Acessibilidade / Reportar erro

A categoria de lugar e sua relevância para as ciências sociais: uma reflexão a partir de conflitos ambientais em Moatize (Moçambique) e Araxá (Brasil)

The category of place and its relevance to social sciences: reflections on environmental conflicts in Moatize (Mozambique) and Araxá (Brazil)

Resumo

O artigo trata das potencialidades da categoria de lugar para os estudos em ciências sociais sobre conflitos ambientais e desenvolvimento. Toma-se como base de análise os efeitos gerados pelos megaempreendimentos de carvão mineral da Vale Moçambique S.A. em Moatize (Moçambique) e de nióbio da Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração em Araxá (Brasil). Busca-se i) estabelecer relação entre os conceitos-categorias de lugar, território e paisagem; ii) rastrear os processos de construção do lugar a partir da mineração; e iii) apresentar modos outros de habitar o lugar que colocam em xeque a lógica mineira. Para isso, coloca-se a categoria de lugar em diálogo com os debates no campo da antropologia da natureza e na abordagem pós-estruturalista. Conclui-se que, junto à produção de lugares mineráveis por processos de redução e enclausuramento, ocorrem processos de desidentificação produzidos pela multiplicidade de práticas dos atores que exploram outros modos de habitar o lugar, coexistindo ou resistindo à lógica mineira.

Palavras-chave:
lugar; mineração; Moatize; Araxá

Abstract

This paper discusses the potentialities of the category of ‘place’ within social sciences studies on environmental conflicts and development. The analysis is grounded on the effects produced by two mega-development projects, i.e., coal mining operated by Vale S.A. in Moatize (Mozambique), and niobium extraction operated by Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração in Araxá (Brazil). This article aims at: i) correlating concepts and categories of place, territory, and landscape; ii) tracing processes of construction of places through mining activities; iii) presenting other forms of inhabiting places that confront the logic of mining activities. For such, the category of place is brought into dialog with the discussions presented by the anthropology of nature and the post-structural approach. The findings indicate that, in addition to the production of minable places through processes of reduction and enclosure, processes of disidentification are produced by the multiplicity of practices through which actors explore other manners of inhabiting a place, whether by coexisting or resisting the logic of mining activities.

Keywords:
place; mining; Moatize; Araxá

Introdução: situando as categorias de lugar e conflito ambiental

Ainda pouco exploradas nas ciências sociais, as reflexões em torno da categoria de lugar vêm sendo desenvolvidas mais amplamente no âmbito da geografia, em um emaranhado de relações e interferências com outras categorias como “espaço”, “território” e “paisagem”. Empírica e analiticamente, estas se diferenciam com base na diversidade de ações, relações, práticas e o tipo de sociabilidade em questão. Para explorar algumas das potencialidades da categoria de lugar para os estudos nas ciências sociais, demarcando suas distinções em relação a outros conceitos-categorias, considera-se as formulações da geógrafa e cientista social britânica Doreen Massey como um ponto de partida fecundo para a análise.

Segundo essa autora, o espaço compreende a “esfera da existência da multiplicidade […], na qual distintas trajetórias [sociais, materiais, humanas e não humanas] coexistem” (Massey, 2015MASSEY, D. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2015., p. 29). Isso equivale a dizer que os lugares, paisagens e territórios remetem a um tipo de espaço definido, no entanto, esses conceitos-categorias constituem instâncias de movimento, vida e abertura do espaço. Tratando-se do lugar, a autora afirma que o destaque ao movimento é particularmente importante, uma vez que os lugares tendem - de modo reacionário - a ser associados aos espaços de “resistência às mudanças”, ou, ainda, opostos ao global. Assim, a autora propõe uma perspectiva de lugar que envolve quatro aspectos fundamentais.

O primeiro aspecto a considerar é o lugar como não estático: as relações que o conformam não são coisas inertes, congeladas no tempo, são processos. Em segundo, os lugares não têm fronteiras no sentido de divisões demarcatórias - ainda que a definição de “fronteiras” seja muitas vezes necessária para a realização de certos estudos. Segundo Massey (2000MASSEY, D. Um sentido global do lugar. In: ARANTES, A. A. (org.). O espaço da diferença. Campinas: Papirus, 2000. p. 176-185., p. 185), “a definição, nesse sentido, não deve ser feita por meio da simples contraposição ao exterior, ela pode vir, em parte, precisamente por meio da particularidade da ligação com aquele ‘exterior’ que, portanto, faz parte do que constitui o lugar”. Em terceiro, os lugares não têm “identidades” únicas ou singulares: eles estão cheios de conflitos internos. E, por último, há que se considerar a permanência de uma especificidade do lugar, ou melhor, de uma singularidade própria, mas como resultante de várias fontes como, por exemplo, a mescla e a diversidade de atores e seus emaranhados de relações, esta perspectiva ensejada pela noção do lugar para além do espaço (físico), em abertura à multiplicidade.

Neste artigo busca-se explorar as potencialidades da categoria de lugar para estudos que versem sobre conflitos ambientais e desenvolvimento, especialmente quando estes abordam a presença de megaempreendimentos minerários. De modo recorrente na literatura nacional, conflitos ambientais tendem a ser definidos como aqueles que envolvem grupos sociais com modos diferenciados de apropriação, uso e significação do território, não se restringindo apenas a situações em que determinados modos ou práticas já estejam em curso, mas podendo emergir na concepção e/ou planejamento de determinada atividade espacial ou territorial (Zhouri; Laschefski; Pereira, 2005ZHOURI, A.; LASCHEFSKI, K.; PEREIRA, D. A insustentável leveza da política ambiental: desenvolvimento e conflitos socioambientais. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.). Território, nesse sentido, pode ser compreendido como “um espaço geográfico simbolicamente estruturado e politicamente construído por um determinado coletivo humano” (Machado Aráoz, 2015MACHADO ARÁOZ, H. El territorio moderno y la geografía (colonial) del capital. Una arqueología mínima. Memoria y Sociedad, [s. l.], v. 19, n. 39, p. 174-191, 2015., p. 176, tradução nossa). Assim, ele alude a uma “comunidade política que o constitui e se constitui como tal no simultâneo processo de delimitação, isto é, de demarcação tanto do espaço geográfico como habitat sobre o qual se exerce seu domínio, como da própria extensão do ‘nós’ como identidade coberta e compreendida nesta comunidade” (Machado Aráoz, 2015MACHADO ARÁOZ, H. El territorio moderno y la geografía (colonial) del capital. Una arqueología mínima. Memoria y Sociedad, [s. l.], v. 19, n. 39, p. 174-191, 2015., p. 176, tradução nossa).

Como se pode depreender da definição apresentada, conflitos ambientais - a despeito de serem “ambientais” - tendem a ser construídos, fundamentalmente, a partir da categoria de território, produzindo demarcações a respeito dos grupos envolvidos e suas identidades que, para os casos que serão aqui apresentados e discutidos, mostram-se insuficientes. Partindo-se das contribuições de Doreen Massey, propõe-se, portanto, colocar a categoria de lugar em diálogo com os debates no campo da antropologia da natureza (Ingold, 2015INGOLD, T. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2015.; Latour, 2013LATOUR, B. Investigación sobre los modos de existencia: una antropología de los modernos. Buenos Aires: Paidós, 2013.; Mol, 2002MOL, A. The body multiple: ontology in medical practice. Durham: Duke University Press, 2002. (Series Science and Cultural Theory).; Stengers, 2018STENGERS, I. A proposição cosmopolítica. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, [s. l.], n. 69, p. 442-464, abr. 2018.; Tsing, 2019TSING, A. L. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília: Mil Folhas, 2019.), acoplado à abordagem pós-estruturalista, no concernente ao regime do poder/saber (Aparicio; Blaser, 2018APARICIO, J. R.; BLASER, M. La “ciudad letrada” y la insurrección de saberes subyugados en América Latina. In: SOLANO, X. L. et al. Prácticas otras de conocimiento(s): entre crisis, entre guerras: tomo 1. Chiapas: Cooperativa Editorial RETOS, 2018. p. 104-134.; Escobar, 2007ESCOBAR, A. La invención del tercer mundo: construcción y deconstrucción del desarrollo. Caracas: Fundación Editorial el Perro y Laraña, 2007., 2010ESCOBAR, A. Una minga para el postdesarrollo: lugar, medio ambiente y movimientos sociales en las transformaciones globales. Lima: Universidad Nacional Mayor de San Marcos/Fondo Editorial de la Facultad de Ciencias Sociales, 2010., 2014ESCOBAR, A. Sentipensar con la tierra: nuevas lecturas sobre desarrollo, territorio y diferencia. Medellín: Edições UNAULA, 2014., 2016ESCOBAR, A. Autonomía y diseño: la realización de lo comunal. Popayán: Sello Editorial: Universidad del Cauca, 2016., Foucault, 1996FOUCAULT, M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 3. ed. São Paulo: Loyola, 1996.) sobre o lugar. Essa perspectiva direciona o olhar para as multiplicidades ontológicas1 1 A concepção de ontologia em uso neste artigo é associada à teoria ator-rede (ANT), segundo a qual as ontologias não precedem, mas são moldadas nas práticas e nas interações, tanto humanas como não humanas. As ontologias performam a si mesmas em mundos. Portanto, as implicações da produção de conhecimento sobre os conflitos ontológicos, além de assumir-se que os objetos, ferramentas e narrativas “estão a serviço ou envolvidos às formas particulares de ser, saber e fazer mundos” (Escobar, 2016, p. 12, tradução nossa), desafiam a pesquisa a indagar inicialmente sobre o que conta como conhecimento e que tipos de mundos dão base a diferentes práticas de conhecimento. Desse modo, agregar o(s) pres(pós)suposto(s) ontológico(s) à análise dos conflitos implica “seguir uma rota alternativa, porque antes de aproximar-se deles de maneira direta, como se estivessem ‘lá fora’, nós devemos nos interrogar e revelar as condições de tal possibilidade” (Blaser, 2013a, p. 23, tradução nossa). que compõem os diferentes lugares, especialmente quando esses se veem afetados pela presença de megaempreendimentos minerários. Assim, são enfatizados os processos de performar lugares com e a partir da mineração, adotando-se a definição de Annemarie Mol (2002)MOL, A. The body multiple: ontology in medical practice. Durham: Duke University Press, 2002. (Series Science and Cultural Theory)., para quem performance se refere a “fazer existir, promulgar, tornar efetivo”. O enfoque centra-se na descrição de como as práticas, de formas múltiplas, “fazem existir” os lugares, de modo a não se pensar numa realidade existente fora das práticas, mas como estas estão criando realidades.

Ao tratar como os lugares são performados com e a partir da mineração, defende-se o argumento de que, se, por um lado, a construção de um lugar minerável (Chizenga, 2020CHIZENGA, A. P. Os mundos que o “desenvolvimento” (des)integra: dinâmicas do lugar induzidas pela mineração da empresa Vale S. A. em Moatize, Moçambique. 2020. Tese (Doutorado em Sociologia) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2020.), acionado por políticas públicas de desenvolvimento do Estado e pelas intervenções do capital, constitui um enclausuramento e encarceramento ontológico do lugar como um todo, “em termos das entidades individuais e processos históricos constituídos que, operando em diferentes níveis, interagem de formas complexas” (Escobar, 2010ESCOBAR, A. Una minga para el postdesarrollo: lugar, medio ambiente y movimientos sociales en las transformaciones globales. Lima: Universidad Nacional Mayor de San Marcos/Fondo Editorial de la Facultad de Ciencias Sociales, 2010., p. 78, tradução nossa), por outro, há a réplica dos atores e suas formas de habitar o lugar que excedem e transgridem os esforços de enclausuramento. Assim, a análise nas ciências sociais, ao rastrear como as práticas colocam em xeque a lógica e a teleologia mineira nos diferentes lugares, pode contribuir para a conformação de uma categoria de lugar que leve em conta as multiplicidades ontológicas que se encontram em jogo quando da presença de conflitos ambientais.

A discussão do lugar nos moldes acima propostos - e sua diferenciação com as categorias de território e espaço - visa ao tensionamento das discussões vigentes e à descentralização da sua conceituação em abordagens das ditas “ciências especializadas”, transpondo conotações reducionistas, simplistas e unanimistas - com pretensão unitária - que estas, a priori, podem revelar. Partindo-se de uma perspectiva socioantropológica, tem-se que o lugar não é a priori sociológico; ao contrário, ele se define por encontros e momentos múltiplos, plurais, diversos e heterogêneos de sociabilidades mais que humanas (que envolvem, assumindo não haver distinção entre sociabilidade humana e não humana, sociedades e naturezas). Esses encontros podem ser com e entre humanos e não humanos; eles desafiam e colocam em xeque diferenças, questões políticas e ontológicas dos atores cujas “linhas de peregrinação” se encontram fortemente atadas no espaço físico e para além dele.

Além desta introdução, este artigo divide-se em mais duas partes. A segunda parte apresenta a discussão sobre a ideia de lugar minerável a partir das pesquisas empíricas realizadas pelos autores no distrito de Moatize, Moçambique, e no município brasileiro de Araxá, Minas Gerais. No primeiro estudo são enfocadas as relações existentes entre a constituição de um lugar minerável pela mineração de carvão e a performação de existências e corpos ao longo do tempo. Já no segundo estudo é enfocada a multiplicidade ontológica que excede a tentativa de enclausuramento do lugar pela mineração de nióbio, dando destaque à dimensão das identidades que emergem com a conformação de um conflito ambiental envolvendo a contaminação das águas. Por fim, a terceira parte do artigo apresenta, à guisa de uma conclusão, a síntese das reflexões emergidas em campo, procurando demarcar a pertinência da categoria de lugar para a análise de conflitos ambientais.

Lugar minerável: o carvão de Moatize e o nióbio de Araxá

Apesar da distância geográfica e dos contextos sócio-históricos empiricamente distintos, a exploração mineira em Moatize e Araxá revela uma ligação intrínseca com a noção de lugar minerável (Chizenga, 2020CHIZENGA, A. P. Os mundos que o “desenvolvimento” (des)integra: dinâmicas do lugar induzidas pela mineração da empresa Vale S. A. em Moatize, Moçambique. 2020. Tese (Doutorado em Sociologia) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2020.). Essa noção serve para referenciar as dinâmicas de (des)integração do lugar à teleologia ou à lógica mineral - do nióbio e do carvão mineral - pelas respectivas empresas mineradoras, atreladas às políticas de “desenvolvimento” dos Estados, estas baseadas na exploração intensiva de bens naturais, a fim de sustentar o crescimento das economias centrais e, mais recentemente, de potências emergentes como a China. Todavia, a extração mineira sobrepõe-se a outras sociabilidades no lugar, vinculadas à diversidade de elementos não antrópicos e a dinâmicas complexas e seus mundos, invisibilizados pela lógica mineira.

Nos empíricos em questão, o lugar minerável se operacionaliza por meio de processos de governamentabilidade (Foucault, 1996FOUCAULT, M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 3. ed. São Paulo: Loyola, 1996.) que buscam constituir os corpos; por sua pretensão de ambiente - que separa sociedade de natureza; por técnicas de planejamento e acumulação a serviço do capital econômico financeiro e seu papel ideológico. O planejamento para a produção/significado/uso do lugar minerável não é neutro, é o resultado de práticas tecnocientíficas que, imbricadas de política, são realizadas por técnicos, agentes econômicos, representantes estatais, contribuindo “gradativamente na produção e configuração socioeconômica e cultural” do lugar (Escobar, 1996ESCOBAR, A. Planificación. In: SACHS, W. Diccionario del desarrollo: una guía del conocimiento como poder. Lima: PRATEC, 1996. p. 216-235., p. 217, tradução nossa). Dessa forma, na construção de um lugar minerável, a técnica de planejamento se operacionaliza por meio de sua consideração ou redução aos “bens naturais existentes”, à sua visão instrumental da natureza, isolando-a de toda a multiplicidade e do complexo de elementos não antrópicos existentes, subsumindo-a na pluralidade de relações mais que humanas historicamente constituídas e ligadas à heterogeneidade de formas de habitar que ali coexistem.

Contudo, um lugar minerável é sempre um lugar em disputa. Junto à tentativa de enclausurar, há os processos de ruptura e transgressão; concomitante à redução está a diversificação, o excesso, o rearranjo. Os lugares são múltiplos e não é possível defini-los em uma única identidade. Nas especificidades dos empíricos que serão abordados a seguir, pretende-se evidenciar que, a despeito do avanço da mineração constituir uma forma enclausurada e reducionista dos lugares, estes se coroam de inúmeras formas de habitar, de dinâmicas socioeconômicas, de relações comunitárias implícitas à sua concepção de ambiente (como mescla de sociedades e naturezas), que excedem o que políticas de desenvolvimento - calcadas no incentivo aos megaempreendimentos de exploração mineral - almejam silenciar.

Com respeito à pesquisa em Moatize, de cunho etnográfico e associada a diferentes técnicas de pesquisa (a observação participante e a participação observante, conversas (in)formais, aplicação de entrevistas semiestruturadas e fotografia), ela se desenvolveu nos primeiros semestres de 2015 e 2018. A exploração mineira em Moatize está dividida em duas fases: a primeira, que vai desde o século XIX até meados da década de 1980, fase dominada pela mineração a céu aberto e suas repercussões sociais específicas; já a segunda fase inicia em 2005, com a abertura de licitação internacional para a exploração das jazidas de carvão mineral de alta qualidade e a consequente entrada da empresa mineradora de origem brasileira Vale Moçambique S.A., tornando-se um dos maiores projetos de investimento no mundo. A exploração de carvão pela Vale marca o início da nova fase de mineração na bacia carbonífera de Moatize, cujas dinâmicas produtivas não permitem a coabitação entre a mineração e outras práticas socioambientais. Do ponto de vista analítico, a segunda fase da mineração em Moatize apresenta características comuns com a primeira, ao mesmo tempo que mantém a sua especificidade no concernente às dinâmicas socioambientais resultantes da exploração mineira a céu aberto.

A pesquisa realizada em Araxá, Minas Gerais, ocorreu no início de 2020. A escolha pelo lugar deu-se em razão da exploração do nióbio, presente no município desde o final da década de 1950. O nióbio é um metal considerado estratégico para a balança comercial do Brasil, uma vez que o país é o seu principal exportador mundial (na forma de liga ferronióbio), sendo responsável por 93,7% da produção mundial e 98,2% das reservas conhecidas no planeta (Departamento Nacional de Produção Mineral, 2016DEPARTAMENTO NACIONAL DE PRODUÇÃO MINERAL. Sumário mineral. Brasília: DNPM, 2016.). Do total exportado pelo país, 79% é decorrente da mina de Araxá, considerada a maior do mundo.2 2 Demais jazidas do minério no Brasil encontram-se, atualmente, no Amazonas e em Goiás. Durante o período de estadia em Araxá, realizaram-se entrevistas semiestruturadas e conversas não estruturadas junto a trabalhadores da mineração e moradores não vinculados diretamente à atividade mineral, assim como observações na região do Barreiro, onde se localizam as atividades de mineração de Araxá.

Em decorrência da chegada da pandemia de Covid-19 no Brasil, o trabalho de campo foi interrompido e a análise documental passou a desempenhar um papel maior na pesquisa. Para este artigo, mobilizam-se quatro das entrevistas realizadas em campo (sendo três com trabalhadores da mineração e outra com uma agricultora), matérias jornalísticas que versam sobre as atividades de mineração do município, publicações da empresa mineradora de nióbio, diários de campo e dois relatos presentes em documentário realizado em 2018 por antigos moradores da região do Barreiro sobre o conflito existente com a mineradora em razão da contaminação das águas por bário (Ex-moradores…, 2018EX-MORADORES do Barreiro: a verdadeira história: 1ª parte. Documentário produzido pelos moradores do Barreiro, Araxá. [S. l.: s. n.], 2018. 1 vídeo (58 min). Publicado no canal Águas Barreiro de Araxá. Disponível em: Disponível em: https://youtu.be/cWR_OEtj3W8 . Acesso em: 17 maio 2022.
https://youtu.be/cWR_OEtj3W8...
).

A seguir, discutem-se os dois estudos realizados, enfocando-se nos elementos que dão sustentação à defesa da pertinência da categoria de lugar para análises sobre conflitos ambientais e desenvolvimento.

Moatize: dinâmica mineral e formas outras de habitar o lugar

O distrito de Moatize localiza-se na província de Tete, região central de Moçambique, com uma extensão de 8.879 km². Em um período de dez anos (2007-2017), a parte sul do distrito registrou aumento na solicitação de licenças mineiras, entrada em funcionamento de projetos mineiros, e um consequente aumento de 31,7% da população, causado em sua maioria pela imigração (Instituto Nacional de Estatística, 2019INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA. Recenseamento geral da população e habitação 2017: resultados definitivos - Moçambique. Maputo: Direção de Estatísticas Demográficas, Vitais e Sociais, 2019.). Em Moatize encontram-se jazidas de carvão mineral reconhecidas no mundo pela sua quantidade e qualidade, que colocam Moçambique na lista dos dez países com maiores reservas no planeta (Projeto de Carvão de Moatize, 2006PROJETO DE CARVÃO DE MOATIZE. Estudos de impacto ambiental, Complexo Industrial de Moatize: v. II - B. Maputo: [s. n.], nov. 2006.; Marques, 2015MARQUES, L. Capitalismo e colapso ambiental. Campinas: Editora da Unicamp, 2015.). Embora os registros historiográficos da confirmação da diversidade de minérios ao longo do vale do rio Zambeze, onde está localizado o distrito de Moatize, datem do início do século XVI, foi no início do século XIX, durante a vigência do regime colonial português,3 3 Esse tema não será aprofundado aqui, mas cabe mencionar que Moçambique foi colônia portuguesa desde o início do século XVI até 25 de junho de 1975. A independência foi alcançada pela via armada, tendo a Guerra de Libertação durado dez anos (1965-1975). que se intensificaram estudos detalhados de prospecção e pesquisa sobre as jazidas de carvão, resultando no início da exploração desse mineral em minas subterrâneas no final desse século, continuando até meados da década de 1980, já sob a égide do governo moçambicano.

Apesar de sucessivas consignações e consórcios das minas de Moatize verificados ao longo do século XIX, a década de 1920 é histórica, pois marca o início da exploração sistemática (extração e comercialização) do carvão de Moatize, sob a concessão da Société Minière et Géologique du Zambeze (CMGZ). A partir dessa década, sob a gestão dessa mineradora, verifica-se a elaboração de mapas e escalas topográficas, bem como a execução de “trabalhos de reconhecimento e levantamento geral das bacias de Moatize, Revúbuè e Murongodzi” (Vasconcelos, 1995VASCONCELOS, L. A. Contribuição para o conhecimento dos carvões da bacia de carvão de Moatize: Província de Tete, República de Moçambique. 1995. Tese (Doutorado em Geociências) - Faculdade de Ciências, Universidade do Porto, Porto, 1995., p. 7). Assim, essa década será fundamental para a criação de dispositivos de um lugar minerável, por meio de investimentos massivos e da expansão da rede de transportes terrestres e ferroviários para servir o setor mineiro em face das dificuldades de navegação pelo rio Zambeze.

Durante o período de exploração mineira, Moatize viveu dinâmicas sociais específicas, algumas das quais ocasionadas pela especificidade das minas subterrâneas, desde construções e transformações na infraestrutura para aumento do escoamento até o recrutamento e criação de “estoques” de mão de obra ao redor da mina. O que vale destacar aqui são os efeitos sociais derivados desse tipo de mineração (lavra subterrânea), estabelecendo “formas de coexistência [do social] com empreendimentos extrativistas” (Gudynas, 2014GUDYNAS, E. Conflictos y extractivismos: conceptos, contenidos y dinámicas. Revista en Ciencias Sociales, Cochabamba, n. 27-28, p. 79-115, 2014., p. 80, tradução nossa), na medida em que a mineração no subsolo não influenciava diretamente as ocupações, atividades e práticas sociais no solo, nem a remoção ou desvio de entes naturais (rios, montanhas, vegetação) e socioculturais (cemitérios, roças, bairros), como ocorre atualmente.

Os efeitos (in)desejados da mineração se verificaram durante a primeira fase da exploração mineira marcada pela perda de vida dos trabalhadores na mina. O registro de acidentes de grande magnitude com mortes nas minas de Chipanga datam de março de 1956, quando uma grave explosão resultou na morte de 32 trabalhadores. Matéria publicada pela revista portuguesa Expresso, em julho de 2011, recuperou outro acidente, ocorrido em finais da década de 1970, que ficou conhecido como uma das histórias mais sangrentas de ceifa de vidas humanas nas minas de carvão de Moatize. Intitulada “O massacre das minas de Moatize”, a investigação jornalística recuperou relatos de quem viveu os incidentes naquela fatídica tarde:

São 14h30 de terça-feira, 2 de agosto de 1977. Primeiro fora um estrondo forte a estremecer as entranhas do subsolo de carvão e xisto, corroído por intermináveis galerias escavadas pelos seus homens. Seguira-se um fumo denso a escapar-se da boca de uma das minas que o olhar experiente do engenheiro logo identifica como sendo a Chipanga 3, a mais produtiva de todas as Chipangas em exploração. A cada segundo que passa o fumo adensa-se, mais escuro, e eleva-se no ar, onde vai esboçando a figura terrível de um cogumelo a ondular ao sabor da brisa. Se dúvidas tivesse, elas dissiparam-se: fora mais uma explosão de grisu.4 4 Substância que resulta da mistura de metano (CH4) ao oxigênio (O2) e ocorre naturalmente nas minas de carvão mineral, sendo capaz de produzir facilmente uma explosão na presença de chamas ou de faíscas em ambientes fechados. (Castanheira, 2011CASTANHEIRA, J. P. O massacre de Moatize: testemunhos da explosão e da chacina em Moçambique, 34 anos depois. Expresso, [s. l.], n. 2022, 30 jul. 2011., p. 42).

Esse relato revela um dos momentos mais tenebrosos ocorridos nas minas de carvão de Moatize, marcado pela perda de mais vidas de trabalhadores negros que entraram na mina de Chipanga 3 no turno da manhã. Na época, os dados oficiais divulgados pelo governo de Moçambique estimavam de 23 a 150 mortos. Entretanto, os números considerados mais fidedignos apontam para 73 mortes, das quais 64 são de mineiros que se encontravam dentro da mina e mais nove de estrangeiros. Presume-se que os estrangeiros mortos foram vítimas da revolta e da fúria de mineiros de outros turnos, familiares e populares chocados com a dimensão da tragédia, pois “os mineiros são [eram] moçambicanos e negros. A hierarquia, pelo contrário, é [era] formada por estrangeiros (portugueses e belgas) e brancos” (Castanheira, 2011CASTANHEIRA, J. P. O massacre de Moatize: testemunhos da explosão e da chacina em Moçambique, 34 anos depois. Expresso, [s. l.], n. 2022, 30 jul. 2011., p. 45-46).

A partir do enunciado que revela a identidade e o número dos mortos em trabalho, tem-se por um lado “os mineiros negros” que ficaram soterrados na profundidade da mina, sem mínimas chances de seus corpos serem encontrados e de receberem enterro digno, e, por outro, a hierarquia e os números de quem comandava e coordenava os trabalhos a partir de fora, na superfície da mina (os “estrangeiros”), cujas mortes não resultavam da natureza do seu trabalho, mas da má-fé, da ira dos revoltados. Não obstante sua morte sinistra, seus corpos foram identificados, levados de volta à terra natal. A dinâmica e a hierarquia do trabalho nas minas subterrâneas de Moatize estiveram vinculadas à necropolítica (Mbembe, 2011MBEMBE, A. Necropolítica: el gobierno privado indirecto. [S. l.]: Melusina, 2011.), na medida em que a “capacidade de decidir quem pode viver e quem deve morrer” estava ligada à natureza do seu trabalho e categoria, assim como à naturalidade, à raça e ao tipo de (des)cuidado que seus corpos mereciam (Chizenga, 2020CHIZENGA, A. P. Os mundos que o “desenvolvimento” (des)integra: dinâmicas do lugar induzidas pela mineração da empresa Vale S. A. em Moatize, Moçambique. 2020. Tese (Doutorado em Sociologia) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2020.).

A exploração efetiva do carvão de Moatize em minas a céu aberto foi realizada até 1986 e incidiu sobre a camada Chipanga,5 5 Em Moatize foram detectadas seis camadas distintas de carvão com designações e propriedades próprias, sendo a camada Chipanga uma delas. Estudos revelam a forte propriedade física (chega a atingir 32 metros de espessura) e química (se extrai coque de alta qualidade e altos materiais carbonosos para a queima) dos carvões dessa camada. Atualmente, explorado pela empresa Vale, não surpreende que seja o carvão de destaque no mercado global. nome das minas abertas nesse período. Se, em uma primeira fase, o lugar está ancorado ao seu potencial carbonífero, à possibilidade de construção de infraestruturas e vias de acesso com vistas a servir ao capital mineiro, já a partir de 2000 a ideia e materialidade de lugar minerável aparece vinculada ao dispositivo de “desenvolvimento”, que ganhou corpo com a implantação da mina da Vale. Durante a fase de implantação da mina de carvão mineral em Moatize, mais concretamente no dia 27 de março de 2009, a partir da cidade do Rio de Janeiro, a Vale anunciou para o mundo, por meio da sua página oficial, o seguinte:

A Companhia Vale do Rio Doce (Vale) informa que está em curso a construção do projeto Moatize, na província de Tete, Moçambique. Moatize, o primeiro projeto “greenfield” da Vale na África, possui reservas provadas e prováveis de 838 milhões de toneladas métricas, constituindo-se na maior reserva de carvão inexplorada no mundo. Possui carvão metalúrgico de excelente qualidade, do tipo “hard coking coal”, cujo preço de mercado comanda prêmio em relação aos demais tipos de carvão. O projeto compreende investimento de US$ 1,3 bilhão e capacidade nominal de produção de 11 milhões de toneladas métricas (Mt) de carvão, composta por 8,5 Mt de carvão metalúrgico e 2,5 Mt de carvão térmico. Estima-se que o início da produção se dê em dezembro de 2010. […] O projeto da Vale em Moatize envolve também iniciativas dedicadas ao investimento em capital humano (saúde, educação e treinamento profissional), construção de infraestrutura e desenvolvimento de atividade econômica sustentável (fazenda modelo para produção agropecuária) para a geração de emprego e renda para a população local. O modelo adotado é consistente com a prioridade estratégica da Vale na responsabilidade social corporativa e se constitui em novo “benchmark” para o desenvolvimento de projetos no continente africano. (Vale…, 2009VALE desenvolve Moatize. In: VALE. [S. l.]: Vale, 27 mar. 2009. Disponível em: Disponível em: http://www.vale.com/brasil/pt/investors/information-market/press-releases/paginas/vale-desenvolve-moatize.aspx . Acesso em: 31 maio 2021.
http://www.vale.com/brasil/pt/investors/...
, grifo nosso).

O olhar cuidadoso sobre o anúncio anterior revela dados a destacar: i) a existência de quantidades comprovadas de carvão mineral em Moatize constituiu o local como a maior reserva inexplorada de carvão mineral do mundo; ii) as reservas possuem carvão metalúrgico de excelente qualidade, com alto valor comercial em relação à variedade de carvões comercializáveis no mundo; em função disso, iii) a Vale estaria investindo somas vultosas de dinheiro6 6 O valor gasto na construção da mina, cerca de US$ 8,2 bilhões, constitui o maior investimento brasileiro no continente africano até 2015, valor equivalente a mais da metade do PIB anual de Moçambique (Rossi, 2015). para a abertura e exploração da mina e, com isso, pretendendo se tornar, a médio e longo prazo, um dos maiores produtores globais, por meio da mais-valia do negócio com o carvão. Essas projeções foram acompanhadas de um conjunto de performatividades - no sentido literal, como gerador de um determinado efeito ou ação - no terreno, anunciando iv) a construção de infraestrutura mineira, processos de deslocamento compulsório, a criação de projetos de geração de renda e de infraestrutura social (escolas, hospitais, etc.) compensatórios à população afetada pela implantação da mina e pela mineração.

Os pontos referenciados anteriormente revelam o quanto a exploração da mina de carvão em Moatize seria importante para o crescimento econômico da Vale e para essa afirmar a sua robustez no setor mineiro, na esfera empresarial em nível global. Paradoxalmente, o anúncio tem como título “Vale desenvolve Moatize” (2009)VALE desenvolve Moatize. In: VALE. [S. l.]: Vale, 27 mar. 2009. Disponível em: Disponível em: http://www.vale.com/brasil/pt/investors/information-market/press-releases/paginas/vale-desenvolve-moatize.aspx . Acesso em: 31 maio 2021.
http://www.vale.com/brasil/pt/investors/...
, que revela que o regime poder/saber está sendo articulado ao dispositivo da noção de “desenvolvimento”, enquanto técnica de produção econômica, social e cultural do lugar de maneira particular, na medida em que comporta um sentido semântico positivo e desejável a ser instituído sobre uma discursividade negativa existente, axiologicamente construída com base em lógicas, classificações, tipificações, enumerações, condições materiais existentes, formas de habitar o lugar. Melhor dizendo, a percepção de “desenvolvimento” subordinada à instalação da Vale revela uma identidade discursiva e um caráter intervencionista por meio do “desperdício da experiência” (Santos, 2010SANTOS, B. de S. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2010.) das formas de vida, de habitar, do conjunto de experiências, das práticas dos atores e das dinâmicas sociais do lugar que são subsumidos enquanto estratégia “do capital financeiro no processo irreversível de espalhar e especializar o capitalismo” (Gibson; Graham, 1998GIBSON, J.; GRAHAM, K. O fim do capitalismo (como nós o conhecíamos): uma crítica feminista da economia política. Lisboa: Instituto Piaget, 1998., p. 179).

A experiência de campo dos pesquisadores permite explorar outras lógicas do lugar provocadas pelo incremento de projetos de mineração de carvão mineral a partir de 2007, com a concessão de licenças de exploração mineira a duas grandes empresas ligadas ao investimento direto estrangeiro (IDE), a brasileira Vale do Rio Doce, ou simplesmente Vale, e a mina de Benga.7 7 A mina passou por dois processos de concessão: inicialmente, pertencia à Riversdale (2009-2010), empresa australiana que obteve sua concessão em 2009; mais tarde, em 2011, a empresa Rio Tinto adquire na totalidade a mina de Benga e outros ativos da Riversdale, tendo explorado a mina até 2014. A partir de 2015, 65% da mina é vendida ao consórcio indiano International Coal Ventures Private Limited (ICVL). Além dessas, que iniciaram a exploração mineira em 2011, o aumento de pedidos e de concessões mineiras a diferentes empresas no seu conjunto consubstanciam a materialidade do lugar minerável, colocando a “mineração” como o “acontecimento” mediado e articulado ao dispositivo de desenvolvimento que opera por meio de processos de classificação em que os “corpos [suas relações com o entorno e formas de habitar] são contados, homogeneizados e cerceados na sua extensão” pela mineração (Appadurai, 2008APPADURAI, A. A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2008., p. 179).

Não obstante a “legitimidade” concedida à ideia de lugar minerável com base em diferentes dispositivos, os distintos padrões de mobilização social e as gramáticas de contestação em torno dos efeitos socioambientais ocasionados por empreendimentos mineiros e suas formas de operação, os diferentes segmentos afetados pela mineração, ao colocarem em pauta seu conjunto de práticas e sua trama de relações, revelam o caráter viciado da lógica mineira - assumida pelo Estado, implementador de políticas públicas, e pela empresa, ator empreendedor - de construir e significar o lugar, pois a mineração constitui uma

força de assalto às bases de subsistência de comunidades que haviam mantido certo grau de autonomia [ante o atual estágio de mendicidade instalado]. Por outro lado, o Estado abdicou de seu papel de vetor central da modernização a favor de um mercado capitalista que empurrou a gente a se arranjar por si só e como puderem. (Aparicio; Blaser, 2018APARICIO, J. R.; BLASER, M. La “ciudad letrada” y la insurrección de saberes subyugados en América Latina. In: SOLANO, X. L. et al. Prácticas otras de conocimiento(s): entre crisis, entre guerras: tomo 1. Chiapas: Cooperativa Editorial RETOS, 2018. p. 104-134., p. 112, tradução nossa, grifo nosso).

Tomando-se como arcabouço a materialidade, as ações e os usos sociais, o lugar constitui uma produção intencionada ou não da diversidade de atores com diferentes linhas, movimentos, sentidos, trajetos, projeções e relações multidirecionais que coexistem - pacificamente ou não - e onde seus “habitantes se encontram, trilhas são entrelaçadas, conforme a vida de cada um vincula-se à do outro” (Ingold, 2015INGOLD, T. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2015., p. 219). Seguindo essa concepção, o lugar constitui um âmbito de (co)existência de trajetos, afinidades, identidades, alteridades, conflitualidades e diferenças, razão pela qual “é no lugar que vemos emergir territórios, onde identidade e diferença se confrontam e se relacionam, mediadas pela materialidade, onde as diferentes formações de espaço negociam sua primazia e os sentidos atribuídos à materialidade e aos outros” (Turra Neto, 2015TURRA NETO, N. Espaço e lugar no debate sobre território. Geograficidade, [s. l.], v. 5, n. 1, p. 52-59, 2015., p. 55).

A proposição de Bruno Latour (2013)LATOUR, B. Investigación sobre los modos de existencia: una antropología de los modernos. Buenos Aires: Paidós, 2013., com vistas à restituição “dos seres da metamorfose”, constitui o ponto de partida para o questionamento da lógica mineral como o único modo de existência. O que interessa destacar diante da lógica mineira é o rastreamento de suas agendas no lugar e os fins sociotécnicos que ela cumpre. Para tal, a noção latouriana de “caderno de encargos”, no sentido de avaliar, para “cada tipo de seres [articulado à ideia de lugar]”, suas “exigências essenciais” (Latour, 2013LATOUR, B. Investigación sobre los modos de existencia: una antropología de los modernos. Buenos Aires: Paidós, 2013., p. 182, tradução nossa, grifo nosso), cumpre uma função essencial ao desmantelar a instituição de valores e formas de ser mineira do lugar. Esses valores e formas estão vinculados à operacionalização das técnicas de planejamento que se fazem acompanhar da destituição de outras formas de ser, da “materialidade que deve ser combatida”, no sentido de que buscam reduzir o todo à parte, pois a bacia carbonífera - o carvão mineral visibilizado - é parte da diversidade de elementos não antrópicos e da trama de relações mais que humanas de habitar o lugar, enquanto pertencente ao vale do rio Zambeze. No sentido de restituir o lugar e sua ordem do mundo, segue-se a descrição a partir de experiências e do conjunto de práticas humanas - e sua associação com os não humanos - dos interlocutores afetados pela mineração.

Os processos de instalação e desenvolvimento da mineração a céu aberto das empresas Vale e Riversdale (2007-2010) levaram ao reassentamento de cerca de duas mil famílias (a Vale com 1.365 e a mina de Benga com 679), e a um número não especificado de famílias que aderiram a outras formas de compensação para além do reassentamento (indenização total ou parcialmente assistida para a compra/construção de uma casa, pagamento em valor monetário, por exemplo). De acordo com o censo populacional de 2007, a média de pessoas por família na província de Tete era de 4,8 pessoas por agregado familiar, e a taxa de crescimento anual era de 4,2 % (Instituto Nacional de Estatística, 2010INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA. 3º recenseamento geral da população e habitação 2007: indicadores sócio-demográficos: Província de Tete. Maputo: Gabinete Central de Recenseamento, 2010.). O processo afetou cerca de 10 mil pessoas que, na sua maioria, não tinham um emprego formal e outros serviços ditos essenciais/básicos de saúde, educação, água potável, eletricidade. Todavia, devido às disposições do lugar permitirem práticas heterogêneas de diferentes atividades de subsistência, isso lhes possibilitou ter ou recorrer a bens e serviços de outros modos e meios para além do formal, tendo em conta a diversidade de “recursos” e o conjunto de relações possíveis com o ambiente.

A entrada em funcionamento dos projetos de mineração ocorreu posteriormente ao deslocamento compulsório de famílias localizadas na zona de influência direta dos empreendimentos da Vale e da mina de Benga. Contudo, os locais de reassentamento revelam diferenças morfológicas em relação ao local de proveniência, ligadas à proximidade dos principais braços e afluentes de zonas baixas dos rios Rovúbuè e Moatize. A localização dos assentamentos originários da população demonstra de maneira implícita que o rio Zambeze, seus afluentes e a vasta rede de ecossistemas variados, fauna, flora, entre outros, são parte estruturante do distrito de Moatize, onde estão localizadas as jazidas de carvão mineral. A bacia do rio Zambeze é a quarta maior bacia hídrica do continente africano e sua abrasadora diversidade de elementos não antrópicos propicia a prática de atividades agrícolas, pesca, caça, criação de animais, produção de carvão vegetal, lenha e outras práticas ecológicas de pequeno e médio porte levadas a cabo pela população, baseadas na combinação de diversas formas de conhecimento ocasionadas por encontros sociais historicamente constituídos e por uma rede descentralizada de comunidades locais, de instituições públicas ao redor do seu núcleo central, a vila de Moatize.

De um modo geral, a região é estruturada pelo rio Zambeze. O vale é um dos “recursos naturais” mais diversificados e valiosos do continente africano. Tal diversidade é referente ao rio e à sua densa rede de afluentes e ecossistemas integrados, que envolvem água, solos, florestas, vida selvagem que permitem que a bacia desempenhe papel relevante e vital para milhões de pessoas ao seu redor, contribuindo para a segurança alimentar e nutricional da população. Todavia, o atual cenário de crescimento do parque industrial e a rápida urbanização aumentam a pressão sobre os “recursos” existentes, tendo efeitos socioambientais profundos sobre a continuidade de formas de habitar das minorias sociais, sobretudo de “mulheres, homens e crianças que têm diferentes níveis de capacidade, habilidades e capacidade de adaptação devido a diferentes papéis, oportunidades e acesso aos recursos” (Comissão do Curso de Água do Zambeze; Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral; Centro de Documentação e Pesquisa da África Austral, 2015COMISSÃO DO CURSO DE ÁGUA DO ZAMBEZE; COMUNIDADE PARA O DESENVOLVIMENTO DA ÁFRICA AUSTRAL; CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO E PESQUISA DA ÁFRICA AUSTRAL. Perspectiva ambiental no vale do rio Zambeze. Harare: [s. n.], 2015., p. 1).

Com o deslocamento compulsório como denominador comum das ações de protesto das populações afetadas pelas empresas, não é possível seguir com a vida que vinham levando, o que os interlocutores verbalizam dizendo: “Lá [de onde foram deslocados] tínhamos experiência de fazer muitas coisas”:

Pesquisador: Por que muito tempo depois, há mais de cinco anos que vocês foram reassentados aqui, sempre se fala de onde vocês vêm, onde a empresa explora carvão atualmente?

Reassentado de Capanga: Posso dizer uma coisa? Uma mulher, quando se casa, está proibida de pensar na casa dos pais? Se ela estivesse bem lá onde se casou, não ia pensar sempre lá na casa de onde saiu, mas como não está bem, o coração está sempre a pensar em casa do pai e da mãe?

Pesquisador: Então, o que está a acontecer aqui, é igual ao casamento?

Reassentado de Capanga: Faz de conta, casamos e estamos a pensar sempre na nossa casa, lá de onde nos tiraram.

Pesquisador: Mas a empresa já está explorando carvão…

Reassentado de Capanga: Faz de conta, lá era nossa empresa […], lá nós tínhamos experiência de fazer muitas coisas, alguns estavam a se dedicar mais na machamba,8 8 Equivalente à roça no português do Brasil. Pequena área de terra, geralmente utilizada de forma familiar, com produção de alimentos para consumo da família, eventuais trocas e/ou comércio. outros se inclinavam na brita, criavam animais, catavam e vendiam terra, pescavam produziam verduras para vender.

Pesquisador: …e tijolos?

Reassentado de Capanga: Tijolos não posso mentir, os de Chipanga [reassentados pela Vale] é que faziam mais. (Excerto de conversa de campo, junho de 2018).

Capanga, local onde residia o interlocutor, antes de ser reassentado pela mina de Benga, em 2010, localiza-se numa das margens do rio Rovúbuè, um dos afluentes do rio Zambeze, e tem histórico de associativismo agrícola. O interlocutor acima integrava a Associação Integral de Capanga, com parte de seus produtos comercializados na cidade de Tete e na vila de Moatize. Com a abertura da mina de Benga, os associados perderam seu local de produção, seus membros se dispersaram e disputaram entre si o bolo maior do valor da indenização. Apesar de terem solicitado e recebido vários apoios para continuar com as atividades praticadas outrora em outro local, não conseguiram ter êxito, por causa de um conjunto de fatores de ordem física do lugar (por exemplo, rios e disponibilidade de terra para a criação de gado e para o cultivo de hortícolas).

A menção ao fato de “fazer muitas coisas”, na fala do interlocutor, revela a diversidade de práticas e outros lugares de enunciação de parte de nossos interlocutores, entre eles oleiros, curandeiros, carvoeiros, lenhadores, agricultores, pescadores, artesãos, funcionários públicos e/ou privados, etc., mostrando que não se trata de “uma região [lugar] abandonado pelo capital, mas de uma região [lugar] composto de numerosos exemplos de economias alternativas comunitariamente constituídas e uma visão promissora com suas potencialidades” (Gibson-Graham, 2011GIBSON-GRAHAM, J. K. Una política postcapitalista. Medellín: Siglo del Hombre Editores, 2011., p. 312-313, tradução nossa). O lugar propiciava o desenvolvimento de práticas feitas em série e em paralelo, ao mesmo tempo que em tais práticas havia a proximidade e o afastamento do rio, morro, mata, argila, proximidade com coletivos humanos, entre outros. Ademais, a fala do interlocutor permite explorar o que se pode chamar de “divisão espacial e especial do trabalho” enquanto reconhecimento de que outras atividades ocorriam com mais intensidade em outros locais, como a olaria em Chipanga, a produção de cereais como mapira (espécie de sorgo produzida no vale do Zambeze) e a mexoeira (Pennisetum glaucum, cereal nativo da África) em Malabué e Mithethe, onde se localizavam comunidades reassentadas pela Vale.

A pluralidade de atividades de subsistência desenvolvidas pela população antes do seu reassentamento revela que o lugar era performado por uma ontologia econômica da diferença, as “economias diversas” caracterizadas por diferentes formas de trabalho (não necessariamente assalariadas), formas de transação (não necessariamente mercantis) e empresas (não necessariamente capitalistas) (Gibson-Graham, 2008GIBSON-GRAHAM, J. K. Diverse economies: performative practices for ‘other worlds’. Progress in Human Geography, [s. l.], v. 32, n. 5, p. 1-20, 2008., 2011GIBSON-GRAHAM, J. K. Una política postcapitalista. Medellín: Siglo del Hombre Editores, 2011.). Ocasionada pela diversidade de “bens naturais” no seu conjunto, a noção de vale do rio Zambeze permite captar o potencial de levar uma vida autônoma com o controle de áreas-chave da vida social, algo além da visão instrumental da natureza e da exploração desenfreada do carvão mineral como simples acessório, refletindo a diversidade de elementos não antrópicos e as dinâmicas sociais heterogêneas como a existência/continuidade do cordão umbilical entre sociedade e natureza.

Através da noção de “cadernos de encargos” e seu compromisso ontológico sugerido por Latour (2013)LATOUR, B. Investigación sobre los modos de existencia: una antropología de los modernos. Buenos Aires: Paidós, 2013., a instituição do lugar minerável constitui uma forma atomizada, bipolarizada e desestruturante do lugar, na medida em que a mineração em curso implica dissolver - ao mesmo tempo que intensifica os laços intrínsecos entre sociedade-natureza - a pretensão de retirar e transformar os locais de uso comum, a vegetação, a paisagem, os rios, as relações, entre outros “bens naturais”. O lugar, além de passar por processos de desocupação humana, se tornaria chão aberto para a retirada de carvão, acumulação de rejeitos, destroços vegetais e, em função da lógica mineira, outras formas de lugar tendem a “não [serem] descritas, mas condenadas, pois têm o efeito de diminuir aquilo que o livre mercado maximiza” (Stengers, 2018STENGERS, I. A proposição cosmopolítica. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, [s. l.], n. 69, p. 442-464, abr. 2018., p. 454).

A potência de uma abordagem que inicia mostrando o lugar como espaço pretensamente capturado pelas malhas do capitalismo e sua negatividade mediante a lógica do capital transnacional consiste em mostrar, num primeiro momento, a monstruosidade desse ator transnacional, sua “vontade de poder” e suas controvérsias, na medida em que “a saúde do corpo econômico não equivale à sanidade social, pois as suas ações têm produzido feridas aos outros” (Gibson-Graham, 2011GIBSON-GRAHAM, J. K. Una política postcapitalista. Medellín: Siglo del Hombre Editores, 2011., p. 126, tradução nossa). O conjunto de práticas instituídas, mais do que vinculativo do modo de produção, está atrelado ao “modo de subjetividade, modo de vida” essencial ao modo de produção em questão. No limite, o que está em jogo com a indução das práticas é “uma forma de pensar, de fazer o mundo e do humano” (Laval; Dardot, 2018LAVAL, C.; DARDOT, P. El ser neoliberal. Barcelona: Gedisa, 2018., p. 15, tradução nossa), vinculada ao modo de ser que leva ao “desperdício da experiência” e de sua vasta rede de relações sociais, econômicas, políticas e às múltiplas maneiras de habitar o lugar que escapam, como o ser curandeiro, oleiro, artesão, construtor, catador de caniço, pescador, lenhador, carvoeiro, comerciante (in)formal, etc., maneiras essas classificadas como desemprego, na lógica capitalista; ademais, vale referir que, no lugar, tais práticas podem ocorrer combinadas em simultâneo, sazonalmente e/ou serem combinadas ao emprego na esfera pública ou privada.

Não obstante a “captura do lugar” (Stengers, 2018STENGERS, I. A proposição cosmopolítica. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, [s. l.], n. 69, p. 442-464, abr. 2018.) pela mineração ligada ao contexto da “guerra econômica” e a sua associação ao dispositivo de “desenvolvimento”, há que se ter em conta que as práticas de subversão de tal captura estão sempre à espreita, ganhando corpo nas ações e gramáticas de contestação social apresentadas pela população afetada pelas mineradoras, que, de tempos em tempos, rebela-se, abandona as casas onde foi reassentada, contesta a falta de serviços sociais básicos, a perda de terras de cultivo e de plantas medicinais, de produção de lenha e carvão, da terra argilosa, do desvio de riachos e locais de uso comum. Esses atores estão constantemente a negociar uma nova pauta com as empresas e/ou governo, ao mesmo tempo que pautas antigas são renegociadas sob novas concepções e percepções que as comunidades vão adquirindo. Simultaneamente, a população conquista e/ou perde batalhas e tenta reviver as memórias do seu passado antes da mineração, porque nas novas formas de viver, tudo depende de dinheiro:

Aqui [onde foi reassentada pela empresa Vale S.A.] temos água de fatura [boleto]; bebe muita água ou se está a tomar muito banho, fim do mês também a conta de água irá subir […]. Temos medo de tomar banho e dar água de beber às pessoas porque fim de mês não vamos conseguir pagar a fatura de água. Em Chipanga [onde foi deslocada compulsoriamente pela empresa Vale S.A.] não era assim, os que não tinham dinheiro para pagar iam no rio tomar banho e voltavam para sua casa com lata de água na cabeça […], lá comia o que a pessoa estava a querer, dependia da força que a pessoa tinha para trabalhar. Está a ver, estamos a lutar como criança para não tirar amendoim; em Chipanga ia comer isso até ficar cansado porque eu cultivava na machamba. (Excerto de conversa de campo, maio de 2018).

O trecho acima desvela uma forma de consolidar a plenitude do lugar e o compromisso ontológico de habitar o vale do Zambeze como “experiência e uma memória ativas, compartilháveis, criadoras de exigências políticas” (Stengers, 2018STENGERS, I. A proposição cosmopolítica. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, [s. l.], n. 69, p. 442-464, abr. 2018., p. 452). Nesse sentido, o que se encontra em jogo não são perspectivas diversas acerca de um mesmo lugar, tampouco construções sobre um passado - alternativo - que não existiria mais; o que se encontra em disputa é, precisamente, “diferentes versões, diferentes performances, diferentes realidades que coexistem no presente” (Mol, 2008MOL, A. Política ontológica: algumas ideias e várias perguntas. In: ARRISCADO NUNES, J.; ROQUE, R. Objectos impuros: experiências em estudos sociais da ciência. Porto: Afrontamento, 2008. p. 63-78., p. 68). Portanto, as constantes reivindicações, renegociações e as distintas pautas acionadas pelos afetados - retirados de seus modos e mundos de vida e inseridos residualmente no “desenvolvimento” - ao mesmo tempo que permitem que suas formas de habitar o lugar não sejam desonradas, não caiam no esquecimento, demonstram que os atores, mais do que beneficiários do “discurso de desenvolvimento”, se tornaram sacrificados pelo mesmo, pois não só perderam as bases de subsistência, mas seus mundos.

Em Araxá, Minas Gerais, o lugar minerável não possui uma longevidade histórica secular, nem se consolida a partir de formas e lógicas de mineração antecedentes, tal como Moatize. A mineração é uma prática recente (relativamente à Moatize); ainda assim, atores vinculados a ela acionam a narrativa da excepcionalidade, da “montanha mágica” que tornaria, a partir de seu “descobrimento”, as existências do lugar dependentes da exploração de nióbio. As narrativas colhidas na experiência dos atores, inscritas em suas memórias, corpos e vozes que remontam ao “antes da descoberta do nióbio”, seguindo com a instituição da mineração e toda a sua arquitetura de sentido (infraestruturas, indicadores socioeconômicos, narrativas, entre outros), revelam que a noção do lugar, calcada nas (escre)vivências dos atores, está sujeita a práticas e encontros (in)desejados, cuja dinâmica permite configurar certo tipo de conflito ambiental, como se pode ver a seguir.

Araxá: mineração e seus modos de performar o lugar

O município de Araxá localiza-se na mesorregião do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, em um espaço geográfico compreendido entre o rio Paranaíba (fronteira com Goiás), o rio Grande (fronteira com São Paulo), a confluência desses rios (formando um vértice) e as serras da Mata da Corda e da Canastra (Lima, 2015LIMA, G. O diamante líquido: história, memória e turismo na cidade balneária de Araxá. Uberlândia: EDUFU, 2015.). Conforme a historiografia do lugar, o nome Araxá tem sua origem no tupi-guarani, significando “lugar elevado” ou, ainda, “lugar onde primeiro se avista o sol”. O termo também é utilizado para identificar grupos indígenas - denominados de araxá ou arachá - que, conforme a narrativa oficial, teriam no passado se estabelecido na região. Tendo em 2021 uma população estimada em torno de 108 mil habitantes (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, [2022]INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Araxá. Panorama. In: IBGE. [S. l.]: IBGE, [2022]. Disponível em: Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/araxa/panorama . Acesso em: 10 maio 2022.
https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/ar...
), Araxá está entre os primeiros núcleos de ocupação colonial do então denominado Sertão da Farinha Podre, ainda no século XVIII, e foi elevada à condição de cidade em 1865.

Ao contrário de Moatize e outros lugares de Minas Gerais, Araxá não teve sua ocupação no período colonial atrelada a atividades de exploração mineral. Até meados da década de 1950, o que se mostrava presente no município eram outras práticas, ligadas às águas minerais (majoritariamente sulfurosas e radioativas), assim como à agropecuária. As águas minerais de Araxá encontram-se na região do Barreiro, distante cinco quilômetros do centro da cidade. Historicamente, as águas atraíram o gado, em razão do sódio presente em sua composição, assim como grupos humanos que as consideraram curativas e milagrosas (Lima, 2015LIMA, G. O diamante líquido: história, memória e turismo na cidade balneária de Araxá. Uberlândia: EDUFU, 2015.), tornando o lugar, no início do século XX, uma estância hidromineral com a presença de hotéis luxuosos, nos quais se podiam usufruir diferentes banhos e receituários de consumo dessa água.

Apesar dessas práticas estarem presentes em Araxá há décadas, chama a atenção, contudo, o modo como o lugar passa a ser performado a partir da descoberta do nióbio e das atividades de mineração. Ao se estar no município é possível encontrar referências às empresas mineradoras em diferentes espaços e artefatos, como placas indicando o patrocínio a obras de infraestrutura, menções de agradecimento em prédios públicos, sinalizações sobre a presença de barragens ou áreas de acesso restrito das empresas, projetos de educação ambiental e preservação de espaços verdes da cidade, entre outros. Para os objetivos deste artigo, são destacados três aspectos - intimamente relacionados - que compõem o modo de performar o lugar pela mineração: i) a descoberta do nióbio como sendo a certidão de nascimento de Araxá; ii) a afirmação de Araxá como um município mineiro de indicadores socioeconômicos melhores que os demais; e iii) o “confinamento” das práticas de lazer e terapêutica associadas às águas do Barreiro como algo do passado.

A descoberta da mina de nióbio deu-se em 1953 pelo geólogo brasileiro Djalma Guimarães, na mesma região onde se encontram as águas sulfurosas e radioativas. Um pouco antes, a presença de fosfato também havia sido constatada, em uma mina ao lado da de nióbio.9 9 Enquanto a mina de nióbio manteve-se ao longo das décadas sob o domínio de uma mesma empresa, a de fosfato teve diversos “proprietários” (Arafértil, Bunge, Vale Fertilizantes e, atualmente, Mosaic Fertilizantes). Dois anos após a descoberta do nióbio, foi fundada a Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração (CBMM), com o objetivo de realizar a sua exploração. Em 1961, as atividades de lavra e produção foram iniciadas e, em 1965, o grupo Moreira Salles assumiu o controle majoritário da companhia.10 10 A mina de nióbio é, legalmente, propriedade da União. Por contrato, a mina encontra-se dividida em duas: uma parte da CBMM e outra da Companhia Mineradora do Pirocloro de Araxá (Comipa), empresa estatal que é parte da atual Companhia de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais (Codemig). O pirocloro é o mineral ao qual o nióbio está associado na mina de Araxá. A lavra é feita igualmente nos “dois lados”: enquanto a Comipa é responsável pela extração do nióbio, a CBMM é responsável pelo beneficiamento, produção e comercialização do mineral. Do lucro líquido obtido pela CBMM com suas atividades, 25% são destinados à empresa estatal. Conforme dados do relatório de sustentabilidade (Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração, 2019COMPANHIA BRASILEIRA DE METALURGIA E MINERAÇÃO. Relatório de sustentabilidade. [S. l.]: CBPM, 2019. Disponível em: Disponível em: https://cbmm.com/assets/sustainability-report-2019/pdf/CBMM-Relatorio-de-Sustentabilidade-2019.pdf . Acesso em: 1 fev. 2020.
https://cbmm.com/assets/sustainability-r...
) da empresa, o volume estimado de pirocloro na mina a céu aberto de Araxá é de 829 milhões de toneladas, contendo um percentual médio de 2,5% de nióbio, o que confere ao subsolo do Barreiro a mais alta prevalência de nióbio conhecida no planeta.

Referindo-se à comemoração realizada em 2003 pelo 50º aniversário da descoberta do nióbio, um geólogo aposentado da CBMM - ocupante de diferentes cargos de gerência na empresa ao longo de 30 anos - definiu da seguinte forma o acontecimento:

Só para você ter ideia, quando fez 50 anos da descoberta, eu chamei o cara que determinou o elemento, o nióbio, pela primeira vez em Araxá, plantei uma árvore com ele, ele nos deu a certidão de nascimento de Araxá, que ele tirou da gaveta, “isso aqui foi em 10 de março de 1953”, ele nos deu de presente a certidão de nascimento. (Trecho de entrevista, 2020).

A afirmação de que o município nasceu com o nióbio exerce um efeito significativo para demarcar a exploração mineral como sendo aquilo que faz existir Araxá. Nessa perspectiva, Araxá, nióbio e CBMM enredam-se, ainda que o efeito produzido não seja de uma “unidade”, mas sim de relações marcadas pela colonialidade, na qual a CBMM passa a ser, conforme fala recorrente na cidade, a “mãe de Araxá” e, simultaneamente, conforme a empresa, aquela que “adotou” o nióbio para si. Como declarou o ex-diretor-geral da CBMM (que permaneceu no cargo de 1974 a 2004), “quando conheci o nióbio, ele dormia em um berço a céu aberto, envolto em um corpo mineral chamado pirocloro. Como todo o subsolo brasileiro, ele é filho biológico da União, mas foi adotado pela CBMM na década de 1950 e por mim a partir de 1974” (Vannuchi, 2007VANNUCHI, C. Memórias de um vendedor de nióbio: José Alberto de Camargo e a CBMM - trinta anos de desafios e conquistas. São Paulo: Camilo Vannuchi, 2007., p. 43).

Como apresentado na seção anterior, no caso de Moatize, a exploração econômica das jazidas de carvão possui um percurso histórico longínquo, com uma diversidade de fases e modos de operar. A presença inicial de uma mineração subterrânea, até meados da década de 1980, e a mineração a céu aberto, a partir de 2007 até a atualidade, conformou dinâmicas e efeitos socioambientais distintos. Com a mineração subterrânea puderam coexistir práticas que não operam sob o mesmo pressuposto ontológico (formas outras de trabalho, saúde, transação, etc.). Já a mineração a céu aberto, dominada pela empresa Vale, foi acompanhada de processos de anormalização, erradicação e assalto às formas precedentes de habitar o lugar. Atrelado a isso se tem a bacia de carvão como parte integrante do vale do rio Zambeze, sendo um bem natural diante de outros disponíveis, os quais permitem a multiplicidade de relações socioambientais e possíveis encontros/interpelações humanas e não humanas.

Já no caso de Araxá, não havia atividade significativa de exploração mineral até a descoberta do nióbio em 1953. Ainda assim, a data de descoberta do minério é referenciada na fala de atores envolvidos com sua exploração como sendo a “certidão de nascimento da cidade”. O enclausuramento pretendido se estabelece, dessa forma, a partir de uma tentativa de apagamento do que havia antes da mineração e, ao mesmo tempo, da estabilização da prática como o único “destino” possível, silenciando o que segue sendo com ou a despeito da atividade mineira. Da mesma forma, o enclausuramento vai se expressar em uma prática compartilhada na cidade de nomear a companhia mineradora de nióbio como a “mãe de Araxá” - aludindo a uma dependência econômica do lugar à atividade -, junto à afirmação de que “ela poderia ajudar muito mais” ou, de modo mais dramático, à vinculação de sua existência a processos de contaminação das águas e destruição ambiental.

Como bem ressalta Doreen Massey (2015)MASSEY, D. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2015., ao lidar, na prática, com a negociação e heterogeneidade dos lugares, é preciso fugir do romantismo de supor um lugar sem variações e geometrias de poder. Nesse sentido, considera-se que nomear a presença da empresa pelos elementos mencionados anteriormente, longe de se tratar de uma simples retórica, elucida lógicas de poder que se mostram intrínsecas ao modo como a empresa opera e vincula-se aos humanos e não humanos daquele lugar. Ademais, ou precisamente por ligar-se a geometrias de poder - ainda que contingentes -, a própria nomeação da empresa como a “mãe de Araxá” é também objeto de tensionamentos que expressam posições ambíguas acerca do que se espera da empresa e do que também excede a sua presença no lugar.

A busca por “fazer existir” Araxá a partir da mineração produz a consolidação de uma narrativa local acerca de uma dependência mineral dada. Como relatou um engenheiro aposentado da mineradora de fosfato, “Araxá é uma cidade agradável do jeito que é, por causa da mineração […]. Se Araxá não tivesse as mineradoras, seria uma outra cidade” (trecho de entrevista, 2020). A “outra cidade” é, na narrativa dos atores da mineração, a cidade do não desenvolvimento, da falta de infraestrutura, da falta de empregos e de eventos culturais. Em síntese, um lugar ausente de futuro. Ademais, a narrativa em questão não circula apenas entre trabalhadores da mineração, mas também em matérias de jornais, em discursos proferidos na Câmara Municipal, em placas fixadas em prédios e obras públicas e em falas corriqueiras de moradores que não necessariamente vinculam-se às atividades de mineração.

Dentre o material documental coletado, um exemplo emblemático é a matéria publicada em 2013 pela revista Exame, intitulada “Vida feliz na CBMM - o bônus foi de nove salários para todos”. De expressiva repercussão na época, a matéria afirma que “enquanto o Brasil lamentava o ‘pibinho’ de 2012, a mineradora CBMM teve um ano ótimo. Cada um dos 1.800 funcionários ganhou nove salários de bônus. É o milagre do nióbio” (Loureiro, 2013LOUREIRO, M. Vida feliz na CBMM - o bônus foi de 9 salários para todos. Exame, [s. l.], 22 fev. 2013. Disponível em: Disponível em: https://exame.abril.com.br/revista-exame/a-magica-da-montanha-da-cbmm . Acesso em: 1 ago. 2018.
https://exame.abril.com.br/revista-exame...
). A referência a uma “vida feliz” em Araxá, advinda de práticas de trabalho que contrastariam com o restante do país - inclusive com experiências de outras empresas mineradoras -, assim como a afirmação de um “milagre do nióbio” não são arbitrárias. Elas se inserem em uma intensa produção de um ideário de “excepcionalidade” e “magia” do nióbio de Araxá, que levaria a uma situação onde “todos ganham” e onde o desejo por trabalhar na CBMM se imporia como natural.

Para compor a existência de um desenvolvimento/progresso em razão da mineração, há a mobilização de indicadores - “a renda per capita é alta”, “o PIB é elevado”, “o IDH é acima da média” - que sustentariam uma posição diferenciada de Araxá em relação a outros municípios do estado e conformariam uma identidade que se pretende unívoca e inquestionável.11 11 Tratando-se da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM) - comumente conhecida como os royalties da mineração -, Araxá ficou em 20º lugar entre os municípios que mais arrecadaram em Minas Gerais, segundo dados da Agência Nacional de Mineração (2020). Do mesmo modo, conforme dados de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do município encontra-se na 14ª posição no estado (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, [2021a]). Por fim, segundo dados de 2019, o Produto Interno Bruto (PIB) do município manteve-se na 17ª posição entre os municípios do estado (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, [2021b]), enquanto o PIB per capita não figurou entre os 20 maiores (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, [2021c]). Como aponta Sally Merry (2011)MERRY, S. Measuring the world: indicators, human rights, and global governance. Current Anthropology, [s. l.], v. 52, n. S3, p. S83-S95, Apr. 2011., o estabelecimento dos números como uma descrição objetiva da realidade, que se encontraria fora da interpretação, é um projeto da modernidade. A confiança em representações numéricas simplificadas para o diagnóstico de fenômenos complexos, segundo a autora, teve início com estratégias de governança nacional e análise econômica e migrou, recentemente, para esferas sociais mais amplas, produzindo efeitos decisivos no modo como um determinado conhecimento técnico ocupa o lugar do debate político.

Nesse sentido, cabe questionar-se: os números abarcam a totalidade do lugar? O que se encontra para além da métrica econômica? O que permanece sendo, mesmo quando não está contido, mesmo quando não é lembrado? Nesse ponto destaca-se que, se, por um lado, métricas econômicas são recorrentemente mobilizadas para legitimar a presença da mineradora, por outro, as mesmas métricas são acionadas para destacar que, com toda a riqueza produzida a partir do nióbio, “a empresa poderia ajudar muito mais Araxá”. Ou, ainda, que as atividades de extração mineral devem existir, desde que não firam a existência de outras práticas presentes no lugar. Como declarou uma agricultora que reside ao lado de uma das mineradoras da cidade, “a gente precisa do nióbio, a gente precisa da mineração de fertilizantes. Eu sou agricultora, eu preciso de fertilizantes. Mas eu preciso dele adequado, não destruindo uma parte para acudir outra, isso não adianta” (trecho de entrevista, 2020).

Segundo Massey (2000)MASSEY, D. Um sentido global do lugar. In: ARANTES, A. A. (org.). O espaço da diferença. Campinas: Papirus, 2000. p. 176-185., a conceituação de lugar deve partir de sua consideração como sendo não estático, sem fronteiras no sentido de divisões demarcatórias e sem “identidades” únicas ou singulares (estando cheio de conflitos internos), o que, destaca a autora, não retira a singularidade/especificidade de um lugar. Nas suas palavras,

[…] o que é especial sobre o lugar é, precisamente, esse acabar juntos, o inevitável desafio de negociar um aqui-e-agora (ele mesmo extraído de uma história e de uma geografia de “entãos” e “lás”), e a negociação que deve acontecer dentro e entre ambos, o humano e o não humano. (Massey, 2015MASSEY, D. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2015., p. 203).

Assim, o lugar torna-se potente para pensar as práticas e o encontro de atores que, não necessariamente, possuem “identidades territorializadas”. Sua especificidade residiria no fato de que o lugar se constrói a partir de uma constelação particular de relações sociais que se encontram e se entrelaçam em um locus particular, e não na presença de uma história longa e internalizada. Ou seja, o que a autora propõe é tratar o lugar como um locus de encontro que, segundo sua perspectiva, envolve humanos e não humanos, uma vez que estes últimos têm, também, “suas trajetórias, e a contingência do lugar exige, não menos do que dos humanos, uma política de negociação” (Massey, 2015MASSEY, D. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2015., p. 228).

Ao tratar da noção de performance, Mol (2018MOL, A. Corpos múltiplos, ontologias políticas e a lógica do cuidado. Uma entrevista com Annemarie Mol. Interface, [s. l.], v. 22, n. 64, p. 295-305, 2018., p. 297) destaca que a potência do seu uso está em considerar que “o presente em si está e permanece instável. Há o aqui e o agora, em que fazendo, doing, acontece, mas não é explicado pelo o que aconteceu antes. Existem padrões e rotinas, mas sempre há a possibilidade de surpresas”. Algo que, nos casos aqui analisados, expressa-se pelos encontros que se produzem com e a partir da mineração, seja por um passado que se refaz constantemente, seja por um presente que se engendra por múltiplas práticas e ontologias. O encontro, porém, não pressupõe a ausência de conflito.

Dialogando com Bruno Latour (1998)LATOUR, B. Ein Ding ist ein Thing: a (philosophical) platform for a left (European) party. Concepts and Transformation, Amsterdam, v. 3, n. 1/2, p. 97-112, 1998., Massey (2015)MASSEY, D. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2015. destaca que o autor se refere à existência, na atualidade, de “novas obrigações da coexistência”, sem enfatizar a conformação e a inevitabilidade do conflito. Para Massey (2015MASSEY, D. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2015., p. 211), “o que está em questão é o processo constante e conflituoso da constituição do social tanto humano quanto não humano” e a necessidade de uma política que leve em conta o fato de que “entidades e identidades (sejam lugares, clientelas políticas ou montanhas) são produzidas, coletivamente, através de práticas que formam relações, e são essas práticas e relações que a política deve focalizar” (Massey, 2015MASSEY, D. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2015., p. 212).

No caso de Araxá, a conformação e inevitabilidade do conflito podem ser melhor evidenciadas pelo terceiro aspecto que compõe o modo como o lugar é performado pela mineração, qual seja, a constante tentativa de “confinar” as práticas de lazer e terapêutica associadas às águas do Barreiro como sendo algo do passado. Conforme Glaura Lima (2015)LIMA, G. O diamante líquido: história, memória e turismo na cidade balneária de Araxá. Uberlândia: EDUFU, 2015., Araxá começou a moldar-se como uma cidade balneária entre as décadas de 1920 e 1940, por meio da articulação de antigas práticas de cura do lugar a um ideário médico-higienista em expansão no período. Engenheiros, administradores, médicos, empresários, banhistas e trabalhadores em geral conformaram o Barreiro como um lugar de hotéis, consultórios médicos, fontes, casas de banhos, praças e jardins, que recebia visitantes em busca de repouso e tratamento para doenças diversas. As águas de Araxá, conforme a autora, foram consideradas um “diamante líquido”, tendo sido recorrentemente comparadas às águas de cidades termais europeias. Como símbolo da construção da estância hidromineral, tem-se a edificação do Grande Hotel, em 1944, por Getúlio Vargas, em funcionamento até hoje. À obra luxuosa vincularam-se famílias de trabalhadores que passaram a residir no seu entorno, em terrenos cedidos na época pelo Estado.

A presença dessas famílias no Barreiro teve fim em 2008, quando uma situação conflitiva deflagrada pela constatação de um nível elevado de bário nas águas que abasteciam as casas fez com que a prefeitura retirasse todos os moradores do lugar (Pinto et al., 2011PINTO, C. L. et al. Estudo de caso: principal polo produtor de fosfato e nióbio do país. In: RECURSOS minerais e sustentabilidade territorial: grandes minas. Rio de Janeiro: Centro de Tecnologia Mineral/Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, 2011. p. 283-306.). O conflito desdobrou-se em processos judiciais de 120 famílias contra as empresas mineradoras da cidade, sendo a CBMM ator central na disputa. O argumento defendido pelas famílias foi o de que o nível elevado de bário nas águas era decorrente das atividades de extração de nióbio, uma vez que foi constatada uma contaminação em 1982, ainda em fase de remediação. Já a CBMM defendeu o argumento de que o nível elevado de bário era uma característica natural das águas do lugar e que não haveria qualquer relação entre a contaminação de 1982 e os níveis desse metal encontrados na localidade onde as famílias residiam.

A partir do conflito entre antigos moradores do Barreiro e as mineradoras da cidade, sobressai a forte distinção a respeito do modo como as águas do lugar são descritas pelos diferentes atores envolvidos na disputa. Entre atores da mineração é possível encontrar de forma recorrente a defesa de que as águas não são minerais, tampouco terapêuticas, como proferiu um engenheiro de minas aposentado, que atuou durante quinze anos na mineração de fosfato:

Araxá sempre foi considerada estância hidromineral. Mas nunca teve água mineral, esse que foi o problema. Começa por aí. E quando falam que é uma água mineral, é uma água mineral de péssima qualidade. Porque ela tem bário e ela tem cálcio. Ou seja, o pessoal vai ter problemas nos rins, cálculo renal. (Trecho de entrevista, 2020).

Na fala, percebe-se a busca por associar, de modo definitivo, o bário a uma propriedade natural das águas que, ademais, denotaria sua péssima qualidade. O caráter terapêutico das águas seria, assim, um grande “mito” da cidade. Descrição semelhante é feita pelo geólogo aposentado da CBMM - que foi ator-chave na construção dos argumentos de defesa da empresa, quando da deflagração do conflito envolvendo a presença de bário nas águas: “Essa água sulfurosa é um horror. Se você tomar um café da manhã com leite ali e for tomar um copo, como muita gente faz, eu não sei como consegue suportar” (trecho de entrevista, 2020). A fala faz referência às práticas, ainda hoje presentes no Grande Hotel, de consumo de doses diárias das águas sulfurosas e radioativas pelos seus hóspedes.

O confinamento das práticas ao passado dá-se, assim, numa tentativa de enquadrar o Grande Hotel e a estância hidromineral como sendo um “conceito de cura ultrapassado, que foi abandonado”. As referidas práticas seriam, portanto, representantes de um mundo não mais existente: “Então esse saudosismo, dessas pessoas mais antigas, ‘ah, porque o Grande Hotel’ e não sei mais o que, esquece! A fila andou, a roda girou, o mundo não é esse mais” (engenheiro mecânico aposentado, trecho de entrevista, 2020). Na busca por definir um novo mundo/lugar, chama a atenção, igualmente, como práticas presentes historicamente no Barreiro são também confinadas ao antigo ou inadequado. Esse mesmo trabalhador, que veio morar em Araxá em razão da mineração, decidiu construir sua residência no Barreiro motivado pela beleza do lugar. Quando questionado sobre mudanças e problemas que ele observaria existirem ali, declarou que

[…] parte da área do parque, do Barreiro, ela foi invadida por criador de cavalo, de vaca e outras coisas mais, que destrói nascente, pisoteia vegetação. Se você andar aqui durante a semana, você vê cavalo e vaca andando, pisando no parque, trazendo carrapato e outros problemas mais. (Trecho de entrevista, 2020).

A percepção de se tratar de práticas invasoras do lugar lança luz, uma vez mais, ao conflito entre o que se pretende como definitivo e “atual” e o que, sendo confinado ao passado, segue rompendo, emergindo e ressignificando o presente. Os “invasores” são, precisamente, os antigos moradores do Barreiro, que estabeleceram seu vínculo com o lugar antes mesmo de a mineração existir e que, agora, denunciam práticas diversas de cercamento, contaminação, obstrução de antigos caminhos e destruição ambiental. Como relata um antigo morador, em documentário produzido pelas famílias retiradas:

Eu fui nascido e criado lá, meu pai ajudou na construção do Grande Hotel, trabalhou lá depois até aposentar, e aí deram a casa para ele, porque ele ajudou a construir o Grande Hotel. Aí não tem conceito de invasor, porque ele ajudou a construir o Grande Hotel, trabalhou até aposentar, então ele adquiriu o direito e nós temos o direito também. (Ex-moradores…, 2018EX-MORADORES do Barreiro: a verdadeira história: 1ª parte. Documentário produzido pelos moradores do Barreiro, Araxá. [S. l.: s. n.], 2018. 1 vídeo (58 min). Publicado no canal Águas Barreiro de Araxá. Disponível em: Disponível em: https://youtu.be/cWR_OEtj3W8 . Acesso em: 17 maio 2022.
https://youtu.be/cWR_OEtj3W8...
).

Para essas famílias, as águas de Araxá, ao invés de serem um “mito” ou uma “farsa”, carregam consigo significados que comunicam acerca de outros modos de praticar a saúde dos corpos, de performar o lugar a partir de vínculos de trabalho entre gerações, ou, ainda, de associar a abundância das águas à existência de uma terra fértil, onde antes “tudo crescia”. As águas de hoje são para eles também outras águas: não por uma mudança de percepção acerca do que cura, ou por entenderem que o progresso deve se associar a outras existências. O que ganha destaque é, ao contrário, a existência de águas que hoje têm a sua potência de cura enfraquecida em razão da mineração, em razão de projetos de lugar que se pretendem hegemônicos: “Hoje nós não temos mais água mineral. Nós temos engano. Muito triste, né? Deus colocou a água para curar o ser humano, vêm as mineradoras e destroem e causam as doenças para o ser humano” (antiga moradora do Barreiro 1, Ex-moradores…, 2018EX-MORADORES do Barreiro: a verdadeira história: 1ª parte. Documentário produzido pelos moradores do Barreiro, Araxá. [S. l.: s. n.], 2018. 1 vídeo (58 min). Publicado no canal Águas Barreiro de Araxá. Disponível em: Disponível em: https://youtu.be/cWR_OEtj3W8 . Acesso em: 17 maio 2022.
https://youtu.be/cWR_OEtj3W8...
).

O lugar, portanto, para os antigos moradores do Barreiro não é o mesmo lugar performado pelas mineradoras. A despeito da tentativa de enclausurar Araxá e o Barreiro a uma identidade unívoca associada à mineração, é na multiplicidade das práticas daqueles que ali habitam que as existências se manifestam e possibilitam narrativas outras que desafiam os projetos hegemônicos de desenvolvimento: “porque o Barreiro é um lugar maravilhoso, é um lugar assim, que Araxá não é nada sem o Barreiro (antiga moradora do Barreiro 2, Ex-moradores…, 2018EX-MORADORES do Barreiro: a verdadeira história: 1ª parte. Documentário produzido pelos moradores do Barreiro, Araxá. [S. l.: s. n.], 2018. 1 vídeo (58 min). Publicado no canal Águas Barreiro de Araxá. Disponível em: Disponível em: https://youtu.be/cWR_OEtj3W8 . Acesso em: 17 maio 2022.
https://youtu.be/cWR_OEtj3W8...
).

Como nos lembra Mol (2018)MOL, A. Corpos múltiplos, ontologias políticas e a lógica do cuidado. Uma entrevista com Annemarie Mol. Interface, [s. l.], v. 22, n. 64, p. 295-305, 2018., não existe apenas uma ontologia, seja ela fechada ou aberta, fértil ou rígida. Existem ontologias, advindas da multiplicidade das práticas. No caso de Araxá, a extração do nióbio, simultaneamente, desenvolve e contamina; o uso das águas, ao mesmo tempo, cura corpos e os ameaça. O que se impõe é como, em meio ao conflito, negociar existências? Tratando-se de lugares mineráveis, em Moatize ou Araxá, a escolha analítica e política que nos parece mais potente é dar voz às resistências que se configuram frente aos processos de enclausuramento das identidades.

À guisa de conclusão: o que fica e o que transcende o lugar minerável

Ao longo do artigo, procurou-se argumentar que junto à produção de lugares mineráveis, realizada por meio de processos de redução e enclausuramento, ocorrem igualmente processos de desidentificação - identificação negativa -, a partir das práticas e narrativas dos atores que exploram outros modos de habitar os lugares, coexistindo ou procurando resistir à lógica mineira. No caso de Moatize, o fato de as jazidas de carvão mineral exploradas serem parte integrante do vale do rio Zambeze revela que outros elementos não antrópicos, para além do carvão mineral (águas do rio e seus diversos afluentes, terras férteis, argila, diversidade vegetal e faunística), compõem existências e sentidos. No caso de Araxá, a agricultura, a cura e o lazer são práticas que coexistem com o lugar minerável (ainda que a mineração se mostre, atualmente, predominante e enclausuradora). As identidades se vinculam, se atritam e são, muitas vezes, reconstituídas de modo simultâneo pelos atores.

Em ambos os estudos apresentados, a categoria de lugar é mobilizada a fim de demarcar suas diferenças e potencialidades em relação às categorias de território e espaço, especialmente quando da análise de conflitos ambientais. Na definição comumente atribuída a esses conflitos - e apresentada no início deste artigo - a mobilização da categoria de território traz consigo o risco de se cair em uma análise que reduza, por um lado, os conflitos ambientais a “lutas e disputas por recursos naturais”, uma vez que território pode ser compreendido como o domínio de uma materialidade unívoca (havendo divergências apenas nos modos diferentes de sua “apropriação”) e, por outro, que afirme uma ideia de que a conformação de conflitos ambientais deva passar pela existência de grupos detentores de identidades “estáveis” e/ou fixadas antagonicamente.

Parte dessas preocupações acerca da associação da categoria de território aos conflitos ambientais vem sendo elaborada, de modo frutífero, por autores que procuram pensar conflitos ambientais em uma perspectiva não apenas epistemológica, mas também ontológica. Arturo Escobar (2014ESCOBAR, A. Sentipensar con la tierra: nuevas lecturas sobre desarrollo, territorio y diferencia. Medellín: Edições UNAULA, 2014., p. 59, tradução nossa), defendendo a existência de ontologias relacionais - no lugar de uma ontologia dualista, típica da modernidade dominante, que nega a existência de outros mundos ao apelar para a ideia de um unimundo (diferentes culturas, mesma “realidade objetiva”) -, afirma que os territórios se tornam “espaços-tempos vitais de inter-relação com o mundo natural” e, nesse sentido, é importante a constituição de uma perspectiva ontológica sobre os conflitos ambientais. De modo semelhante, autores como Mario Blaser (2013b)BLASER, M. Notes towards a political ontology of ‘environmental’ conflicts. In: GREEN, L. Contested ecologies: dialogues in the South on nature and knowledge. Cape Town: HSRC Press, 2013b. p. 13-27., Marisol de la Cadena (2010)DE LA CADENA, M. Indigenous cosmopolitics in the Andes: conceptual reflections beyond “politics”. Cultural Anthropology, [s. l.], v. 25, n. 2, p. 334-370, 2010. e, no Brasil, Lorena Fleury (2013)FLEURY, L. C. Conflito ambiental e cosmopolíticas na Amazônia brasileira: a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte em perspectiva. 2013. Tese (Doutorado em Sociologia) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013., alinhando-se à perspectiva das ontologias relacionais, analisam os conflitos ambientais como conflitos cosmopolíticos, uma vez que, “mais do que disputas materiais e simbólicas pelo uso de recursos, estão em jogo experiências da relação sociedade-natureza atravessadas pela noção de desenvolvimento” (Fleury; Almeida, 2013FLEURY, L. C.; ALMEIDA, J. A construção da usina hidrelétrica de Belo Monte: conflito ambiental e o dilema do desenvolvimento. Ambiente & Sociedade, São Paulo, n. 4, p. 141-158, out./dez. 2013., p. 142, grifo dos autores).

Os aspectos apresentados neste artigo, resultantes dos estudos empíricos realizados, aliam-se às formulações dos autores supracitados, na medida em que demarcam a necessidade de se considerar a multiplicidade ontológica intrínseca à conformação de conflitos ambientais. Ainda assim, considera-se que a perspectiva aqui proposta, ao enfatizar a centralidade da categoria de lugar para estudos sobre conflitos ambientais, avança nas discussões até o momento realizadas, uma vez que abarca as heterogeneidades de conflitos que não necessariamente envolvem ontologias e cosmovisões plenamente antagônicas. Sem esvaziar a dimensão política dos conflitos, a categoria de lugar permite a análise de contextos nos quais as identidades dos atores não são fixas ou estáveis, mas ambíguas e heterogêneas.

Assim, por exemplo, é possível pensar conflitos nos quais os atores não se posicionam contrários à mineração, mas sim contrários à impossibilidade de suas práticas de cultivo, cura, trocas econômicas, entre outras, coexistirem com a mineração. Ou, ainda, que os atores imbricados nos conflitos sejam, simultaneamente, trabalhadores da mineração - uma vez que os dispositivos de desenvolvimento capturam em grande medida as possibilidades de sua subsistência - e perpetuadores de práticas outras de performação dos lugares, ensejadas pela e na multiplicidade dos vínculos e vivências que não se encerram com o lugar minerável.

Desse modo, atende-se à especificidade de os casos empíricos evidenciarem a pertinência analítica da categoria de lugar para as ciências sociais, pois, além de ser um/uma conceito-categoria de denúncia às (des)integrações perpetradas pela lógica e ontologia mineira e desenvolvimentista, mostra o lugar como sendo um ente coroado de inúmeras formas de habitar, de dinâmicas socioeconômicas, de relações sociais, de formas de ser e fazer o humano que se consolidam, confluem, se (des)enraízam - não obstante a hegemonia do(s) projeto(s) de mineração - e se transformam mutuamente.

Referências

  • AGÊNCIA NACIONAL DE MINERAÇÃO. Maiores arrecadadores CFEM. In: ANM. [S. l.]: ANM, 2020. Disponível em: Disponível em: https://sistemas.anm.gov.br/arrecadacao/extra/relatorios/cfem/maiores_arrecadadores.aspx Acesso em: 15 maio 2022.
    » https://sistemas.anm.gov.br/arrecadacao/extra/relatorios/cfem/maiores_arrecadadores.aspx
  • APARICIO, J. R.; BLASER, M. La “ciudad letrada” y la insurrección de saberes subyugados en América Latina. In: SOLANO, X. L. et al Prácticas otras de conocimiento(s): entre crisis, entre guerras: tomo 1. Chiapas: Cooperativa Editorial RETOS, 2018. p. 104-134.
  • APPADURAI, A. A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2008.
  • BLASER, M. Un relato de globalización desde el Chaco Popayán: Universidad del Cauca, 2013a.
  • BLASER, M. Notes towards a political ontology of ‘environmental’ conflicts. In: GREEN, L. Contested ecologies: dialogues in the South on nature and knowledge. Cape Town: HSRC Press, 2013b. p. 13-27.
  • CASTANHEIRA, J. P. O massacre de Moatize: testemunhos da explosão e da chacina em Moçambique, 34 anos depois. Expresso, [s. l.], n. 2022, 30 jul. 2011.
  • CHIZENGA, A. P. Os mundos que o “desenvolvimento” (des)integra: dinâmicas do lugar induzidas pela mineração da empresa Vale S. A. em Moatize, Moçambique. 2020. Tese (Doutorado em Sociologia) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2020.
  • COMISSÃO DO CURSO DE ÁGUA DO ZAMBEZE; COMUNIDADE PARA O DESENVOLVIMENTO DA ÁFRICA AUSTRAL; CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO E PESQUISA DA ÁFRICA AUSTRAL. Perspectiva ambiental no vale do rio Zambeze Harare: [s. n.], 2015.
  • COMPANHIA BRASILEIRA DE METALURGIA E MINERAÇÃO. Relatório de sustentabilidade [S. l.]: CBPM, 2019. Disponível em: Disponível em: https://cbmm.com/assets/sustainability-report-2019/pdf/CBMM-Relatorio-de-Sustentabilidade-2019.pdf Acesso em: 1 fev. 2020.
    » https://cbmm.com/assets/sustainability-report-2019/pdf/CBMM-Relatorio-de-Sustentabilidade-2019.pdf
  • DE LA CADENA, M. Indigenous cosmopolitics in the Andes: conceptual reflections beyond “politics”. Cultural Anthropology, [s. l.], v. 25, n. 2, p. 334-370, 2010.
  • DEPARTAMENTO NACIONAL DE PRODUÇÃO MINERAL. Sumário mineral Brasília: DNPM, 2016.
  • ESCOBAR, A. Planificación. In: SACHS, W. Diccionario del desarrollo: una guía del conocimiento como poder. Lima: PRATEC, 1996. p. 216-235.
  • ESCOBAR, A. La invención del tercer mundo: construcción y deconstrucción del desarrollo. Caracas: Fundación Editorial el Perro y Laraña, 2007.
  • ESCOBAR, A. Una minga para el postdesarrollo: lugar, medio ambiente y movimientos sociales en las transformaciones globales. Lima: Universidad Nacional Mayor de San Marcos/Fondo Editorial de la Facultad de Ciencias Sociales, 2010.
  • ESCOBAR, A. Sentipensar con la tierra: nuevas lecturas sobre desarrollo, territorio y diferencia. Medellín: Edições UNAULA, 2014.
  • ESCOBAR, A. Autonomía y diseño: la realización de lo comunal. Popayán: Sello Editorial: Universidad del Cauca, 2016.
  • EX-MORADORES do Barreiro: a verdadeira história: 1ª parte. Documentário produzido pelos moradores do Barreiro, Araxá. [S. l.: s. n.], 2018. 1 vídeo (58 min). Publicado no canal Águas Barreiro de Araxá. Disponível em: Disponível em: https://youtu.be/cWR_OEtj3W8 Acesso em: 17 maio 2022.
    » https://youtu.be/cWR_OEtj3W8
  • FLEURY, L. C. Conflito ambiental e cosmopolíticas na Amazônia brasileira: a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte em perspectiva. 2013. Tese (Doutorado em Sociologia) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013.
  • FLEURY, L. C.; ALMEIDA, J. A construção da usina hidrelétrica de Belo Monte: conflito ambiental e o dilema do desenvolvimento. Ambiente & Sociedade, São Paulo, n. 4, p. 141-158, out./dez. 2013.
  • FOUCAULT, M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 3. ed. São Paulo: Loyola, 1996.
  • GIBSON-GRAHAM, J. K. Diverse economies: performative practices for ‘other worlds’. Progress in Human Geography, [s. l.], v. 32, n. 5, p. 1-20, 2008.
  • GIBSON-GRAHAM, J. K. Una política postcapitalista Medellín: Siglo del Hombre Editores, 2011.
  • GIBSON, J.; GRAHAM, K. O fim do capitalismo (como nós o conhecíamos): uma crítica feminista da economia política. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.
  • GUDYNAS, E. Conflictos y extractivismos: conceptos, contenidos y dinámicas. Revista en Ciencias Sociales, Cochabamba, n. 27-28, p. 79-115, 2014.
  • INGOLD, T. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2015.
  • INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Araxá. Pesquisas. Índice de desenvolvimento humano. Ranking. In: IBGE. IBGE, [2021a]. Disponível em: Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/araxa/pesquisa/37/0?tipo=ranking Acesso em: 30 jul. 2021.
    » https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/araxa/pesquisa/37/0?tipo=ranking
  • INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Araxá. Pesquisas. Produto interno bruto dos municípios. PIB a preços correntes. Ranking. In: IBGE. [S. l.]: IBGE, [2021b]. Disponível em: Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/araxa/pesquisa/38/46996?tipo=ranking&indicador=46997&ano=2019 Acesso em: 1 fev. 2021.
    » https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/araxa/pesquisa/38/46996?tipo=ranking&indicador=46997&ano=2019
  • INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Araxá. Pesquisas. Produto interno bruto dos municípios. PIB per capita. Ranking. In: IBGE. [S. l.]: IBGE, [2021c]. Disponível em: Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/araxa/pesquisa/38/46996?tipo=ranking&indicador=47001&ano=2019 Acesso em: 1 fev. 2021.
    » https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/araxa/pesquisa/38/46996?tipo=ranking&indicador=47001&ano=2019
  • INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Araxá. Panorama. In: IBGE. [S. l.]: IBGE, [2022]. Disponível em: Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/araxa/panorama Acesso em: 10 maio 2022.
    » https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/araxa/panorama
  • INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA. 3º recenseamento geral da população e habitação 2007: indicadores sócio-demográficos: Província de Tete. Maputo: Gabinete Central de Recenseamento, 2010.
  • INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA. Recenseamento geral da população e habitação 2017: resultados definitivos - Moçambique. Maputo: Direção de Estatísticas Demográficas, Vitais e Sociais, 2019.
  • LATOUR, B. Ein Ding ist ein Thing: a (philosophical) platform for a left (European) party. Concepts and Transformation, Amsterdam, v. 3, n. 1/2, p. 97-112, 1998.
  • LATOUR, B. Investigación sobre los modos de existencia: una antropología de los modernos. Buenos Aires: Paidós, 2013.
  • LAVAL, C.; DARDOT, P. El ser neoliberal Barcelona: Gedisa, 2018.
  • LIMA, G. O diamante líquido: história, memória e turismo na cidade balneária de Araxá. Uberlândia: EDUFU, 2015.
  • LOUREIRO, M. Vida feliz na CBMM - o bônus foi de 9 salários para todos. Exame, [s. l.], 22 fev. 2013. Disponível em: Disponível em: https://exame.abril.com.br/revista-exame/a-magica-da-montanha-da-cbmm Acesso em: 1 ago. 2018.
    » https://exame.abril.com.br/revista-exame/a-magica-da-montanha-da-cbmm
  • MACHADO ARÁOZ, H. El territorio moderno y la geografía (colonial) del capital. Una arqueología mínima. Memoria y Sociedad, [s. l.], v. 19, n. 39, p. 174-191, 2015.
  • MARQUES, L. Capitalismo e colapso ambiental Campinas: Editora da Unicamp, 2015.
  • MASSEY, D. Um sentido global do lugar. In: ARANTES, A. A. (org.). O espaço da diferença Campinas: Papirus, 2000. p. 176-185.
  • MASSEY, D. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2015.
  • MBEMBE, A. Necropolítica: el gobierno privado indirecto. [S. l.]: Melusina, 2011.
  • MERRY, S. Measuring the world: indicators, human rights, and global governance. Current Anthropology, [s. l.], v. 52, n. S3, p. S83-S95, Apr. 2011.
  • MOL, A. The body multiple: ontology in medical practice. Durham: Duke University Press, 2002. (Series Science and Cultural Theory).
  • MOL, A. Política ontológica: algumas ideias e várias perguntas. In: ARRISCADO NUNES, J.; ROQUE, R. Objectos impuros: experiências em estudos sociais da ciência. Porto: Afrontamento, 2008. p. 63-78.
  • MOL, A. Corpos múltiplos, ontologias políticas e a lógica do cuidado. Uma entrevista com Annemarie Mol. Interface, [s. l.], v. 22, n. 64, p. 295-305, 2018.
  • PINTO, C. L. et al Estudo de caso: principal polo produtor de fosfato e nióbio do país. In: RECURSOS minerais e sustentabilidade territorial: grandes minas. Rio de Janeiro: Centro de Tecnologia Mineral/Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, 2011. p. 283-306.
  • PROJETO DE CARVÃO DE MOATIZE. Estudos de impacto ambiental, Complexo Industrial de Moatize: v. II - B. Maputo: [s. n.], nov. 2006.
  • ROSSI, A. Moçambique: o Brasil é aqui. Rio de Janeiro: Record, 2015.
  • SANTOS, B. de S. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2010.
  • STENGERS, I. A proposição cosmopolítica. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, [s. l.], n. 69, p. 442-464, abr. 2018.
  • TSING, A. L. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília: Mil Folhas, 2019.
  • TURRA NETO, N. Espaço e lugar no debate sobre território. Geograficidade, [s. l.], v. 5, n. 1, p. 52-59, 2015.
  • VALE desenvolve Moatize. In: VALE. [S. l.]: Vale, 27 mar. 2009. Disponível em: Disponível em: http://www.vale.com/brasil/pt/investors/information-market/press-releases/paginas/vale-desenvolve-moatize.aspx Acesso em: 31 maio 2021.
    » http://www.vale.com/brasil/pt/investors/information-market/press-releases/paginas/vale-desenvolve-moatize.aspx
  • VANNUCHI, C. Memórias de um vendedor de nióbio: José Alberto de Camargo e a CBMM - trinta anos de desafios e conquistas. São Paulo: Camilo Vannuchi, 2007.
  • VASCONCELOS, L. A. Contribuição para o conhecimento dos carvões da bacia de carvão de Moatize: Província de Tete, República de Moçambique. 1995. Tese (Doutorado em Geociências) - Faculdade de Ciências, Universidade do Porto, Porto, 1995.
  • ZHOURI, A.; LASCHEFSKI, K.; PEREIRA, D. A insustentável leveza da política ambiental: desenvolvimento e conflitos socioambientais. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.
  • 1
    A concepção de ontologia em uso neste artigo é associada à teoria ator-rede (ANT), segundo a qual as ontologias não precedem, mas são moldadas nas práticas e nas interações, tanto humanas como não humanas. As ontologias performam a si mesmas em mundos. Portanto, as implicações da produção de conhecimento sobre os conflitos ontológicos, além de assumir-se que os objetos, ferramentas e narrativas “estão a serviço ou envolvidos às formas particulares de ser, saber e fazer mundos” (Escobar, 2016ESCOBAR, A. Autonomía y diseño: la realización de lo comunal. Popayán: Sello Editorial: Universidad del Cauca, 2016., p. 12, tradução nossa), desafiam a pesquisa a indagar inicialmente sobre o que conta como conhecimento e que tipos de mundos dão base a diferentes práticas de conhecimento. Desse modo, agregar o(s) pres(pós)suposto(s) ontológico(s) à análise dos conflitos implica “seguir uma rota alternativa, porque antes de aproximar-se deles de maneira direta, como se estivessem ‘lá fora’, nós devemos nos interrogar e revelar as condições de tal possibilidade” (Blaser, 2013aBLASER, M. Un relato de globalización desde el Chaco. Popayán: Universidad del Cauca, 2013a., p. 23, tradução nossa).
  • 2
    Demais jazidas do minério no Brasil encontram-se, atualmente, no Amazonas e em Goiás.
  • 3
    Esse tema não será aprofundado aqui, mas cabe mencionar que Moçambique foi colônia portuguesa desde o início do século XVI até 25 de junho de 1975. A independência foi alcançada pela via armada, tendo a Guerra de Libertação durado dez anos (1965-1975).
  • 4
    Substância que resulta da mistura de metano (CH4) ao oxigênio (O2) e ocorre naturalmente nas minas de carvão mineral, sendo capaz de produzir facilmente uma explosão na presença de chamas ou de faíscas em ambientes fechados.
  • 5
    Em Moatize foram detectadas seis camadas distintas de carvão com designações e propriedades próprias, sendo a camada Chipanga uma delas. Estudos revelam a forte propriedade física (chega a atingir 32 metros de espessura) e química (se extrai coque de alta qualidade e altos materiais carbonosos para a queima) dos carvões dessa camada. Atualmente, explorado pela empresa Vale, não surpreende que seja o carvão de destaque no mercado global.
  • 6
    O valor gasto na construção da mina, cerca de US$ 8,2 bilhões, constitui o maior investimento brasileiro no continente africano até 2015, valor equivalente a mais da metade do PIB anual de Moçambique (Rossi, 2015ROSSI, A. Moçambique: o Brasil é aqui. Rio de Janeiro: Record, 2015.).
  • 7
    A mina passou por dois processos de concessão: inicialmente, pertencia à Riversdale (2009-2010), empresa australiana que obteve sua concessão em 2009; mais tarde, em 2011, a empresa Rio Tinto adquire na totalidade a mina de Benga e outros ativos da Riversdale, tendo explorado a mina até 2014. A partir de 2015, 65% da mina é vendida ao consórcio indiano International Coal Ventures Private Limited (ICVL).
  • 8
    Equivalente à roça no português do Brasil. Pequena área de terra, geralmente utilizada de forma familiar, com produção de alimentos para consumo da família, eventuais trocas e/ou comércio.
  • 9
    Enquanto a mina de nióbio manteve-se ao longo das décadas sob o domínio de uma mesma empresa, a de fosfato teve diversos “proprietários” (Arafértil, Bunge, Vale Fertilizantes e, atualmente, Mosaic Fertilizantes).
  • 10
    A mina de nióbio é, legalmente, propriedade da União. Por contrato, a mina encontra-se dividida em duas: uma parte da CBMM e outra da Companhia Mineradora do Pirocloro de Araxá (Comipa), empresa estatal que é parte da atual Companhia de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais (Codemig). O pirocloro é o mineral ao qual o nióbio está associado na mina de Araxá. A lavra é feita igualmente nos “dois lados”: enquanto a Comipa é responsável pela extração do nióbio, a CBMM é responsável pelo beneficiamento, produção e comercialização do mineral. Do lucro líquido obtido pela CBMM com suas atividades, 25% são destinados à empresa estatal.
  • 11
    Tratando-se da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM) - comumente conhecida como os royalties da mineração -, Araxá ficou em 20º lugar entre os municípios que mais arrecadaram em Minas Gerais, segundo dados da Agência Nacional de Mineração (2020)AGÊNCIA NACIONAL DE MINERAÇÃO. Maiores arrecadadores CFEM. In: ANM. [S. l.]: ANM, 2020. Disponível em: Disponível em: https://sistemas.anm.gov.br/arrecadacao/extra/relatorios/cfem/maiores_arrecadadores.aspx . Acesso em: 15 maio 2022.
    https://sistemas.anm.gov.br/arrecadacao/...
    . Do mesmo modo, conforme dados de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do município encontra-se na 14ª posição no estado (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, [2021a]INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Araxá. Pesquisas. Índice de desenvolvimento humano. Ranking. In: IBGE. IBGE, [2021a]. Disponível em: Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/araxa/pesquisa/37/0?tipo=ranking . Acesso em: 30 jul. 2021.
    https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/ar...
    ). Por fim, segundo dados de 2019, o Produto Interno Bruto (PIB) do município manteve-se na 17ª posição entre os municípios do estado (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, [2021b]INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Araxá. Pesquisas. Produto interno bruto dos municípios. PIB a preços correntes. Ranking. In: IBGE. [S. l.]: IBGE, [2021b]. Disponível em: Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/araxa/pesquisa/38/46996?tipo=ranking&indicador=46997&ano=2019 . Acesso em: 1 fev. 2021.
    https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/ar...
    ), enquanto o PIB per capita não figurou entre os 20 maiores (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, [2021c]INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Araxá. Pesquisas. Produto interno bruto dos municípios. PIB per capita. Ranking. In: IBGE. [S. l.]: IBGE, [2021c]. Disponível em: Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/araxa/pesquisa/38/46996?tipo=ranking&indicador=47001&ano=2019 . Acesso em: 1 fev. 2021.
    https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/ar...
    ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    12 Jul 2021
  • Aceito
    07 Fev 2022
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - IFCH-UFRGS UFRGS - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Av. Bento Gonçalves, 9500 - Prédio 43321, sala 205-B, 91509-900 - Porto Alegre - RS - Brasil, Telefone (51) 3308-7165, Fax: +55 51 3308-6638 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: horizontes@ufrgs.br