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A Lei Brasileira de Inclusão e a ‘tomada de decisão apoiada’: uma possibilidade para a emergência de sujeitos de sexualidade?

The Brazilian Law of Inclusion and the ‘supported decision-making’: a possibility for the emergence of subjects of sexuality?

Resumo

O artigo discute alguns aspectos da Lei Brasileira de Inclusão (LBI) centrando-se em certos pontos de tensão, isto é, nas mudanças no conceito jurídico de deficiência, nas transformações do status jurídico de pessoas com deficiência intelectual a partir da figura ‘tomada de decisão apoiada’ e nos efeitos de tais transformações na emergência de pessoas com deficiência intelectual como sujeitos de sexualidade. Para isso, proponho analisar a LBI como um artefato etnográfico e, assim, dou atenção à forma e ao conteúdo do que nela está enunciado, explicitando as interconexões existentes entre a LBI e alguns diplomas legais. Além disso, indago, a partir de duas situações advindas de minhas pesquisas de campo, os limites, as possibilidades e as ambivalências existentes entre a prática jurídica e as experiências cotidianas dos sujeitos de sexualidade.

Palavras-chave:
Lei Brasileira de Inclusão; deficiência intelectual; sexualidade; tomada de decisão apoiada

Abstract

The article discusses some aspects of the Brazilian Law od Inclusion (LBI) focusing on certain tension points, that is, the changes on the legal concept of disability, in the transformations of the legal status of people with intellectual disabilities from the figure of ‘supported decision-making’ and the effects of such transformations on the emergence of people with intellectual disabilities as subjects of sexuality. For that, I propose to analyze the LBI as an ethnographic artifact. In this way, I focus on the form and content of the Law and I explain the existing interconnections between the LBI and some other laws. Furthermore, based on two situations arising from my field research, I inquire about the limits, possibilities and ambivalences that exist between legal practice and the ordinary experiences of the subjects of sexuality.

Keywords:
Brazilian Law of Inclusion; intellectual disability; sexuality; supported decision-making

Preâmbulo

“Dilma sanciona Estatuto da Pessoa com Deficiência. Texto da lei foi aprovado pelo plenário do Senado no mês passado. Segundo governo, o objetivo é assegurar direitos e oportunidades” (Matoso, 2015MATOSO, F. Dilma sanciona Estatuto da Pessoa com Deficiência. G1, [s. l.], 6 jul. 2015. Disponível em: Disponível em: http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/07/dilma-sanciona-estatuto-da-pessoa-com-deficiencia.html . Acesso em: 10 jul. 2021.
http://g1.globo.com/politica/noticia/201...
). Em minhas notas de campo do, nem tão distante, ano de 2015, encontro empolgados relatos sobre o que havia lido na tela de meu computador e detalhadas descrições dos caminhos que segui a fim de produzir material sobre o tema que interessava a minha investigação de doutoramento.1 1 Intitulada Dos sujeitos de direitos, das políticas públicas e das gramáticas emocionais em situações de violência sexual contra mulheres com Deficiência Intelectual, a tese foi orientada pela Professora Maria Filomena Gregori e defendida em 2019. A pesquisa recebeu financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Processo nº 15/19346-0). No entanto, as reflexões empreendidas neste artigo também desdobram as discussões por mim realizadas em pesquisa de pós-doutoramento também financiada pela Fapesp (Processo nº 19/24556-9). Durante as semanas que se sucederam à publicação da notícia no mês de julho daquele ano, acompanhei na mídia digital a repercussão da aprovação da Lei Brasileira de Inclusão (LBI)2 2 Lei Brasileira de Inclusão, LBI, Lei de Inclusão, Estatuto e Estatuto da Pessoa com Deficiência serão utilizados neste artigo como termos sinônimos, uma vez que aparecem no material de pesquisa nessas diversas acepções. (Brasil, 2015bBRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão das Pessoas com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, ano 152, n. 127, p. 2-11, 7 jul. 2015b.) e as críticas a ela elaboradas.

A cada nova busca realizada em sites da internet, uma gama variada de impressões, apreciações, comentários e explicações realizadas por especialistas e ativistas surgiam na tela de meu computador. O grande volume de material me causou certo espanto. Todavia, rapidamente percebi que parte considerável do conteúdo acabava por replicar um pequeno grupo de informações veiculadas em alguns dos grandes portais brasileiros de notícias. Notei que boa parte delas comemorava a aprovação da lei que já tramitava nas casas legislativas brasileiras desde início dos anos 2000. Entretanto, em menor número, também encontrei matérias que destoavam do clima de otimismo.

Foram exatamente essas abordagens dissonantes o que me chamou atenção durante os meses em que acumulei e analisei o material. Em linhas gerias, nas várias das críticas realizadas por estudiosos e operadores do direito, não era incomum ler que a nova Lei de Inclusão era um retrocesso em alguns aspectos legislativos. O foco de tais análises se situava na controversa reconfiguração da ‘Teoria das Incapacidades’3 3 Utilizo aspas simples para demarcar expressões do material de pesquisa. As aspas duplas são utilizadas para trechos de textos que não são tomados como material de pesquisa, assim como para citações diretas de autores. Já o negrito no corpo do texto visa enfatizar termos, categorias e conceitos importantes para o artigo. do Código Civil brasileiro. Diante de tais questões, persegui etnograficamente os deslizamentos semânticos do conceito de deficiência definido pela Lei de Inclusão e os efeitos em outros diplomas legais, mas também em políticas públicas voltadas para essa população. Desse modo, para este artigo opto por apresentar parte do material de pesquisa de doutoramento centrando-me num ponto específico de tensão produzida pela LBI, a saber: como as mudanças no conceito jurídico de deficiência promoveram transformações do status jurídico de pessoas com deficiência intelectual e os efeitos na emergência destas como sujeitos de sexualidade.

Para tal, divido o artigo em três partes. A primeira apresenta alguns fundamentos teórico-metodológicos que entendo serem fundamentais para a compreensão da LBI, mas também outros diplomas legais, como um artefato etnográfico. A segunda coloca sob análise a Lei de Inclusão a partir da emergência de uma nova figura jurídica, isto é, da tomada de decisão apoiada. A terceira e última parte indaga se a emergência de pessoas com deficiência intelectual como sujeitos de sexualidade tem se constituído, nas relações cotidianas, uma prática realmente possível.

A LBI como artefato etnográfico: questões teórico-metodológicas

Cotidianamente, tentamos operacionalizar e reivindicar os direitos dispostos num diploma legal de maneira bastante específica e isso revela como compreendemos a lei. Refiro-me ao modo prescritivo e fixo de como enunciados legais são entendidos como norma ou regra de controle e regulação de ações, de corpos, de concepções de ilegalidade e legalidade, assim como de sujeitos e deveres. Minha abordagem teórica se afasta dessa forma de compreender a lei e a analisa como artefato etnográfico (Ferreira; Lowenkron, 2014FERREIRA, L.; LOWENKRON, L. Anthropological perspectives on documents: ethnographic dialogues on the trail of police papers. Vibrant, Brasília, v. 11, n. 2, p. 75-111, jul./dec. 2014.). Isso implica afirmar que entendo a lei como uma prática social dinâmica e aberta a disputas, tensões e, tal como afirma Vianna (2012)VIANNA, A. Atos, sujeitos e enunciados dissonantes: algumas notas sobre a construção dos direitos sexuais. In: MISKOLCI, R.; PELÚCIO, L. (org.). Discursos fora da ordem: sexualidades, saberes e direitos. São Paulo: Annablume, 2012. p. 227-244., torções em sua leitura, interpretação e operacionalização.

Para tal, inspiro-me no debate realizado por Bevilaqua (2011)BEVILAQUA, C. B. Chimpanzés em juízo: pessoas, coisas e diferenças. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 17, n. 35, p. 65-102, jan./jul. 2011. sobre os processos judiciais que problematizam a categorização e a delimitação de seres vivos não humanos a partir do e no direito. Em sua reflexão, nos são apresentados os processos de “fabricação jurídica de pessoas e coisas”, assim como os efeitos que tal “fabricação” fazem emergir a partir do espraiamento na sociedade de tecnologias de controle e regulação pretensamente jurídicas. Com isso, a autora dá ênfase não apenas aos conteúdos do que essa “fabricação” delimita e pretende julgar, controlar e regular, como também às formas próprias da prática jurídica que, ao serem acionadas, constrangem e dão formatos específicos a esses conteúdos.

Nos casos dos processos judiciais analisados por Bevilaqua (2011)BEVILAQUA, C. B. Chimpanzés em juízo: pessoas, coisas e diferenças. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 17, n. 35, p. 65-102, jan./jul. 2011., isso implicou, entre outras coisas, que ela estivesse atenta ao formato que assumiam as narrativas, assim como a linguagem utilizada, a estrutura de apresentação do argumento e uma série de outros elementos que, nos termos de Lewandowski (2014)LEWANDOWSKI, A. O direito em última instância: uma etnografia do Supremo Tribunal Federal. 2014. Tese (Doutorado em Antropologia) - Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, Brasília, 2014., fazem um processo. Nessa perspectiva, um processo, e eu diria uma lei, se faz pelo conteúdo do que nele se narra, mas também pela forma que esse mesmo texto assume convertendo-o num documento normativo-jurídico e não em uma notícia de jornal ou num projeto de pesquisa científico, por exemplo.

Em etnografia realizada sobre o Supremo Tribunal Federal brasileiro, Lewandowski (2014LEWANDOWSKI, A. O direito em última instância: uma etnografia do Supremo Tribunal Federal. 2014. Tese (Doutorado em Antropologia) - Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, Brasília, 2014., p. 15) afirma que ao se fazer um processo e, consequentemente, se fazer uma decisão, o conteúdo e a forma “se misturam não existindo uma clara distinção entre fundo e figura, assim como são misturados/borrados, sujeitos (de direito) e objetos (do direito)”. De igual maneira, penso que entender a LBI como um artefato etnográfico é mais do que dar conteúdo à estrutura da Lei de Inclusão. Antes, é tomar como tarefa analítica a descrição detida de sua forma, de seus conteúdos normativos e das conexões que tais enunciados estabelecem com demais diplomas legais.

É nesse imbricamento de forma, conteúdo, circulação e produção de sujeitos e objetos de direto que, no texto legal, se explicitam algumas das práticas sociojurídicas, assim como estratégias narrativas, de codificação, de tipificação e normatização que convertem demandas em direitos e grupos em sujeitos de direitos. Portanto, de maneira semelhante ao que afirma Riles (2001)RILES, A. The network inside out. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2001., entendo que as técnicas de escrita são originadas por formas controladas de se preencher campos e lacunas, bem como de sua estrutura, diagramação e objetivos do documento ou da lei em questão. Em investigação sobre laudos de corpo de delito, Nadai (2018)NADAI, L. Entre pedaços, corpos, técnicas e vestígios: o Instituto Médico Legal e suas tramas. 2018. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2018. nomina de forma-formulário as técnicas de preencher e produzir “papéis” advindos do esquadrinhamento dos corpos de mulheres em situação de violência. Em consonância com tais perspectivas, afirmo que a LBI segue uma estrutura formal, por mim denominada de forma-lei, que não admite quaisquer descrições e estilos narrativos.

Em razão disso, a Lei de Inclusão em toda sua complexidade se converte num importante elemento de compreensão das práticas e técnicas pelas quais são gestadas, geridas e governadas (Lima, 2002LIMA, A. C. S. Gestar e gerir: estudos para uma antropologia da administração pública no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.) concepções de crimes, de deveres, de direitos e, no caso específico dos objetivos do artigo, da possibilidade de circunscrever sujeitos de sexualidade. Contudo, também sustento que o aspecto normativo e prescritivo das leis não fixa ou restringe a dinamicidade e suas potenciais modificações. Como bem salienta Butler (2014)BUTLER, J. Regulações de gênero. Cadernos Pagu, Campinas, n. 42, p. 249-274, jan./jun. 2014., à medida que os comportamentos prescritos pelos ordenamentos jurídicos são invocados, significados, ressignificados e citados nas práticas sociais, estes também abrem espaço de reatualização e fissura dessas mesmas prescrições.

Por isso, ainda que este artigo dê importância significativa à Lei de Inclusão e sua pretensão normativa, não defendo que os ordenamentos jurídicos são os únicos a instituírem formas de regulação. Ao contrário, conforme sustentei em outras reflexões (Simões, 2019SIMÕES, J. Dos sujeitos de direitos, das políticas públicas e das gramáticas emocionais em situações de violência sexual contra mulheres com deficiência intelectual. 2019. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2019.), eles fazem parte de uma tecnologia política que chamo de modalidades de gestão médico-jurídicas.4 4 Isto é, uma modalidade que se constitui a partir da e na retroalimentação dos saberes médicos e jurídicos ao produzirem uma concepção de deficiência que é tanto médica quanto jurídica. Dessa maneira, tal modalidade visa gestar, gerir práticas de regulação e controle de corpos, sujeitos e seus acessos a direitos. De todo modo, no recorte por mim realizado, o diploma legal sob análise constitui um dos elementos que faz emergir - ou ao menos visa fazer emergir - sujeitos de direitos e, no caso específico, de direitos sexuais e reprodutivos. Em outros termos estou querendo dizer que as inovações trazidas pelo texto da Lei de Inclusão, no que concerne à sexualidade de pessoas com deficiência intelectual, reconfiguram e criam novas técnicas de controle social constituídas e constituintes das e nas tramas institucionais (Gregori, 2000GREGORI, M. F. Viração: experiência de meninos de rua. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.) às quais se inserem.5 5 Os efeitos dessas inovações não são imediatos. Muitos desses novos termos introduzidos pelo texto da lei são reapropriados por operadores do direito a partir de práticas e usos antigos. Para discussão aprofundada, ver Andrade (2012) e Lins (2014) sobre o efeito da Lei Maria da Penha no fazer policial.

Exatamente por tal motivação, neste artigo descreverei a Lei de Inclusão a partir de sua forma e darei certa ênfase ao conteúdo normativo enunciado por essa forma. Isso porque o texto apresentado através de artigos, parágrafos e alíneas acarreta efeitos de estabilização que constituem múltiplos processos de sujeição. Um exemplo claro de tal artifício pode-se ver na própria definição jurídica de ‘deficiência’. Ou seja, elaborar uma definição legal sobre ‘pessoa com deficiência’, por exemplo, é operar a partir de uma norma, seja ela médica, seja ela jurídica, seja uma mescla de outros elementos. Por sua vez, tal definição circunscreve, destaca e classifica corpos e experiências, bem como produz uma figura de inteligibilidade que explicita essas técnicas de regulação e normalização implícitas ao mecanismo pelos quais nos tornamos sujeitos de direitos.6 6 Tornando o debate ainda mais complexo, Fietz (2016a) nos apresenta uma potente discussão que tensiona o âmbito jurídico a partir de um caso de não interdição de uma pessoa com deficiência.

Como bem afirma Butler (2014BUTLER, J. Regulações de gênero. Cadernos Pagu, Campinas, n. 42, p. 249-274, jan./jun. 2014., p. 253), “a norma governa inteligibilidades permitindo que práticas e ações sejam reconhecidas como tais, impondo uma grelha de legibilidade sobre o social e definindo parâmetros do que será e do que não será reconhecido no domínio do social”. Todavia, conforme afirma Foucault (2002)FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. 3. ed. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002., norma e lei não são as mesmas coisas, ainda que, frequentemente, normas apareçam sob a forma de lei. No caso da definição jurídica de ‘pessoa com deficiência’, seu caráter normativo se apresenta a partir da e na forma-lei, bem como nos demais textos do ordenamento jurídico com os quais ela se relaciona.

Nesse sentido, conforme afirma Ewald (2000)EWALD, F. Foucault: a norma e o direito. 2. ed. Alpiarça: Vega, 2000., a norma é aquilo capaz de construir uma medida comum e é aquilo que torna comparáveis e individualiza os sujeitos. Além do mais, prossegue ele, é “uma medida que tem a característica de ser a expressão da relação de um grupo consigo mesmo (com a ressalva de que é preciso não esquecer que esse grupo se reparte por toda a terra)” (Ewald, 2000EWALD, F. Foucault: a norma e o direito. 2. ed. Alpiarça: Vega, 2000., p. 105). Assim sendo, a norma é o que possibilita converter o poder jurídico em um poder produtivo fundamentado por um conjunto organizado de restrições, assim como um mecanismo de regulação e controle social. Desse modo, ela não existe como um a priori, pois é construída e construtora das relações sociais.

Em síntese, a norma é um dispositivo variável cultural e historicamente e persiste enquanto tal à medida que é atualizada e reatualizada na prática social “ao longo dos rituais sociais cotidianos da vida pessoal” (Butler, 2014BUTLER, J. Regulações de gênero. Cadernos Pagu, Campinas, n. 42, p. 249-274, jan./jun. 2014., p. 262). De igual maneira, a lei também é um construto social produzido pelas e nas relações, todavia, não é a única relação eminentemente normativa. Ao analisar as regulações de gênero, Butler (2014)BUTLER, J. Regulações de gênero. Cadernos Pagu, Campinas, n. 42, p. 249-274, jan./jun. 2014. elabora de modo elucidativo tais distinções e imbricamentos. Consoante sustenta, “uma norma opera no âmbito de práticas sociais sob o padrão implícito da normalização” (Butler, 2014BUTLER, J. Regulações de gênero. Cadernos Pagu, Campinas, n. 42, p. 249-274, jan./jun. 2014., p. 252).

Dessa maneira, diferentes atos normativos são postos em ação por dinâmicas de produção de normalidades e anormalidades, ou seja, por dinâmicas de normalização das relações sociais. Assim, estão implícitos nas regulações normativas uma técnica normalizadora e um mecanismo estabilizador que produzem e conferem um efeito de naturalidade às ações que busca regular. A partir disso, variadas práticas sociais podem ser reguladas por uma mesma norma, como também uma mesma prática social pode ser regulada por distintas normas.

Gênero, segundo a autora, é um desses aparatos de regulação normativo. Por ele e nele se produz e normaliza o masculino, o feminino, assim como as estratégias performativas e de materialização dessas concepções nos corpos e nas subjetividades. Do mesmo modo que as regulações de gênero são deslocadas ao serem reiteradas enquanto norma, as regulações da deficiência operadas pela forma-lei da LBI também são deslocadas e desestabilizadas em seu atributo normativo e em sua pretensão prescritiva. Portanto, ‘pessoa com deficiência’ passa a demarcar sujeitos específicos, mas também se abre para atualizações e novas interpretações do que se entende como ‘deficiência’.

Assim, uma miríade de experiências do que se pode construir como ‘pessoa com deficiência’ explicita a artificialidade do ato normativo que a constrói enquanto norma regulatória.7 7 Ver Diniz, Medeiros e Squinca (2007). Exatamente por tal razão, não se pode perder de vista que há uma vinculação do caráter normativo da LBI com uma forma específica de regulação operada pela lei em seu sentido propriamente jurídico, ou seja, a forma-lei. Se a forma-lei é o que possibilita a emergência de sujeitos de direitos, também é ela mesma decorrência da reivindicação desses sujeitos que se empenham em oficializar suas demandas a partir de termos e de um formato que sejam eles mesmos reconhecidos pelo Estado como oficiais e legítimos. Assim, como um efeito da forma-lei, a forma Estatuto da Pessoa com Deficiência se converte em uma prática do poder jurídico e reproduz sua linguagem, sua organização e suas técnicas de governo (Foucault, 2008FOUCAULT, M. Segurança, território de população: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008.).

Por isso é que o conteúdo de seus artigos, parágrafos e incisos adquire status de verdade que pode ser definida em termos de direitos e deveres. Pode, ainda, produzir dispositivos de oficialidade e legitimidade da lei e das instâncias estatais como os lugares privilegiado de regulação e controle. Apesar disso, é importante relembrar que a aplicação dos dispositivos legais passa por diferentes usos, apropriações e interpretações que desafiam a imagem de coerência, universalidade e neutralidade do texto legal, como bem salienta Lins (2014)LINS, B. A. A lei nas entrelinhas: a Lei Maria da Penha e o trabalho policial em duas Delegacias de Defesa da Mulher de São Paulo. 2014. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.. São exatamente essas instabilidades o que explicitarei nas partes subsequentes deste artigo.

LBI e algumas de suas tramas: a deficiência e a tomada de decisão apoiada

A Lei nº 13.146/2015, oficialmente Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Brasil, 2015bBRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão das Pessoas com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, ano 152, n. 127, p. 2-11, 7 jul. 2015b.), é a normativa jurídica mais importante sobre direitos e deveres para pessoas com deficiência no Brasil. É composta por 127 artigos e apresenta importantes e polêmicas atualizações quanto a garantia e extensão dos direitos relativos às pessoas com deficiência. É o caso, por exemplo, do ‘Art. 85’, ao descrever que ‘a definição de curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto’ (Brasil, 2015bBRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão das Pessoas com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, ano 152, n. 127, p. 2-11, 7 jul. 2015b., p. 7).

Até antes da promulgação da lei, o Código Civil (Brasil, 2002BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, ano 139, n. 8, p. 1-74, 11 jan. 2002., art. 1.767) circunscrevia que pessoas com deficiência intelectual estavam submetidas ao ‘instituto da curatela’. Juridicamente os atos da vida civil, os interesses econômicos, políticos, patrimoniais, assim como a própria condição de ‘pessoa humana’, deviam ser protegidos e assegurados pela figura do ‘curador’ (Gonçalvez, 2011GONÇALVEZ, C. R. Direito Civil brasileiro: volume 6. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.). É fato, com bem demonstra Fietz (2016b)FIETZ, H. M. Deficiência e práticas de cuidado: uma etnografia sobre “problemas de cabeça” em um bairro popular. 2016. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016b., que na prática cotidiana as circunscrições jurídicas são, corriqueiramente, torcidas e tensionadas pela lógica dos cuidados, seja pelos cuidadores, seja pelos operadores do direito. De toda maneira, se antes da promulgação da LBI era comum um conflito nos textos legislativos brasileiros sobre a tipificação penal de estupro de vulneráveis quando das relações sexuais com sujeitos curatelados, tais conflitos são, agora, reelaborados em novos termos, vide o referido ‘Art. 85’.

Ademais, o Estatuto também reordena uma série de enunciados e dispositivos normativos do Código de Processo Civil, do Código Penal e do Código de Processo Penal. Além, é claro, de reforçar os compromissos legislativos assumidos pelo Decreto nº 6.949/2009 (Brasil, 2009aBRASIL. Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Institui o Comitê Gestor do Programa de Inclusão Digital - CGPID, e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, ano 137, n. 243, p. 2-3, 26 ago. 2009a.), que dá status de emenda constitucional para a Convenção de Direitos da Pessoa com Deficiência da ONU. Contudo, as mudanças mais significativas e polêmicas se assentam na ‘Teoria das Incapacidades’ do ordenamento jurídico brasileiro. Até então, a teoria admitia a figura de ‘Incapacidade Absoluta’ ou a figura de ‘Incapacidade Relativa’. Com a transformação colocada pela LBI, acrescenta-se uma nova figura jurídica, denominada ‘Tomada de decisão Apoiada’.8 8 Segundo Rosenvald (2015, p. 9), “mesmo nos específicos atos em que seja coadjuvado pelos apoiadores, a pessoa com deficiência não sofrerá restrição em seu estado de plena capacidade, apenas será privada de legitimidade para praticar episódicos atos da vida civil”. Tendo em vista esse emaranhado de relações, transformações e, sobretudo, intermináveis debates, segui tais mudanças conceituais a partir das conexões entre os variados diplomas legais no ordenamento jurídico brasileiro.9 9 O introito sobre as mudanças implementadas pela LBI até aqui apresentado visa explicitar o modo como os debates e disputas em torno da ‘Teoria das Incapacidades’ se fizeram eminentemente pelo conteúdo do que se modificava e regulava. Entretanto, consoante argumentado nas páginas acima, a ênfase que dou ao conteúdo normativo dos diplomas legais não está dissociada da forma-lei que o constrange, organiza e delimita. Além disso, consoante demonstrarei com a descrição da Lei de Inclusão, tanto forma quanto conteúdo são elementos constitutivos dos sujeitos e dos objetos de direitos que o Estatuo faz emergir.

Assim sendo, li o Diário Oficial de 7 de julho de 2015 que promulgava a referida Lei de Inclusão. Encontrei os arquivos disponíveis gratuitamente nos site da Imprensa Nacional do Brasil.10 10 Ver: https://www.gov.br/imprensanacional/pt-br. Ao abrir o arquivo em formato PDF, encontro, na parte superior da primeira página, o destaque ‘DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO’. Abaixo, com letras menores, leio: ‘República Federativa do Brasil - Imprensa Nacional’. Na linha seguinte com letras ainda menores li: ‘Em circulação desde 1º de outubro de 1862’. As outras duas linhas subsequentes estavam preenchidas por um quadro cinza-claro onde se podia ler: ‘Ano CLII nº 127” e “Brasília - DF, terça-feira, 7 de julho de 2015’.11 11 Tento aqui reproduzir as grafias, as mudanças tipográficas presentes no Diário Oficial da União. Conforme afirmam Riles (2001) e Nadai (2018), as formas e tipografias constrangem o que se pode e se deve ser descrito nos documentos oficias produzidos pelas instâncias estatais.

Todos esses textos estavam entre duas insígnias oficiais, isto é, o brasão da República Federativa do Brasil, do lado esquerdo, e o brasão da Imprensa Nacional, do lado direito. Este último ladeado pela palavra ‘seção’, disposta verticalmente, destacando o número ‘1’. Logo após esse cabeçalho, três colunas proporcionais com textos ocupavam toda página do documento. Comecei a leitura e, páginas a frente, encontrei a ‘LEI Nº 13.146, DE 6 DE JULHO DE 2015’ e logo abaixo, recuado à direita, o texto ‘Institui a Lei Brasileira de Inclusão das Pessoas com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência)’. Em caixa alta, na linha subsequente, li: ‘A PRESIDENTA DA REPÚBLICA’ e ‘Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:’. Somente depois desses introitos é que cheguei ao conteúdo textual da lei disposto em formas de artigos, parágrafos, incisos, alíneas e itens.

A ênfase nesses detalhes não é meramente um exagero descritivo ou um efeito anedótico. Enfatizo nessa descrição parte das técnicas e dispositivos - em forma de insígnias, brasões, cabeçalhos, indexadores bibliográficos e símbolos - pelos quais se produz o efeito de legitimidade e de oficialidade das instâncias estatais enquanto verdades estabilizadas. Isso se deve ao fato de o Diário Oficial ser um expediente de reiteração e legitimação do alcance e das competências das próprias práticas dessas instâncias. Considerado o veículo por excelência de comunicação dos aparatos de regulação social do Estado, tal artefato, além de não questionar a veracidade das práticas administrativas estatais, reitera essas mesmas práticas como oficiais, legítimas e legais. Não à toa que o Diário leva em seu título a palavra Oficial. Exatamente por esse duplo efeito de estado, tomei como material de análise a LBI a partir do Diário Oficial.

Oficializadas e legitimadas pelo Diário, essas novas práticas de regulação podem ser identificadas, e por mim encontradas, nas primeiras linhas do Estatuto. O ‘Art. 1º’ do ‘CAPÍTULO I - DISPOSIÇÕES GERAIS’, descreve:

‘Esta Lei tem como base a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, ratificados pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo nº 186, de 9 de julho de 2008, em conformidade com o procedimento previsto no § 3º do art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, em vigor para o Brasil, no plano jurídico externo, desde 31 de agosto de 2008, e promulgados pelo Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009, data de início de sua vigência no plano interno’. (Brasil, 2015bBRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão das Pessoas com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, ano 152, n. 127, p. 2-11, 7 jul. 2015b., p. 2).

Na linha abaixo, um novo artigo e a descrição de um importante parâmetro que ordenará toda a Lei de Inclusão e reordenará todos os ‘diplomas legais’ com os quais mantém relação. No texto li:

‘Art. 2º - Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.

§ 1º A avaliação da deficiência, quando necessária, será biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar e considerará:

I - os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo;

II - os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais;

III - a limitação no desempenho de atividades; e

IV - a restrição de participação. § 2º O Poder Executivo criará instrumentos para avaliação da deficiência.’ (Brasil, 2015bBRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão das Pessoas com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, ano 152, n. 127, p. 2-11, 7 jul. 2015b., p. 2).

Em termos legais, tal definição conceitual pretende construir um dispositivo de estabilização do conceito fundamentada, como bem disse Rosenvald (2015)ROSENVALD, N. Em 11 perguntas e respostas: tudo que você precisa saber para conhecer o Estatuto da Pessoa com Deficiência. Boletim Informativo [do] CAOCIFE, Salvador, n. 13, p. 5-10, ago. 2015., no modelo social da deficiência. Assim, define um determinado grupo de pessoas como sujeitos de direitos, ainda que na prática cotidiana essa condição possa ser tensionada. Intrigado com o enunciado no ‘Art. 1º’, fui em busca dos referidos decretos lá citados. Nos outros arquivos dos Diário Oficial me deparei com organização similar ao acima explicitado. Constatei as mesmas separações gráficas, assim como marcações e mudanças tipográficas que apresentavam novos títulos, capítulos e mesmo novas leis e atos das instancias estatais. Com isso, prossegui minha leitura e, páginas depois, chego ao ‘Artigo 1º’ da Convenção publicada no Diário de 2008. O texto diz:

Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.’ (Brasil, 2008BRASIL. Decreto Legislativo nº 186, de 2008. Aprova o texto da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova Iorque, em 30 de março de 2007. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, ano 145, n. 160, p. 1-6, 20 ago. 2008., p. 2).12 12 Essa mesma definição pode ser encontrada na página 3 do Diário Oficial de 26 de agosto de 2009 que publica o Decreto nº 6.949 (Brasil, 2009a).

Imediatamente encontrei similaridade entre a definição da LBI e a da Convenção da ONU. Todavia, encontrei pequenas distinções de forma, conteúdo e redação. Algumas delas se assentavam no uso dos plurais, porém, a principal diferença estava na especificação das formas de avaliação da ‘deficiência’ enunciadas na Lei de Inclusão e inexistentes na Convenção de 2007. Tendo em conta os efeitos que as definições jurídicas produzem decidi buscar, no texto constitucional, o que se entendia por ‘deficiência’. Para minha surpresa não encontrei uma definição precisa sobre os que, nos termos da Constituição de 1988 (Brasil, 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, ano 136, n. 191-A, p. 1-32, 5 out. 1988.), eram chamadas de ‘portadores de deficiência’. O que encontrei foi uma série de artigos gerais que tratavam desde a não discriminação (‘Art. 7º’, ‘XXXI’), como da obrigatoriedade da reserva de percentual de vagas em administrações públicas aos ‘portadores de deficiência’ (‘Art. 37’, ‘VIII’), ou ainda do direito à educação (‘Art. 227’, ‘§ 1º’, ‘II’).

Somente com o Decreto nº 3.298/1999, que ‘dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência’, que uma definição em termos legais sobre ‘deficiência’ foi conformada. Comecei então a ler o referido decreto no Diário Oficial de 21 de dezembro de 1999. Li:

‘Art. 3º - Para os efeitos deste Decreto, considera-se:

I - deficiência - toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano;

II - deficiência permanente - aquela que ocorreu ou se estabilizou durante um período de tempo suficiente para não permitir recuperação ou ter probabilidade de que se altere, apesar de novos tratamentos; e

III - incapacidade - uma redução efetiva e acentuada da capacidade de integração social, com necessidade de equipamentos, adaptações, meios ou recursos especiais para que a pessoa portadora de deficiência possa receber ou transmitir informações necessárias ao seu bem-estar pessoal e ao desempenho de função ou atividade a ser exercida.’ (Brasil, 1999BRASIL. Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999. Regulamenta a Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989, dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, consolida as normas de proteção, e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, ano 137, n. 243, p. 10-15, 21 dez. 1999., p. 10).

Inquestionavelmente a definição de deficiência dada pelo decreto de 1999 era radicalmente diferente daquela adotada pelo Decreto Legislativo nº 186/2008, que aprovou o texto da Convenção de Direitos da ONU de 2007, e pelo Decreto nº 6.949/2009, que o sancionou. Consequentemente, devido à lógica de interdependência entre os textos legais, tal definição também diferia da adotada pela LBI de 2015. Por isso, não me pareceu pouco importante descrever textualmente as idas e vindas, bem como as comparações entre os enunciados dos ordenamentos. Esse esforço me possibilitou matizar algumas relações de poder que o texto jurídico, mas também suas entrelinhas (Lins, 2014LINS, B. A. A lei nas entrelinhas: a Lei Maria da Penha e o trabalho policial em duas Delegacias de Defesa da Mulher de São Paulo. 2014. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.), faz emergir. Isso porque uma série de elementos que extrapolavam as próprias definições legais encobriam importantes conflitos e tensões. Os embates teórico-políticos dos modelos da deficiência e o papel dos movimentos de pessoas com deficiência na Constituinte são alguns deles.13 13 Apesar de extremamente importantes, não retomarei o debate teórico-políticos e, tampouco, a participação dos movimentos de pessoas com deficiência na Constituinte. Ver: Lanna Jr. (2010), Lopes (2019), Nuernberg; Mello (2012).

Comparando as definições jurídicas de ‘deficiência’ presentes no ordenamento antes da promulgação da Convenção da ONU e de sua consolidação na LBI de 2015, alguns ganhos substanciais me pareciam evidentes. Contudo, esses avanços não logravam êxitos em todas as partes, já que críticas contundentes eram realizadas por diversos setores da sociedade. As supracitadas modificações proporcionadas pela inserção da ‘Tomada de Decisão Apoiada’ no regime de incapacidades do Código Civil de 2002 me parece exemplar. Além do mais, explicita o funcionamento interno do próprio ordenamento jurídico, uma vez que a mudança produzida por esse novo instituto jurídico, como já afirmado anteriormente, afeta outras leis. Por essa razão, as relações de interdependência do sistema jurídico não são meras formalidades de um campo do saber. São, em realidade, uma sofisticada técnica de produção de credibilidade, oficialidade e suporte aos dispositivos de produção de sujeitos políticos que demandam direitos. Explico.

Perto do final do texto da LBI, na página 10 do Diário de 2015, na seção ‘TÍTULO III - DISPOSIÇÕES FINAIS E TRANSITÓRIAS’, encontrei os temas sobre curatela, gênero, incapacidade civil, sexualidade e vulnerabilidade. Li: ‘Art. 114, A Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), passa a vigorar com as seguintes alterações:’.14 14 Não cabe aqui enunciar todas as alterações realizadas pela lei, pois dá nova redação para 14 outros artigos. As alterações no texto legal que interessam para o texto em questão estão contidas nos artigos 3º e 4º. Após ler a indicação de alterações do enunciado artigo, parei a leitura do Diário de 7 de julho de 2015 e fui em busca dos referidos artigos da ‘Lei nº 10.406/2002’.

Novamente me deparei com letras garrafais que destacavam ‘DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO’, assim como insígnias, brasões e demais artifícios de produção de legitimidade e oficialidade descritos anteriormente. Comecei minha leitura e chego à seção ‘Atos do Poder Legislativo’ e encontrei a seguinte redação: ‘LEI Nº 10.406, DE 10 DE JANEIRO DE 2002’. Fui em busca do texto original destinado aos artigos 3º e 4º do Código Civil e, no início da página 4, visualizei o conteúdo dos mesmos. Percebi diferenças na redação entre os supracitados artigos. No Código Civil li: ‘Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil:’. Na Lei de Inclusão constatei: ‘Art. 3º, São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos’. Notei também que os três incisos presentes na LBI eram seguidos das palavras ‘(REVOGADO)’ e ‘(NR)’,15 15 NR é a abreviação de Nova Redação. enquanto no Código de 2002 estes eram discriminados da seguinte maneira:

‘I - os menores de dezesseis anos;

II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos;

III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade.’ (Brasil, 2002BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, ano 139, n. 8, p. 1-74, 11 jan. 2002., p. 4).

Com relação ao conteúdo do quarto artigo, em ambos os ordenamentos o enunciado do texto diz: ‘Art. 4º, São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer:’. Entretanto, havia algumas diferenças no segundo e o terceiro incisos do quarto artigo. Na LBI podia ler o seguinte: ‘II - os ébrios habituais e os viciados em tóxico; III - aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade;’.16 16 O texto segue com o inciso IV e ‘Parágrafo único. A capacidade dos indígenas será regulada por legislação especial. (NR)’ (Brasil, 2015b, p. 10). No Código de janeiro de 2002, li: ‘II - os érbios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; III - os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo;’.17 17 O texto segue com o inciso IV e ‘Parágrafo único. A capacidade dos índios será regulada por legislação especial.’ (Brasil, 2002, p. 4).

Comparando o conteúdo dos diplomas legais, as diferenças entre os termos utilizados explicita os acirrados debates políticos e teóricos (Diniz, 2007DINIZ, D. O que é deficiência. São Paulo: Brasiliense, 2007.) sobre conceitos de deficiência e a criação de identidades negociadas a partir destes (Lopes, 2014LOPES, P. Negociando deficiências: identidades e subjetividades entre pessoas com “deficiência intelectual”. 2014. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.; Sassaki, 2006SASSAKI, R. K. Como chamar as pessoas que têm deficiência? São Paulo: [s. n.], dez. 2006. Mimeografado.). No Código Civil, ‘deficiente mental’ e ‘excepcionais’ dizem de contextos históricos em que as modificações conceituais que foram implementadas pelo Decreto nº 6.949/2009, que sancionaria a Convenção de 2007 da ONU, ainda não haviam ocorrido. Além disso, há uma diferença no modo pelo qual os diplomas compreendem pessoas com deficiência e com deficiência intelectual, respectivamente. Faço referência aqui não especificamente à definição legal de ‘pessoa com deficiência’, mas sim às implicações de compreender tais pessoas pela chave da ‘incapacidade’.

No texto de 2002 ‘portadores de deficiência’ - e não ‘pessoas com deficiência’ - aparecem como ‘absolutamente incapazes’ ou ‘relativamente incapazes’. Do ponto de vista sociojurídico não há dúvidas da incapacidade civil dessas pessoas. Todavia, não se passava o mesmo com os graus, haja vista a necessidade de especificar com o termo ‘absolutamente’ ou ‘relativamente’ a incapacidade. Nesse processo de gradação se destaca a importância do saber biomédico e todas as suas concepções do que se acredita ser a experiência vivida de uma ‘pessoa com deficiência’. Isso porque é por meio de laudos médicos que se pode mensurar juridicamente o grau de ‘incapacidade’ de uma ‘deficiência’.18 18 Para mais ver: Simões (2019).

Compreendidas as mencionadas alterações que o ‘Art. 114’ da Lei de Inclusão outorgou aos ‘arts 3º e 4º’ do Código Civil de 2002, retornei ao texto da LBI. Passei a ler o desdobramento do citado artigo do texto da lei de 2015 e cheguei a dois temas de bastante interesse para minha investigação, isto é, o casamento e o ‘instituto jurídico da curatela’. Acerca dos limites e possibilidades do casamento, o ‘Art. 114’ alterava e, também, acrescentava parágrafos a um outro conjunto de artigos do Código de 2002. Assim, tanto dava nova redação como limitava o campo de atuação de famílias e/ou curadores, e ampliava a capacidade civil de pessoas com deficiência intelectual.19 19 Os artigos em questão são os de número 1.518, 1.548 e 1.550 e tratam das circunstâncias de revogação e/ou nulidade do casamento. Entretanto, detenho minha atenção ao acréscimo do segundo parágrafo ao ‘Art. 1.550’ do Código Civil. Este dizia: ‘§ 2º A pessoa com deficiência mental ou intelectual em idade núbia poderá contrair matrimônio, expressando sua vontade diretamente ou por meio de seu responsável ou curador. (NR)’.20 20 A LBI mantém a redação de todos os seis incisos do artigo, porém converte o parágrafo único do Código Civil em primeiro parágrafo e, como indicado, acrescenta um novo parágrafo ao artigo 1.550.

Essa não era a primeira vez que me deparava com questões como casamento e a forma como se entrelaçava com a temática de sexualidade e gênero. Em pesquisa anterior (Simões, 2014SIMÕES, J. Assexuados, libidinosos ou um paradoxo sexual?: gênero e sexualidade em pessoas com deficiência intelectual. 2014. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2014., 2015SIMÕES, J. Deficiência intelectual, gênero e sexualidade: algumas notas etnográficas em uma APAE do interior do Estado de São Paulo - Brasil. Revista de la Facultat de Medicina, [s. l.], v. 63, n. 3, sup. , p. 143-148, sep. 2015.), casar-se e namorar, ou pelo menos a enunciação de tais desejos, eram elementos fundamentais para deslocar a ideia de assexualidade ou hipersexualidade coladas às imagens dos interlocutores da pesquisa. Em razão disso, o acréscimo do parágrafo ao artigo colocava em termos jurídicos uma prática social ansiada e vivida por algumas pessoas com deficiência intelectual. Já com o ‘instituto da curatela’, as transformações promovidas pelo ‘Art. 114’ eram mais significativas, pois restringia o escopo dessa figura jurídica. Voltei ao Diário de 2002 e no ‘CAPÍTULO II - DA CURATELA’, ‘Seção I - dos Interditos’, li:

‘Art. 1.767. Estão sujeitos a curatela:

I - aqueles que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para os atos da vida civil;

II - aquele que, por outra causa duradoura, não puderem exprimir a sua vontade;

III - os deficientes mentais, os érbios habituais e os viciados em tóxicos;

IV - os excepcionais sem completo desenvolvimento mental;

V - os pródigos’ (Brasil, 2002BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, ano 139, n. 8, p. 1-74, 11 jan. 2002., p. 65).

O texto publicado no Diário Oficial de 2015 mantinha a redação do título do artigo supracitado, alterava a redação do primeiro e terceiro incisos, mas mantinha a redação do quinto inciso. O segundo e o quarto incisos, por sua vez, haviam sido integralmente revogados. Isso implicava que pessoas com deficiência intelectual não estariam obrigatoriamente submetidas à ‘curatela’ e, tampouco, ao processo pelo qual se concretiza tal instituto jurídico, ou seja, a interdição.

Tal mudança fica evidente com a inclusão de um novo inciso no ‘Art. 1.768. O processo que define os termos da curatela deve ser promovido:’, que diz: ‘IV - pela própria pessoa. (NR)’. Voltei ao texto do Código de 2002 e li: ‘Art. 1.768. A interdição deve ser promovida: I - pelos pais ou tutores; II - pelo cônjuge, ou qualquer parente; III - pelo Ministério Público’. Contudo, no texto da LBI, ao final dos quatro incisos encontrei ‘(Revogado pela Lei n º 13.105, de 2015)’.21 21 ‘Art. 1.768. O processo que define os termos da curatela deve ser promovido: (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Revogado pela Lei nº 13.105, de 2015). I - pelos pais ou tutores; (Revogado pela Lei nº 13.105, de 2015). II - pelo cônjuge, ou por qualquer parente; (Revogado pela Lei nº 13.105, de 2015). III - pelo Ministério Público. (Revogado pela Lei nº 13.105, de 2015). IV - pela própria pessoa. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015) (Revogado pela Lei nº 13.105, de 2015)’ (Brasil, 2015b, p. 10). Para além das óbvias supressões e mudanças de redação do ‘Art. 1768’, a indicação de revogação implica a supressão do procedimento de ‘interdição’ do referido artigo no Estatuto da Pessoa com Deficiência.

Conforme afirma Santos (2001SANTOS, W. Dicionário jurídico brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2001., p. 127), a interdição é a “proibição, impedimento, privação legal que impede alguém do gozo ou do exercício de certos direitos ou mesmo de gerir seus bens e a própria pessoa”. Decidi, então, ir ao Diário Oficial de 17 de março de 2015 que sancionava o novo Código de Processo Civil sob o nome ‘LEI Nº 13.105, DE 16 DE MARÇO DE 2015’ (Brasil, 2015aBRASIL. Lei nº 13.105, de 16 março de 2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, ano 152, n. 51, p. 2-11, 17 mar. 2015a.). Páginas à frente do cabeçalho introdutório da lei, encontrei a ‘Seção IX - Da Interdição’ composta por onze artigos desdobrados em inúmeros parágrafos e incisos. Todos eles visavam descrever os modos pelos quais a ‘interdição jurídica’ podia ser solicitada. A ‘curatela’ era representada como uma das figuras que compunham o processo de ‘interdição’. Contudo, não havia menções à ‘deficiência’. Esclarecidos esses pontos, regressei ao texto da LBI a fim de seguir os enunciados da reconfiguração e ampliação do alcance do instituto da curatela dados pelo ‘Art. 114’.

Li as modificações realizadas nos textos dos ‘Arts. 1.769, 1.771, 1.772, 1.775-A e 1.777’ do Código Civil. Entre revogações, novas redações e acréscimo de parágrafos ou incisos, todos enfatizavam a excepcionalidade de tal instituto. Também operavam possibilidades de dissociação entre ‘curatela’, ‘incapacidade’ e ‘deficiência’. Aos poucos começava a ficar claro como as alterações operadas pela LBI no Código Civil ressoavam diretamente naquilo que o campo sociojurídico chama de ‘Teoria das Incapacidades’. Isto é, o conjunto de artigos que define o exercício das capacidades e incapacidades civis de um sujeito de direito.

Estimulado com minha descoberta, segui até o próximo artigo da Lei de Inclusão e li: ‘Art. 115. O Título IV do Livro da Parte Especial da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), passa a vigorar com a seguinte redação: ‘TÍTULO IV - DA TUTELA, DA CURATELA E DA TOMADA DE DECISÃO APOIADA’. Novamente voltei ao Diário de 2002 para entender o que havia sido modificado e encontrei: ‘TÍTULO IV - DA TUTELA E DA CURATELA’. Após o enunciado, seguiam-se dois capítulos - ‘Capítulo I - Da Tutela’ e ‘Capítulo II - Da Curatela’. Lado a lado, ficava evidente que uma nova figura jurídica era inserida pela Lei de 2015, ou seja, a figura da ‘Tomada de Decisão Apoiada’. De volta ao Diário Oficial de 2015, li: ‘Art. 116. O Título IV do Livro IV da Parte Especial da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), passa a vigorar acrescido do seguinte Capítulo III:’. Nas linhas subsequentes a nova figura jurídica estava descrita nos seguintes termos:

‘Art. 1.783-A. A tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade’ (Brasil, 2015bBRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão das Pessoas com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, ano 152, n. 127, p. 2-11, 7 jul. 2015b., p. 10).

O texto é composto pelo artigo acima descrito e por mais onze parágrafos que visam estabelecer as condições, as situações e a duração que o instituto jurídico deverá assumir. Com isso, a ‘Tomada de Decisão Apoiada’ operou uma inovação do ponto de vista sociojurídico que retirava a pessoa com deficiência da condição de civilmente incapaz em todas as formas de experimentar e estabelecer relações. Para Costa (2017)COSTA, K. W. O. A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência e o Regime de Incapacidades no Código Civil. Cadernos do Ministério Público do Ceará, Fortaleza, v. 1, n. 1, p. 173-212, jan./jun. 2017., a partir a Lei de Inclusão o conceito de ‘capacidade civil’ foi reconstruído e ampliado, vide o ‘Art. 6º’.22 22 ‘Art. 6º A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para: I - casar-se e constituir união estável; II - exercer direitos sexuais e reprodutivos; III - exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar; IV - conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória; V - exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e VI - exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas’ (Brasil, 2015b, p. 3). Por consequência, ao menos da óptica da prática jurídica, esse reordenamento dos dispositivos normativos desassociava as noções de ‘incapacidade’ e de ‘curatela’ como sinônimos de ‘deficiência’.

Consoante afirmam Rosenvald e Farias (2016)ROSENVALD, N.; FARIAS, C. C. Curso de Direito Civil: família. 9. ed. rev. amp. atual. Salvador: JusPodivm, 2016., tal dissociação decorre do fato de ‘pessoas com deficiência’ e ‘incapazes’ serem descrições jurídicas de situações diferentes. Para eles, a ‘pessoa com deficiência’ disfruta de sua plena capacidade de exercer direitos civis, patrimoniais e existenciais. Já o assignado como ‘incapaz’ é um sujeito cuja principal característica é a impossibilidade do “autogoverno”. Por isso, o ‘incapaz’ é alguém que não pode exprimir de maneira consciente e esclarecida sua vontade. Todavia, afirma Costa (2017)COSTA, K. W. O. A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência e o Regime de Incapacidades no Código Civil. Cadernos do Ministério Público do Ceará, Fortaleza, v. 1, n. 1, p. 173-212, jan./jun. 2017., algumas pessoas com deficiência têm impedimentos graves que podem também impossibilitá-las de exprimir suas vontades de maneira esclarecida e consciente. Ainda assim, tais impedimentos para com determinadas pessoas com deficiência não devem ser lidos como uma condição a priori.

Todavia, poucos meses depois da aprovação da LBI e de sua publicação no Diário Oficial, em 1º de dezembro de 2015 foi apresentado o Projeto de Lei do Senado nº 757/2015 que prevê a alteração da

‘Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), [d]a Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), e [d]a Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), para dispor sobre a igualdade civil e o apoio às pessoas sem pleno discernimento ou que não puderem exprimir sua vontade, os limites da curatela, os efeitos e o procedimento da tomada de decisão apoiada.’ (Brasil, 2018BRASIL. PL 11091/2018. Altera a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e a Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), para dispor sobre o direito à capacidade civil das pessoas com deficiência em igualdade de condições com as demais pessoas e sobre as medidas apropriadas para prover o acesso das pessoas com deficiência ao apoio de que necessitarem para o exercício de sua capacidade civil. Autor: Senado Federal - Antonio Carlos Valadares - PSB/SE. Brasília: Câmara dos Deputados, 29 nov. 2018. Disponível em: Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2187924 . Acesso em: 13 jul. 2022.
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb...
).

Em síntese: uma nova revisão à ‘Teoria das Incapacidades’ do Código Civil brasileiro. O alcance, duração e efetividade da proposição de revisão tem ainda um futuro incerto, uma vez que o projeto está em tramitação na Câmara dos Deputados. Posteriormente necessita ser sancionado pelo presidente da República em exercício.23 23 Ver tramitação em Brasil (2018).

De toda maneira, não é demasiado reafirmar que os efeitos das inovações trazidas pela Lei de Inclusão não são imediatos. Esse novo repertório de regulação é reapropriado pelos diferentes agentes em sua aplicação. Quero salientar com isso que os novos conceitos são agenciados pelos operadores da lei, mas também por agentes de saúde e de assistência social, a partir de práticas e usos antigos. Além disso, conflitam com os usos empreendidos pelos novos atores que emergem nesse processo (Gregori, 2000GREGORI, M. F. Viração: experiência de meninos de rua. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.). Portanto, penso ser ilusório acreditar que a transformação de uma reinvindicação em uma normativa jurídica encerra um problema. Ao contrário, a reconfiguração conceitual da deficiência, bem como emergência de pessoas com deficiência como sujeitos de direitos, não é o fim, mas sim o início de inúmeros outros dilemas. O exercício jurídico da sexualidade, por exemplo, é um destes.

Pessoas com deficiência intelectual como sujeitos de sexualidade?

Da perspectiva sociojurídica, foi apenas na Convenção de Direitos da ONU de 2007 que se fez menção, no Preâmbulo, no ‘Artigo 8’, no ‘Artigo 6’ e no ‘Artigo 25’, a temas como sexualidade, saúde sexual e reprodutiva e casamento. Estes, por sua vez, também aparecem várias vezes no texto da Lei de Inclusão de 2015. Porém, aqui quero ressaltar menos o caráter inovador dos diplomas legais e mais as estratégias pelas quais essas temáticas foram incorporadas como direitos. Segundo Mattar (2008)MATTAR, L. D. Reconhecimento jurídico dos direitos sexuais - uma análise comparativa com os direitos reprodutivos. Sur: revista internacional de direitos humanos, São Paulo, ano 5, n. 8, p. 60-83, jun. 2008., tal processo tardio é fruto de um conjunto de moralidades religiosas e interesses políticos que, entre outros fatores, relacionava sexo, sexualidade e reprodução como expressões indissociáveis.

Para Schaaf (2011)SCHAAF, M. Negociando sexualidade na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Sur: revista internacional de direitos humanos, São Paulo, v. 8, n. 14, p. 115-135, 2011., esse silenciamento persistiu justamente por ser a sexualidade compreendida como um aspecto individual, privado e apolítico e não um construto histórico e culturalmente variado em um tempo e espaço, como enunciado por Foucault (1993)FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1993.. É salutar destacar a importante atuação dos movimentos feministas e de mulheres, dos movimentos de gays e lésbicas e, mais recentemente, os esforços empreendidos pelos movimentos trans em reivindicar direitos sexuais e reprodutivos. Mais recentemente, afirma Shakespeare (1998)SHAKESPEARE, T. Poder y prejuicio: los temas gênero, sexualidad y discapacidad. In: BARTON, L. (comp.). Discapacidad y sociedadad. Madrid: Morata; La Coruña: Fundación Paideia, 1998. p. 205-229., pessoas com deficiência e estudiosos têm rompido o silenciamento sobre suas sexualidades (García-Santesmases Fernández, 2017GARCÍA-SANTESMASES FERNÁNDEZ, A. Cuerpos (im)pertinientes: un análisis queer-crip de las posibilidades de subversión desde la diversidad funcional. 2017. Tesis (Doctorado en Sociología) - Universitat de Barcelona, Barcelona, 2017.; Gavério, 2021GAVÉRIO, M. Estranhos desejos: a proliferação de categorias científicas sobre os “desejos pela deficiência”. Educação em Análise, Londrina, v. 6, n. 1, p. 52-75, jan./jul. 2021.; McRuer, Mollow, 2012McRUER, R.; MOLLOW, A. (ed.). Sex and disability. Durham: Duke University Press, 2012.; Meinerz, 2010MEINERZ, N. Corpos e outras (de)limitações sexuais: uma análise antropológica da revista Sexuality and Disability. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 25, n. 72, p. 117-132, 2010.; Mello, 2018MELLO, A. G. Dos pontos de vista antropológico, queer e crip: corpo, gênero e sexualidade na experiência da deficiência. In: GROSSI, M.; FERNANDES, F. (org.). A força da “situação” de campo: ensaios sobre antropologia e teoria queer. Florianópolis: Edusc, 2018. p. 255-278.). Parte substancial desse esforço tem sido a desconstrução do suposto de que a sexualidade de pessoas com deficiências é inquestionavelmente anormal (Giami, 2004GIAMI, A. O anjo e a fera: sexualidade, deficiência mental, instituição. São Paulo: Casa dos Psicólogos, 2004.; Marcon, 2012MARCON, K. J. A visibilidade das pessoas com deficiência como “sujeitos de sexualidade”. In: REUNIÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA, 28., 2012, São Paulo. Anais […]. São Paulo: ABA, 2012. Disponível em: Disponível em: http://evento.abant.org.br/rba/28RBA/ . Acesso em: 10 jul. 2021.
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; Shakespeare, 1998SHAKESPEARE, T. Poder y prejuicio: los temas gênero, sexualidad y discapacidad. In: BARTON, L. (comp.). Discapacidad y sociedadad. Madrid: Morata; La Coruña: Fundación Paideia, 1998. p. 205-229.; Simões, 2014SIMÕES, J. Assexuados, libidinosos ou um paradoxo sexual?: gênero e sexualidade em pessoas com deficiência intelectual. 2014. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2014.).

Os marcos regulatórios do que hoje chamamos direitos sexuais e reprodutivos nos levam à Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, realizada no Cairo em 1994, e à Conferência Mundial da Mulher, realizada em Pequim em 1995.24 24 Tendo em conta a proposta de tornar a Lei Brasileira de Inclusão como um artefato etnográfico, é de suma importância indicar que o mesmo poderia ser realizado com as declarações de direitos sexuais e reprodutivos das quais o Brasil é signatário. Entretanto, fazer tal esforço extrapolaria o limite de páginas destinadas ao artigo. Com isso, opto por recompor as narrativas sobre direitos sexuais e reprodutivos a partir de discussões realizadas por autoras, mas ciente de que tais declarações mereciam tratamento similar ao que dei a LBI. Nesse sentido, estimulo que outras reflexões sigam com a proposta aqui defendida. Consoante afirma Ávila (2003)ÁVILA, M. B. Direitos sexuais e reprodutivos: desafios para as políticas de saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 19, sup. 2, p. s465-s469, 2003., foi no cerne das lutas de dois movimentos históricos distintos, o populacional e o de mulheres, que tais direitos emergiram como direito humano. No Cairo, a estratégia adotada foi vincular as reivindicações dos direitos reprodutivos ao direito à saúde. Houve, sem dúvidas, ganhos ao dar à questão um lugar, mas isso aconteceu ao preço de se negligenciar e enfraquecer as reivindicações sobre as sexualidades, visto que estas não constaram no relatório final da conferência do Cairo. De acordo com Rios (2013RIOS, R. R. Para um direito democrático da sexualidade. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 12, n. 26, p. 71-100, jul./dez. 2013., p. 7), foi somente na conferência de Pequim em 1995 que se pôde sinalizar o “reconhecimento de direitos sexuais, destacando-se o de exercer a sexualidade e a reprodução livre de discriminações, coerções e violências”.

De modo similar ao que ocorreu no Cairo, a vinculação à saúde foi a tática escolhida. A epidemia de HIV/AIDS, as doenças sexualmente transmissíveis e a saúde da mulher novamente se transformaram em bandeiras levantadas para a formulação dos direitos sexuais como direito humano. Além disso, em Pequim os movimentos de mulheres, feministas e LGBT também tiveram de enfrentar as posições do Vaticano e de alguns Estados muçulmanos. Estes rechaçavam quaisquer discussões sobre aborto, controle de natalidade e orientação sexual, por exemplo, e sustentavam um argumento centrado num pressuposto biológico frágil que convertia “a atividade sexual de cada um em um balizador moral de pessoa, ficando seu caráter e moral subordinados à sua condição de homo ou heterossexual, casado ou não, regrado ou não quanto ao sexo” (Mattar, 2008MATTAR, L. D. Reconhecimento jurídico dos direitos sexuais - uma análise comparativa com os direitos reprodutivos. Sur: revista internacional de direitos humanos, São Paulo, ano 5, n. 8, p. 60-83, jun. 2008., p. 72).

Por conta dessas posições morais, afirma Petchesky (1999)PETCHESKY, R. Sexual rights: inventing a concept, mapping an international practice. In: PARKER, R. (ed.). Framing the sexual subject: the politics of gender, sexuality and power. Berkeley: University of California Press, 1999. p. 81-103., construiu-se uma espécie de pânico moral em torno de práticas não heterossexuais e da livre sexualidade feminina. Tal perspectiva religiosa sustentava um suposto biológico afirmando que a existência de dois sexos indicava posições sociais fixas de homens e mulheres com fins meramente de procriação. Com isso, ao conceberem a sexualidade somente por esse referencial biológico limitante, reiteravam a heterossexualidade como manifestação natural da sexualidade humana e retiravam do horizonte relações sexuais que tivessem o prazer como finalidade. É interessante notar que essa perspectiva religiosa que interconectava sexo, casamento, reprodução e heterossexualidade já ressoava anteriormente no ordenamento jurídico brasileiro.

A Constituição Federal de 1988, por exemplo, definia: ‘Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. […] § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento’ (Brasil, 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, ano 136, n. 191-A, p. 1-32, 5 out. 1988., p. 25). De maneira semelhante, o Código Civil de 2002 define: ‘Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família’ (Brasil, 2002BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, ano 139, n. 8, p. 1-74, 11 jan. 2002., p. 64).25 25 Em maio de 2011 o STF julgou a ADI 4.227 e a ADPF 132 decidindo pela interpretação de que família também é a união estável de pessoas do mesmo sexo. Em maio de 2013 o Conselho Nacional de Justiça publica a Resolução nº 175, que ‘Dispõe sobre a habilitação, celebração de casamento civil, ou de conversão de união estável em casamento, entre pessoas de mesmo sexo’ (Brasil, 2013).

Para além disso, tais moralidades produziram implicações no modo pelos quais se formularam os direitos sexuais. Isto é, ainda que o horizonte seja o direito a exercer a sexualidade e a reprodução livre de discriminação, coerção ou violência, o que se converteu como possibilidade, nacional e internacionalmente, foi a formulação de tais direitos por certa perspectiva epidemiológica da saúde. São os riscos à saúde física, individual e coletiva, àquilo a ser protegido e garantido. Nos casos de pessoas com deficiência, evidência disso está na produção e divulgação de normas técnicas elaboradas pelo governo federal brasileiro sobre o tema (Brasil, 2009bBRASIL. Ministério da Saúde. Direitos sexuais e reprodutivos na integralidade da atenção à saúde de pessoas com deficiência. Brasília: MS, 2009b., 2010BRASIL. Ministério da Saúde. I Seminário Nacional de Saúde: direitos sexuais e reprodutivos e pessoas com deficiência. Brasília: MS, 2010.). Em linhas gerais, os direitos sexuais e reprodutivos são considerados como questão de saúde pública e se apresentam desde uma dupla dimensão na publicação Direitos sexuais e reprodutivos na integralidade da atenção à saúde de pessoas com deficiência, de 2009 (Brasil, 2009bBRASIL. Ministério da Saúde. Direitos sexuais e reprodutivos na integralidade da atenção à saúde de pessoas com deficiência. Brasília: MS, 2009b.).

Uma das dimensões assume a sexualidade por viés epidemiológico e, assim, centra-se em questões como doenças sexualmente transmissíveis (DST), HIV/AIDS, gravidez e reprodução. A outra das dimensões vincula sexo, sexualidade, deficiência e violência sexual a partir da concepção de vulnerabilidade entendida “como resultante de um conjunto de fragilidades individuais e precariedades sociais que atingem um sujeito cujas condições de vida e saúde são influenciadas ou determinadas pelo social e pela história” (Brasil, 2009bBRASIL. Ministério da Saúde. Direitos sexuais e reprodutivos na integralidade da atenção à saúde de pessoas com deficiência. Brasília: MS, 2009b., p. 47). Apoiada em estudos internacionais, a norma indica que ‘mulheres com deficiência’ são três vezes mais vulneráveis a casos de violência sexual que “mulheres sem deficiência”. Dissecando a categoria ‘mulher com deficiência’, o documento afirma que os casos de abuso e violência sexual contra ‘mulheres com deficiência intelectual’ beira aos 60%.

Assim sendo, as situações de “vulnerabilidade” precisam ser enfrentadas como uma questão de saúde pública a partir de duas frentes. Uma delas é a elaboração e divulgação de materiais de educação e orientação sexual. A outra está na atenção e cuidado às situações de violência e na sensibilização para que novos episódios não aconteçam. Para tal, recomenda-se que tais ações ocorram desde os e nos serviços de políticas públicas já existentes. Contudo, indica-se a importância de se ter em conta as especificidades que tais casos demandam. Dessa maneira, a norma do Ministério da Saúde pretende garantir o respeito ao princípio de igualdade, uma vez que ‘pessoas com deficiência’ devem ser equiparadas às ‘pessoas sem deficiência’. Todavia, visa assegurar o respeito à diferença, pois as especificidades envolvendo os casos a serem atendidos pelos serviços de saúde não devem ser articuladas desde uma perspectiva da desigualdade.

Porém, ao elaborar pessoas com deficiência, e em especial as pessoas com deficiência intelectual, como sujeitos de sexualidade, as políticas públicas brasileiras e, também, as relações cotidianas, ainda operam com referenciais distintos do que foi assumido pela Convenção da ONU e, mais tarde, pela LBI com a introdução da ‘tomada de decisão apoiada’. Conforme afirmei, a vinculação entre deficiência intelectual, violência, incapacidade e vulnerabilidade como inerente às relações estabelecidas pelos assim assignados converte todos os vínculos afetivo/sexuais estabelecidos por e entre pessoas com deficiência intelectual como eminentemente perigosos a si e aos outros.26 26 Não estou querendo dizer, com isso, que pessoas com deficiência intelectual não são suscetíveis às situações de violência sexual. O quero enfatizar é que incapacidade, vulnerabilidade e deficiência intelectual não estão necessariamente vinculadas e, tampouco, decorrem umas das outras. Sustento tal afirmação a partir de duas situações advindas de minhas investigações.

A primeira delas se refere ao relacionamento impossível entre Antonio e Cibele, e se dá no registro das relações cotidianas. Ambos frequentavam a instituição para pessoas com deficiência intelectual em que realizei pesquisa de mestrado. O rapaz, que à época de minha investigação tinha 32 anos de idade, era considerado por funcionários e frequentadores da instituição como um exemplo de masculinidade. Ele era alto, forte, tinha frequentado até o terceiro ano do ensino fundamental I e sempre ajudava nas tarefas manuais. Entre 21 e 23 anos de idade, namorou uma mulher sem deficiência intelectual mantendo relações sexuais. Exatamente por tal motivo, ele era considerado pelos profissionais e pelos familiares das demais pessoas que frequentavam a instituição como alguém que manifestava uma ‘deficiência muito leve’.

Antonio nutria paixão por Cibele, uma das frequentadoras da instituição considerada como um exemplo de feminilidade. Ela tinha 19 anos, delicada, quase sempre fazia uso de maquiagem e vestia roupas consideradas como sendo de bom gosto e acertadamente femininas. Era sorridente, de fala tranquila e bastante prestativa, tendo muitas vezes ajudado outros frequentadores que apresentavam alguma dificuldade motora a realizar as atividades propostas. Cibele frequentava o período da tarde na instituição, justamente para evitar o encontro com Antonio. Segundo o que me foi contado, ambos tiveram um breve relacionamento afetivo, rompido quando o rapaz propôs que eles mantivessem relações sexuais.

A partir de tal proposta, os pais da garota afirmaram ser melhor que eles não tivessem mais contato, pois entendiam que ter relações sexuais não condizia com a condição de deficiência intelectual de Cibele. Consoante me foi dito, os pais da garota e alguns dos profissionais da instituição entendiam existir uma relação de desigualdade entre Antonio e Cibele. No rapaz a deficiência se manifestava de maneira mais ‘amena’ e, por isso, ele tinha ‘mais malícia’ no trato cotidiano com as pessoas. Prova disso são as relações sexuais mantidas com uma mulher sem deficiência. Já a garota demonstrava ‘grau mais acentuado’ de sua deficiência intelectual e, por tal motivo, não entendia os riscos que uma relação sexual podia trazer. Dessa maneira, ambos foram separados e não mantinham contato entre si sem que estivessem sob vigilância de uma pessoa sem deficiência. Assim, a solução encontrada construía Antonio com um elemento de risco por sua ‘sexualidade mais desenvolvida’ e Cibele como incapaz de compreender os perigos de uma relação sexual e, por isso, ‘vulnerável’.

O outro caso envolve uma garota de 17 anos com deficiência intelectual e se situa no registro sociojurídico. Durante o doutoramento, em pesquisa de campo num centro de saúde para mulher no interior do Estado de São Paulo, conversava com uma das assistentes sociais sobre um caso bastante complexo. Segundo o que me disse, uma garota de 17 anos com deficiência intelectual chegou ao centro de saúde para fazer pré-natal, pois havia engravidado de seu namorado de 23 anos sem deficiência intelectual. A relação que ambos estabeleciam era consentida pela garota e pelos pais e ambos viviam juntos a mais de um ano em uma casa alugada pelo rapaz. Tudo parecia correr bem não fosse o desenrolar da consulta realizada pela garota. Juridicamente toda consulta médica envolvendo saúde sexual de menores de 18 anos, tutelados ou curatelados, e maiores de 18 anos curatelados deve ser notificada ao conselho tutelar (Brasil, 2011BRASIL. Ministério da Saúde. Aspectos jurídicos do atendimento às vítimas de violência sexual: perguntas e respostas para profissionais de saúde. 2. ed. Brasília: MS, 2011.).

Isso ocorre pelo fato de que as denúncias de crimes sexuais contra vulneráveis são públicas e incondicionadas. Tendo em vista que aquela era a primeira consulta realizada pela garota, houve necessidade de realizar notificação. Por uma série de burocracias e intransigências por parte do conselho tutelar, este interveio na história e denunciou os pais da garota, acusando-os de negligência e abandono de vulneráveis, e o namorado, acusando-o de violência sexual. O caso se desdobrou ao ponto de a garota ser afastada dos pais e do namorado e, temporariamente, ficar em abrigo para mulheres em situação de violência. Foram necessários vários meses até que a situação fosse esclarecida e que tanto a garota quanto os pais e o namorado voltassem a viver juntos. A situação me parece elucidativa do modo como vulnerabilidade, deficiência intelectual, sexualidade e violência sexual foram desdobradas uma em decorrência das outras.

Consoante pode ser observado, os dois casos ocorrem antes da promulgação da LBI. Como é sabido, com o Estatuto a garantia de direitos alcançaria patamar nunca atingido. O conjunto de leis, compromissos e políticas públicas que passam a incluir as demandas de pessoas com deficiência em suas execuções transformam o Brasil em um dos países mais avançados na proteção e garantia de direitos para essa parcela da população. Todavia, como bem afirma Bobbio (2004)BOBBIO, N. A era dos direitos. 7. reimp. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004., proclamar um direito não é o mesmo que disfrutar efetivamente desse direito. É incontestável, afirma o autor, a função prática da linguagem dos direitos em construir e dar oficialidade e legitimidade às “reivindicações dos movimentos que demandam para si e para os outros a satisfação entre o direito reivindicado e o direito reconhecido e protegido” (Bobbio, 2004BOBBIO, N. A era dos direitos. 7. reimp. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004., p. 11).

É inegável que o novo léxico e as novas definições do texto legal tenham produzido outras possibilidades de acesso a direitos sexuais e reprodutivos para esse grupo. Também há de se reconhecer que essas são as conquistas iniciais de um longo processo de reivindicação dos ativismos das deficiências. De todo modo, não se deve perder de vista as contradições e os conflitos que compõem essa trama institucional da deficiência. As diversas vozes, os diferentes agentes e as variadas instituições que conformam essa trama operam e são operados por modalidades de gestão, no mínimo, ambivalentes - haja vista as contendas e as incertezas na definição do alcance da ‘tomada de decisão apoiada’, dos dois casos acima descritos e da própria definição jurídica da deficiência.

Tendo em vista esses impasses, é a imagem congelada pela curatela, em sua manifestação como incapacidade e não do sujeito capaz assistido pela ‘decisão apoiada’, o que continua a ser operado, seja pela prática médica, seja pela prática sociojurídica, seja pelas e nas relações cotidianas. Isso porque, ao se preservar, reparar e garantir sujeitos retirando deles sua capacidade de agência, estes são conformados como não capacitados de gerir suas próprias vontades. Todavia, é preciso lembrar que o ato de preservar, de reparar e de garantir é o que constrói esses sujeitos como atores políticos ativos fundamentais para a fiança jurídica de seus próprios direitos e deveres. Uma vez mais, a linguagem jurídica se assume como o idioma oficial e legítimo, mas que cristaliza um encadeamento entre ‘deficiência’, ‘violência’ e ‘incapacidade’ bastante problemático.

Disso decorre uma situação, no mínimo, ambígua. A emergência de pessoas com deficiência intelectual como sujeitos de sexualidade coloca em termos legais uma prática há muito experienciada por essa parcela da população em suas trocas cotidianas. É fato, no entanto, que tais práticas ora são reprimidas, ora encorajadas, ora ignoradas, ora criminalizadas, ora são convertidas em problemas morais que demandam respostas jurídicas. Em síntese: temos uma legislação avançada que redefine a ‘deficiência’ a partir de um modelo teórico social, que produz a capacidade civil a partir da ‘tomada de decisão apoiada’, que faz emergir pessoas com deficiência intelectual como sujeitos de sexualidade e, ao mesmo tempo, uma prática social e jurídica que recoloca a essas pessoas a incapacidade, a falta, a assexualidade ou a hipersexualidade como as manifestações possíveis desses corpos. Eis aí um grande desafio a ser enfrentado e que se coloca a todos nós.

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  • 1
    Intitulada Dos sujeitos de direitos, das políticas públicas e das gramáticas emocionais em situações de violência sexual contra mulheres com Deficiência Intelectual, a tese foi orientada pela Professora Maria Filomena Gregori e defendida em 2019. A pesquisa recebeu financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Processo nº 15/19346-0). No entanto, as reflexões empreendidas neste artigo também desdobram as discussões por mim realizadas em pesquisa de pós-doutoramento também financiada pela Fapesp (Processo nº 19/24556-9).
  • 2
    Lei Brasileira de Inclusão, LBI, Lei de Inclusão, Estatuto e Estatuto da Pessoa com Deficiência serão utilizados neste artigo como termos sinônimos, uma vez que aparecem no material de pesquisa nessas diversas acepções.
  • 3
    Utilizo aspas simples para demarcar expressões do material de pesquisa. As aspas duplas são utilizadas para trechos de textos que não são tomados como material de pesquisa, assim como para citações diretas de autores. Já o negrito no corpo do texto visa enfatizar termos, categorias e conceitos importantes para o artigo.
  • 4
    Isto é, uma modalidade que se constitui a partir da e na retroalimentação dos saberes médicos e jurídicos ao produzirem uma concepção de deficiência que é tanto médica quanto jurídica. Dessa maneira, tal modalidade visa gestar, gerir práticas de regulação e controle de corpos, sujeitos e seus acessos a direitos.
  • 5
    Os efeitos dessas inovações não são imediatos. Muitos desses novos termos introduzidos pelo texto da lei são reapropriados por operadores do direito a partir de práticas e usos antigos. Para discussão aprofundada, ver Andrade (2012)ANDRADE, F. Fios para trançar, jogos para armar: o fazer policial nos crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher. 2012. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2012. e Lins (2014)LINS, B. A. A lei nas entrelinhas: a Lei Maria da Penha e o trabalho policial em duas Delegacias de Defesa da Mulher de São Paulo. 2014. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. sobre o efeito da Lei Maria da Penha no fazer policial.
  • 6
    Tornando o debate ainda mais complexo, Fietz (2016a)FIETZ, H. M. Relações familiares e a “incapacidade para os atos da vida civil”: reflexões a partir de um caso de “não interdição”. REA, [s. l.], n. 2, p. 87-94, jun. 2016a. nos apresenta uma potente discussão que tensiona o âmbito jurídico a partir de um caso de não interdição de uma pessoa com deficiência.
  • 7
    Ver Diniz, Medeiros e Squinca (2007)DINIZ, D.; MEDEIROS, M.; SQUINCA, F. Reflexões sobre a versão em português da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 23, n. 10, p. 2507-2510, 2007..
  • 8
    Segundo Rosenvald (2015ROSENVALD, N. Em 11 perguntas e respostas: tudo que você precisa saber para conhecer o Estatuto da Pessoa com Deficiência. Boletim Informativo [do] CAOCIFE, Salvador, n. 13, p. 5-10, ago. 2015., p. 9), “mesmo nos específicos atos em que seja coadjuvado pelos apoiadores, a pessoa com deficiência não sofrerá restrição em seu estado de plena capacidade, apenas será privada de legitimidade para praticar episódicos atos da vida civil”.
  • 9
    O introito sobre as mudanças implementadas pela LBI até aqui apresentado visa explicitar o modo como os debates e disputas em torno da ‘Teoria das Incapacidades’ se fizeram eminentemente pelo conteúdo do que se modificava e regulava. Entretanto, consoante argumentado nas páginas acima, a ênfase que dou ao conteúdo normativo dos diplomas legais não está dissociada da forma-lei que o constrange, organiza e delimita. Além disso, consoante demonstrarei com a descrição da Lei de Inclusão, tanto forma quanto conteúdo são elementos constitutivos dos sujeitos e dos objetos de direitos que o Estatuo faz emergir.
  • 10
  • 11
    Tento aqui reproduzir as grafias, as mudanças tipográficas presentes no Diário Oficial da União. Conforme afirmam Riles (2001)RILES, A. The network inside out. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2001. e Nadai (2018)NADAI, L. Entre pedaços, corpos, técnicas e vestígios: o Instituto Médico Legal e suas tramas. 2018. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2018., as formas e tipografias constrangem o que se pode e se deve ser descrito nos documentos oficias produzidos pelas instâncias estatais.
  • 12
    Essa mesma definição pode ser encontrada na página 3 do Diário Oficial de 26 de agosto de 2009 que publica o Decreto nº 6.949 (Brasil, 2009aBRASIL. Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Institui o Comitê Gestor do Programa de Inclusão Digital - CGPID, e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, ano 137, n. 243, p. 2-3, 26 ago. 2009a.).
  • 13
    Apesar de extremamente importantes, não retomarei o debate teórico-políticos e, tampouco, a participação dos movimentos de pessoas com deficiência na Constituinte. Ver: Lanna Jr. (2010)LANNA JR., M. C. M. (comp. ). História do movimento político das pessoas com deficiência no Brasil. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos: Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, 2010., Lopes (2019)LOPES, P. Deficiência como categoria analítica: trânsitos entre ser, estar e se tornar. Anuário Antropológico, [s. l.], v. 44, n. 1, p. 67-91, 2019., Nuernberg; Mello (2012)NUERNBERG, A. H.; MELLO, A. G. Gênero e deficiência: intersecções e perspectivas. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 20, n. 3, p. 635-655, set./dez. 2012..
  • 14
    Não cabe aqui enunciar todas as alterações realizadas pela lei, pois dá nova redação para 14 outros artigos. As alterações no texto legal que interessam para o texto em questão estão contidas nos artigos 3º e 4º.
  • 15
    NR é a abreviação de Nova Redação.
  • 16
    O texto segue com o inciso IV e ‘Parágrafo único. A capacidade dos indígenas será regulada por legislação especial. (NR)’ (Brasil, 2015bBRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão das Pessoas com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, ano 152, n. 127, p. 2-11, 7 jul. 2015b., p. 10).
  • 17
    O texto segue com o inciso IV e ‘Parágrafo único. A capacidade dos índios será regulada por legislação especial.’ (Brasil, 2002BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, ano 139, n. 8, p. 1-74, 11 jan. 2002., p. 4).
  • 18
    Para mais ver: Simões (2019)SIMÕES, J. Dos sujeitos de direitos, das políticas públicas e das gramáticas emocionais em situações de violência sexual contra mulheres com deficiência intelectual. 2019. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2019..
  • 19
    Os artigos em questão são os de número 1.518, 1.548 e 1.550 e tratam das circunstâncias de revogação e/ou nulidade do casamento.
  • 20
    A LBI mantém a redação de todos os seis incisos do artigo, porém converte o parágrafo único do Código Civil em primeiro parágrafo e, como indicado, acrescenta um novo parágrafo ao artigo 1.550.
  • 21
    ‘Art. 1.768. O processo que define os termos da curatela deve ser promovido: (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Revogado pela Lei nº 13.105, de 2015).
    I - pelos pais ou tutores; (Revogado pela Lei nº 13.105, de 2015).
    II - pelo cônjuge, ou por qualquer parente; (Revogado pela Lei nº 13.105, de 2015).
    III - pelo Ministério Público. (Revogado pela Lei nº 13.105, de 2015).
    IV - pela própria pessoa. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015) (Revogado pela Lei nº 13.105, de 2015)’ (Brasil, 2015bBRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão das Pessoas com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, ano 152, n. 127, p. 2-11, 7 jul. 2015b., p. 10).
  • 22
    ‘Art. 6º A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para: I - casar-se e constituir união estável; II - exercer direitos sexuais e reprodutivos; III - exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar; IV - conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória; V - exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e VI - exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas’ (Brasil, 2015bBRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão das Pessoas com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, ano 152, n. 127, p. 2-11, 7 jul. 2015b., p. 3).
  • 23
    Ver tramitação em Brasil (2018)BRASIL. PL 11091/2018. Altera a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e a Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), para dispor sobre o direito à capacidade civil das pessoas com deficiência em igualdade de condições com as demais pessoas e sobre as medidas apropriadas para prover o acesso das pessoas com deficiência ao apoio de que necessitarem para o exercício de sua capacidade civil. Autor: Senado Federal - Antonio Carlos Valadares - PSB/SE. Brasília: Câmara dos Deputados, 29 nov. 2018. Disponível em: Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2187924 . Acesso em: 13 jul. 2022.
    https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb...
    .
  • 24
    Tendo em conta a proposta de tornar a Lei Brasileira de Inclusão como um artefato etnográfico, é de suma importância indicar que o mesmo poderia ser realizado com as declarações de direitos sexuais e reprodutivos das quais o Brasil é signatário. Entretanto, fazer tal esforço extrapolaria o limite de páginas destinadas ao artigo. Com isso, opto por recompor as narrativas sobre direitos sexuais e reprodutivos a partir de discussões realizadas por autoras, mas ciente de que tais declarações mereciam tratamento similar ao que dei a LBI. Nesse sentido, estimulo que outras reflexões sigam com a proposta aqui defendida.
  • 25
    Em maio de 2011 o STF julgou a ADI 4.227 e a ADPF 132 decidindo pela interpretação de que família também é a união estável de pessoas do mesmo sexo. Em maio de 2013 o Conselho Nacional de Justiça publica a Resolução nº 175, que ‘Dispõe sobre a habilitação, celebração de casamento civil, ou de conversão de união estável em casamento, entre pessoas de mesmo sexo’ (Brasil, 2013BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 175, de 14 de maio de 2013. Dispõe sobre a habilitação, celebração de casamento civil, ou de conversão de união estável em casamento, entre pessoas de mesmo sexo. Brasília: CNJ, 2013. Disponível em: Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/resolucao_175_14052013_16052013105518.pdf . Acesso em: 13 jul. 2021.
    https://atos.cnj.jus.br/files/resolucao_...
    ).
  • 26
    Não estou querendo dizer, com isso, que pessoas com deficiência intelectual não são suscetíveis às situações de violência sexual. O quero enfatizar é que incapacidade, vulnerabilidade e deficiência intelectual não estão necessariamente vinculadas e, tampouco, decorrem umas das outras.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Out 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    23 Out 2021
  • Aceito
    27 Jun 2022
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