uma campana metálica) e dos aguidavis (varetas) percutindo os três atabaques sagrados do candomblé abre e fecha o disco e, de certa maneira, a discografia do compositor. Esse seria o seu último álbum de carreira. Depois dele Dorival lançaria, basicamente, gravações de shows e álbuns comemorativos.

O disco termina com um “Canto do obá” feito em parceria com Jorge Amado. A composição é uma afirmação enfática - nominal, em primeira pessoa e apresentando o cargo litúrgico ocupado pelo músico - da adesão de Dorival a religião dos orixás:

Meu pai Xangô é meu pai Xangô

É meu pai!

Protege teu filho, teu filho Caymmi

Dorival Obá Onikoyi

Apesar da definição de auô de Mãe Detinha - que avistou Caymmi inúmeras vezes no Opô Afonjá, enquanto o Obá Onikoyi da casa vivia em Salvador e compunha as canções desse álbum -, parece haver sim um mistério nessa obra em particular e nas declarações públicas de seu criador, de modo geral. Dorival permitia-se falar explicitamente sobre essa religião, adotando, inclusive, um tom bastante orgulhoso depois da sua feitura. Porém, apesar disso e mesmo tendo alcançado um sólido prestígio profissional, ele nunca se pronunciou diretamente sobre quaisquer identificações ou questões raciais.

A atuação peculiar de Dorival distanciava-se das reflexões mais comuns sobre o tema da raça no Brasil e, podemos arriscar, no Atlântico negro (Gilroy, 1993GILROY, P. The black Atlantic: modernity and double counsciousness. London: Verso, 1993.) como um todo. Esse artista, extremamente silencioso em sua vida particular e também em suas obras - que, com o passar do tempo foram ficando cada vez mais espaçadas e sucintas -, jamais lançou mão de uma identidade racial definida e isenta de ambiguidades. Ao pesquisá-lo, precisei trabalhar com os avessos dos processos de racialização, normalmente sobrepostos a sujeitos e coletividades delimitáveis ou encarados na chave da presença e da mobilização política direta. As experiências raciais de Caymmi deram-se mais pela vivência, pela admiração estético-religiosa e pela ausência do que por afirmações inequívocas, racionais e programadas. Contudo, em vez de forçar uma cisão bibliográfica ou uma dicotomia que na verdade não existe, essa conceituação mais silenciosa da ideia de raça pretende apenas lançar luz sobre um aspecto íntimo e pouco articulado de todos esses fenômenos.

Partindo dessa perspectiva, explicar a reserva de Dorival não vem ao caso. Para não forçar uma racialização fixa e indiferente à história sobre um sujeito tão evasivo, o melhor a fazer é tentar atuar também de forma lateral e astuciosa. Sigo, portanto, um método que nos candomblés é chamado de catar folha. Essa expressão refere-se ao modo de adquirir novos conhecimentos num terreiro: sem ensinamentos explícitos, formais, o aprendiz deve catar fragmentos e indícios daquilo que quer saber até poder montar, retrospectivamente, um entendimento ou uma imagem do novo fundamento ou habilidade obtida. Essa forma indireta de conhecer passa, consequentemente, pela experiência direta, pela prática sensível. Para vislumbrar algo da relação de Caymmi com o tema da raça é necessário, também, prescindir dos testemunhos explícitos e procurar certos sinais que podem ser depreendidos tanto nos interstícios da sua trajetória pessoal quanto em processos de racialização mais amplos que antecederam a gravação do LP de 1972 e sua entrada definitiva no candomblé.

Dorival nasceu em 1914. Seu pai, Durval Caymmi (1878-1964), mais conhecido como Ioiô, era um sujeito humilde que teve a vida atravessada por constrangimentos raciais. Ioiô, fruto de uma união não reconhecida entre o filho de um imigrante e uma “mulata”, nascera ainda no final do período escravista, na Salvador de Nina Rodrigues e de seu antagonista Manuel Querino (Corrêa, 2014CORRÊA, M. As ilusões da liberdade: a escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2014.). Ele foi, até o fim da vida, um homem de cor11 11 A expressão “homem de cor”, hoje em relativo desuso, trata-se de uma categorização êmica (e normalmente eufemística) que vigorava, por exemplo, na Bahia dos tempos de Ioiô e da juventude de Dorival. extremamente elegante, dividido entre as rodas semiclandestinas de samba ou de candomblé e o universo tido como respeitável do funcionalismo público na Bahia da virada do século XIX para o XX.

Nosso compositor imitou, em parte, a astúcia do velho Durval, que tentava disfarçar suas embaraçosas marcas de origem com uma aparência impecável sem afastar-se da intensa e festiva socialidade negra de Salvador. As estratégias de ocultamento, a relativa invisibilização social de categorias potencialmente problemáticas num determinado contexto, são práticas absolutamente comuns. Todavia seus resultados podem ser divergentes, mesmo numa família só. A limitada ascensão social de Ioiô contrasta absolutamente com o êxito inabalável do seu filho Dorival. O “gênio da raça” (Depoimento…, 1985DEPOIMENTO de Caetano Veloso. In: CAYMMI: som, imagem e magia. Intérprete: Dorival Caymmi. Salvador: Fundação Emílio Odebrecht, 1985. 1 LP duplo, disco 1, lado A, faixa 8.), muito mais hábil e menos espalhafatoso que seu pai farrista e mulherengo, conseguiu mostrar e esconder simultaneamente seus interesses, especialmente através de sua obra musical, conforme veremos a seguir.

Talvez a expressão silenciosa de suas canções, a busca incessante de amigos e de aliados socialmente poderosos que caracterizou toda sua vida, sua benevolência, e a percepção fina do que é possível fazer num dado momento - exemplificada, em sua trajetória, pela gravação do álbum de 1972, pela aproximação com o candomblé e pela própria intensificação de suas peculiaridades composicionais nas suas últimas décadas de vida - tenha sido compartilhada por muitas mulheres e muitos homens de cor no Brasil, quer eles tenham sido pessoas ilustres ou cidadãos desconhecidos.

As experiências e as tensões raciais brasileiras formam, afinal, a trama histórica dessas trajetórias, simultaneamente íntimas e coletivas. Não será possível revisar aqui toda essa questão - fundamental, inclusive, para nosso próprio imaginário enquanto país -, mas gostaria de salientar um elemento crucial, que esteve subliminarmente presente em todos os momentos da vida de Dorival e de seus companheiros de geração: a influência fantasmagórica, o peso dos constrangimentos, também silenciosos, do racismo à brasileira.

Lembremos que, no período de formação pessoal e profissional de Caymmi, o paradigma da mestiçagem enquanto convivência inter-racial harmônica ainda estava sendo engendrado (Gomes, 2004GOMES, T. Um espelho no palco. Campinas: Editora da Unicamp, 2004.). Essa concepção, que ainda exerce um poderoso atrativo para boa parte da população brasileira e que há décadas vem sendo contestada, havia acabado de conquistar o seu lugar ao sol quando Caymmi estreou na indústria fonográfica cantando O que é que a baiana tem? ao lado de Carmen Miranda. Curiosamente esse samba inaugural possuía muitos dos ingredientes da nova identidade nacional, mulata e massificada, que se oficializava na Era Vargas (Williams, 2001WILLIAMS, D. Culture wars in Brazil: the first Vargas regime, 1930-1945. Durnham: Duke University Press, 2001.). Dorival foi criado, portanto, em um universo no qual as identidades afro-brasileiras disponíveis e as experiências raciais possíveis eram radicalmente diferentes daquelas que vivenciamos no Brasil atual.

Se considerarmos que o Brasil foi a maior região importadora de africanos escravizados do mundo moderno e que intelectuais nativos ou visitantes esquadrinharam sua população durante o auge do racismo científico, na virada do século XIX para o XX, constatamos que o país escapou da segregação discricionária - ou seja, de uma modalidade de discriminação estabelecida por um aparato jurídico oficial - por pouco. Porém, isso não significa, de forma alguma, que o país esteve isento da violência racial aberta, frequente e organizada. Os jornais da juventude de Ioiô noticiavam, por exemplo, linchamentos de negros nas fazendas do interior do estado de São Paulo (Slenes, 2004SLENES, R. “O horror, o horror!”: o contexto da formação de identidades mestiças no Rio de Janeiro dos anos 1920. In: GOMES, T. Um espelho no palco. Campinas: Editora da Unicamp, 2004. p. 15-26., p. 15-26). A infância de Dorival, por outro lado, coincidiu com a recepção tensa - por nossas guardas, grêmios, associações e frentes negras de então (Butler, 2000BUTLER, K. Freedoms given, freedoms won: Afro-Brazilians in post-abolition São Paulo and Salvador. New Brunswick: Rutgers University, 2000.) - da ascensão do horror segregacionista internacional, na Europa, na África do Sul e, especialmente, nos Estados Unidos (Slenes, 2004SLENES, R. “O horror, o horror!”: o contexto da formação de identidades mestiças no Rio de Janeiro dos anos 1920. In: GOMES, T. Um espelho no palco. Campinas: Editora da Unicamp, 2004. p. 15-26.).

Não é à toa que os movimentos políticos dos homens de cor daquele mundo - junto à imprensa negra nacional, aos candomblés e às demais manifestações das sensibilidades e das identidades afro-brasileiras da época - decidiram apostar convictamente na retórica das mães pretas, da conciliação inter-racial e da administração dos conflitos através dum imaginário festivo que logo seria difundido pela nascente indústria cultural de massas.

Acho difícil que Caymmi tenha negligenciado os acirrados debates raciais daquele momento. Afinal, muitas das questões que estavam na ordem do dia o afetavam direta e duplamente, enquanto artista popular e enquanto sujeito racializado - ou, no linguajar eufemístico do seu certificado de reservista, enquanto um sujeito de “côr parda, cabelo crespo […] [e] nariz grande”.12 12 O documento “Certificado de Reservista de 2ª Categoria, de 12 fev. 1936” está disponível no site do Acervo Dorival Caymmi ([2021]). Décadas depois, o idoso compositor pôde acompanhar, de casa, o declínio do racismo científico dos tempos de sua juventude, a ascensão de novos movimentos negros que criticariam a atitude conciliatória de seus predecessores e a legitimação político-simbólica da cultura afro-brasileira no Brasil pós-redemocratização.

Em outras palavras, a vida e a obra de Caymmi oferecem-nos um ponto de vista estratégico para a apreensão das identidades, das experiências raciais no Brasil e de suas intensas transformações ao longo do século passado. A elegância espúria de Ioiô e o silêncio de seu filho estabelecem, afinal, uma ponte de ligação comovente entre as pressões sociais, simbólicas e psicológicas cruéis de um mundo declarada e oficialmente racista e as glórias, as maldades e as ilusões13 13 Expressões retiradas de “Saudade da Bahia”, lançada pelo próprio compositor, segundo a Discografia essencial da obra de Dorival Caymmi (Caymmi et al., 2001, p. 599) - de agora por diante apenas Discografia essencial - em 1957. que definem as controvérsias raciais de hoje.

Temo, entretanto, ter atingido e talvez até ultrapassado o limite das fontes e da discrição do nosso simpático protagonista. Convém então continuar catando folhas em outros cantos. Antes, porém, de contornar a questão e mudar, mais uma vez, de direção, faço uma observação importante, embora brevíssima. Frente às vivências dos contemporâneos de Caymmi e das gerações precedentes ou imediatamente sucessivas, tanto na militância negra atual quanto nos debates acadêmicos, algo do mal-estar que tangencia, exatamente, o tema da politização, da expressão ou do orgulho racial permanece.

Em que pese o fato de que a produção bibliográfica recente sobre associativismos negros no Brasil e em chave transnacional venha apontando que não há exatamente uma descontinuidade, um vale intransponível entre as vivências e os ativismos negros de ontem e de hoje, mantêm-se em grande medida uma tendência seletiva e, no limite, anacrônica de valorizar, dentre os nossos “mais velhos”, como se diz no candomblé, alguns sujeitos excepcionalmente eloquentes. O silêncio, porém, era regra naquele mundo marcado pelo duplo olhar do ódio e da condescendência humilhante, pela dupla pertença - dos quais falava naquele mesmo momento, mas em outro contexto nacional, Du Bois - e pelo temor constante. Em outras palavras, saber ouvir os ecos sutis deixados pela maioria dos indivíduos negros da primeira metade do século XX continua sendo uma tarefa desafiadora.

É preciso encarar essa dificuldade, afinal, como diria o sociólogo Mário Medeiros da Silva (2019)SILVA, M. Quando nos matam duas vezes, a luta negra ressurge outras mil. In: BVPS. [S. l.: s. n.], 22 ago. 2019. Disponível em: Disponível em: https://blogbvps.wordpress.com/2019/08/22/quando-nos-matam-duas-vezes-a-luta-negra-ressurge-outras-mil-por-mario-augusto-medeiros-da-silva-unicamp/ . Acesso em: 30 dez. 2020.
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, devemos “estabelecer e recordar redes, conectando lutas e trajetórias em uma longa linha de ações, nem sempre reta e muitas vezes tracejada pela violência física e simbólica do esquecimento e do calar de vozes”. Não fazê-lo equivale a reforçar, sem querer ou sem saber, a dupla morte - o desaparecimento físico e a extinção de suas lembranças em nossa memória coletiva - à qual eles foram tantas vezes condenados (Silva, 2013SILVA, M. A descoberta do insólito: literatura negra e literatura periférica no Brasil. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2013., 2020SILVA, M. Preservar a memória negra e lutar contra a dupla morte. Nexo, [s. l.], 21 ago. 2020. Disponível em: Disponível em: https://pp.nexojornal.com.br/opiniao/2020/Preservar-a-mem%C3%B3ria-negra-e-lutar-contra-a-dupla-morte . Acesso em: 6 nov. 2020.
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).

Daquilo que se expõe, mas não se fala

Assim como Edgar Allan Poe havia intuído num de seus contos, A carta roubada, Caymmi parecia saber que, às vezes, a melhor forma de ocultar alguma coisa é deixá-la simplesmente onde ela está. Agindo assim, ele teria conseguido disfarçar paradoxalmente, através da explicitação, duas temáticas recorrentes em sua obra: a relação entre povo e trabalho e a descrição de determinadas experiências raciais, num regime de espelhamento formal - uma vez que estas últimas abrangiam tanto sua vivência quanto o cotidiano das suas personagens. Dizer, portanto, que Dorival nunca falou de raça seria inexato.

Nas suas canções, inclusive, todo mundo é de cor. No cancioneiro de Dorival não há nenhum personagem que seja chamado de “branco(a)”. Para dizer a verdade, suas músicas insistem na racialização elogiosa de um desfile interminável de “moreno(a)s”, “preto(a)s”, “negas”, etc. A cor, a experiência, a fala, as atividades e o movimento desses sujeitos estão espalhados, num tom indubitavelmente entusiasta, por todas as suas criações.

Dorival começou sua carreira na década de 1930, quando, dentre outras coisas, os cultos afro-brasileiros eram duramente perseguidos pela força policial. Naquele momento, ele parece ter utilizado estrategicamente o universo totalmente controlado, em miniatura, de suas canções para negociar com o público e a crítica o que podia ou não ser dito e como fazê-lo. É engraçado constatar que, por décadas a fio, mesmo com os debates, impasses e desacordos raciais que caracterizaram o Brasil do século XX, atrás do dengo desse nego14 14 Referência à letra de Caymmi, “O dengo que a nega tem”, samba gravado por Carmen Miranda e por ele - segundo a Discografia essencial (Caymmi et al., 2001, p. 582) - em 1941. e de suas criações, afinal, todo mundo veio… porém, mais uma vez, será inútil procurar nelas referências diretas ao preconceito de cor, ou a qualquer tensão nesse sentido.

De todo modo, o cancioneiro de Caymmi é uma contínua celebração enternecida dos prazeres, temores e afazeres da população negra da Bahia de sua infância e juventude. Sua obra descreve um território vivo, feito de gente humilde, mas que é capaz de dançar, comer e conversar com antigos deuses oeste-africanos, cheia da liberdade relativa das ruas ou do alto mar. A maioria dessas canções foi produzida e lançada no Rio de Janeiro. A obra de Caymmi pode ser ouvida, portanto, como uma reconstrução incansável de determinadas memórias, caracterizada por uma espécie de pertencimento à distância (Godi, 2001GODI, A. Reggae in Bahia: a case of long-distance belonging. In: PERRONE, C.; DUNN, C. (ed.). Brazilian popular music and globalization. Gainesville: The University Press of Florida, 2001. p. 207-219.) que implica uma identidade refratada nas inúmeras pessoas negras que povoam suas composições e distribuída ao longo do circuito simultaneamente aberto e delimitado formado por seu cancioneiro.

A Bahia das canções de Caymmi também aparece nas obras daqueles artistas que já encontramos no depoimento de nosso compositor acerca de sua entrada no candomblé. Esses quatro criadores foram amigos íntimos e companheiros de trabalho desde que os dois membros estrangeiros dessa pequena confraria, Pierre Verger e Carybé, chegaram à Salvador, nas décadas de 1940 e 1950, conheceram Jorge Amado e iniciaram-se no terreiro do Opô Afonjá. Eles colaboraram uns com os outros a ponto de formar aquilo que chamei de “projeto artístico vitorioso”, sendo em grande parte responsáveis, junto ao poder público e à nata da intelectualidade local de meados do século XX, pela criação de uma identidade regional baiana ainda vigente (Queiroz, 2019aQUEIROZ, V. “Você já foi à Bahia, nêga?”: raça, povo e religião em um projeto artístico vitorioso. Novos Olhares Sociais, Cachoeira, v. 2, n. 1, p. 150-180, 2019a.). Todos eram brancos, exceto Dorival.

Porém esse projeto não era apenas artístico. Não é à toa que a “velha Bahia” deles tratava-se de uma área circunscrita ao centro da cidade, a poucos terreiros de candomblé da nação deles e, especialmente no caso de Dorival, a praia de Itapuã. Essa era, precisamente, a Salvador negra e popular, a “Roma africana” (Lima, 2010LIMA, V. Lesse orixá. Salvador: Corrupio, 2010., p. 307-312) que já havia atraído uma série de estudiosos, de Nina Rodrigues a Edison Carneiro, de Melville Herskovits a Lorenzo Turner (Castillo, 2010CASTILLO, L. Entre a oralidade e a escrita: a etnografia nos candomblés da Bahia. Salvador: EDUFBA, 2010.). De certa forma esses artistas e intelectuais todos haviam caído nas redes de compadrio, favor e associativismo que marcaram a Bahia do final do período escravista e das décadas seguintes à abolição - a “terra do branco mulato, a terra do preto doutor”15 15 “São Salvador”, samba gravado - segundo a Discografia essencial (Caymmi et al., 2001, p. 595) - pelo próprio compositor em 1960. caracterizada por uma relativa ascensão social de uma burguesia negra e por uma intensa negociação de estigmas associados à cor (Queiroz, 2019bQUEIROZ, V. Dorival Caymmi: a pedra que ronca no meio do mar. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2019b.).

Os iorubás ou nagôs - a etnia dominante entre os escravizados na Salvador oitocentista, que formaria a nação ketu e que contava, inclusive, com uma diminuta, mas superinfluente, elite letrada que circulava por rotas transnacionais (Castillo, 2010CASTILLO, L. Entre a oralidade e a escrita: a etnografia nos candomblés da Bahia. Salvador: EDUFBA, 2010.; Matory, 1998MATORY, J. Yorubá: as rotas e raízes da nação transatlântica. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 4, n. 9, p. 263-292, 1998.) - estavam, em diversos sentidos, no centro dessa rede sociomágica. Em algum momento, houve um amálgama entre esses intelectuais que buscavam seus africanismos na Bahia e os terreiros nagôs. No caso dos nossos quatro artistas essa confusão de interesses e perspectivas foi ainda maior. Caymmi e seus amigos saíram gradativamente da posição de curiosos simpatizantes ou de estudiosos que eles haviam ocupado inicialmente para tornarem-se membros ativos e intelectuais orgânicos do candomblé baiano. Todos eles passaram a agir, em maior ou menor grau, como seus propagandistas ou representantes diplomáticos. A relação do compositor com o candomblé é exemplar, nesse sentido.

Essa religião sempre chamou a atenção dele. Suas primeiras composições já traziam Iemanjás, batucajés e outras referências aos cultos afro-baianos. Porém, nessas produções iniciais, lançadas no Rio de Janeiro das décadas de 1930 e 1940, há uma série de estratégias de negociação e distanciamento. O culto aos orixás aparece nelas ora como algo soturno, ora como objeto de uma narração voyeurística e distanciada.16 16 “A lenda do Abaeté”, por exemplo, conjuga ambos os procedimentos. De acordo com a Discografia essencial (Caymmi et al., 2001, p. 587), esta canção praieira foi lançada por Caymmi em 1948. O candomblé era, basicamente, um dos recursos que o jovem compositor empregava para dar cor local às suas canções.

Todavia, não dá para afirmar que ele não teve contato, antes de ir para o Rio, com os terreiros de Salvador. Já vimos que Durval Caymmi, pai do compositor, não perdia “um baticum de samba, batuque, capoeira e também candomblé”.17 17 Trecho da letra de Caymmi, “Festa de rua”, samba gravado pelo compositor - segundo a Discografia essencial (Caymmi et al., 2001, p. 585) - em 1949. Além disso, segundo seu neto Danilo Caymmi, o velho Ioiô estaria entre os primeiros membros do Opô Afonjá, fundado em 1910.18 18 Informação obtida na entrevista realizada. Certamente o menino Dorival frequentou pelo menos algumas das festas públicas para os orixás, possivelmente no mesmo terreiro que o acolheria décadas depois. Com tudo isso, foi apenas no final da década de 1960 e já iniciado que ele se sentiu seguro para fazer esta passagem de observador externo a sujeito afrorreligioso. Ao mesmo tempo, ele trocaria a sua antiga elegância de chapéus e smokings e começaria aparecer em público com suas contas de santo e com os belíssimos panos africanos que, segundo ele, o tornavam irresistível.19 19 A citação encontra-se no “Bilhete de Dorival Caymmi a seu irmão, quando este se encontrava em Londres” (cf. Amado, 1986, p. 186-187). Nele, o compositor encomenda a seu compadre “um pano africano para […] fazer uma túnica e ficar irresistível”.

Na mesma entrevista de Caymmi que citei anteriormente, logo depois de comentar sua entrada no candomblé, ele faria um belíssimo elogio a essa religião. Fica evidente, nas suas palavras, essa mistura de identificação e distância, de subjetivação e objetivação do culto aos orixás que o acompanhou por toda sua vida:

Bom, depois do conhecimento com uma mãe de santo como Mãe Menininha, depois de conhecer Senhora, eu fiquei mais ligado e mais baiano, nessa área, assim… mais homem da terra. […] Há uma idolatria muito bonita, que é uma idolatria até poética e que você sente que é tão profunda e tão bonita e tão natural […] que não tem nada a ver com os sentimentos, com as coisas do homem, com preceitos muito humanos. É uma adoração ao natural, é uma graça que se vê nas coisas concedidas por um deus… e não existe um deus específico pro negro do candomblé. Supõe-se Olorum, que não se venera. Se venera mais a criação do que o criador. […] Então você adora a água, como adora a árvore, como adora a terra, como adora a pedra, o calhau do mar, do rio, a rocha que… a raiz. […] Em tudo a natureza fala mais alto. E os encantos… (Caymmi, 2004bCAYMMI, D. Caymmi, por ele mesmo: lendas e crenças de um obá de Xangô. Entrevista a João Máximo. Apresentação: Madeleine Alves. Rádio Cultura Brasil, São Paulo, 2004b. Disponível em: Disponível em: http://culturabrasil.cmais.com.br/programas/caymmi-por-ele-mesmo/arquivo/lendas-e-crencas-de-um-oba-de-xango . Acesso em: 23 maio 2021.
http://culturabrasil.cmais.com.br/progra...
).

Por outro lado, as ressonâncias entre a filosofia dos terreiros e a estética dele são impressionantes. É curioso observar que essa convergência de pensamento e até mesmo de forma parece ter existido desde a sua juventude. Muito antes de deitar pra fazer o santo, grande parte do cancioneiro de Caymmi já consistia “[n]uma adoração do natural.” Fazer “a natureza fala[r] mais alto” e expressar “os encantos” da água, da pedra, do rio, etc. foi, exatamente, o objetivo que ele perseguiu desde sempre.

Avamunha

Os mestres da palavra

El silencio

Oye, hijo mío, el silencio.

Es un silencio ondulado,

un silencio,

donde resbalan valles y ecos

y que inclina las frentes

hacia el suelo.

Federico García Lorca

Nesse último depoimento Caymmi parece adotar noções desafiadoras de identidade que lembram as formulações da variabilidade do mesmo (changing same) e do pertencimento à distância (long distance belonging) criadas pelos estudos culturais para investigar as sonoridades da diáspora negra (Gilroy, 1991GILROY, P. Sounds authentic: black music, ethnicity and the challenge of a “changing” same. Black Music Research Journal, Chicago, v. 11, n. 2, p. 111-136, 1991., 1993GILROY, P. The black Atlantic: modernity and double counsciousness. London: Verso, 1993.; Godi, 2001GODI, A. Reggae in Bahia: a case of long-distance belonging. In: PERRONE, C.; DUNN, C. (ed.). Brazilian popular music and globalization. Gainesville: The University Press of Florida, 2001. p. 207-219.). Nosso compositor teria ficado “mais baiano […] mais homem da terra” com o tempo, através da sua adesão religiosa e longe da Bahia, assim como milhares de pensadores, mães de santo e ativistas fizeram e refizeram a África ao longo de suas trajetórias pessoais, nas encruzilhadas das Américas.

Com sua mistura habilidosa de silêncios, adaptações e expedientes composicionais que se mostraram capazes de simultaneamente explicitar e esconder os conteúdos invariáveis de suas obras em momentos históricos distintos, o percurso biográfico-profissional de Caymmi tende, enfim, a desestabilizar qualquer noção de identidade substantivada.

Para estudar casos como esses, de trajetórias pessoais, segmentos ou grupos étnicos que desafiam identidades essencializadas, os trabalhos de Abner Cohen e Fredrik Barth lançados em 1969COHEN, A. Custom and politics in urban Africa. Berkeley: University of California Press, 1969. (Barth, 1998BARTH, F. (ed.). Ethnic groups and boundaries: the social organization of culture difference. Illinois: Waveland, 1998.; Cohen, 1969COHEN, A. Custom and politics in urban Africa. Berkeley: University of California Press, 1969.), e que por sua vez recuperavam discussões anteriores que remontam a Weber e Sartre, são mobilizados com frequência. Especialmente no caso dos estudos negros ou da escravidão nas Américas, as concepções deles tornaram-se verdadeiras doxas. Entretanto, “como todo consenso, este também […] envolve um processo de esvaziamento semântico.” (Viveiros de Castro, 2001VIVEIROS DE CASTRO, E. A propriedade do conceito. Apresentação na ANPOCS 2001, ST 23: Uma notável reviravolta: antropologia (brasileira) e filosofia (indígena). [S. l.: s. n.], 2001., p. 11). Esses autores se tornaram tão legíveis e canônicos que suas ideias viraram lugares-comuns e foram, ironicamente, naturalizadas (Sigaud, 2007SIGAUD, L. Doxa e crença entre os antropólogos. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 77, p. 129-152, 2007.; Strathern, 2013STRATHERN, M. Fora de contexto: as ficções persuasivas da antropologia. São Paulo: Terceiro Nome, 2013.).

Dois problemas são particularmente recorrentes nesse sentido. Em primeiro lugar, há uma tendência a utilizar, e mesmo a criticar, as noções de identidade e etnicidade tomando-as por aquilo que elas não são, vale dizer, afirmando-se que elas consolidam ou reificam substantivamente a autodescrição ou determinadas características de determinados sujeitos ou coletivos. Esse entendimento é diametralmente oposto a essa corrente teórica que pretende trabalhar, exatamente, com os aspectos relacionais, fronteiriços e circunstanciais desses processos. Na direção contrária, ao utilizar tal perspectiva, corre-se o risco de encarar tudo como um jogo de estratégias racionais e maximizações de interesses, deixando o conflito inter-relacional e interétnico figurar como o fundamento último de qualquer identidade. Acontece que as coletividades e as pessoas, ou pelo menos a maioria delas, não são máquinas de calcular dividendos sociossimbólicos ambulantes. Caymmi e seu mundo definitivamente não caberiam nessa versão simplista e desencantada da vida social.

Em um texto de 1979, Manuela Carneiro da Cunha (2009)CARNEIRO DA CUNHA, M. Etnicidade: da cultura residual mas irredutível. In: CARNEIRO DA CUNHA, M. Cultura com aspas. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p. 235-244., autora que introduziu essas discussões no Brasil junto a Roberto Cardoso de Oliveira, já refletia sobre o segundo desses problemas. Ela tentava resolvê-lo colocando, por baixo dos diálogos relacionais da identidade, a cultura, que ela definia como algo “residual, mas irredutível” (Carneiro da Cunha, 2009CARNEIRO DA CUNHA, M. Etnicidade: da cultura residual mas irredutível. In: CARNEIRO DA CUNHA, M. Cultura com aspas. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p. 235-244.). No entanto, uma questão clássica é reaberta quando o problema é colocado dessa forma. Onde podemos situar a experiência subjetiva, que é formada basicamente por contingências e fenômenos particulares prismados por categorias sensíveis, sem voltar a uma ideia de estoque sociocultural substantivado e novamente reificado? E, além disso, como ser verossímil e fiel a essa mesma experiência caso essa dicotomia seja superada? Como diria outra etnóloga ao comentar um problema análogo, o deslocamento analítico do conceito de sociedade para o de corpo:

A sociedade não está em lugar algum senão no corpo, ou seja, na sequência dos conjuntos de relações envolvidas em sua construção e desconstrução. Esta perspectiva lida efetivamente com as muitas dificuldades levantadas por reificações sociológicas mais antigas, mas não é fácil reconciliá-la com qualquer visão plausível da individualidade, sendo difícil imaginar que as pessoas, na verdade, experimentam a si próprias simplesmente como uma sucessão de concatenações estruturadas de fragmentos, e ainda mais difícil, na ausência de uma subjetividade minimamente estável, dar conta da continuidade relativa da tradição. (Taylor, 2012TAYLOR, A. C. O corpo da alma e seus estados: uma perspectiva amazônica sobre a natureza de ser-se humano. Cadernos de Campo, São Paulo, n. 21, p. 213-228, 2012., p. 213).

Décadas depois de do lançamento de Grupos étnicos e suas fronteiras, o mesmo Barth daria subsídios para a formulação de uma resposta interessante a essa questão ao redefinir o próprio conceito de cultura. Aos poucos esse antropólogo passou a privilegiar, em seus trabalhos, a transmissão de informações via situações específicas e sujeitos localizados, mantendo, entretanto, o aspecto intrinsecamente relacional de sua teorização anterior.

No artigo “O guru e o iniciador” (“The guru and the conjurer”) de 1990, por exemplo, ele traz uma discussão sobre diferentes modos de aquisição de conhecimento em contextos religiosos que, por si só, já seria pertinente para os estudos sobre candomblé. Barth reparte os métodos de instrução e aprendizagem entre as duas formas ideais que dão título ao texto. O guru das escolas corânicas, tipo que se aproxima do intelectual acadêmico, acumula uma erudição proveniente de leituras e dos ensinamentos de outros gurus. Sua posição é situada numa estrutura hierárquica docente já consolidada e muito ampla que, no limite, abarca todo o mundo islâmico. Quanto mais ele ensina e forma gerações de alunos, baseando seu prestígio em suas referências prévias, mais sua fama de guardião da tradição se espalha.

O conjurador, por outro lado, (re)produz o conhecimento através dele mesmo. A pessoa dele é o meio pelo qual o mana ou os espíritos são conjuráveis. Seu poder é localizado, necessariamente criativo, competitivo, extremamente pessoalizado e rodeado de interditos. Ele não possui turmas de alunos e sim grupos seletos de iniciandos que devem passar por uma série de provas penosas seguidas de ritos secretos. Apesar de acumular um prestígio impensável para um guru, seu conhecimento está sempre em xeque e é, de certa forma, trágico-agonístico. Por um lado a transmissão do conhecimento lhe é sempre penosa, o conjurador tira o conhecimento de si, e por outro ela é necessária. O mana, assim como o axé, só existe em função de sua dispersão num circuito de trocas, partições e prestações.

Deixando de lado seu esquematismo dual e ligeiramente simplista, essa divisão nos interessa pela inversão que produz. Barth enfatiza precisamente - para além da própria relação entre mestre x discípulos e iniciador x iniciados - a circulação de informações como elemento configurador da crença e, consequentemente, da cultura. Em outras palavras, mais do que os dados e símbolos culturais transmitidos, é a forma específica de transmissão deles que faz emergir aquilo que poderíamos chamar de cultura ou sociedade. As relações criam seus termos, e não o contrário. Outro aspecto, menos evidente, dessa reconceituação da cultura é que o silêncio dos conjuradores não aparece como ausência, nem como decalque ou inverso da fala deles, mas é tomado também como uma dimensão produtiva de formas sociais específicas. Em outros textos de sua produção tardia esse elemento-chave torna-se uma das dimensões fundamentais de apreensão e/ou descrição etnográfica das chamadas “sociedades complexas”. A cultura, para Barth, aproxima-se mais do controle e da administração do não dito do que das afirmações explícitas, das arenas ou teatros do poder (Balandier, 1969BALANDIER, G. Antropologia política. São Paulo: Edusp, 1969.).

Voltando à discussão sobre memórias negras, é interessante sublinhar que, embora partam de referenciais diferentes, as conclusões da produção recente sobre esse tema são análogas, chegando, em alguns pontos, a coincidir com as análises de Barth. A bibliografia sobre memória no Atlântico negro vem, desde os anos 1970, chamando atenção, por exemplo, para o papel dos indivíduos e de sua criatividade na produção das culturas negras (Mintz; Price, 2003MINTZ, S.; PRICE, R. O nascimento da cultura afro-americana. Rio de Janeiro: Pallas, 2003.), para o aspecto cotidiano e corporificado dessas memórias (Shaw, 2002SHAW, R. Memories of the slave trade. Chicago: The University of Chicago Press, 2002.) e para a centralidade da circulação de informações, valores, objetos, pessoas e lembranças na constituição política dos territórios afro-atlânticos (Apter; Derby, 2010APTER, A.; DERBY, L. (ed.). Activating the past: history and memory in the Black Atlantic world. Cambridge: Cambridge Scholars, 2010.; Bona, 2016BONA, D. Fugitif, où cours-tu? Paris: PUF, 2016.). O sociólogo Mário Medeiros da Silva (2020SILVA, M. Preservar a memória negra e lutar contra a dupla morte. Nexo, [s. l.], 21 ago. 2020. Disponível em: Disponível em: https://pp.nexojornal.com.br/opiniao/2020/Preservar-a-mem%C3%B3ria-negra-e-lutar-contra-a-dupla-morte . Acesso em: 6 nov. 2020.
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) sintetiza uma dimensão crucial deste debate ao comentar como “o problema da memória social se impõe para a vida negra”:

Recordar e esquecer são capacidades humanas. Elas estão entre as primeiras formas de aprender a conviver socialmente, socializados que somos em memórias dos outros, em comportamentos coletivos. Mas para isso é necessária a transmissão de conhecimento pelos sujeitos.

Memória social é uma forma de poder. A recordação coletiva não diz respeito ao passado. É uma tarefa sempre do tempo presente.

O final desta última citação de Mário da Silva pode nos levar de volta ao itan da Covid-19 e àquilo que podemos depreender de sua narração. Acredito que os aspectos políticos implícitos nessa maneira de contar uma história verdadeira no candomblé e a atenção dedicada a todos os detalhes envolvidos na transmissão ou reprodução do conhecimento e da memória coletiva - essa “forma de poder” - nessa religião tenham ficado indiretamente explícitos através da “expressão silenciosa” (Queiroz, 2019cQUEIROZ, V. O corpo do patriarca: uma etnografia do silêncio, da morte e da ausência. Mana, Rio de Janeiro, v. 25, n. 3, p. 743-776, 2019c., 2020QUEIROZ, V. Caymmi e a velha Bahia. In: RISÉRIO, A.; CARDIA, G. (org.). Cidade da música da Bahia. Salvador: Prefeitura Municipal de Salvador, 2020.) de um de seus grandes oloiês (“detentor de um cargo honorífico” em iorubá), Dorival Caymmi. O fino artesanato implicado na seleção e no uso estratégico de figuras e fundos, exibições e ocultamentos, gestos e discursos que estruturam seus auôs fazem-nos - tanto o compositor como os demais afrorreligiosos - verdadeiros mestres da palavra.

Não há como negar que o mito recontado por mim é totalmente contingente. Espero, porém, que esse fato reforce meu argumento de fundo. Não seria preciso, afinal, escolher um itan em especial para exemplificar como uma determinada política do conhecimento é exercida no candomblé e termina por estruturá-lo. Tanto melhor se essa narrativa mítica mobiliza o excedente simbólico de outros enredos para lidar com o transbordamento de sentidos provocado por um evento trágico e atípico como a pandemia da Covid-19. Dessa forma podemos captar o pensamento afrorreligioso em ato e em performance, no momento de sua criação. Contrabalançando o aspecto inespecífico e cotidiano desse itan, o contrário pode ser dito sobre Caymmi. Esse músico extremamente celebrado e reconhecido é um caso excepcional se tomamos como referência as experiências negras mais comuns. É pelo motivo simetricamente oposto, portanto, que seu caso também pode nos servir de exemplo.

Se há, afinal, uma série de paralelos entre a trajetória de Dorival, as experiências negras e o candomblé, é exatamente nesses extremos da vida social que tais homologias devem ser buscadas. As recorrências descobertas no caso insólito e o insólito redescoberto no dia a dia de qualquer terreiro podem ser dispostos lado a lado, iluminando-se mutuamente. Ainda que um procedimento como esse não procure explicar muita coisa, ele certamente aponta para o que está implicado em ambas as dimensões, quais elementos mantêm-se comparáveis em escalas tão diferentes (Strathern, 2017cSTRATHERN, M. A relação: acerca da complexidade e da escala. In: STRATHERN, M. O efeito etnográfico. São Paulo: Ubu, 2017c. p. 225-258.). Então, devo agora contrariar os princípios do segredo e explicitar tais auôs, mesmo que todos eles já tenham sido expostos de modo mais ou menos cifrado. Passo então a nomeá-los, reprisando-os resumidamente.

Para além da questão inicial, a partir da qual desdobrei todo este artigo e que versava sobre o interdito ou a possibilidade de se contar uma mesma história em situações distintas, destaco, em primeiro lugar, as correntes de mensageiros, de iniciadores e iniciados, ou melhor, de conjuradores e entes conjurados (Barth, 1990BARTH, F. The guru and the conjurer: transactions in knowledge and the shaping of culture in Southeast Asia and Melanesia. Man, New Series, London, v. 25, n. 4, p. 640-653, 1990.; Latour, 2002LATOUR, B. Reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches. Florianópolis: Edusc, 2002.) pelas quais necessariamente passam os enredos de um itan e uma trajetória, como a de Dorival. Tanto uns quanto a outra não são nem cantigas sem acompanhamento nem coros uniformemente sincrônicos. O mito e a pessoa do nosso compositor foram construídos, propagaram-se e perduram em texturas formadas por muitas vozes, ora descontínuas, ora sobrepostas. Nessas correntes narrativas, fazeres rituais e fluxos de memória coletiva as dinâmicas de controle, parentesco - “de santo”, “de sangue”, pensemos nos filhos de Caymmi, e mesmo por extensão, no caso dos seus demais regravadores (Flaksman, 2018FLAKSMAN, C. “De sangue” e “de santo”: o parentesco no candomblé. Mana, Rio de Janeiro, v. 24, n. 3, p. 124-150, 2018.; Queiroz, 2019cQUEIROZ, V. O corpo do patriarca: uma etnografia do silêncio, da morte e da ausência. Mana, Rio de Janeiro, v. 25, n. 3, p. 743-776, 2019c.) - e poder são onipresentes e determinam, em cada caso, o dizível e o não dizível.

Outro aspecto, apenas tangenciado aqui é a política da nação ketu que, em menor medida, foi seguida também por muitos outros afrorreligiosos brasileiros desde o final do século XIX. Tal política sempre foi marcada por uma tática dupla e deliberada, apesar da descentralização e da competição entre os terreiros. A bibliografia recente tem mostrado que tais estratégias foram, inclusive, estimuladas pelas tensões inerentes ao candomblé, tensões essas que vão da iniciação de um novo adepto, que envolve a possibilidade sempre problemática de saída ou de mudança de terreiro - como foi o caso de Caymmi - às grandes rivalidades, acordos e oposições segmentares, como diria Evans-Pritchard, que movimentam e dão vitalidade às comunidades afrorreligiosas (Rabelo, 2012RABELO, M. Construindo mediações nos circuitos afro-brasileiros. In: STEIL, C.; CARVALHO, I. (org.). Cultura, percepção e ambiente: diálogo com Tim Ingold. São Paulo: Terceiro Nome, 2012. p. 103-119.; Sansi, 2009SANSI, R. Fazer o santo: dom, iniciação e historicidade nas religiões afro-brasileiras. Análise Social, Lisboa, v. 44, n. 190, p. 139-160, 2009.). De todo modo, o chamado povo de ketu fez de tudo para colocar os membros de suas comunidades em posições de prestígio. Mãe Aninha, a fundadora do terreiro de Caymmi, sintetizou essa disposição com uma frase que se tornaria célebre: “Quero ver meus filhos com anel de doutor no dedo, aos pés de Xangô!” (Queiroz, 2019bQUEIROZ, V. Dorival Caymmi: a pedra que ronca no meio do mar. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2019b., p. 76). A outra face dessa mesma estratégia foi estabelecer, conforme já vimos, alianças com intelectuais, artistas e políticos influentes.

Não podemos minimizar a capacidade desses sujeitos todos, de Caymmi aos candomblecistas, de agenciar seguidores e aliados. A nação ketu conseguiu, com uma verdadeira guerra de posições articulada no segredo das camarinhas, tornar-se o segmento hegemônico do candomblé brasileiro, expandindo seu panteão e suas casas pelo Brasil todo. O ketu baiano migrou há décadas, por exemplo, para o Sudeste. O terreiro do interior paulista com o qual iniciei minha partitura é um desses templos que saíram duma família de santo soteropolitana. Não é a toa que o babalorixá fez questão de mostrar-me, sendo eu baiano também, o WhatsApp do meu famoso conterrâneo que era a fonte do nosso itan. Nesse mesmo terreiro aquela mistura de acolhimento e aliança que Dorival e seus amigos encontraram no Opô Afonjá continua sendo a regra. O pai de santo em questão também reforçava nossos laços de confiança mútua ao permitir que eu contasse sua narrativa mítica, sendo que dessa vez cabia a mim o papel de intelectual aliado.

É importante salientar, porém, que problematizo aqui a própria noção de intelectual, estendendo-a a sujeitos letrados e não letrados, acadêmicos e extra-acadêmicos ou marcados por trajetórias ditas periféricas. Destaco, dessa forma, tanto o caráter estratégico do silêncio dos intelectuais negros quanto a solidariedade entre eles, visando repensar a invisibilização histórica/epistêmica e as possibilidades de agência desses sujeitos.

Tendo isso em vista, retomo a noção de pessoa e de corpo do candomblé não como uma crença exótica, mas sim como “uma atualização de virtualidades insuspeitas do pensar” (Viveiros de Castro, 2001VIVEIROS DE CASTRO, E. A propriedade do conceito. Apresentação na ANPOCS 2001, ST 23: Uma notável reviravolta: antropologia (brasileira) e filosofia (indígena). [S. l.: s. n.], 2001., p. 39), ou seja, como uma ferramenta teórico-analítica poderosa e simetricamente posicionada em relação aos conceitos das ciências sociais. Assim como não há uma dicotomia, na versão de Fredrik Barth da noção de cultura e na ideia de memória negra de Mário da Silva, entre os indivíduos ou sujeitos e a sociedade, a construção relacional de si que caracteriza os terreiros também implica a conexão inseparável entre a transmissão de gestos, indícios e informações e construção de corpos específicos, posicionados e atravessados por outras trajetórias individuais.

A lenta e eminentemente prática formação da pessoa litúrgica no candomblé, junto a seu santo e uma multiplicidade interminável de trocas sacrificais que envolvem folhas, animais, objetos e, sobretudo, conhecimentos, é uma relação de relações, de cadeias de memórias históricas que são cuidadosamente (re)construídas e incorporadas no “tempo presente, por meio de seleções” (Silva, 2020SILVA, M. Preservar a memória negra e lutar contra a dupla morte. Nexo, [s. l.], 21 ago. 2020. Disponível em: Disponível em: https://pp.nexojornal.com.br/opiniao/2020/Preservar-a-mem%C3%B3ria-negra-e-lutar-contra-a-dupla-morte . Acesso em: 6 nov. 2020.
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). Boa parte dessas seleções é, finalmente, produzida, através do silêncio, pela reserva e pela circunspecção que devem cercar essa intensa cosmopolítica, essa feitura da natureza, com todos os seus encantos (Latour, 2002LATOUR, B. Reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches. Florianópolis: Edusc, 2002.).

Se considerarmos que as divindades poderosamente transcendentes e os ancestrais - ou mesmo um artista muito famoso - também dependem da alimentação constante, proporcionada pelas oferendas ou pela lembrança dos vivos, e que tudo está sujeito ao curso inexorável do tempo, matéria-prima de todas as coisas para o povo de santo, podemos reencontrar, no pensamento afrorreligioso, uma formulação perspicaz daquilo que constitui a experiência. As pessoas e os coletivos não existem a priori. Eles são mais ou menos existentes e potentes - nos termos do candomblé, têm mais ou menos axé - a depender da quantidade de lembranças, relações, redes e alianças que são estabelecidas através deles e que podem, inclusive, ultrapassar o falecimento de alguém20 20 Considerando-se os rituais fúnebres do candomblé, essa sobrevivência pode ser, inclusive, material. Isso não é de forma alguma a regra, acontecendo apenas em raríssimas ocasiões e em poucos terreiros. Esse foi o destino, entretanto, do corpo de Caymmi, materializado em seu otá, ente-objeto que foi preservado e continua vivendo no Opô Afonjá. Essa história é contada com mais detalhes em Queiroz, (2019c). ou a extinção de um terreiro. Como diria Guimarães Rosa (1983ROSA, J. G. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983., p. 15), ou melhor, o jagunço Riobaldo Tatarana em Grande sertão: veredas: “O mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando.”

Nem a fome de Iku, nem o desalento de uma pandemia são capazes de eliminar tamanha beleza. Espero ter deixado claro, no entanto, que o segredo e o silêncio, por mais delicados e estratégicos que sejam, não são projetados sobre um fundo vazio. Pelo contrário, eles existem também em função da magnitude e da persistência dos silenciamentos, violências e constrangimentos. Seguindo uma mudança de foco na abordagem clássica das questões raciais afrodiaspóricas, proponho, neste ensaio, que podemos (re)pensar a raça, a cultura e um termo que faz a perfeita intermediação entre ambas, a chamada cultura negra, como uma série de figuras e fundos, de presenças fugidias e gestos não enunciados.

Devemos, portanto, aprender a ouvir o silêncio. As tramas da memória também podem ser observadas pelo avesso. Podemos examinar os interstícios que sempre estiveram diante de nossos olhos - não exatamente além, a contrapelo ou através dos conteúdos das histórias, daquilo que é dito explicitamente -, mas que a um só tempo se mostram e se escondem nas políticas de conhecimento e de controle que rodeiam todas as informações. Se, de acordo com Touam Bona (2016)BONA, D. Fugitif, où cours-tu? Paris: PUF, 2016., desde a escravidão, as culturas negras foram culturas da relação e da tradução simultânea, do olhar duplo, da fuga quilombola e do contraponto, da invenção a várias vozes, nelas o domínio de si e do próprio corpo, a forma de narrar-se sempre foi o auô principal, o fundamento (áwo) e o segredo (awo). Trazer à tona as histórias célebres e anônimas desses e de outros intelectuais negros é uma forma de retirá-los dos domínios também duplicados de Iku e devolvê-los a este mundo que, afinal, deve tanto a eles.

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    Toque rápido utilizado para abrir e fechar as festas públicas de candomblé.
  • 2
    As ideias desenvolvidas neste artigo foram apresentadas pela primeira vez no 44º Encontro Nacional da Anpocs, em 2020, numa mesa coordenada por Mário Augusto Medeiros da Silva. Agradeço a este colega e parceiro intelectual pela oportunidade de construir e levar a público o diálogo do qual este trabalho resulta. Sem o financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) - processo n. 2012/22714-2 - a pesquisa que possibilitou sua escrita não teria sido realizada. Dedico-a, como não poderia deixar de fazê-lo, a todos aqueles que, entre 2011 e 2016, contribuíram diretamente para tornar as indagações que fiz sobre a figura e a obra de Dorival Caymmi menos ingênuas e desinformadas. Agradeço, nesse sentido, especialmente à família dele e à de Carybé, pelo apoio constante, aos professores Gustavo Rossi e Heloísa Pontes, à Mãe Detinha, in memoriam, e a todo o povo de santo por compartilhar comigo, sempre com muito afeto e confiança, suas histórias verdadeiras.
  • 3
    “Donos da cabeça” em iorubá (èdè Yorùbá), idioma litúrgico utilizado em muitos candomblés. Tal expressão designa as divindades cultuadas nessas comunidades. Os líderes religiosos masculinos dessa religião são chamados frequentemente de babalorixás e os femininos de ialorixás, “pais” e “mães do orixá”.
  • 4
    Nações são segmentos cultuais distintos, porém inter-relacionados, através dos quais os fiéis destas religiões subdividem-se (Lima, 2010LIMA, V. Lesse orixá. Salvador: Corrupio, 2010.). Seus nomes - jeje, angola, etc. - derivam dos etnônimos utilizados no contexto do tráfico negreiro. Este artigo refere-se apenas à nação ketu ou nagô, que cultua um elaborado panteão de origem oeste-africana. Tal comunidade assumiu um caráter hegemônico no candomblé brasileiro, através das redes e estratégias micropolíticas que serão comentadas adiante.
  • 5
    Enredo é um conceito operante na maioria das religiões afro-brasileiras. Refere-se às homologias verificáveis entre coisas aparentemente díspares que se cruzam no interior dos mitos ou dos ritos, influenciando-se mutuamente. Além de serem frequentemente contraintuitivos, os enredos são revelados paulatinamente aos fiéis, passando pela política de transmissão do conhecimento que será tematizada no decorrer deste artigo.
  • 6
    Informação obtida nas entrevistas realizadas com Dorival Tostes Caymmi (Dori) em 03/05/2012, no Rio de Janeiro, e Danilo Caymmi, em 23/05/2012, em São Paulo.
  • 7
    Cf. Viveiros de Castro (2001, p. 3-6). A afirmação de que tais categorias são inseparáveis dialoga, no texto de Viveiros de Castro, com o problema do pensamento na antropologia de Lévi-Strauss. Ainda que este artigo siga a sugestão do primeiro autor de tratar as “ideias [nativas] como conceitos” (Viveiros de Castro, 2001VIVEIROS DE CASTRO, E. A propriedade do conceito. Apresentação na ANPOCS 2001, ST 23: Uma notável reviravolta: antropologia (brasileira) e filosofia (indígena). [S. l.: s. n.], 2001., p. 32) válidos filosoficamente - e não apenas como descrições excêntricas de uma realidade conhecida de antemão -, colocando, também, as ideias de relação e diferença como procedimentos analíticos incontornáveis, não pretendo iniciar uma discussão propriamente filosófica nem intervir no enquadramento original deste debate, a etnologia indígena. O mesmo vale para os outros textos que serão citados e que não discutem nem questões raciais nem cultos afro-brasileiros - como os trabalhos de Strathern, Balandier e Sigaud -, incluindo-se as formulações de Fredrik Barth que norteiam meus argumentos, embora tenham sido produzidas a partir de pesquisas efetuadas na Melanésia e no Sudeste Asiático. Em todos esses casos aproprio-me das sugestões teóricas desses autores e não de seus contextos etnográficos.
  • 8
    As noções de corpo e pessoa utilizadas neste artigo devem ser entendidas, a partir das formulações de Marcel Mauss, como fatos morais e/ou categorias do pensamento e não apenas (ou não necessariamente) como elementos biológicos. Cf. Mauss (2003)MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo, Cosac Naify, 2003..
  • 9
    A vasta bibliografia sobre raça e relações raciais no Brasil confunde-se com a constituição do próprio campo intelectual brasileiro (especialmente na seara das ciências humanas). Sugiro, apenas a título de localização, a leitura do último balanço da produção nacional sobre o tema (Pinho; Sansone, 2008PINHO, O.; SANSONE, L. (org.). Raça: novas perspectivas antropológicas. Salvador: ABA: EDUFBA, 2008.). Para situar os debates a respeito das chamadas “religiões/cultos afro-brasileiras(os)”, indico a leitura de Johnson (2002)JOHNSON, P. Secrets, gossip and gods: the tansformation of Brazilian candomblé. Oxford: Oxford University Press, 2002. e Goldman (2012)GOLDMAN, M. O dom e a iniciação revisitados. Mana, Rio de Janeiro, v. 18, n. 2, p. 269-288, 2012.. Para o contexto afro-atlântico, cf., dentre outros, Apter e Derby (2010)APTER, A.; DERBY, L. (ed.). Activating the past: history and memory in the Black Atlantic world. Cambridge: Cambridge Scholars, 2010., Shaw (2002)SHAW, R. Memories of the slave trade. Chicago: The University of Chicago Press, 2002. e Bona (2016)BONA, D. Fugitif, où cours-tu? Paris: PUF, 2016..
  • 10
    A expressão “irmão de esteira” faz referência a um grupo de pessoas que saíram de um mesmo “barco”, que foram “feitas” em cima da mesma esteira, no chão da mesma “camarinha”, ou seja, que estão unidas por uma iniciação em comum. Essa locução pode marcar também o compartilhamento de um cargo na hierarquia religiosa do candomblé e/ou um laço forte de amizade entre determinados membros de um terreiro.
  • 11
    A expressão “homem de cor”, hoje em relativo desuso, trata-se de uma categorização êmica (e normalmente eufemística) que vigorava, por exemplo, na Bahia dos tempos de Ioiô e da juventude de Dorival.
  • 12
    O documento “Certificado de Reservista de 2ª Categoria, de 12 fev. 1936” está disponível no site do Acervo Dorival Caymmi ([2021])ACERVO DORIVAL CAYMMI. [S. l.: s. n.], [2021]. Disponível em: Disponível em: http://www.dorivalcaymmi.com.br . Acesso em: 11 maio 2021.
    http://www.dorivalcaymmi.com.br...
    .
  • 13
    Expressões retiradas de “Saudade da Bahia”, lançada pelo próprio compositor, segundo a Discografia essencial da obra de Dorival Caymmi (Caymmi et al., 2001CAYMMI, S. et al. Discografia essencial da obra de Dorival Caymmi. In: CAYMMI, S. Dorival Caymmi: o mar e o tempo. São Paulo: Editora 34, 2001. p. 579-605., p. 599) - de agora por diante apenas Discografia essencial - em 1957.
  • 14
    Referência à letra de Caymmi, “O dengo que a nega tem”, samba gravado por Carmen Miranda e por ele - segundo a Discografia essencial (Caymmi et al., 2001CAYMMI, S. et al. Discografia essencial da obra de Dorival Caymmi. In: CAYMMI, S. Dorival Caymmi: o mar e o tempo. São Paulo: Editora 34, 2001. p. 579-605., p. 582) - em 1941.
  • 15
    “São Salvador”, samba gravado - segundo a Discografia essencial (Caymmi et al., 2001CAYMMI, S. et al. Discografia essencial da obra de Dorival Caymmi. In: CAYMMI, S. Dorival Caymmi: o mar e o tempo. São Paulo: Editora 34, 2001. p. 579-605., p. 595) - pelo próprio compositor em 1960.
  • 16
    “A lenda do Abaeté”, por exemplo, conjuga ambos os procedimentos. De acordo com a Discografia essencial (Caymmi et al., 2001CAYMMI, S. et al. Discografia essencial da obra de Dorival Caymmi. In: CAYMMI, S. Dorival Caymmi: o mar e o tempo. São Paulo: Editora 34, 2001. p. 579-605., p. 587), esta canção praieira foi lançada por Caymmi em 1948.
  • 17
    Trecho da letra de Caymmi, “Festa de rua”, samba gravado pelo compositor - segundo a Discografia essencial (Caymmi et al., 2001CAYMMI, S. et al. Discografia essencial da obra de Dorival Caymmi. In: CAYMMI, S. Dorival Caymmi: o mar e o tempo. São Paulo: Editora 34, 2001. p. 579-605., p. 585) - em 1949.
  • 18
    Informação obtida na entrevista realizada.
  • 19
    A citação encontra-se no “Bilhete de Dorival Caymmi a seu irmão, quando este se encontrava em Londres” (cf. Amado, 1986AMADO, J. Bahia de todos os santos. Rio de Janeiro: Record, 1986., p. 186-187). Nele, o compositor encomenda a seu compadre “um pano africano para […] fazer uma túnica e ficar irresistível”.
  • 20
    Considerando-se os rituais fúnebres do candomblé, essa sobrevivência pode ser, inclusive, material. Isso não é de forma alguma a regra, acontecendo apenas em raríssimas ocasiões e em poucos terreiros. Esse foi o destino, entretanto, do corpo de Caymmi, materializado em seu otá, ente-objeto que foi preservado e continua vivendo no Opô Afonjá. Essa história é contada com mais detalhes em Queiroz, (2019c)QUEIROZ, V. O corpo do patriarca: uma etnografia do silêncio, da morte e da ausência. Mana, Rio de Janeiro, v. 25, n. 3, p. 743-776, 2019c..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    31 Maio 2021
  • Aceito
    14 Fev 2022
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