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Antropologia e crise ambiental

Anthropology and environmental crisis

Resumo

Este artigo trata do tema da crise ambiental que nos ensina sobre reconhecer a devastação ocasionada pelos processos coloniais e o esforço global por uma emancipação ambiental. Abordamos o conceito de crise ambiental no âmbito do campo de conhecimento antropológico. Objetivamos refletir sobre a tensão, a violência e o conflito na relação entre a sociedade e a natureza. Em um mundo de recursos naturais finitos, destacamos o despreparo do poder público para lidar com os desafios climáticos e impactos do aquecimento global na forma desigual com que atinge a população mundial e a urgência de serviços do Estado para a mitigação de ações predatórias e a necessária inovação de biopolíticas (nacionais e internacionais) de preservação e fiscalização acompanhadas de ampla participação social.

Palavras-chave:
antropologia social; crise ambiental; ecossistema; biopolíticas

Abstract

This article addresses the theme of environmental crisis. In doing so, it helps us recognize the devastation caused by colonial processes and the global effort for environmental emancipation. As we approach the concept of environmental crisis from within the field of anthropological knowledge, we work to reflect the tensions, violence, and conflicts in the relationship between society and nature. In a world of finite natural resources, we highlight the unpreparedness of public authorities to deal with climate challenges and the unequal ways in which the impacts of global warming affect the world’s population. We highlight the urgency for the need of State services to mitigate predatory actions and the necessary innovation of biopolicies (national and international) of preservation and enforcement, accomplished through broad social participation.

Keywords:
social anthropology; environmental crisis; ecosystems; biopolitics

Questões para a antropologia sobre crise ambiental

A crise ambiental assola nosso planeta Terra. A destruição de florestas, as queimadas de campos e eliminação de pradarias cada vez mais cultivadas, a contaminação das águas, do ar, dos alimentos, o acúmulo de lixos de toda ordem, o consumo desenfreado, etc. remetem a uma crise ambiental de grandes proporções provocadas pela ausência de políticas que limitem e regulamentem a ação de indústrias poluidoras, de empresas com ações predatórias, a ação de mineradoras, do agronegócio, de garimpos irregulares, da especulação imobiliária sem planejamento de sustentabilidade ambiental. Todos esses são aspectos que têm enormes efeitos ecológicos, com potencialidade para abater a biodiversidade e perturbar a harmonia dos ecossistemas acelerando mudanças climáticas. Este é um contexto de crise ambiental.

Inúmeros estudos científicos apontam para a urgência de uma ordem mais ecológica. Esta demanda está evidenciada ao menos desde a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (Cnumad), realizada em junho de 1992 no Rio de Janeiro, que alerta a comunidade internacional para a importância de assumir práticas de sustentabilidade ambiental. Os fóruns mundiais sobre a questão ambiental seguem o difícil debate sobre a ausência de controle e fiscalização e negociam complexos acordos em torno da conservação da biodiversidade.

As ciências humanas, e a antropologia de modo mais específico, ampliam seus estudos teóricos e atualizam suas práticas metodológicas para considerar um campo conceitual apropriado aos eventos críticos em suas diversidades, não somente em face das grandes catástrofes, mas igualmente investigando as práticas ordinárias dos habitantes nos diferentes contextos e culturas. Teorias sobre riscos, poluição, resiliência, sustentabilidade, educação ambiental, reciclagem de resíduos, simetria, Antropoceno ou políticas de conscientização ambiental abrem um leque de reflexões sobre a ação humana que alertam sobre as políticas econômicas descompromissadas com o equilíbrio ecossistêmico. Os elementos fundantes da continuidade da humanidade como a terra, a água e o ar, as atividades-base para a sobrevivência humana como agricultura, saúde e reprodução são temas de profunda preocupação na antropologia crítica atual que se soma aos debates sobre a trajetória humana e a memória desse trajeto antropológico.

O processo civilizatório revelou ao longo dos séculos suas contradições e disjunções. O dueto industrialização e urbanização, tanto quanto colonialismo e imperialismo, avançou sobre ambientes florestais e rurais, em uma ocupação desordenada de leitos de rios, arroios e córregos e de encostas de morros, promovida por um movimento identificado como “comercialização da natureza”. Um fenômeno que atingiu igualmente outros ecossistemas como os manguezais, costões rochosos, restingas, lagoas costeiras, estuários, sistemas de delta, planícies salinas e praias (no caso dos centros urbanos em expansão em áreas costeiras). A Organização das Nações Unidas sugere que 75% das emissões de carbono na atmosfera (um dos gases de efeito estufa) resultam da ação deste dueto somado aos efeitos do desmatamento e defaunação.

Reconhecidamente o conceito que sintetiza este mal-estar da civilização é o de crise ambiental, a que se somam os de risco e medo que integram a rede complexa de representações, interações e de experiências dos estudos sobre os impactos nefastos que desintegram o ecossistema. Queremos, na organização deste número de Horizontes Antropológicos, nos somar à produção intelectual sobre o tema tão caro à antropologia brasileira e internacional.

Certo, trata-se de um conceito polissêmico assim como tantos outros de que temos nos apropriado para pensar as metrópoles contemporâneas em seus múltiplos dinamismos, onde ordem e desordem em seu ecossistema desenham um panorama singular para seus habitantes, desafiando-os a explorar outros valores para direcionar suas formas de vida. Desde então, reconhecemos o papel importante que as variáveis estabilidade/instabilidade ocupam em nossos procedimentos e ferramentas de pesquisa com a etnografia da duração, no campo da antropologia da e na cidade, no âmbito do projeto Banco de Imagens e Efeitos Visuais (UFRGS) que coordenamos em parceria com o Humans and Environmental Change Laboratory de estudos sobre mudanças ambientais, climáticas e populações da Universidade da Geórgia, Estados Unidos.

Para um debate conceitual

No artigo de Natacha Ordioni (2011)ORDIONI, N. Le concept de crise: un paradigme explicatif obsolète? Une approche sexospécifique. Mondes en développement, [s. l.], n. 2, p. 137-150, 2011. sobre o conceito de crise, originário do latim krisis, a autora aponta para a derivação do termo associado ao momento “paroxístico” (“crítico”) de uma doença em que ela pode conduzir à cura ou à morte, e onde a decisão (krinein) do especialista para o seu tratamento revela sua face crucial. A autora nos apresenta uma perspectiva etimológica das extensões semânticas no uso do termo “crise”, desde o seu uso na guerra do Peloponeso, passando pela referência às transmutações econômicas, políticas, financeiras e psicológicas ocorridas das/nas sociedades do Ocidente entre os séculos XVII e XIX, até o termo chegar aos nossos dias, relacionando-o ao estado de disfunção de um sistema que se torna incapaz de assegurar suas formas de funcionamento, fruto de uma incapacidade de restaurar sua antiga conjuntura ou as suas características consideradas, então, como intrínsecas.

No artigo mencionado, gostaríamos de destacar que as respectivas transformações semânticas do termo “crise” transcorrem, precisamente, no interior de pesquisas que seguem os paradigmas explicativos e/ou organicistas, em referência ao foco, em ambos os campos semânticos, dos estudos no fenômeno da ausência ou da perda do equilíbrio de um sistema. Para a citada autora, será somente na consolidação de novos paradigmas que surgem, ao longo do século XX no campo da ciência, que o termo “crise” perde a sua “tonalidade nostálgica”, sendo que cresce e se fortalece o seu uso como possibilidade de abertura de um sistema (e pensamos aqui, certamente, no ecossistema urbano) para o devir e que, segundo seus ciclos, o conduziriam para um novo momento, nos moldes de um novo estado.

É nesse sentido que ressaltamos que crises, através das suas múltiplas formas e características, não são vivenciadas de maneiras equivalentes. Embora possamos falar em “crises globais”, sejam de mudanças climáticas, produção alimentares, entre outros, a crise é sempre sentida por indivíduos. E, claro, para alguns os impactos são bem mais severos.

Voltando para a etimologia da palavra crise, ela pode levar pessoas literalmente à morte. Às vezes à morte cultural, ou perdendo os ecossistemas históricos ou pela remoção de comunidades para contextos inéditos, e para outros a crise leva à morte física, seja pela falta de poder ganhar a vida ou seja pela intoxicação do ambiente e em seguinte do corpo do ser humano. A heterogeneidade das experiências de crise salienta o valor de ciências e práticas que valorizam o local, muitas vezes viradas para populações invisíveis em outras escrituras. Por ser um resultado de ações do ser humano, não devia surpreender que os resultados negativos de uma crise prejudicam mais as comunidades já marginalizadas. O foco no local valoriza tanto a experiência vivida quanto análises profundas sobre o conjunto de fatores sociopolítico-ambientais que se interagem e se expressam no nível de comunidades e indivíduos.

Da mesma forma, Ordioni (2011)ORDIONI, N. Le concept de crise: un paradigme explicatif obsolète? Une approche sexospécifique. Mondes en développement, [s. l.], n. 2, p. 137-150, 2011. aponta para o sentido ambíguo que adota o termo “crise” nas teorias das flutuações e dos ciclos econômicos tanto quanto dos seus mecanismos de regulação que começam a surgir ao longo do século XIX e se prolongam no século posterior. Como no caso da sociologia, onde o termo “crise” remete às representações coletivas que um corpo social constrói sobre seu estado de equilíbrio, considerando o fundo de instabilidade, de arbitrariedade e de mutabilidade que rege suas formas. Ou, ainda, no caso das “ciências da vida” para as quais o termo “crise” descreve o processo que regula todo o sistema vivo, sendo a sua ausência a manifestação da presença da morte.

Assim sendo, sob a perspectiva dos estudos das condições de estabilidade/instabilidade ou da continuidade/descontinuidade de um ecossistema urbano se perpetuar (ou não) em suas formas e características é que, finalmente, desponta a presença direta ou indireta do conceito de crise (assim como o de risco e de vulnerabilidade), como parte integrante das pesquisas antropológicas nas sociedades complexas ao longo do século XX. Como reconhece a autora, as pressões históricas nos fornecem importantes chaves interpretativas do semantismo plural associado ao termo “crise”, agora, cada vez mais referido não apenas à noção de “sistema”, mas à de “estrutura”.

Temos aqui o dilema de pensar o termo “crise” no sentido da ação de variáveis exógenas a um sistema ou se, ao contrário, de enfocá-lo como parte integrante de um sistema, ou, para além dessa dualidade, repensar o “dentro” e o “fora” de um sistema ou de estrutura para o caso do sentido a ser atribuído ao termo “crise”. Isto é, sem excluir as contradições que os unem e que, da mesma forma, os mantém como um todo, o que nos conduziria a problematizar a própria noção de “sistema” ou de “estrutura” para o caso dos procedimentos de construção do conhecimento antropológico da crise ambiental no contexto das nossas sociedades complexas, urbanas e industriais.

Os múltiplos sentidos do termo “crise”, poderíamos dizer, estaria associado à forma como o Ocidente moderno operou uma ruptura entre o conhecimento humano e o cosmos no qual está integrado, sobredeterminando a ordem intelectual em detrimento de todas as outras, tidas como contingenciais e secundárias, e onde todos os procedimentos de compreensão dos fenômenos da cultura e da sociedade deve a ela se subordinar.

Nesse sentido, o artigo de Joel Robbins (2013)ROBBINS, J. Beyond the suffering subject: toward an anthropology of the good. Journal of the Royal Anthropological Institute, [s. l.], v. 19, n. 3, p. 447-462, 2013., que trata da antropologia do cristianismo, traz alguns comentários interessantes sobre as pesquisas que os antropólogos têm realizado em sociedades e culturas que sofreram os impactos da expansão do Ocidente judeu-cristão, salientando a forma simplificada com que muitos deles refletem sobre o tempo em se tratando de sociedades não ocidentais. No artigo o autor se refere aos estudos na área da antropologia da cristandade, mas nos apoiamos em algumas de suas reflexões para ampliar nosso campo de reflexões sobre o conceito de crise e seus significados como parte integrante desse longo trajeto antropológico de formação de nossos conceitos e teorias tanto quanto de nossos objetos/sujeitos de estudos.

Sem dúvida, esse cenário impõe desafios à antropologia de modo geral, mas em particular aos estudos de antropologia urbana, uma vez que a população mundial vive, em sua maioria, em áreas urbanas; segundo as Nações Unidas, estima-se que em 2050 o percentual atingirá a 66% (cf. United Nations, 2017UNITED NATIONS. Urban ecosystems and resource management. In: UNITED NATIONS. Habitat III Issue Papers. New York: United Nations, 2017. p. 108-115. Disponível em: Disponível em: https://habitat3.org/wp-content/uploads/Habitat-III-Issue-Papers-report.pdf . Acesso em: 20 mar. 2023.
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). As cidades ainda ocupam uma pequena parte da superfície do planeta, entretanto, em sua grande maioria, encontram-se cercadas seja por ecossistemas rurais, seja por ecossistema naturais, sendo que muitos deles já vêm sofrendo ação antrópica há séculos, alterando e sendo alteradas, portanto, por tais ecossistemas adjacentes, numa interdependência cada vez mais complexa. De fato as pegadas ecológicas de uma parte significativa da população são de natureza global.

Todo e qualquer ecossistema urbano não pode, nem deve, ser pensado isoladamente, pois ele sofre desde os seus efeitos em termos do abastecimento de água, drenagem urbana e esgotamento sanitário, decorrente da complexidade dos processos residenciais e comerciais, aos seus efeitos em eventos extremos, relacionados ao relevo e ao clima onde ele nasce e se origina, chegando até mesmo aos constrangimentos relativos às variáveis comerciais e socioeconômicas e aos padrões de produção e consumo ambientalmente ineficiente dos recursos, insustentável no longo prazo, de seus grupos humanos e que tem levado a diversos e múltiplos conflitos ambientais.

O que hoje denominamos crise estaria, assim, associado à perda do sentido original dos mitos histórico e do progresso não apenas para a sociedade ocidental ao longo dos séculos, mas para aqueles que operam no campo da produção do pensamento científico cada vez mais confrontados com as dimensões quiméricas presentes na “composição” dos “fatos” ou “dados” que são seus objetos de conhecimento. O que nos leva a incluir em nossas investigações, quer queiramos ou não, a feição mortal e o destino efêmero da civilização à qual pertencemos, tal qual transcorreu com outras civilizações no planeta.

Crise ambiental e dilemas para a antropologia

Os recursos e as limitações econômicas, culturais e ambientais de um território, as inter-relações, retroalimentações e interdependências dos fatores que capacitam determinado ambiente cósmico e social, como no caso dos grandes centros metropolitanos e suas áreas de ocupação e influências, de suportar pressões em meio a processos de mudanças passam a ser uma recorrência em nossos estudos na área da antropologia. E, por essa via, cada vez mais tangenciamos em nossas pesquisas o problema da capacidade dos grupos humanos das mais diversas regiões do planeta, na contemporaneidade, de operarem com as vulnerabilidades internas e externas a que se encontram submetidos diante das variáveis econômicas e socioculturais relacionadas aos problemas das mudanças climática e dos desastres previstos para este nosso século, e que podem afetar radicalmente as nossas formas de vida com as quais estamos habituados a lidar.

Nesses termos, os estudos da crise ambiental estamparia para nós, antropólogos(as) estudiosos(as) dos jogos de memória das sociedades ocidentais, moderno-contemporâneas, as possibilidades evidentes de nos concentrarmos na investigação das complexas mudanças de sorte ou das transformações iminentes das formas de vida dos grupos humanos no planeta, segundo uma sequência de forças, mais ou menos bruscas, acompanhadas ou não de catástrofes. Da mesma forma, tal conceito de crise aplicada às “questões ambientais” nos levaria a refletir sobre nossos construtos intelectuais como tributários, em parte, desse sentimento de fracasso das tais fábulas progressistas rebatidas no campo da ciência no sentido de esta cumprir seu destino faustiano.

As adaptações às mudanças climáticas, assim como às vulnerabilidades oriundas das atividades de mineração, os procedimentos de tratamento de resíduos sólidos, o desmatamento, a poluição e contaminação dos corpos hídricos de rios, lagoas e arroios pela indústria e o agronegócio, desafiam os estudos da antropologia das sociedades complexas a olhar diretamente para o problema indigesto do fim de uma civilização, situando suas formas culturais e sociais simplesmente como o fim de uma era ou o fim de uma época histórica da humanidade.

Ao abordamos em nossos estudos antropológicos os fenômenos que abarcam o tema da crise ambiental devemos, portanto, debruçarmo-nos sobre a violência herdada dos valores eurocêntricos oriundos da tradição das modernas sociedades ocidentais, urbanas e industriais, e de suas experiências coloniais em outros continentes, que ainda hoje se fazem presentes no mundo pós-colonial nas formas de pensar e de agir de muitos experts conservacionistas, tanto quanto aquelas ordenadas pelas políticas ecológicas das agencias globais e seus estilos ocidentais de dominação. Nos referimos às múltiplas formas com que o legado colonial se enraíza no modo com que se organizam as economias nacionais no sistema mundo global, nas suas políticas públicas pautadas na importação de modelos institucionais eurocêntricos, e que acabam criando hierarquias entre as culturas e as sociedades humanas. E, finalmente, nos referimos ao campo acadêmico da pesquisa nas ciências humanas e sociais cuja adoção de paradigmas ocidentais universalistas (Bancel et al., 2010BANCEL, N. et al. Introduction: de la fracture coloniale aux ruptures postcoloniales. In: BANCEL, N. et al. (dir.). Ruptures poscoloniales: les visages de la société française. Paris: La Découverte, 2010. p. 9-34., p. 17) por muito tempo tem nos desviado do problema das relações de poder e dominação no seio de nossas próprias produções intelectuais e da crítica ao “aparelho de verdade ocidental” (Chivallon, 2007CHIVALLON, C. La quête pathétique des postcolonial studies ou la révolution manquée. Mouvement, Paris, n. 51, p. 32-39, 2007., p. 37, tradução nossa).

Certamente, ao longo do século XX, em especial nas suas últimas décadas, a hegemonia da “megalomania reducionista” (Midgley, 1997MIDGLEY, M. Megalomania reduccionista. In: CORNWELL, J. (ed.). La imaginación de la naturaleza: las fronteras de la visión científica. Santiago de Chile: Editorial Universitaria, 1997. p. 167-180., p. 181, tradução nossa) que se fazia presente na produção científica e as criações tecnológicas na abordagem da relação entre as sociedades humanas e seu ambiente cósmico vão abrindo espaço para a afirmação de outros paradigmas no enfoque da crise ambiental.

Por um lado, diante da reapresentação de nossas sociedades urbanas e industriais como manifestação de uma matéria perecível e finita, o “poder ilimitado” (Atkins, 1997ATKINS, P. W. El poder limitador de la ciencia. In: CORNWELL, J. (ed.). La imaginación de la naturaliza: las fronteras de la visión científica. Santiago de Chile: Editorial Universitaria, 1997. p. 167-180., p. 167, tradução nossa) dos experts, técnicos e cientistas sob a perspectiva do olhar da crise ambiental os obriga, em sua arrogância, a operar a sua existência “em negativo”. Ou seja, a “crise ambiental” nos conduz a pensar que os fatos científicos com os quais operamos não podem ser pensados isoladamente, estando todos conectados entre si, e que devemos rastrear com mais diligência o arranjo instável de suas interconexões e ramificações.

Sob a ótica da história das ciências, entramos na era das “humanidades ambientais” como parte integrante dos grandes récits históricos sobre as transformações ambientais irreversíveis que as nossas sociedades contemporâneas vêm promovendo no seu ambiente cósmico. Esse domínio emergente das “humanidades ambientais” abarca alguns arranjos entres as pesquisas acadêmicas e intelectuais tendo como foco a “modernidade ocidental” que emerge do debate inaugurado pelo geólogo Paul Crutzen acerca do “Antropoceno” e suas conexões com os estudos críticos sobre a forma como Ocidente moderno promoveu as separações entre natureza e cultura e natureza e sociedade (Blanc; Demeulebaere; Feuerhann, 2017BLANC, G.; DEMEULEBAERE, É.; FEUERHANN, W. (dir.). Humanités environnementales, enquêtes et contre-enquêtes. Paris: Publications Sorbonne, 2017. (Histoire environnemental 02)., p. 12-13).

Disso decorre que os estudos mais recentes acerca das representações do tempo no cristianismo, e seu derivado “choque ecológico da colonização” (Blanc, 2022BLANC, G. Décolonisations, histoires situee d’Afrique et d’Asie (XIXe-XXIe sciècle). Paris: Éditons du Seuil, 2022., p. 56-57, tradução nossa) dos “países do Sul”, a invenção dos continentes e das raças e os seus efeitos nas “perspectivas científicas modernas”, significariam, para as formas fundacionais de conhecimento da antropologia, uma “afronta ao autoentendimento disciplinar”. Isso porque conduziriam, para o caso das heranças do antropocentrismo na conformação deste campo de conhecimento, seus investigadores a perceber que a figura do(a) antropólogo(a) e suas expertises não fazem sentido para aquelas culturas que fazem parte da cristandade (Robbins, 2007ROBBINS, J. Continuity thinking and the problem of Christian culture: belief, time, and the anthropology of Christianity. Current Anthropology: a world journal of the sciences of man, [s. l.], n. 1, p. 5-38, 2007., p. 9-11).

Vale mencionar que, para a área das humanidades ambientais, os problemas atuais da crise ambiental em muitos momentos cruzam com os estudos pós-coloniais que se debruçam sobre a história da colonização e suas práticas administrativas dos grandes impérios coloniais do Ocidente moderno: como no caso das discussões contidas na obra de Susan Harding (1991)HARDING, S. Representing fundamentalism: the problem of the repugnant cultural other. Social Research, v. 2, n. 58, p. 373-393, 1991. em torno da obra de Jean Comaroff e John Comaroff (1991)COMAROFF, J.; COMAROFF, J. Of revelation and revolution: Christianity, colonialism, and consciousness in South Africa: volume one. Chicago: The University of Chicago Press, 1991., considerada como um “clássico da antropologia da religião”, e a forma como os autores operam o enfrentamento da presença do “outro cultural repugnante” em seus estudos da ordem colonial e suas formas de administração na África do Sul. Ou, ainda, os estudos sobre cristianismo, colonialismo e transformação cultural de J. Robbins (2007ROBBINS, J. Continuity thinking and the problem of Christian culture: belief, time, and the anthropology of Christianity. Current Anthropology: a world journal of the sciences of man, [s. l.], n. 1, p. 5-38, 2007., p. 7), quando o autor comenta o esforço do casal de antropólogos para adequar empiricamente os “dados” etnográficos a um certo télos espiritual cristão, oriundo do colonizador (no caso, os missionários protestantes), de onde nasce a imagem empírica do Tswana não cristão.

As reflexões antropológicas enunciadas por J. Robbins ou por S. Harding sobre os mitos coloniais da Europa ocidental cristã nos conduzem a pensar a crise ambiental a partir do necessário diálogo da antropologia e da ecologia com os estudos históricos acerca do estilo ocidental de dominação em seus territórios além mar. Especialmente, em obras que tecem críticas aos “aparelhos de verdade ocidental” (Chivallon, 2007CHIVALLON, C. La quête pathétique des postcolonial studies ou la révolution manquée. Mouvement, Paris, n. 51, p. 32-39, 2007., p. 37, tradução nossa) e suas formas de perpetuação na modalidade de uma “governança colonial” (James, 2018JAMES, C. L. R. Histoire des révoltes panafricaines. Paris: Éditions Amsterdam, 2018., p. 34, tradução nossa) no contexto da diáspora pós-colonial, apontando para os seus reflexos catastróficos nas guerras e genocídios que pautam os movimentos políticos independentistas nacionalistas na África, Ásia e Oceania, após o desmantelamento dos impérios coloniais no século XX.

Os reflexos dessa tomada de consciência da complexidade do fenômeno da crise ambiental para o caso dos estudos etnográficos na área da antropologia das sociedades complexas nos convida a repensar os nossos temas/objetos de pesquisa segundo as variações de suas escalas (atores sociais, campos disciplinares, instituições, políticas acadêmicas), bem como os diversos contextos históricos, sociais e culturais e econômicos a elas associadas, e considerando-se as suas interconexões internacionais tanto quanto transnacionais.

A história da expansão imperial europeia não se interrompe, mas adota novas feições com vistas à permanência das doutrinas e práticas administrativas coloniais, agora sob a gestão das grandes potências comerciais do Ocidente e sua ingerência na fabricação de uma ordem nacional pós-colonial. O objeto seria, assim, a “naturalização dos continentes e das sociedades humanas” visando a manutenção, no interior dos novos territórios que surgem, das suas empresas de exploração e comercialização de cobre e cobalto, estanho, zinco, diamantes. Reinventa-se, assim, mito do paraíso perdido, agora projetado para certas áreas da exploração do planeta, divididos racialmente nas massas uniformes dos continentes, nas sábias palavras de Carl Ritter (2016)RITTER, C. La configuration des continents sur la surface du globe, et de leurs fonctions dans l’histoire. Paris: Hachette: Bibliothèque Nationale de France, 2016. (Collection Histoire)., e onde os grandes impérios coloniais pretendem reencontrar a “natureza desaparecida” da Europa.

Um mito edênico de origem judaico-cristã que remonta às origens mercantis e comerciais dos grandes impérios coloniais em tais regiões do planeta ressurge, portanto, sob novas vestes. Segundo seu télos a missão agora é a salvação dos vastos territórios virgens da presença humana, e os experts das grandes agências internacionais são os responsáveis por espalhar no planeta um novo colonialismo: o “colonialismo verde”. Cria-se uma nova etapa para superar a crise ambiental: a invenção dos parques nacionais como patrimônio mundial, territórios por excelência dos safáris (incluindo-se a caça legal) e do ecoturismo, oferecendo aos seus visitantes a “natureza bruta: a fauna, a flora e seus panoramas” em detrimento da manutenção e preservação das formas de vida de seus habitantes originários.

Para a antropologia das sociedades complexas isso significa que a “questão ambiental” desafia o etnógrafo a registrar não apenas a grandeza das culturas humanas e de suas criações, mas as suas avarezas e mesquinharias correlatadas. Por outro lado, na mesma perspectiva que sugere John Cornwell (2008)CORNWELL, J. Les savants d’Hitler; historie d’un pacte avec le diable. Paris: Albin Michel, 2008., nos referimos ao momento crucial em que experts e pesquisadores passam a refletir sobre procedimentos e técnicas de investigação de suas próprias culturas e sociedades - e a natureza das propriedades de fenômenos “críticos”, cujos contornos são difíceis de serem isolados.

Abordagens etnográficas e interpretativas sobre o tema

Para enfrentar o desafio interpretativo em torno do tema “Antropologia e crise ambiental”, apraz-nos expor trabalhos etnográficos e interpretativos tendo por base pesquisas de campo e/ou análises de conteúdo de dados secundários, que confrontam o dilema das experiências vividas sob o manto das complexidades ecológicas.

Abrindo nosso dossiê, Deborah Bronz trata dos processos de construção e desmonte das políticas ambientais e dos projetos de conservação para a Amazônia brasileira. Para isto a autora se apoia em estudo de caso sobre dois eventos historicamente datados. O artigo, intitulado “O desmonte ambiental pela via dos incêndios florestais na Amazônia brasileira”, tem por base a construção da Amazônia como símbolo de debates sobre preservação, conflito ambiental e interesses latifundiários.

A autora mostra que imagens da Amazônia em chamas percorrem o mundo desde os anos 1970, e sinalizam a globalização do risco ambiental. A proteção ambiental torna-se tema potente para a Constituinte dos anos 1980 no Brasil com repercussão internacional de forma cada vez mais sistemática. Não somente pela presença de multinacionais em prejuízo as florestas, mas pela internacionalização do tema que provoca a guinada do conceito de natureza para uma questão ambiental prioritária, objeto de políticas de planejamento e de acordos mundiais. Bronz analisa como as queimadas avançam na Amazônia e discorre sobre os acontecimentos como o denominado Dia do Fogo, de agosto de 2019, considerando as múltiplas controvérsias e manipulações sobre os processos de incêndios de florestas e campos, por um lado, e os esforços de denúncia por parte da comunidade científica, por outro lado.

O artigo que segue, de Luna Mendes, intitulado “Retomar a vida nos (des)trozos, modos guarani de habitar florestas em Misiones, Argentina”, trata da floresta devastada no Parque Nacional Iguazú, considerado como a área de maior biodiversidade argentina e mesmo o mais importante ecossistema latino-americano depois da Amazônia, que se prolonga pelo Brasil e Paraguai integrando o corredor ecológico da Mata Atlântica que alcança o litoral. A autora trata de legislações de recuperação ambiental para conter o avanço de empreendimento turístico. Na área denominada 600 hectáreas, quatro grupos indígenas são condicionados a conviver com 16 hotéis e resorts de luxo que invadem suas áreas com atividades de turismo. Esse convívio tenso é o cotidiano mbya relatado por Mendes, desvendando a violência latente nessa relação interpretada à luz de uma ecologia política.

Ambientada no Equador, a próxima pesquisa relatada traz uma reflexão sobre a crise ambiental em consequência da atuação de indústrias extrativas e megaprojetos que se somam ao cenário comum nos governos progressistas e liberais latino-americanos, com expansão de empreendimentos ablativos em áreas sensíveis do ponto de vista ecológico. O artigo de Edison Auqui Calle, intitulado “Las luchas etnoterritoriales amazónicas y la incorporación de ontologías relacionales en el combate al extractivismo y la crisis ecológica”, mostra as graves consequências da política de Estado de incentivo às indústrias extrativas para as comunidades tradicionais e o ecossistema. Importa conhecer os modos de resistência por parte dessas comunidades que lutam sistematicamente contra a violação de seus territórios agredidos pela indústria petrolífera e mineradora. O autor busca reconhecer como as comunidades estudadas incorporam saberes e ontologias subalternas nas lutas etnoterritoriais, questionando as determinações sociopolíticas sobre a dicotomia cultura-natureza, que autores contemporâneos têm denominado de cosmopolíticas, pois ele define igualmente a luta política por reconhecimento jurídico de pertencimento ancestral aos territórios.

Abraçando as premissas das linhas de pesquisa referidas como ecologia política ou ontologia política, e propondo uma análise antropológica e etnográfica de material audiovisual, entrevistas, documentários e reportagens consultadas em plataformas digitais, bem como análise de documentos oficiais das propostas das nacionalidades Zápara e Kichwa de Sarayaku, chamadas Kamunguisghi e Kawsak Sacha, Auqui Calle trata das ontologias amazônicas e dos projetos etnopolíticos inerentes às lutas dos povos Kichwa de Sarayaku e Zápara. Essas comunidades estão localizadas entre os rios Kuraray, Pastaza, Pindayacu e Comambo, cujo território do ponto de vista ecológico é megadiverso, informa o autor.

O tema da territorialidade e da natureza a partir da perspectiva cosmológica indígena é trazido no estudo nominado “Antropología de los territorios indígenas: aportes para el estudio de las naturalezas entre guaraní y chané del noroeste argentino”. De autoria de María Eugenia Flores, o artigo tem por base uma pesquisa etnográfica colaborativa desenvolvida de 2018 a 2021 no território das comunidades Guaraní e Chané situado no noroeste da Argentina, onde se localiza a Província de Salta, nos Departamentos de Orán e San Martín, na intersecção de zona rural e periurbana. A pesquisa sofre as limitações sanitárias no período pandêmico, consideradas no relato.

Flores concebe que a territorialização articulada pelos povos indígenas permite evidenciar que o conhecimento sobre o território é concreto, organizado e emerge da memória bioétnica. Pontuando as dimensões ecológica, cultural, social e medicinal que as comunidades indígenas mantêm com o território, com a natureza, com as plantas e as árvores, o artigo propõe discutir a epistemologia do território, que implica analisar as formas como o conhecimento indígena é construído e transmitido dentro dele. Para isso narra as experiências de oficinas colaborativas que permitem relacionar as dimensões do cosmopolítico e do territorial, e demonstra que, para os grupos estudados, não existe uma natureza objetiva materializada em objetos, mas sim muitas naturezas e/ou seres nos territórios que habitam e constroem não só como seus para sua defesa, mas também se sentindo parte deles.

Qual o impacto social da produção do petróleo na Baía de Todos os Santos (na Bahia, Brasil)? Rafael Palermo Buti objetiva responder a esta questão no artigo “Histórias contaminadas: alianças ambientais das comunidades pesqueiras e quilombolas contra a violência lenta do petróleo na Baía de Todos os Santos”. As histórias sobre vazamentos de petróleo na Baía de Todos os Santos podem ser contadas como “violências lentas” que afetam vidas em suas continuidades. A partir de três eixos elencados pelo autor: 1) as formas de produção por parte das corporações de extração de commodities; 2) as formas de contraposição à violência lenta por parte das comunidades afetadas, em especial os engajamentos comunitários contrários à contaminação e precarização da vida; e 3) as formas de inscrição da violência lenta nos ambientes, em especial, os modos como afetam e produzem lugares e modos de habitar, Buti estuda as ações de comunidades negras e quilombolas articuladas às organizações e movimentos sociais da pesca. Nesse contexto propõe contribuir com o tema da “política dos afetados” pelo extrativismo na América Latina, entendida como um conjunto de ações coletivas que articulam comunidades a uma comum condição de afetadas pelos impactos ambientais gerados por grandes corporações de extração e movimentação de commodities.

O artigo tem por base as atividades de pesquisa, de ensino e de extensão no âmbito do processo da pesquisa etnográfica em que situações de vazamentos de petróleo são experienciadas pela população no contexto estudado. Mediante o ecocídio vivido em 2018 assim como também em 2019, o autor acompanha os engajamentos comunitários em resistência à “mancha negra” considerados como “dispositivos de relação”, que Buti define como formas de descrever e explicar os eventos ligados aos vazamentos de petróleo a partir da publicização de sua ocorrência e reconhecimento de sua gravidade para a continuidade das relações vitais imprescindíveis aos seus modos de existir no mundo.

Problematizando o tema da preservação ambiental em contextos rurais no Rio de Janeiro, Luz Stella Rodríguez Cáceres apresenta os resultados do trabalho acadêmico que nasce com um projeto de cartografia social do “Projeto Sertão Carioca: Conectando Cidade e Floresta”, financiado pela Petrobras, desenvolvido entre 2020 e 2022, que teve como propósito o mapeamento das áreas quilombolas do Maciço da Pedra Branca, uma das atividades dentro de um leque de ações dirigido para a população quilombola e de agricultores. No artigo intitulado “O ‘sertão carioca’: da ruralidade à conservação ambiental no contexto da expansão urbana no Rio de Janeiro”, Cáceres propõe seguir o estudo de Kay Milton, para quem o papel da antropologia no entendimento do discurso ambiental está na aproximação de questões conceituais e retóricas, levantando perguntas espinhosas sobre quem são beneficiários, quem toma decisões e por quê. Relata alguns dilemas pelos quais o projeto passou para a sua implementação na conjuntura política do ano de 2018 e se dedica a refletir sobre a categoria “sertão carioca”, que traz em evidência a tensão entre os valores tradicionais rurais e os empreendimentos ambientais que resultam da ação do Estado.

Luiz Felipe Rocha Benites é o autor do artigo “O rio e a época: entendências barranqueiras sobre a água na paisagem perturbada do Vale do São Francisco”. Como anuncia o título, a pesquisa apresentada é ambientada no Vale do Alto-Médio São Francisco, onde vivem os habitantes da Ribanceira, uma comunidade quilombola na sede do município de São Romão, Minas Gerais. O autor traz as imagens dos barranqueiros acompanhando suas atividades de pesca e agricultura. Se propõe a descrever as “entendências” dos ribeirinhos acerca da paisagem na qual se encontram imersos e da qual também são agentes ativos de construção com atenção para os movimentos das águas, das chuvas ou das mudanças climáticas sentidas por meio da redução das chuvas e do consequente aumento dos períodos de estiagem. Para o autor, o movimento de tais entes humanos e outro-que-humanos inscreve e conforma a paisagem ao longo de ritmos e temporalidades próprias que se justapõem, como a noção de “cotemporalidade” indica, ao tratar das coordenações dos elementos sobrepostos que contam “histórias mais-que-humanas”.

No artigo “Sertanias que morrem d’água: aparições e sofreres coparticipados nas invernadas piauienses”, Potyguara Alencar dos Santos e Márcia Leila de Castro Pereira apresentam os dados de pesquisa desenvolvida entre 2019 e 2022 em territórios negros rurais quilombolas no município de São Raimundo Nonato e entre núcleos de povoamento brejeiros situados entre as áreas de influência dos rios Uruçuí Vermelho e Preto, Bacia Hidrográfica do Alto Rio Parnaíba, Piauí. Partem da premissa brejeira de que a “água que cai muito e corre rápida demais” nas terras altas dos chapadões próximos dos brejos piauienses, região Nordeste do Brasil, “não diminui a sede da terra” pedregosa, e, sim, a “lava”, tira sua capa vital, sua microbiota superficial e, enfim, termina por desertificá-la. Essa definição de moradores locais pesquisados coincide com a de técnicos sobre as mudanças climáticas que nos últimos anos afetam o bioma sobretudo, conforme os autores, porque as águas grandes acabam por ser também ampliadoras de terras esterilizadas pela umidade, de desertos úmidos irrecuperáveis.

Com base nos pressupostos de Gregory Bateson e Donna Haraway, entre os(as) demais, Santos e Pereira apoiam-se na teoria das comutações interespecíficas no que tange à “realidade ontológica do ‘ser relativo’ e a autonomia causal das relações puras” (citando Hoffmeyer). Em face da crise climática, sugerem algumas questões para orientar a interpretação sobre as invernadas das sertanias piauienses: 1) como considerar as emoções daqueles que juntos sofrem com a aceleração das atipias do clima no Antropoceno?; 2) como dar conta de encontros entre sofrimentos interespecíficos? Aqui a emoção pode ser abordada como um tema ecológico, como um vivencial sem sujeitos, ou fora dos sujeitos.

Magdalena Chouhy Clulow traz um estudo etnográfico realizado em Paso Centurión, no Departamento de Cerro Largo, no Uruguai. O título do artigo revela o tema central: “Instantánea de aguará guazú: etnografía de un monitoreo participativo con cámaras trampa en Paso Centurión, Uruguay”. O artigo traz o debate sobre a polêmica em torno da considerada extinção desse animal e seu reaparecimento captado por uma câmera. A autora acompanhou o monitoramento por parte de ambientalistas e biólogos, tornando essa experiência em sua dissertação, com participação ativa e implicada nesse processo além da interação com a comunidade local.

Esse acontecimento se passa em uma região em que a crise ambiental se dá na dimensão do avanço do agronegócio provocando a resistência da comunidade local em busca de políticas de conservação da área rural. De fato, Paso Centurión está sob os cuidados do Sistema Nacional de Áreas Protegidas. Pela ação de uma ONG de educação ambiental o monitoramento por câmeras de animais envolve a comunidade de forma colaborativa. O rumor de que as câmeras captaram um aguará constrói um intrigante episódio de ação de agentes sociais envolvendo humanos e não humanos.

Na sequência trazemos mais um estudo que contextualiza a paisagem rural no Uruguai, da autora Betty Francia Ramos, que nos propõe conhecer uma situação específica vivida pelo coletivo “Villa del Chanco” no âmbito do fenômeno pandêmico da Covid-19. No artigo intitulado “El cerdo como alcancía: su valor en la economía de los clasificadores de residuos, análisis en contexto de pandemia por COVID-19”, Francia Ramos relaciona dados da pesquisa etnográfica de 2011-2013 coletados junto a uma cooperativa na zona rural oriental de Montevidéu com a situação vivida durante a pandemia (2020-2021) por famílias que vivem da coleta, classificação e comercialização de resíduos sólidos urbanos com as condições de vida experimentadas por esses criadores.

Essas famílias, já desde 2011-2013 criam porcos na periferia urbana na clandestinidade, em condições precárias e com impacto ambiental, recorrendo aos restos de produtos de agroindústrias como lácteos, massas e pães, etc. Para isso separam os resíduos orgânicos dos resíduos sólidos urbanos. Criar porcos é apreciado como uma segurança alimentar e, considerando a informalidade da atividade, uma economia para os catadores de resíduos, sem levar em conta os perigos com contaminação e qualidade do alimento. Durante a pandemia da Covid-19, a comercialização desse produto foi um alento para as famílias com dificuldades de sobrevivência.

Das autoras Nina Lys Nunes, Regina Abreu e Joseane Costa, trazemos o artigo “Alimentando a tradição e valorizando o conhecimento tradicional na Amazônia: o caso da castanha-da-amazônia na Terra Indígena Mãe Maria”. Nesse artigo a castanheira, árvore milenar nativa da Amazônia, é colocada em destaque pelo risco de extinção. As autoras propõem, com esse estudo de caso, refletir sobre a sociobiodiversidade na relação entre comunidades, políticas públicas e projetos de ação. O artigo descreve o projeto “ArticulaFito - Cadeias de Valor em Plantas Medicinais” executado pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), com o objetivo de articular políticas públicas às ofertas de serviços, para promover ações de fortalecimento das cadeias produtivas que usam os recursos naturais de forma sustentável e ampliar a participação dos pequenos agricultores, povos e comunidades tradicionais e seus empreendimentos nos arranjos produtivos e econômicos que envolvem o conceito da bioeconomia. Um projeto transdisciplinar de ecologia política de forte impacto para os povos indígenas locais, em especial os Gavião.

O artigo “Percepções locais sobre transformações ambientais na região do Oiapoque: reflexões a partir da experiência de formação de pesquisadores indígenas”, de Igor Alexandre Badolato Scaramuzzi, Rita Becker Lewkowicz, Rosélis Remor de Souza Mazurek e Vinícius Cosmos Benvegnú, nasce de um curso de formação e a pesquisa que resultou de uma demanda das lideranças indígenas das Terras do Oiapoque, no Amapá, para tentar qualificar e monitorar algumas transformações ambientais observadas na territorialidade de pertença. Os(as) autores(as) mostram que os indígenas no Oiapoque há tempos vêm percebendo alterações nos períodos de verão e inverno e nos ritmos diversos da natureza e no ciclo de chuvas com impacto sobre o bioma.

O curso de formação de pesquisadores indígenas é coordenado pelo Instituto de Pesquisa e Formação Indígena - Iepé, que atua junto aos povos Karipuna, Galibi Marworno, Galibi Kali’na e Palikur nas TI Uaçá, TI Juminã e TI Galibi. Nesses contextos os(as) pesquisadores(as) levantaram um conjunto de sinais ou marcadores que sinalizam as mudanças e transformações relacionadas aos ritmos diversos da natureza que ocorrem em diferentes escalas e margens de tempo.

No Brasil existe o “Projeto Polinizadores do Brasil” que emerge em face ao déficit de polinizadores, um dos atuais problemas de segurança alimentar no globo. No artigo “Companheiras indispensáveis: abelhas em crise, imaginário distópico e antropologia no Antropoceno”, a autora Érica Onzi Pastori traz aspectos históricos de vínculo dos humanos com a produção do mel e criação de abelhas. Para Pastori, as abelhas compõem, junto às plantas e a outras espécies vegetais, paisagens multiespecíficas que são fundamentais para a manutenção da vida na Terra, ou, nas palavras de Anna Tsing, para a manutenção da “habitabilidade multiespecífica”.

Para a autora, a crise das abelhas, iniciada por volta de 2006, e que afetou as populações de abelhas nos Estados Unidos e na Europa, fomentou um imaginário distópico e estimulou uma nova sensibilidade em relação às abelhas, atentando à necessidade de cuidar da vida desses insetos. Aspectos que a autora busca analisar à luz do conceito de Antropoceno.

Para o Espaço Aberto contamos com o artigo de Andréa Zhouri, intitulado “Crise como criticidade e cronicidade: a recorrência dos desastres da mineração em Minas Gerais”, em que a autora mostra que os desastres da mineração na América Latina, e em especial no estado de Minas Gerais, podem ser apreendidos como modalidades de crises e apresentam dimensões críticas e crônicas.

Agradecemos aos autores e autoras as colaborações compartilhando os resultados de seus estudos e pesquisas para elaboração deste número temático. O conjunto de artigos aporta uma frutífera colaboração para o avanço dos debates sobre antropologia e crise ambiental. Priorizamos as experiências inéditas de pesquisa sobre os impactos de empreendimentos industriais, extrativos e agrícolas de destruição de florestas e de áreas de preservação ecológica, avanços imobiliários perversos e insustentáveis para a preservação ambiental e artigos que trazem um estado da arte da situação de populações vulneráveis, da qualidade de biomas e ecossistemas Em um mundo de recursos naturais finitos, os estudos apontam, por um lado, para o despreparo do poder público para lidar com os desafios climáticos e impactos do aquecimento global na forma desigual com que atinge a população mundial, e, por outro lado, apontam para a urgência de serviços do Estado para a mitigação de ações predatórias e a inovação de políticas (nacionais e internacionais) de preservação e fiscalização acompanhadas de ampla participação social. A crise ambiental nos ensina sobre reconhecer a devastação dos processos coloniais e o esforço global por uma emancipação ambiental. Os artigos, com base empírica e analítica, trazem a sistemática denúncia do mito inalcançável do progresso e a violência da concentração de riqueza e da ganância predatória que acompanha o trajeto humano, daí a importância de angariarmos sempre mais descrições das desigualdades e injustiças vivenciadas por populações humanas e não humanas.

Apontar para a crise ambiental se soma à atenção à crise ecológica que revela a tensão, violência e conflito na relação entre a sociedade e natureza. As crises notabilizam a ação humana sobre sistemas entrelaçados e a importância da emergência de conceitos como crise ambiental, crise climática, ecologia política, Antropoceno para interpretação sobre a devastação ambiental e dilemas da contemporaneidade, tanto quanto a ressignificação de conceitos como natureza, gaia, ator-rede e sistemas, etc. Esperamos seguir as propostas imediatas de um “novo regime climático” (Bruno Latour), da necessidade do pensamento complexo e autopoiético (Edgar Morin e Humberto Maturana), que nos levam a uma ecologia política de saberes vibrantes, de uma cosmopolítica, talvez ideias para adiar o fim do mundo (Ailton Krenak), que são também atos políticos de resistência para não deixar a Terra morrer (David Kopenawa Yanomami).

A capa deste número temático traz o mural Lutz, uma obra do artista Kelvin Koubik em homenagem ao prestigiado ambientalista José Lutzenberger (falecido em 2002), inaugurado em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, no dia 25 de novembro 2022. Fica localizado no prédio do Instituto de Previdência do Estado (IPE), situado na Avenida Aureliano de Figueiredo Pinto com a Avenida Borges de Medeiros. Foi fotografado por Felipe da Silva Rodrigues, pesquisador do projeto Banco de Imagens e Efeitos Visuais (PPGAS, IFCH, UFRGS) e sua divulgação, neste formato, autorizada pelo artista Kelvin Koubik. Agradecemos ao fotógrafo, cientista social Felipe pela concessão da fotografia e ao artista pela honraria de sua concordância.

Agradecemos imensamente a Rosemari Feijó, que secretariou a elaboração deste número temático, e aos editores por seu apoio a este projeto.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Set 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023
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