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Como “dar o care” para quem “não tem o home”? Deficiência e judicialização de cuidados domiciliares em saúde

How to “give care” to whom “does not have home”? Disability and judicialization of home health care

Resumo

Que mediações morais e técnicas emergem nas práticas de mobilização do sistema de justiça brasileiro em busca de saúde? Tal questionamento emergiu em uma pesquisa que acompanhou demandas de internação em instituições de longa permanência e home care por parte de pessoas com condições crônicas e deficiência na região de Santa Maria (RS), cidade tida como capital brasileira da judicialização da saúde. Entrevistas em profundidade e análise de documentos e decisões judiciais permitiram identificar a circulação de moralidades e tecnicalidades jurídicas ligadas a (in)capacidade, deficiência, (in)dependência e cuidado que circulam nas práticas e discursos das pessoas demandantes e dos agentes públicos (e privados) que lidam cotidianamente com demandas de cuidados domiciliares em saúde. Os achados da pesquisa apontam para uma arena de controvérsias morais e técnicas que desestabilizam dicotomias como saúde/social e privado/público.

Palavras-chave:
judicialização da saúde; condições crônicas; deficiência; home care

Abstract

What moral and technical mediations emerge in the mobilization practices of the brazilian justice system in search of health? Such questioning emerged in a doctoral research that followed demands for placement in long-stay institutions and home care by people with chronic conditions and disability in the region of Santa Maria-RS, a city regarded as the brazilian capital of the judicialization of health. In-depth interviews and analysis of documents and court decisions allowed us to identify the circulation of moralities and legal technicalities linked to (in)capacity, disability, (in)dependence and care circulate in the practices and discourses of plaintiffs and public (and private) agents who deal daily with demands for home health care. The research findings point to an arena of moral and technical controversies that destabilize dichotomies such as health/social and private/public.

Keywords:
judicialization of health; chronic conditions; disability; home care

Crônicas, care e casa

“Não queria internar, mas fazer o quê? A filha quer trabalhar e estudar”, me contou o sr. Xavier,1 1 Para fins de anonimato, todos os nomes próprios de demandantes e de instituições privadas foram alterados. Também foram omitidos os dados das referências bibliográficas referentes às decisões relativas aos demandantes que acompanhei. Embora as decisões sejam públicas e as demandas aqui tratadas não corram em segredo de justiça, não faria sentido alterar os nomes dos interlocutores de pesquisa para fins de preservação das identidades e disponibilizar links que possibilitariam a rápida obtenção dos nomes. marido da sra. Tânia, dona de casa de 52 anos, que possui Doença de Machado Joseph e “precisa de ajuda pra tudo”, segundo ele. Em razão da enfermidade - rara, crônica, degenerativa, de origem genética e incurável -, encontra-se em cadeira de rodas, com mobilidade reduzida a cada vez mais limitados movimentos com a cabeça e com as mãos. Quando perguntado sobre como lidam com as condições de Tânia, o trabalhador rural disse que ela “só toma sozinha o café, de canudinho”, que “a comida tem que dar na boca” e que “não tem força nas mãos ou para ficar de pé”. Xavier afirmou que, até recentemente, tinha mais condições de cuidar e carregar Tânia, porém “não pode mais forcejar”, devido a problemas na coluna e nos rins. Senhor branco, alto e corpulento, ele fez questão de me mostrar uma sacola com os vários medicamentos que toma.

Segundo laudo da médica assistente, enviado à Defensoria, Tânia necessita de cuidados especiais e constantes. Após se referir à impossibilidade de Tânia de se locomover, dificuldade para falar, dificuldade para alimentar-se com alimentos sólidos e perda do controle dos esfíncteres - bem como ao uso contínuo de medicação anti-hipertensiva e de fraldas geriátricas descartáveis -, colocou que Tânia necessitará de sonda ou gastrostomia para se alimentar, alertando para a necessidade de fisioterapia domiciliar e contínua, para evitar a paralisação e atrofia total dos músculos.

Outro documento apresentado foi uma declaração do Núcleo Regional de Planejamento e Regulação da 4ª Coordenadoria Regional de Saúde (4ªCRS), segundo a qual não há, na região de Dilermando de Aguiar - cidade onde mora o grupo familiar e que é limítrofe a Santa Maria, na região central do Rio Grande do Sul -, contrato firmado para prestação de atendimento de equipe multidisciplinar domiciliar de forma contínua pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Relata, ainda, que a 4ªCRS oferece reabilitação física em Santa Maria por via de convênio com uma associação de pacientes, onde seria oferecido tratamento com equipe multidisciplinar. Porém, ressalta que, para receber os atendimentos necessários, o paciente deve comparecer à instituição, pois o atendimento domiciliar não é oferecido. Em outras palavras, o home care é oferecido pelo Estado em toda a região.

Xavier e a filha do casal, Carla, de 19 anos, me contaram que, em janeiro e fevereiro de 2018, contrataram uma vizinha como cuidadora, o que restou ineficaz, pois ela não conseguia suportar o peso de Tânia, comprometendo sua capacidade de locomoção. Disseram que não receberam, por parte de equipe de saúde, quaisquer treinamentos ou orientações especializadas para os cuidados de Tânia. O trabalhador rural reclamou da frequência de visitas da enfermeira e, principalmente, da assistente social da prefeitura, cujas visitas chegariam a demorar três meses para acontecer: “Tinham que vir todo mês.” Xavier e Carla não se sentiam capazes de dar conta dos cuidados de Tânia e demandaram junto à Defensoria, com ajuda de uma amiga da família, internação em clínica especializada. Na rede privada, o menor orçamento obtido ficou em R$ 2.500,00.

Essa história é apenas uma das que tem, cada vez mais, mobilizado o sistema de justiça em torno de demandas de cuidados em saúde. Com resultado do crescimento dessas demandas, em junho de 2018, o Seminário Internações Hospitalares e Home Care foi promovido pelo Centro de Formação do Judiciário do RS (CJUD), em Porto Alegre, contando com a participação de representantes de algumas das principais instituições envolvidas na judicialização da saúde. Nesse evento, que pude acompanhar de forma online em tempo real, participaram médicos diretores da Secretaria Estadual de Saúde (SES), juízes do Tribunal de Justiça (TJ/RS), desembargadores do Tribunal Regional Federal (TRF4), assessor jurídico de um plano de saúde privado e representante da Procuradoria-Geral do Estado (PGE). A procuradora que cuida de demandas do interior do estado relatou o problema sintetizado por sua colega de equipe: “Se eu não tenho o home, como vou dar o care?”

De alguma forma, precisar de “ajuda pra tudo”, o que fazer e como “dar o care” são questões que sintetizam uma série de dilemas envolvendo os recentes desdobramentos da judicialização da saúde no Brasil. Este texto versa sobre demandas de internação em instituição de longa permanência2 2 Embora o referido seminário também tenha contemplado discussões sobre internações hospitalares, a análise aqui se limita às demandas de internação em instituição de longa permanência e/ou assistência domiciliar (home care). Como evidente na história de Tânia, é comum que, apenas ao longo da mobilização do sistema de justiça e de análises e laudos especializados, se esclareça qual das duas demandas é mais apropriada ao caso concreto. e home care em face do sistema de justiça - que sintetizo aqui na expressão cuidados domiciliares em saúde. Discuto especialmente as experiências de pessoas que lidam com condições crônicas de saúde e deficiência em demandas jurídicas, na região central do Rio Grande do Sul, a partir de algumas histórias a que pude acompanhar e do relato do Seminário Internações Hospitalares e Home Care. Além de entrevistas e observações de atendimentos, recorri a análise de documentos administrativos, médicos e jurídicos presentes nos processos judiciais. Busco identificar como noções morais e técnicas ligadas a (in)capacidade, deficiência, (in)dependência e cuidado circulam e medeiam práticas e discursos das pessoas demandantes e dos agentes públicos (e privados) que lidam cotidianamente com tais demandas.

Argumento que a judicialização de cuidados domiciliares em saúde é um fenômeno que, visto a partir do cotidiano dos agentes envolvidos nas demandas, aparece como uma instância privilegiada de compreensão das políticas da vida - que, na “dialética entre vidas a serem salvas e vidas a serem colocadas em risco”, são “políticas que dão valor específico e significado às vidas humanas” (Fassin, 2007FASSIN, D. Humanitarianism as a politics of life. Public Culture, [s. l.], v. 3, n. 19, p. 499-520, 2007., p. 500, tradução minha) - observadas na judicialização da saúde. Penso que isso ocorre, em primeiro lugar, em razão das aproximações e distanciamentos em relação a outras demandas já tradicionalmente judicializadas, como medicamentos, cirurgias e benefícios previdenciários ligados a condições de saúde/enfermidade, sobretudo diante da constatação de um espaço fluido de negociações em torno do que é devido pelo Estado, como apontado por Biehl (2013)BIEHL, J. The judicialization of biopolitics: claiming the right to pharmaceuticals in Brazilian courts. American Ethnologist, [s. l.], v. 40, n. 3, p. 419-436, 2013..

Sugiro que tais espaços, ao mesmo tempo que gerados em decorrência da judicialização da saúde, têm se mostrado, ao longo dos anos, cada vez menos fluidos e mais constrangidos pela criação de infraestruturas burocráticas (na forma de protocolos, quesitos, laudos, perícias, comitês e assessorias especializadas, por exemplo). Ainda assim, os resultados da judicialização (não apenas as decisões, mas a efetivação delas) revelam margens de discricionariedade e indeterminação significativas. Em segundo lugar, as demandas reivindicam a visibilidade de corpos com restrições em condições crônicas e de reivindicações com, contra e diante do Estado. Ademais, põem em relevo uma arena de controvérsias que desestabiliza dicotomias presentes em debates, normas e decisões jurídicas, como saúde/social; cuidado/justiça e privado/público. E o fazem de uma maneira peculiarmente mais acentuada do que as outras demandas de saúde referidas, em razão das temporalidades e das complexidades que lhe são características.

Debates e controvérsias em torno da judicialização dos cuidados domiciliares em saúde

Especialmente durante o trabalho de campo realizado entre abril de 2018 e agosto de 2019, pude acompanhar pessoas que convivem com enfermidades crônicas e deficiência em busca de acesso a saúde, no universo da região central do Rio Grande do Sul (Pedrete, 2019PEDRETE, L. A. Crônicas invisíveis na “capital brasileira da judicialização da saúde”. 2019. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2019.). A pesquisa investigou como essas pessoas experimentam a luta por direitos nos órgãos burocrático-estatais - no universo do interior do sul do Brasil, na região de Santa Maria,3 3 Santa Maria é a maior cidade de um conjunto de 23 municípios da região central do Rio Grande do Sul, formando a subseção judiciária de Santa Maria na Justiça federal. A partir de dados agregados, pode-se dizer que o somatório da população da região é de 420.683 pessoas, conforme o Censo IBGE 2010. Cabe assinalar que: o Brasil é reconhecido mundialmente como um expoente da judicialização da saúde (Biehl; Petryna, 2016); o Rio Grande do Sul é um dos estados que lideram o ranking de processos de pedidos de medicamentos no país (Agência CNM, 2013; Conselho Nacional de Justiça, 2019); Santa Maria registra os maiores índices de judicialização do estado (Vasconcelos, 2018 apudConselho Nacional de Justiça, 2019). cidade tida como a capital brasileira da judicialização da saúde (Pozzobom, 2019POZZOBOM, J. Santa Maria era conhecida como a capital brasileira da judicialização da saúde. Santa Maria, 23 maio 2019. Facebook: Jorge Pozzobom. Disponível em: Disponível em: https://www.facebook.com/jorgepozzobom/videos/684418035346484/ . Acesso em: 1 jun. 2019.
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). Combinando as técnicas de observação, entrevistas em profundidade e análise de documentos médicos e jurídicos,4 4 A partir de abril de 2018, passei a acompanhar presencialmente o atendimento inicial do núcleo da Defensoria Pública da União em Santa Maria, de maneira a tentar captar histórias desde os primeiros atendimentos nessa instituição. Além disso, realizei observação como ouvinte no Seminário Internações Hospitalares e Home Care. Realizei entrevistas em profundidade mediante visita domiciliar nos municípios de Santa Maria, São Pedro do Sul e Dilermando de Aguiar, bem como contatos telefônicos e por WhatsApp, de maneira a complementar tais entrevistas. Dentre os documentos analisados, destaco laudos médicos, ofícios, inquérito civil público, decisões judiciais e notícias locais sobre a judicialização da saúde. a pesquisa abordou pessoas que acessaram o atendimento da Defensoria Pública da União (DPU) no referido município gaúcho.

É inegável o fato de que, nas últimas décadas, houve um crescimento exponencial das ações judiciais pedindo serviços e materiais de saúde no Brasil. Em 15 anos, de 2003 a 2018, apenas o valor gasto pelo Ministério da Saúde com remédios obtidos por via judicial saltou de R$ 170 mil para R$ 1,4 bilhão (Alberto, 2012ALBERTO, M. F. Análise das características da judicialização da saúde no estado de São Paulo. 2012. Dissertação (Mestrado em Economia) - Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2012.; Castanho, 2019CASTANHO, W. Reforma cria trava para liberação de remédio no SUS via decisão judicial. Folha de S. Paulo, São Paulo, 12 abr. 2019. Disponível em: Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/04/reforma-cria-trava-para-liberacao-de-remedio-no-sus-via-decisao-judicial.shtml . Acesso em: 14 maio 2019.
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). Especialmente com a audiência pública convocada em 2009 pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no sentido de esclarecer questões técnicas e científicas relativas às ações judiciais em saúde, a dispensação de medicamentos, a alocação de recursos e as relações entre os três poderes passam a dominar os debates sobre a judicialização da saúde (Machado, 2014MACHADO, T. R. C. Judicialização da saúde: analisando a audiência pública no Supremo Tribunal Federal. Revista Bioética, Brasília, v. 22, n. 3, p. 561-568, 2014.), em detrimento da ênfase em estratégias de saúde coletiva. É também a partir desse modelo farmacêutico que se observa não apenas uma progressiva construção de critérios e parâmetros de decisão que pretendem conferir racionalidade e consistência às decisões em matéria de judicialização da saúde, mas ainda, mais recentemente, a proliferação de estruturas burocráticas de articulação do sistema de justiça com objetivo de promover a desjudicialização por meio de “boas práticas para evitar a judicialização da saúde” (Tribunal Regional Federal da Quarta Região, 2012TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA QUARTA REGIÃO. Boas práticas para evitar a judicialização da saúde em debate no TRF4. In: PORTAL Unificado da Justiça Federal da 4ª Região. [S. l.]: TRF4: JFRS: JFSC: JFPR, 2 abr. 2012. Disponível em: Disponível em: https://www2.jfrs.jus.br/noticias/boas-praticas-para-evitar-a-judicializacao-da-saude-em-debate-no-trf4/ . Acesso em: 12 mar. 2019.
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).

A centralidade da assistência farmacêutica nos debates sobre a judicialização da saúde também é observada em boa parte da literatura antropológica (Biehl, 2013BIEHL, J. The judicialization of biopolitics: claiming the right to pharmaceuticals in Brazilian courts. American Ethnologist, [s. l.], v. 40, n. 3, p. 419-436, 2013.; Biehl; Petryna, 2016BIEHL, J.; PETRYNA, A. Tratamentos jurídicos: os mercados terapêuticos e a judicialização do direito à saúde. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 23, n. 1, p. 173-192, mar. 2016.; Flores, 2016FLORES, L. V. “Na minha mão não morre”: uma etnografia das ações judiciais de medicamentos. 2016. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Setor de Ciências Humanas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2016.; Grudzinski, 2013GRUDZINSKI, R. A nossa batalha é fazer o governo trabalhar: estudo etnográfico acerca das práticas de governo em uma associação de pacientes. 2013. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013.). Como lembra Biehl (2011BIEHL, J. Antropologia no campo da saúde global. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 17, n. 35, p. 227-256, jan./jun. 2011., p. 288), as decisões do Supremo Tribunal Federal “sobre um paciente de AIDS que exigia o acesso a uma nova droga antirretroviral, continua[m] a informar as decisões de atendimento farmacêutico em tribunais estaduais e federais” e servem de modelo para diversas outras demandas em saúde, dentre elas as de home care. Mas os impactos do modelo vão além das decisões de tribunais superiores. Fundamentos de documentos e decisões judiciais - mas também narrativas de seminários e audiências públicas sobre a judicialização da saúde em geral, e sobre a incorporação de novas tecnologias em saúde, em particular - tomam como referência primordial o acesso aos medicamentos. Nesse cenário, “desejos e dinâmicas interpessoais são fundamentais para as chances de vida, que se desdobram atreladas a um estado que está farmaceuticamente presente (através de mercados), mas em geral institucionalmente ausente” (Biehl, 2011BIEHL, J. Antropologia no campo da saúde global. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 17, n. 35, p. 227-256, jan./jun. 2011., p. 273-274).

Cabe destacar ainda recentes abordagens antropológicas sobre a judicialização por via da assistência jurídica gratuita (Flores, 2016FLORES, L. V. “Na minha mão não morre”: uma etnografia das ações judiciais de medicamentos. 2016. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Setor de Ciências Humanas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2016.; Freire, 2019FREIRE, L. A gestão da escassez: uma etnografia da administração de litígios de saúde em tempos de “crise”. 2019. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.; Matos, 2016MATOS, L. G. Como se decide a (in)capacidade e a deficiência?: uma etnografia sobre moralidades e conflitos em torno da perícia médica previdenciária. 2016. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016.; Pedrete, 2019PEDRETE, L. A. Crônicas invisíveis na “capital brasileira da judicialização da saúde”. 2019. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2019.), que identificam diferentes posições do Estado na produção de direitos, bem como elementos legais e extralegais que incidem sobre os processos. Tais trabalhos nos ajudam a perceber a judicialização como “uma luta pela utilidade e o sentido do governo por múltiplos agentes privados e públicos” (Biehl, 2013BIEHL, J. The judicialization of biopolitics: claiming the right to pharmaceuticals in Brazilian courts. American Ethnologist, [s. l.], v. 40, n. 3, p. 419-436, 2013., p. 422, tradução minha); como “uma alternativa de acesso às políticas de seguridade como um todo, não apenas em relação ao direito à saúde, mas também à previdência e à assistência” (Matos, 2016MATOS, L. G. Como se decide a (in)capacidade e a deficiência?: uma etnografia sobre moralidades e conflitos em torno da perícia médica previdenciária. 2016. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016., p. 248); em um contexto marcado pelo “processo de transformação do direito à saúde em direito à vida” (Flores, 2016FLORES, L. V. “Na minha mão não morre”: uma etnografia das ações judiciais de medicamentos. 2016. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Setor de Ciências Humanas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2016., p. 205) e pela associação narrativa entre crise, escassez e suspeição na criação de infraestruturas burocráticas de controle da judicialização da saúde (Freire, 2019FREIRE, L. A gestão da escassez: uma etnografia da administração de litígios de saúde em tempos de “crise”. 2019. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.; Pedrete, 2019PEDRETE, L. A. Crônicas invisíveis na “capital brasileira da judicialização da saúde”. 2019. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2019.).

Por seu turno, minha pesquisa etnográfica procurou atentar para dimensões controversas da judicialização da saúde e pouco discutidas nos debates públicos, as quais se evidenciam particularmente nas demandas aqui tratadas: as recentes mudanças nas formas (e sensibilidades) jurídico-estatais de entender, processar, decidir e efetivar a garantia do direito à saúde; os efeitos de transições epidemiológicas e demográficas sobre o perfil de demandas judicializadas; e os impactos concretos da dicotomia saúde pública/cuidado familiar sobre concepções e decisões jurídico-político-morais. Os achados empíricos apontam que o conjunto de tecnicalidades e infraestruturas de justiça e saúde incluem uma série de controvérsias: em torno do alcance da própria categoria de home care no âmbito do SUS; das causas, efeitos e sentidos da judicialização; do alcance e implicações das definições de “necessidade de assistência contínua”, “urgência”, “suporte familiar” e “cuidador”; dos limites entre serviços de saúde e serviços de assistência social, bem como entre interesse da família e necessidade médica; e dos limites dos argumentos da “reserva do possível” e da isonomia.

O caráter controverso da recente judicialização da atenção domiciliar ficou bastante evidente no já referido seminário. Mais especificamente, determinadas questões se colocam no debate em torno desse tema: afinal, que home care existe no SUS? O que é previsto nas portarias do Ministério da Saúde se aproxima da maior parte das demandas judicializadas? As linhas de distinção entre necessidades em saúde e assistência são claras, nas situações concretas? Como lidar com demandas que exigem conhecimento técnico em diferentes níveis de complexidade (incluindo diferentes tipos de sondas, camas e ventilações mecânicas) e que podem se estender em décadas de prestações de contas? Como a chamada medicina baseada em evidências é incorporada como base para decisões judiciais? Como investigações e suspeitas de fraudes impactam a judicialização? Como garantir a atenção domiciliar em saúde a todos que dela necessitam, diante de um diagnóstico geral de escassez de recursos públicos e de envelhecimento da população?

A assistência domiciliar em saúde entre normas e dilemas

Entendido comumente como assistência domiciliar mediante visita, atendimento ou internação domiciliar por equipe multidisciplinar na residência do paciente, o home care constituiu-se como um movimento a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, nos EUA.5 5 Seus antecedentes, no entanto, remontam à implantação do home care no hospital de Boston (em 1780) e da Visiting Nurses Association - VNA (em 1885). Especialmente a partir da década de 1960, a ideia de desospitalização via home care aparece como alternativa de atenção à saúde sob argumentos de maior eficiência no tratamento, menores custos, aumento no número de leitos disponíveis, ausência de infecção hospitalar, evitação de deslocamentos arriscados e maior humanização no tratamento (Falcão, 1999; Fabricio et al., 2004). No Brasil, o Serviço de Assistência Médica Domiciliar e de Urgência da Previdência Social foi estabelecido pelo Decreto nº 27.664/1949 (Brasil, 1949). Também se registra notícia da criação do Serviço de Enfermeiras Visitadoras desde 1919, no Rio de Janeiro (Fabricio et al., 2004). No Brasil, o recente processo de institucionalização do home care tem como marco a Lei nº 10.424/2002 (Brasil, 2002BRASIL. Lei nº 10.424, de 15 de abril de 2002. Acrescenta capítulo e artigo à Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento de serviços correspondentes e dá outras providências, regulamentando a assistência domiciliar no Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, ano 139, n. 72, p. 1-2, 16 abr. 2002.), que altera a Lei nº 8.080/1990 (Brasil, 1990BRASIL. Lei nº 8.080/1990, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, ano 128, n. 182, p. 18055-18059, 20 set. 1990.) e dispõe sobre o subsistema de atendimento e internação domiciliar. Ela estabelece que a assistência domiciliar será realizada por equipes multidisciplinares que atuarão nos níveis da medicina preventiva, terapêutica e reabilitadora, na qual se incluem principalmente os procedimentos médicos, de enfermagem, fisioterapêuticos, psicológicos e de assistência social, entre outros necessários ao cuidado integral dos pacientes em seu domicílio, realizados por indicação médica, com expressa concordância do paciente e de sua família.

Entre 2011 e 2016, o Ministério da Saúde editou três portarias de regulamentação do Programa de Atenção Domiciliar (Melhor em Casa), que implanta equipes de atenção domiciliar e normas de cadastro dos Serviços de Atenção Domiciliar (SAD), dentre outros. Basicamente, elas preveem diferentes níveis de complexidade e definem os critérios para o funcionamento e financiamento da atenção domiciliar, que engloba prevenção e tratamento de doenças, reabilitação, paliação e promoção à saúde, garantindo formalmente a continuidade de cuidados.

Vale ressaltar, todavia, que a Portaria nº 825/2016 (Brasil, 2016BRASIL. Portaria nº 825, de 25 de abril de 2016. Redefine a Atenção Domiciliar no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e atualiza as equipes habilitadas. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, ano 153, n. 78, p. 33-38, 26 abr. 2016.) prevê expressamente que a necessidade de assistência contínua de enfermagem é hipótese de inelegibilidade do usuário para a política de assistência domiciliar. Embora a própria portaria estabeleça como diretriz a garantia da continuidade de cuidados e contemple necessidade de cuidados intensificados e sequenciais, ela não prevê o fornecimento de assistência contínua. O fato de que a pessoa que necessita de assistência contínua não é público-alvo da política de assistência domiciliar é precisamente uma fonte de divergência sobre a existência ou não de home care como serviço estatal.

Em outras palavras, pessoas com a necessidade frequente de cuidados em saúde e que não possuem meios de se locomover até os serviços, e não possuem suporte (familiar ou profissional) considerado como capaz de prover os cuidados ou sua moradia não permite receber cuidados em sua residência se encontram em uma zona cinzenta das intersecções entre saúde, assistência e justiça. Não há política do SUS prevista para elas; e, embasadas nessa própria razão, as decisões judiciais são amplamente desfavoráveis em relação a cuidados domiciliares contínuos e diários, embora recentemente se tenha observado adaptações interpretativas de modo a garantir internações domiciliares com visita domiciliar semanal6 6 Tais decisões tendem, assim, a conceder apenas o previsto na política do SUS. Em diversas histórias e processos a que pude acompanhar envolvendo demandas de home care na região de Santa Maria, o HUSM (Hospital Universitário de Santa Maria) detalha o serviço de atenção domiciliar prestado pelo hospital em ofícios enviados ao juízo. Evidenciando o caráter interdisciplinar, a frequência das visitas (em geral, semanais) e o critério da prévia internação hospitalar, o HUSM revelou que sua equipe interdisciplinar de atenção domiciliar é composta por 2 médicos, 2 enfermeiros, 2 técnicos de enfermagem, 1 fisioterapeuta, 1 fonoaudiólogo, 1 nutricionista, 1 terapeuta ocupacional, 1 assistente social e 1 psicólogo. As especialidades médicas atendidas são saúde da família e geriatria. Todos os profissionais da equipe atuam somente no atendimento de adultos e idosos, pois nenhum dos profissionais desse serviço possui especialização na área pediátrica. Quanto à maior frequência possível dos serviços de cada profissional, indicou visitas semanais. Explicou que o serviço foi constituído há mais de dez anos para liberar leitos em áreas de grande demanda. Assim, os pacientes que integram o serviço são recém-internados que possuem indicação de alta com acompanhamento, de maneira que o serviço tem como objetivo ensinar os familiares e acompanhantes para o desenvolvimento das atividades de assistência em suas residências. (Martins; Pedrete, 2020MARTINS, L. P.; PEDRETE, L. A. O home care decidido pelos tribunais: outras faces e dilemas da judicialização da saúde. In: GUILHERME, W. D. A interlocução de saberes na antropologia 2. Ponta Grosa: Atena, 2020. p. 168-182.).

Nesse cenário, as instituições estatais envolvidas correm o risco de reproduzir o que parte da literatura especializada denomina de reprivatização da velhice (Debert, 1999DEBERT, G. G. A reinvenção da velhice: socialização e processos de reprivatização do envelhecimento. São Paulo: Fapesp, 1999.) ou reprivatização do cuidado (Santos, S., 2003SANTOS, S. M. A. O cuidador familiar de idosos com demências: um estudo qualitativo em famílias de origem nipo-brasileira e brasileira. 2003. Tese (Doutorado em Gerontologia) - Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2003.). Isto é, a retirada do envelhecimento - e, podemos acrescentar, da deficiência - e das práticas de cuidado do âmbito das preocupações sociais e dos poderes públicos, restringindo-as à responsabilização exclusiva dos indivíduos e suas famílias, em suas competências e habilidades (Debert, 1999DEBERT, G. G. A reinvenção da velhice: socialização e processos de reprivatização do envelhecimento. São Paulo: Fapesp, 1999.).

Nessa forma de desobrigação do Estado que nem mesmo recentes redefinições de políticas públicas afetam plenamente, a invisibilidade social da dependência é apoiada numa percepção de família como cuidadora ideal, mesmo em situações concretas nas quais “permaneça desassistida e tendo de assumir sozinha mais essa responsabilidade” (Santos, S., 2003SANTOS, S. M. A. O cuidador familiar de idosos com demências: um estudo qualitativo em famílias de origem nipo-brasileira e brasileira. 2003. Tese (Doutorado em Gerontologia) - Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2003., p. 14). Mesmo em situações de deficiência intelectual, a busca por arranjos de moradia que não com familiares ainda é estigmatizada no Brasil e associada a abandono familiar, como nos mostra Helena Fietz (2020FIETZ, H. M. Construindo futuros, provocando o presente: cuidado familiar, moradias assistidas e temporalidades na gestão cotidiana da deficiência intelectual no Brasil. 2020. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2020., p. 251), ao realizar etnografia sobre práticas de cuidado em famílias de pessoas com deficiência e organizações públicas, privadas e filantrópicas em Porto Alegre.

Ao refletir sobre o tema da cronicidade, o olhar da antropologia da saúde é fundamental para mostrar e analisar a distância existente entre os modelos que propõem os experts profissionais e as necessidades reais dos pacientes, como lembra Masana (2017)MASANA, L. Cuidados informales de larga duración en España: retos, miradas y soluciones [Long Term Care and Informal Support in Spain: Challenges, Views and Solutions]. Salud Colectiva, [s. l.], v. 13, n. 2, p. 337-352, 2017.. Um modelo de atenção pública à cronicidade que dê conta das singularidades pessoais e sociais da enfermidade, e que passe por escutar a voz dos afetados e pela articulação entre autocuidado, cuidado informal e políticas públicas, permanece um ideal distante. As demandas aqui apresentadas apontam que, além das definições burocráticas sobre cuidado e deficiência, é possível pensar caminhos para uma “lógica do cuidado burocrático”, na expressão de Jacobs (2014JACOBS, M. D. A generation removed: the fostering and adoption of indigenous children in the postwar world. Lincoln: University of Nebraska Press, 2014., p. 29). Ou seja, pensar a própria mediação do Estado nas relações de cuidado, isto é, de “atenção pessoal contínua e/ou intensiva que aumentam o bem-estar daquele que a recebe” (Zelizer, 2011, p. 277 apudFietz, 2016FIETZ, H. M. Deficiência e práticas de cuidado: uma etnografia sobre “problemas de cabeça” em um bairro popular. 2016. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016., p. 9). Afinal, trazer o cuidado para a esfera pública não significa meramente uma redescrição das práticas, mas também a identificação das múltiplas lógicas e bases morais a elas subjacentes. Essa tarefa me parece indispensável em se tratando de controvérsias sobre a alocação de recursos nos debates sobre judicialização da saúde.

O cuidado não comporta fronteiras bem definidas, assinala Mol (2008)MOL, A. The logic of care: health and the problem of patient choice. New York: Routledge, 2008.: ao contrário, ele é um processo aberto que implica interações descontínuas e produtivas ao longo do tempo, sujeito ao aparecimento de diferentes necessidades de cuidado não previstas, ajustes práticos e experimentações cotidianas. Nessa chave crítica ao encapsulamento do cuidado à esfera privada, Mol considera que se impõe aos profissionais e pacientes envolvidos no cuidado que estejam atentos a viradas, problemas, complicações e efeitos imprevistos das intervenções, sempre abertas a surpresas. O foco das práticas de cuidado é a preocupação com o presente, com o que fazer a seguir e em não desistir (inclusive da judicialização, em nosso universo). Na síntese de Mol (2008MOL, A. The logic of care: health and the problem of patient choice. New York: Routledge, 2008., p. 41, tradução minha): “Explorar como uma boa vida pode ser vivida é […] crônico.”

Encruzilhadas jurídico-político-morais

Necessidade contínua, necessidade urgente, custos do tratamento, infraestrutura do domicílio e cuidados familiares constituem-se em alguns dos elementos que têm determinado o sucesso ou o insucesso de demandas judiciais de home care. Pode-se dizer que, de alguma forma, eles materializam e atualizam a política de assistência domiciliar a partir das decisões judiciais. É preciso salientar que tais critérios não são estáticos e estão sujeitos a novas reinterpretações. Podemos dizer que tais elementos não são meros instrumentos, mas sim tecnicalidades jurídicas - isto é, artefatos de mediação de ambiguidades em um contexto de multiplicidade de espaços, agentes e elementos jurídicos contraditórios, conforme nos lembra Riles (2011)RILES, A. Collateral knowledge: legal reasoning in the global financial markets. Chicago: The University of Chicago Press, 2011..

Assim, constituem “práticas profundamente políticas. Se tecnicalidades estão no coração da prática regulatória, elas devem então ser entendidas como movimentos políticos, com constituintes e consequências amplas” (Riles, 2011RILES, A. Collateral knowledge: legal reasoning in the global financial markets. Chicago: The University of Chicago Press, 2011., p. 223, tradução minha). Seguindo a sugestão dessa antropóloga, segundo a qual a centralidade das tecnicalidades jurídicas na análise etnográfica permite enxergar diferentes espaços e diferentes agentes, podemos vislumbrar uma constelação de elementos diversos e contraditórios que dão caráter técnico à judicialização da saúde e que vão muito além do espaço do Poder Judiciário e da figura do magistrado.

Nesse novo cenário, marcado pelos fenômenos da farmaceuticalização e medicalização da vida (Biehl; Petryna, 2016BIEHL, J.; PETRYNA, A. Tratamentos jurídicos: os mercados terapêuticos e a judicialização do direito à saúde. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 23, n. 1, p. 173-192, mar. 2016.), tanto quanto pela burocratização do Estado, reprivatização do cuidado e pela complexificação das demandas em saúde, ao longo dos anos, a administração estatal das demandas de medicamentos aparece em diversas práticas e discursos como paradigma constitutivo das infraestruturas e tecnicalidades da judicialização da saúde. Como efeito colateral do modelo farmacêutico da judicialização brasileira, demandas de saúde que envolvem longo prazo, maior complexidade técnica de recursos materiais e humanos e acompanhamento multiprofissional preventivo e terapêutico - tais como internação de longa permanência e home care - permanecem pouco visíveis dos debates públicos acerca da judicialização.

Afinal, tais demandas estão longe de serem abarcadas pela lógica da bala mágica (Biehl, 2011BIEHL, J. Antropologia no campo da saúde global. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 17, n. 35, p. 227-256, jan./jun. 2011.). E, com isso, alguns dilemas morais (mas também jurídicos e políticos) permanecem pouco discutidos, especialmente aqueles concernentes às experiências das pessoas demandantes, obscurecendo o caráter controverso e indeterminado da judicialização da saúde. Estreitamente ligado à farmaceuticalização nas discussões sobre saúde pública, o termo “bala mágica” se refere à confiança na intervenção de objetos biomédicos desvinculados de formas de atenção à saúde contextuais ou coletivas (Moran-Thomas, 2013MORAN-THOMAS, A. A salvage ethnography of the guinea worm: withcraft, oracles and magic in a disease eradication program. In: BIEHL, J.; PETRYNA, A. (ed.). When people come first: critical studies in global health. Princeton: Princeton University Press, 2013. p. 207-239., p. 223), especialmente na forma de “entrega de tecnologias de saúde (geralmente novas drogas ou aparelhos) dirigidas a uma doença específica” (Biehl, 2011BIEHL, J. Antropologia no campo da saúde global. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 17, n. 35, p. 227-256, jan./jun. 2011., p. 267-268).

Diretamente relacionada à questão da continuidade dos cuidados, a problemática em torno do chamado “suporte familiar” como critério de determinação do direito à assistência domiciliar traz à tona ao menos duas linhas de investigação a serem exploradas. Em primeiro lugar, cabe questionar os efeitos de o acesso aos medicamentos ter se tornado um modelo para o acesso ao direito à saúde via judicialização. Em segundo lugar, trata-se de refletir sobre as imbricações entre dimensões políticas, morais e jurídicas na judicialização da saúde.

Penso que a abordagem da antropologia da moral e do Estado proposta por Didier Fassin é extremamente pertinente para pensarmos a judicialização da saúde como uma economia moral que produz e é produzida por sujeitos jurídico-morais. A judicialização da saúde (e, com especial saliência, a do home care) pode ser vista como uma economia moral que - em torno da questão social acerca de como, a quem e o que efetivamente garantir serviços e materiais em termos de direito à saúde - é composta pela produção, circulação, apropriação e contestação de valores, afetos e regimes de verdade historicamente constituídos em relação a maneiras como a vida é considerada e tratada. Com efeito, as histórias de demandantes e as falas de diversos agentes do Seminário Internações Hospitalares e Home Care evidenciam não apenas a circulação, mas também controvérsias em torno de noções de cuidado e família, mobilizadas no processo de judicialização.

Assim como o fez Fassin (2013)FASSIN, D. (dir.). Juger, réprimer, accompagner: essai sur la morale de l’État. Paris: Éditions du Seuil, 2013., ao analisar as condutas de agentes públicos franceses em diversos serviços estatais, percebemos no contexto da judicialização da saúde práticas e sujeitos morais que vão além da mera implementação de normas ou de práticas violentas e ilegais. Os agentes públicos envolvidos na judicialização do home care lidam com significativa margem de autonomia e liberdade diante de um contexto de conflitos, tensões, ambiguidades e contradições. É pertinente seguirmos a abordagem de Fassin no sentido de que as moralidades em torno da judicialização do home care compõem um espaço de tensões, contradições e intersecções em torno não apenas de normas e juízos, mas de valores, verdades e afetos. Mas também em torno de dimensões morais salientadas por outros antropólogos da moral, como a busca por uma vida melhor, pela manutenção de senso de dignidade e por conforto ontológico (Han, 2012HAN, C. Life in debt: times of care and violence in neoliberal Chile. Berkeley: University of California Press, 2012.; Mol, 2008MOL, A. The logic of care: health and the problem of patient choice. New York: Routledge, 2008.; Zigon, 2009ZIGON, J. Within a range of possibilities: morality and ethics in social life. Ethnos, [s. l.], v. 74, n. 2, p. 251-276, 2009.).

O pensamento de Fassin é especialmente potente no sentido de nos permitir lançar luz para o fato de que, na economia moral da judicialização da saúde, é impossível pensar numa separação entre moral, política e direito. Não se trata apenas de reconhecer sentimentos e afetos supostamente alheios às tecnicalidades jurídicas. Mas, sim, reconhecer que as próprias técnicas jurídicas - expressas na articulação discursiva e prática dos critérios de decisão acerca de quem é elegível para receber o home care ou internação em instituição de longa permanência - são elas mesmas eivadas de pressupostos morais, não apenas sobre responsabilidades das famílias, mas também sobre deveres do Estado. Assim como o são os próprios dispositivos legais que normatizam a política de atenção domiciliar, que indiretamente atribuem cuidados contínuos ao âmbito familiar.

Vale lembrar que mesmo as atitudes jurídicas dos demandantes incorporam moralidades - ao, em suas narrativas e práticas de mobilização do direito, muito frequentemente articularem as tentativas via sistema de justiça apenas quando já não conseguem lidar privadamente com a situação de cronicidade e/ou deficiência. Assim, a judicialização de internações em instituições de longa permanência e home care evidencia que a moral não é externa ao jurídico: ao contrário, as moralidades são constitutivas das práticas de justiça.

“Demanda de saúde propriamente dita”?

Cumpre ressaltar que, ao mesmo tempo que a Lei Complementar nº 141/2012 (Brasil, 2012BRASIL. Lei Complementar nº 141, de 13 de janeiro de 2012. Regulamenta o § 3º do art. 198 da Constituição Federal para dispor sobre os valores mínimos a serem aplicados anualmente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios em ações e serviços públicos de saúde; estabelece os critérios de rateio dos recursos de transferências para a saúde e as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas 3 (três) esferas de governo; revoga dispositivos das Leis nos 8.080, de 19 de setembro de 1990, e 8.689, de 27 de julho de 1993; e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, ano 149, n. 11, p. 1-4, 16 jan. 2012.) estabelece atenção integral e universal à saúde em todos os níveis de complexidade, ela exclui das despesas com ações e serviços públicos de saúde as ações de assistência social. Essa divisão entre saúde e assistência é articulada em perspectivas críticas à judicialização da atenção domiciliar (Santos, L., 2017SANTOS, L. Judicialização da saúde. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro: UNA-SUS, 2017. Disponível em: Disponível em: https://ares.unasus.gov.br/acervo/handle/ARES/7772?show=full Acesso em: 7 ago 2018.
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).

Dentre as histórias que pude acompanhar, a trajetória de Tânia é uma das que mais claramente demonstra o atravessamento de lógicas e moralidades na luta por direitos, envolvendo sobretudo a tensão entre saúde e assistência social. Uma carta redigida por Úrsula, uma amiga da família, expôs a vontade de Tânia, confirmada em impressão digital: “Sr. Juiz, Eu, Tânia, […] declaro totalmente interessada e anciosa [sic] pela internação em um local adequado para o meu convívio e, assim eu e minha família podemos seguir com nossa vida mais tranquila.”

A carta foi utilizada como forma de esclarecimento da pretensão da aposentada, que tem condições bastante reduzidas de comunicação. De fato, a própria amiga da família - que auxiliava sobretudo na obtenção de documentos e atualização dos serviços prestados pela prefeitura - me confidenciara que, em princípio, estava certa de que o melhor para Tânia seria o home care (e não a internação). Contudo, a necessidade de ampla reforma da residência e possíveis conflitos com familiares distantes, além do interesse manifesto de Tânia, teriam lhe convencido de que viabilizar uma internação seria a melhor solução.

Outros documentos com a finalidade de esclarecimento de informações e de instrução de um eventual processo judicial foram produzidos. Algumas semanas após ofício da DPU que indagava à Secretaria de Saúde de Dilermando de Aguiar, dentre outros, quanto à periodicidade de visitas domiciliares de profissionais da prefeitura e quanto aos serviços domiciliares disponíveis, voltei a entrar em contato com Úrsula. Ela me informou que, nas semanas anteriores, passaram a acontecer visitas semanais de médico da Estratégia de Saúde da Família, bem como até cinco visitas, por semana, de enfermeiro. Embora o laudo da médica assistente já previsse a necessidade de fisioterapia e a resposta ao ofício tenha atestado a disponibilidade de visitas semanais de fisioterapeuta, Úrsula me esclareceu que Tânia nunca fora atendida pelo serviço. Também me informou que enviara novos formulários para a Secretaria de Saúde, a fim de que a médica do SUS detalhasse os cuidados e modalidade de atenção necessários. Um mês depois, a secretaria ainda não havia providenciado os documentos, mesmo diante da insistência de Úrsula.

Sendo assim, quatro meses depois do pedido administrativo junto à 4ªCRS e após o atendimento inicial na DPU, o conjunto de documentos necessários para a efetiva judicialização ainda não havia sido reunido. Com a judicialização da demanda de Tânia, mais uma vez, o caráter relacional da visibilidade ou da invisibilidade de condições crônicas e deficiência ficou evidente. A família dela reclamava exatamente da falta de visitas dos serviços de saúde e assistência, no sentido de que “a enfermeira e a assistente social deveriam vir de mês em mês pra ver”, ao mesmo tempo que a resposta da gestão estatal foi no sentido que os serviços existiam, porém não disponíveis a pessoas sem possibilidade de locomoção. Ao contrário do que foi documentado e alegado ao longo do seu processo, no sentido de que a Doença de Machado Joseph não compromete funções cognitivas e intelectuais, o juiz argumentou em decisão, dentre outros, que Tânia é “desprovida de capacidade civil, questão prejudicial que só pode ser resolvida pela Vara de Família” e que “não se trata de demanda de saúde propriamente dita”.

Em uma segunda entrevista, em fevereiro de 2019, sua filha, Carla, reclamou do processo judicial (“tá demorando muito”) e, novamente, da escassez das visitas dos profissionais de saúde, que anteriormente haviam retomado o acompanhamento. Quando questionei qual ela imaginava ser o pior resultado possível do processo, Carla respondeu, às lágrimas: “Ficar longe dela.” Ou seja, a internação em clínica especializada (necessariamente fora de Dilermando de Aguiar, onde não há esse serviço de saúde) poderia ser, ao mesmo tempo, ao menos na narrativa da filha de Tânia, uma demanda ao sistema de justiça e o pior desfecho possível do processo judicial.

Mas os dilemas da história de Tânia não pararam por aí. Ainda em fevereiro de 2019, após passar por uma cirurgia nos rins, o marido de Tânia (e pai de Carla) faleceu. “Tava com problemas, o pai andava doente, eu tava cuidando dele […] Quinta ele acabou falecendo, estamos muito abalados, muito chocados com tudo”, me disse Carla, por WhatsApp. Alguns dias depois, Úrsula veio até a DPU informar que Carla considerava se mudar com a mãe, de Dilermando de Aguiar para Santa Maria, e recorrer à família para tentar custear uma internação, caso a Justiça autorizasse.

Porém, em abril de 2019, a sentença foi anulada, por unanimidade dos desembargadores que apreciaram o recurso da DPU. O voto da relatora apontou que, apesar dos graves problemas motores, Tânia é capaz para os atos da vida civil. Que a Doença de Machado Joseph não lhe retira o discernimento mental. Tal fato não a impede de reconhecer que Tânia possui deficiência física, sem capacidade funcional em razão do comprometimento motor severo, sendo ela dependente de terceiros para realizar qualquer tipo de atividade cotidiana (alimentação, locomoção, higiene, etc.). Além de constatar a situação de extrema miserabilidade da família, conclui serem evidentes as necessidades médicas oriundas da doença incapacitante, diante da absoluta dependência de terceiros para as atividades corriqueiras da vida.

A juíza concordou com o argumento de que “o fato de a demanda também ter caráter assistencial não desconfigura ou anula a constatação de que o pedido principal é de tratamento de saúde”. Atestou que se pretendeu no processo não uma internação psiquiátrica, mas o “tratamento clínico da autora, deficiente física, em razão de moléstia degenerativa/incapacitante, que requer cuidados diários especiais, de que os membros da família não são capazes de prestar”. Com a anulação da sentença, a juíza determinou a reabertura do processo, que retornou à Vara Federal de Santa Maria.

Mais uma vez, portanto, a resposta institucional do sistema de justiça evidenciou, em algum momento, a dicotomia entre demanda de saúde e demanda de assistência social. Até mesmo para além da tendência de privatização do cuidado e seu encapsulamento na esfera familiar, a pressuposição da incapacidade civil e a negação do caráter sanitário na primeira decisão judicial sobre a demanda de Tânia lança luz sobre outra dicotomia evidenciada no que prefiro chamar de práticas da justicialização da saúde. Isto é, em práticas de mobilização do sistema de justiça, incluindo-se aí procedimentos padronizados e estruturas institucionais de justiça (e saúde), mesmo externas ao Poder Judiciário, como as polícias, as defensorias públicas e ministérios públicos (cf. Pedrete, 2019PEDRETE, L. A. Crônicas invisíveis na “capital brasileira da judicialização da saúde”. 2019. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2019.).

Trata-se da dicotomia existente entre a legitimidade da defesa dos direitos à vida e do acesso à justiça para sua reivindicação (direitos civis, por excelência), de um lado; e a defesa dos direitos à saúde e à assistência como direitos sociais, de outro. Ao contrário dos direitos civis constituídos sob a égide do individualismo liberal, direitos sociais, saúde e assistência social exigem a implementação de políticas públicas de acompanhamento em médio ou longo prazo. De certa forma, histórias como a de Tânia sugerem que a legitimidade do, já amplamente consolidado no Brasil, direito de acesso a fármacos pela via judicial tem se apoiado menos em uma garantia do direito social à saúde e mais em uma concepção da garantia à saúde como garantia da vida. Ou, nos termos de Fassin (2018)FASSIN, D. La vie: mode d’emploi critique. Paris: Éditions du Seuil, 2018., como garantia da vida em sentido estritamente biológico e abstrato. Com efeito, assinalando uma transição entre éticas da vida a partir da metade do século XX, Fassin (2018)FASSIN, D. La vie: mode d’emploi critique. Paris: Éditions du Seuil, 2018. já apontara que a sacralização do direito à vida teria dominado o cenário político e moral contemporâneo frente a direitos sociais e econômicos.

Outras decisões: “As fotos […] falam por si”

Em outubro de 2019, após perícia judicial, o laudo do médico perito atestou a necessidade da internação devido às condições socioeconômica e familiar de Tânia, indicando haver melhor assistência e cuidados gastroenterológicos e respiratórios oferecidos em clínicas geriátricas. Salientou que o atendimento domiciliar necessitaria de acompanhamento médico, enfermagem, fonoaudiólogas, cuidadoras, aspiradores, nebulizadores, dentre outros atendimentos e materiais não fornecidos pelo SUS. Indicando dependência total de terceiros para toda e qualquer atividade da vida civil e domiciliar, higiênica e alimentar por parte da paciente cadeirante, considerou a necessidade de internação como imediata: “Quanto antes for atendida melhor”, declarou o perito em seu laudo.

Em que pesem a declaração do médico perito e o pedido da DPU em regime de urgência, logo após a juntada do laudo, os autos do processo estiveram por exatos 215 dias (mais de sete meses) com o juiz para sentença, sem qualquer manifestação sua. Após esse tempo, o magistrado determinou que as partes documentassem as residências inclusivas existentes no estado do Rio Grande do Sul. Em dezembro de 2020, em vez de intimar diretamente os municípios ou o estado para que fornecesse informações sobre a existência de vagas e sobre os critérios para internação de pacientes na rede pública, o juiz responsabilizou a defesa de Tânia pela tarefa.

Menos de metade dos municípios responderam aos contatos. A maioria deu conta de falta de vagas e, principalmente, de inadequação do serviço em relação às demandas de saúde de Tânia. “Por ser um equipamento em âmbito do SUAS [Sistema Único de Assistência Social], não dispõe em seu quadro, [de] profissionais da área ou serviços de saúde na instituição”, respondeu o serviço do município de Cachoeira do Sul. “Não dispõe de estrutura de acolhimento da Sra. Tânia, pela característica do serviço que atende usuários com dependência grau I”, declarou o serviço de Passo Fundo. “Não temos condições de institucionalizá-la, visto que não dispomos de estrutura e quadro de funcionários adequados para os cuidados de saúde da paciente”, respondeu a secretaria de Rio Grande.

Assim, ao longo de todo esse período, mais uma vez, a desresponsabilização do poder público em relação ao cuidado e a dicotomia saúde/assistência foram reproduzidas. Nesse ínterim, Carla relatou que, cada vez mais, Tânia tinha dificuldade para engolir e se engasgava com facilidade. “Nunca fez fono. Que era o que poderia ajudar”, disse Carla. Em janeiro e em fevereiro de 2021, Tânia esteve em internação hospitalar e terminou por colocar sonda de gastrostomia. Carla continua:

Já falava com dificuldade. Agora não fala quase nada. Se ela quiser um copo de água ela chora. Ela é lúcida, Mas por não conseguir falar, ela chora. Isso é triste pra ela e pra gente pq [sic] ela chora tu não sabe o que ela quer […] Eu não aguento mais eu tenho depressão a psiquiatra me deu atestado que eu não posso mais cuidar dela faz tempo já. Eu tentei o suicídio não morri porque cheguei a tempo no hospital. Mas eu preferia estar morta hoje do passar o que tenho passado e ver a minha mãe no estado que está.

Após nova e dificultosa atualização de orçamentos, apenas em junho de 2021 houve a sentença procedente. Em certo trecho da decisão, sobre as condições de moradia e quadro clínico, o juiz constatou: “As fotos carreadas aos autos falam por si.” Após asseverar que é necessário demonstrar impossibilidade de a família prestar o atendimento necessário, uma vez que “os recursos públicos destinados à saúde e assistência social são escassos”, considerou que “no caso, a autora encontra-se praticamente desamparada, pois suas condições financeiras são ínfimas e a situação de abandono familiar é real”. Em decisão, o juiz determinou

a internação da autora […] em entidade de acolhimento de pessoas com deficiência (residência inclusiva ou entidade semelhante), preferencialmente (em caso de haver disponibilidade) em entidade vinculada ao Sistema Único de Assistência Social (Suas), localizada em qualquer cidade do Estado do RS. Caso seja confirmada a ausência de entidade vinculada ao SUS, deverão os réus (União e Estado do RS) suportar, integralmente, os custos da alocação e tratamento da autora em entidade privada, nesta cidade ou em qualquer outra instituição da rede privada habilitada, e que disponha de vaga, sob regime particular de custeio, desde a sua colocação até futura transferência para entidade vinculada ao Sistema Único de Assistência Social (Suas).

É preciso pontuar que o perfil das enfermidades que atingem a população brasileira tem observado uma mudança significativa: as maiores causas de mortes e condições incapacitantes passaram a ser doenças crônicas não transmissíveis, tais como doenças circulatórias, câncer, diabetes e doenças respiratórias crônicas (Brasil, 2011BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Análise de Situação de Saúde. Plano de ações estratégicas para o enfrentamento das doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) no Brasil, 2011-2022. Brasília: Ministério da Saúde, 2011. (Série B. Textos Básicos de Saúde).). Quase a metade dos casos brasileiros é registrada na região Sul, onde 11,3 milhões de habitantes possuem tais tipos de doenças. No Rio Grande do Sul, 60,1% da população feminina e 47,1% da masculina possuem pelo menos uma doença crônica não transmissível (Malta et al., 2015MALTA, D. C. et al. A vigilância e o monitoramento das principais doenças crônicas não transmissíveis no Brasil - Pesquisa Nacional de Saúde, 2013. Revista Brasileira de Epidemiologia, São Paulo, v. 18, supl. 2, p. 3-16, dez. 2015. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-790X2015000600003&lng=en&nrm=iso . Acesso em: 16 maio 2019.
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). Tais doenças podem causar diferentes graus de restrições à capacidade de realizar atividades habituais, como locomoção, muitas vezes demandando cuidados domiciliares profissionais, como visto no caso de Tânia.

Dentre tantas outras, a história Tânia concretiza a noção de que a complexificação dos cuidados necessários não é algo incomum em se tratando da conjugação entre condições crônicas e deficiência. O curso cíclico da enfermidade crônica determina e condiciona as necessidades de atenção que o enfermo precisa em maior ou menor medida ao longo do tempo. Independentemente da grande variedade de enfermidades crônicas a respeito do nível de limitações ou dependência que apresentam, a maioria possui um ponto em comum: o desenvolvimento em ciclos de fases estáveis seguidas de crises ou reagudização de sintomas, e assim ao longo de meses ou anos, que os enfermos chamam de temporadas boas ou temporadas ruins (Masana, 2017MASANA, L. Cuidados informales de larga duración en España: retos, miradas y soluciones [Long Term Care and Informal Support in Spain: Challenges, Views and Solutions]. Salud Colectiva, [s. l.], v. 13, n. 2, p. 337-352, 2017., p. 346).

Em fases favoráveis, o autocuidado e ajudas pontuais podem ser suficientes. Durante as épocas ruins, mal-estar, dor, sofrimento e limitações afetam a autonomia do indivíduo e o convertem temporariamente em uma pessoa mais dependente - momento em que as necessidades e limitações do apoio se evidenciam. Se as repercussões do caráter cíclico podem ser significativas nos âmbitos familiar, informal ou laboral, do ponto de vista da visibilização em nível estatal (em especial na judicialização da saúde, na qual perícias médicas se tornam cada vez mais comuns), tais repercussões podem ser decisivamente caprichosas.

A história aqui narrada demonstra que, em se tratando de demandas de pacientes crônicos, não se pode pressupor uma identidade entre perspectivas médicas e jurídicas sobre incapacidade ou deficiência, como já apontara Matos (2016)MATOS, L. G. Como se decide a (in)capacidade e a deficiência?: uma etnografia sobre moralidades e conflitos em torno da perícia médica previdenciária. 2016. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016.,7 7 Matos (2016, p. 140) assinala uma disputa entre os campos do direito e da medicina, “onde estão imbricadas moralidades diversas e embates sobre legitimidade [que] demonstram que este espaço em aberto acaba explicitando brechas para o conflito”. A desconfiança mútua tem consequências pragmáticas na judicialização da seguridade: “Provas (exames clínicos, receituários, etc.) podem ser levadas ou não em consideração na decisão final e na produção do laudo pericial que responderá quanto à existência ou não de incapacidade para o trabalho ou da deficiência” (Matos, 2016, p. 126). Em minha pesquisa, na qual mesmo as demandas judicializadas de saúde, envolvendo cirurgias e home care, por exemplo, cada vez mais são submetidas a análise de peritos, tais considerações parecem especialmente relevantes. ao etnografar a judicialização do acesso aos benefícios previdenciários no campo da Defensoria Pública da União em Porto Alegre. Em verdade, mesmo o ordenamento jurídico tem observado mudanças significativas no entendimento de tais categorias, notadamente a partir da instituição da Classificação Internacional Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF), pela Organização Mundial da Saúde (2003)ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. CIF: Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde. São Paulo: Edusp, 2003., em 2001; da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas, de 2006 (United Nations, 2006UNITED NATIONS. United Nations Convention on the Rights of Persons with Disabilities. [S. l.]: UN, 2016. Disponível em: Disponível em: https://www.un.org/disabilities/documents/convention/convention_accessible_pdf.pdf . Acesso em: 12 nov. 2019.
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) e do Estatuto da Pessoa com Deficiência, de 2015 (Brasil, 2015BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, ano 152, n. 127, p. 2-11, 7 jul. 2015.). Tais mudanças refletem os influxos teóricos de um modelo social da deficiência e constituem um desafio para os profissionais avaliadores e para políticas públicas (Santos, W., 2016SANTOS, W. Deficiência como restrição de participação social: desafios para avaliação a partir da Lei Brasileira de Inclusão. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 10, p. 3007-3015, out. 2016.), especialmente sob a hegemonia de um paradigma biomédico individualista e capacitista.

Historicamente constituídos, os modelos de abordagem da deficiência têm sido comumente agrupados em três principais: o modelo biomédico, o modelo social de primeira geração e o modelo feminista (ou social de segunda geração) (Diniz, 2007DINIZ, D. O que é deficiência? São Paulo: Brasiliense, 2007.). Tradicionalmente hegemônico, o modelo biomédico concebe deficiência como a “lesão que impõe restrições à participação social de uma pessoa” (Diniz, 2007DINIZ, D. O que é deficiência? São Paulo: Brasiliense, 2007., p. 9), de modo que “o foco é no indivíduo e nas suas limitações de corpo e cérebro” (Shakespeare, 2013SHAKESPEARE, T. The social model of disability. In: DAVIS, L. J. (ed.). The disability studies reader. New York: Routledge, 2013. p. 214-221., p. 217, tradução minha). Nessa concepção, em linhas gerais, a deficiência é vista como uma tragédia individual com causas estritamente biomédicas.

A primeira versão do modelo social se constitui em denúncia à opressão social sobre o corpo com deficiência e ao capacitismo como a “forma como as pessoas com deficiência são tratadas de modo generalizado como incapazes” (Mello, 2016MELLO, A. G. Deficiência, incapacidade e vulnerabilidade: do capacitismo ou a preeminência capacitista e biomédica do Comitê de Ética em Pesquisa da UFSC. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 10, p. 3265-3276, 2016., p. 3272). Concebe-se então a deficiência para além do conhecimento médico, vinculando-a às opressões do sistema capitalista de produção, sob argumento de que as desvantagens das pessoas com deficiência resultam de barreiras sociais. Ao mesmo tempo, o modelo social de primeira geração assume a independência como valor ético primordial e direciona sua luta política à inclusão social, sobretudo na ênfase sobre a participação de pessoas com deficiência no mercado de trabalho. Além disso, um dos elementos-chave desse modelo é a distinção entre deficiência (concebida como estrutural, pública, sociocultural e histórica) e impedimento/doença (tida como individual, privado, biológico) (Shakespeare, 2013SHAKESPEARE, T. The social model of disability. In: DAVIS, L. J. (ed.). The disability studies reader. New York: Routledge, 2013. p. 214-221.).

Por sua vez, nas últimas décadas, feministas pertencentes à segunda geração do modelo social trouxeram à luz temas como cuidado, dor e dependência, à medida que discutiram o papel das cuidadoras e da necessidade de cuidados, criticando o ideal de independência e evidenciando a dimensão corporal das lesões. Além disso, teorias feministas sobre a deficiência discutem as intersecções entre condições crônicas e deficiência, ampliando o próprio conceito de deficiência. Ao fazê-lo, tocam em temas recorrentes na história aqui tratada, tais como a visibilidade, a temporalidade, a cronicidade, a dependência e os cuidados (Diniz, 2007DINIZ, D. O que é deficiência? São Paulo: Brasiliense, 2007.).

A trajetória de Tânia remete ao fato de que doenças crônicas constituem uma das maiores causas de deficiências, especialmente em mulheres, como afirma Susan Wendell (2001)WENDELL, S. Unhealthy disabled: treating chronic illnesses as disabilities. Hypatia, [s. l.], v. 16, n. 4, p. 17-33, 2001.. De fato, pesquisadores em deficiência têm chamado atenção para as fronteiras borradas entre impedimento (em sentido médico) e deficiência (em seu caráter social), de modo que combatem a negligência do impedimento como um aspecto importante para vida de muitas pessoas com deficiência (Shakespeare, 2013SHAKESPEARE, T. The social model of disability. In: DAVIS, L. J. (ed.). The disability studies reader. New York: Routledge, 2013. p. 214-221.; Wendell, 2001WENDELL, S. Unhealthy disabled: treating chronic illnesses as disabilities. Hypatia, [s. l.], v. 16, n. 4, p. 17-33, 2001.).

As experiências de pessoas com deficiência não saudáveis e com impedimentos instáveis e/ou transitórios de longo prazo constituem um tema recente (Lopes, 2020LOPES, P. Deficiência na cabeça: percursos entre diferença, síndrome de Down e a perspectiva antropológica. 2020. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020.; Shakespeare, 2013SHAKESPEARE, T. The social model of disability. In: DAVIS, L. J. (ed.). The disability studies reader. New York: Routledge, 2013. p. 214-221.; Wendell, 2001WENDELL, S. Unhealthy disabled: treating chronic illnesses as disabilities. Hypatia, [s. l.], v. 16, n. 4, p. 17-33, 2001.). Incorporar doenças crônicas nas pesquisas e políticas que envolvem pessoas com deficiências torna-se um imperativo, uma vez que muitas pessoas com doenças crônicas e deficiência não têm sua deficiência legitimada ou visibilizada, afinal “a pessoa paradigmática com deficiência é deficiente saudável e com impedimento permanente e previsível” (Wendell, 2001WENDELL, S. Unhealthy disabled: treating chronic illnesses as disabilities. Hypatia, [s. l.], v. 16, n. 4, p. 17-33, 2001., p. 164, tradução minha). Desse modo, é comum que os impedimentos derivados de condições crônicas precisem ser frequentemente esclarecidos e afirmados.

Pessoas com doenças crônicas e deficiências experimentam tensões entre corpo, self e identidade de forma particularmente acelerada, intensificada e ampliada (Charmaz; Rosenfeld, 2016CHARMAZ, K.; ROSENFELD, D. Reflections on the body, images of self: visibility and invisibility in chronic illness and disability. In: WASKUL, D.; VANNINI, P. (ed.). Body/embodiment: symbolic interaction and the sociology of the body. Abingdon: Routledge, 2016.). Boa parte delas é materializada na história de Tânia, como as dicotomias visibilidade/invisibilidade; autonomia/dependência e aceitabilidade/inaceitabilidade de seu status. Tais tensões são especialmente flagrantes nas demandas em face do Estado nas quais emergem conflitos “entre os próprios profissionais encarregados de avaliar e decidir sobre a (in)capacidade ou deficiência destas pessoas para concessão de benefícios estatais” (Matos, 2016MATOS, L. G. Como se decide a (in)capacidade e a deficiência?: uma etnografia sobre moralidades e conflitos em torno da perícia médica previdenciária. 2016. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016., p. 84). Essas controvérsias problematizam não apenas uma noção homogeneizante dos juízos profissionais, mas também a concepção corrente de que “o laudo (do perito judicial) já é a sentença” (Matos, 2016MATOS, L. G. Como se decide a (in)capacidade e a deficiência?: uma etnografia sobre moralidades e conflitos em torno da perícia médica previdenciária. 2016. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016., p. 84). A história aqui invocada salienta, ao contrário, o caráter indeterminado - ou talvez melhor seria dizer multiplamente determinado e aberto - da palavra final sobre categorias como deficiência e incapacidade.

Considerações finais

Ao articularem dimensões como vulnerabilidade socioeconômica, distância geográfica em relação a serviços estatais, gênero, deficiência e incapacidade, as histórias que acompanhei evocam a ideia de que diferentes dimensões da vida social não podem ser vistas como desarticuladas. Na história de Tânia, temos um exemplo dramático de situação em que a combinação de distância territorial, falta de saneamento básico, idade, deficiência e carências do sistema de saúde pesam significativamente na falta de acesso a atendimento domiciliar ou internação em clínica especializada.

De outubro de 2018 até junho de 2021, a família de Tânia aguardou pela sentença que finalmente concedeu a internação em instituição de longa permanência. Nesse intervalo, a família passou por uma série de intercorrências, dentre elas: falecimento do marido; internações hospitalares de Tânia; tentativa de suicídio da filha, visitas de enfermeira e assistente social da prefeitura local cada vez mais esparsas; laudos médicos atestando necessidade de internação imediata, contrastante com a falta dos serviços necessários; decisão baseada em pressuposições de ausência de demanda de saúde e incapacidade civil de Tânia nunca mencionada por médicos e peritos; e, ainda, uma espera de 215 dias sem qualquer movimentação judicial, bem como a delegação de responsabilidades estatais na prestação de informações.

Quatro meses após a efetivação da internação concedida judicialmente, Tânia faleceu. Sua história evoca a reflexão sobre as contingências, condicionantes e formas de acesso (e não acesso) aos diferentes serviços e tecnologias de saúde prestados pelo Estado. Em especial, ilumina os efeitos perversos do modelo farmacêutico de judicialização da saúde, em especial no que se refere às dicotomias saúde/assistência social e cuidado público/cuidado privado (sobretudo familiar), que permeiam práticas e discursos. Cada vez mais burocratizado, porém ainda sujeito a margens de interpretação e indeterminação, tal modelo evidencia seus limites sobretudo em demandas de saúde de longo prazo, de assistência multiprofissional e em diferentes níveis de complexidade, como no caso dos pedidos de home care e internação em instituição de longa permanência.

Os encontros em campo provocam, acima de tudo, a reflexão de que os dilemas morais dos demandantes ainda são muito pouco visíveis nas discussões sobre a judicialização da saúde no Brasil - ainda bastante permeadas por narrativas de dilemas de profissionais jurídicos, expressos em categorias como “escolhas trágicas”, “decisões solitárias” e “reserva do possível”. Notadamente nas demandas de home care e internação em instituição de longa permanência, necessidade contínua, necessidade urgente ou imediata, custo do tratamento, infraestrutura do domicílio, suporte familiar e (in)capacidade aparecem como tecnicalidades jurídicas constantemente reinterpretadas, que podem contribuir para determinar a espera e o sucesso, ou não, nas demandas de saúde por parte de pessoas com condições crônicas e deficiências.

Histórias como a de Tânia também nos convidam a ponderar que um foco exclusivo nas decisões judiciais e no Poder Judiciário pode significar a negligência em relação a boa parte das experiências envolvidas da chamada judicialização da saúde. Especialmente em outras instâncias e momentos da justicialização da saúde, como nas burocracias estatais referentes a processos administrativos, na atuação extrajudicial de instituições do sistema de justiça e mesmo na luta pela efetivação do direito à saúde após decisões judiciais.

Como vimos aqui, os documentos jurídicos em si revelam pouco sobre as experiências de pessoas que, vivendo condições crônicas e deficiências, vão à Justiça em busca de tratamentos de saúde. Pessoas trabalhando à base de remédios. Não aguentando mais. Dando suporte, mas sabendo que não é tudo que se precisa. Não dando conta sozinhas. Sem saber usar aparelhos. Pensando em desistir de uma busca muito cansativa. Precisando de ajuda para tudo. Reclamando que profissionais de saúde da rede pública não os visitam, como deveriam. Querendo a chance de falar com algum agente público. Algumas vezes, morrendo antes de uma decisão, ou de seu cumprimento. Especialmente nas falas de demandantes como Carla, encontramos exemplos de dilemas morais invisíveis nas grandes narrativas da (des)judicialização da saúde no Brasil. Tais pessoas expressam cansaço, sobrecarga, sofrimento pela demora e pelas dificuldades na obtenção de consultas, orçamentos e documentos em geral, bem como carência de serviços públicos. E evocam sentimentos complexos, ambíguos, hesitações, esperanças e frustrações em relação à judicialização da saúde.

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  • ZIGON, J. Within a range of possibilities: morality and ethics in social life. Ethnos, [s. l.], v. 74, n. 2, p. 251-276, 2009.
  • 1
    Para fins de anonimato, todos os nomes próprios de demandantes e de instituições privadas foram alterados. Também foram omitidos os dados das referências bibliográficas referentes às decisões relativas aos demandantes que acompanhei. Embora as decisões sejam públicas e as demandas aqui tratadas não corram em segredo de justiça, não faria sentido alterar os nomes dos interlocutores de pesquisa para fins de preservação das identidades e disponibilizar links que possibilitariam a rápida obtenção dos nomes.
  • 2
    Embora o referido seminário também tenha contemplado discussões sobre internações hospitalares, a análise aqui se limita às demandas de internação em instituição de longa permanência e/ou assistência domiciliar (home care). Como evidente na história de Tânia, é comum que, apenas ao longo da mobilização do sistema de justiça e de análises e laudos especializados, se esclareça qual das duas demandas é mais apropriada ao caso concreto.
  • 3
    Santa Maria é a maior cidade de um conjunto de 23 municípios da região central do Rio Grande do Sul, formando a subseção judiciária de Santa Maria na Justiça federal. A partir de dados agregados, pode-se dizer que o somatório da população da região é de 420.683 pessoas, conforme o Censo IBGE 2010. Cabe assinalar que: o Brasil é reconhecido mundialmente como um expoente da judicialização da saúde (Biehl; Petryna, 2016BIEHL, J.; PETRYNA, A. Tratamentos jurídicos: os mercados terapêuticos e a judicialização do direito à saúde. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 23, n. 1, p. 173-192, mar. 2016.); o Rio Grande do Sul é um dos estados que lideram o ranking de processos de pedidos de medicamentos no país (Agência CNM, 2013AGÊNCIA CNM. Com 74 mil processos, Rio Grande do Sul é líder em judicialização da saúde. In: PORTAL CNM. Brasília: CNM, 6 set. 2013. Disponível em: Disponível em: https://www.cnm.org.br/comunicacao/noticias/com-74-mil-processos-rio-grande-do-sul-%C3%A9-l%C3%Adder-em-judicializa%C3%A7%C3%A3o-da-sa%C3%Bade . Acesso em: 25 fev. 2019.
    https://www.cnm.org.br/comunicacao/notic...
    ; Conselho Nacional de Justiça, 2019CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Judicialização da saúde no Brasil: perfil das demandas, causas e propostas de solução. Brasília: CNJ, 2019. Disponível em: Disponível em: https://static.poder360.com.br/2019/03/relatorio-judicializacao-saude-Insper-CNJ.pdf Acesso em: 18 maio 2019.
    https://static.poder360.com.br/2019/03/r...
    ); Santa Maria registra os maiores índices de judicialização do estado (Vasconcelos, 2018 apudConselho Nacional de Justiça, 2019CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Judicialização da saúde no Brasil: perfil das demandas, causas e propostas de solução. Brasília: CNJ, 2019. Disponível em: Disponível em: https://static.poder360.com.br/2019/03/relatorio-judicializacao-saude-Insper-CNJ.pdf Acesso em: 18 maio 2019.
    https://static.poder360.com.br/2019/03/r...
    ).
  • 4
    A partir de abril de 2018, passei a acompanhar presencialmente o atendimento inicial do núcleo da Defensoria Pública da União em Santa Maria, de maneira a tentar captar histórias desde os primeiros atendimentos nessa instituição. Além disso, realizei observação como ouvinte no Seminário Internações Hospitalares e Home Care. Realizei entrevistas em profundidade mediante visita domiciliar nos municípios de Santa Maria, São Pedro do Sul e Dilermando de Aguiar, bem como contatos telefônicos e por WhatsApp, de maneira a complementar tais entrevistas. Dentre os documentos analisados, destaco laudos médicos, ofícios, inquérito civil público, decisões judiciais e notícias locais sobre a judicialização da saúde.
  • 5
    Seus antecedentes, no entanto, remontam à implantação do home care no hospital de Boston (em 1780) e da Visiting Nurses Association - VNA (em 1885). Especialmente a partir da década de 1960, a ideia de desospitalização via home care aparece como alternativa de atenção à saúde sob argumentos de maior eficiência no tratamento, menores custos, aumento no número de leitos disponíveis, ausência de infecção hospitalar, evitação de deslocamentos arriscados e maior humanização no tratamento (Falcão, 1999FALCÃO, H. A. Home care - uma alternativa ao atendimento da Saúde. Medicina On line: revista virtual de medicina, [s. l.], v. 2, n. 7, ano 2, jul./set. 1999.; Fabricio et al., 2004FABRICIO, S. C. C. et al. Assistência domiciliar: a experiência de um hospital privado do interior paulista. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 12, n. 5, p. 721-726, 2004.). No Brasil, o Serviço de Assistência Médica Domiciliar e de Urgência da Previdência Social foi estabelecido pelo Decreto nº 27.664/1949 (Brasil, 1949BRASIL. Decreto nº 27.664, de 30 de Dezembro de 1949. Regula o Serviço de Assistência Médica Domiciliar e de Urgência da Previdência Social e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Rio de Janeiro, p. 18060, 31 dez. 1949.). Também se registra notícia da criação do Serviço de Enfermeiras Visitadoras desde 1919, no Rio de Janeiro (Fabricio et al., 2004FABRICIO, S. C. C. et al. Assistência domiciliar: a experiência de um hospital privado do interior paulista. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 12, n. 5, p. 721-726, 2004.).
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    Tais decisões tendem, assim, a conceder apenas o previsto na política do SUS. Em diversas histórias e processos a que pude acompanhar envolvendo demandas de home care na região de Santa Maria, o HUSM (Hospital Universitário de Santa Maria) detalha o serviço de atenção domiciliar prestado pelo hospital em ofícios enviados ao juízo. Evidenciando o caráter interdisciplinar, a frequência das visitas (em geral, semanais) e o critério da prévia internação hospitalar, o HUSM revelou que sua equipe interdisciplinar de atenção domiciliar é composta por 2 médicos, 2 enfermeiros, 2 técnicos de enfermagem, 1 fisioterapeuta, 1 fonoaudiólogo, 1 nutricionista, 1 terapeuta ocupacional, 1 assistente social e 1 psicólogo. As especialidades médicas atendidas são saúde da família e geriatria. Todos os profissionais da equipe atuam somente no atendimento de adultos e idosos, pois nenhum dos profissionais desse serviço possui especialização na área pediátrica. Quanto à maior frequência possível dos serviços de cada profissional, indicou visitas semanais. Explicou que o serviço foi constituído há mais de dez anos para liberar leitos em áreas de grande demanda. Assim, os pacientes que integram o serviço são recém-internados que possuem indicação de alta com acompanhamento, de maneira que o serviço tem como objetivo ensinar os familiares e acompanhantes para o desenvolvimento das atividades de assistência em suas residências.
  • 7
    Matos (2016MATOS, L. G. Como se decide a (in)capacidade e a deficiência?: uma etnografia sobre moralidades e conflitos em torno da perícia médica previdenciária. 2016. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016., p. 140) assinala uma disputa entre os campos do direito e da medicina, “onde estão imbricadas moralidades diversas e embates sobre legitimidade [que] demonstram que este espaço em aberto acaba explicitando brechas para o conflito”. A desconfiança mútua tem consequências pragmáticas na judicialização da seguridade: “Provas (exames clínicos, receituários, etc.) podem ser levadas ou não em consideração na decisão final e na produção do laudo pericial que responderá quanto à existência ou não de incapacidade para o trabalho ou da deficiência” (Matos, 2016MATOS, L. G. Como se decide a (in)capacidade e a deficiência?: uma etnografia sobre moralidades e conflitos em torno da perícia médica previdenciária. 2016. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016., p. 126). Em minha pesquisa, na qual mesmo as demandas judicializadas de saúde, envolvendo cirurgias e home care, por exemplo, cada vez mais são submetidas a análise de peritos, tais considerações parecem especialmente relevantes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Out 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    30 Out 2021
  • Aceito
    27 Jun 2022
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