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O rio e a época: entendências barranqueiras sobre a água na paisagem perturbada do Vale do São Francisco

Resumo

Este artigo tem por objetivo expor parte do emaranhamento que envolve o modo de habitar de ribeirinhos do Vale do Alto-Médio São Francisco, também chamados barranqueiros, com as águas e entes outros-que-humanos que compõem a paisagem (co)construída às margens do rio. O ponto de partida para descrever criticamente essa socialidade mais-que-humana às margens do Rio São Francisco são as entendências dos habitantes da comunidade de Ribanceira, no município de São Romão, em Minas Gerais, sobre as águas em seus fluxos pluviais e fluviais. Imersos na alternância cíclica entre o tempo das águas e o tempo da seca, que orientam suas atividades de pesca e de roça, os barranqueiros da Ribanceira tem vivenciado fluxos pluviais cada vez menos frequentes e intensos, bem como experimentado o convívio com um rio preocupantemente sem corrida que dá cores às narrativas em tons desalentadores sobre a proximidade da época ou fim dos tempos.

Palavras-chave:
água; socialidade mais-que-humana; Rio São Francisco; mudança climática

Abstract

This article seeks to expose the entanglement in the mode of inhabitation of the ribeirinhos from the Upper São Francisco Valley, also known as barranqueiros, with the waters and other-than-human beings that comprise the co-built landscape on the riverbanks. The starting point for critically describing this more-than-human sociality on the banks of the São Francisco River are the entendências [lit. understandings] of the inhabitants of the Ribanceira Community, in the municipality of São Romão, in Minas Gerais, concerning the pluvial and river flows of the waters. Immersed in the cyclical alternation between the time of the waters and the time of the drought, which guide their fishing and farming activities, the barranqueiros of Ribanceira have experienced increasingly less frequent and less intense pluvial flows, while also coexisting with a river that is worryingly not flowing that colours their narratives in disheartening tones regarding the proximity of the epoch or end of times.

Keywords:
water; more-than-human sociality; São Francisco River Valley; climate change

Este é um rio cujos estragos compõem.

(Manoel de Barros, “Um rio desbocado”)

Introdução

Se os estragos de um rio podem compor, tal como alerta o poeta Manoel de Barros na epígrafe acima, então o longo processo de degradação daquele que já foi aclamado como “rio da integração nacional” constitui um campo privilegiado para a “descrição da composição de espécies e condições ecológicas” (Tsing, 2021TSING, A. L. O Antropoceno mais que humano. Ilha, Florianópolis, v. 23, n. 1, p. 176-191, fev. 2021., p. 178) de paisagens perturbadas pela ação antrópica. A vida compósita de humanos e outros-que-humanos às margens do Rio São Francisco não está imune aos desígnios das mudanças no sistema geológico e atmosférico do planeta que estão associados a efeitos esperados e inesperados de intervenções humanas.

O Rio São Francisco já foi nomeado de muitas formas. Para muitos dos habitantes de seu entorno ele é o Chicão ou Velho Chico. Segundo Brandão e Borges (2013)BRANDÃO, C.; BORGES, M. Um risco, um lago, um rio: o São Francisco e suas imagens cartográficas em mapas antigos do Brasil e das Américas. In: BORGES, M. C.; LEAL, A. F. (org.). Etnocartografias do Rio São Francisco: comunidades tradicionais ribeirinhas do Norte de Minas Gerais. Uberlândia: EDUFU, 2013. p. 18-67., ele já foi batizado de Opará por indígenas no norte de Minas Gerais, assim como, em antigos registros cartográficos, teria sido chamado de Pirapitinga. A histórica multiplicidade de nomes do rio não parece fugir à confluência do seu destino, pois o mesmo vem tendo seu “fim” diagnosticado por cientistas na última década.1 1 Uma obra (Siqueira Filho et al., 2012) que se tornou uma referência importante no campo da conservação e história natural anunciava “a inexorável extinção do Rio São Francisco”. Desde então a preocupação com a situação agonizante do rio tem reverberado nos círculos científicos e jornalísticos. O exercício a que me proponho aqui é oferecer “descrição não secular” da paisagem são-franciscana e “de suas assombrações” (Gan et al., 2017GAN, E. et al. Introduction. In: GAN, E. et al. (ed.). Arts of living in damaged planet. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2017. p. G1-G14., p. G2) a partir da percepção local de habitantes do trecho alto-médio do Rio São Francisco.

O presente artigo é produto da análise de resultados parciais de uma pesquisa2 2 A pesquisa na qual se baseia este texto é financiada pelo Edital Universal do CNPq. que se encontra em andamento. Busco aqui abordar como os moradores de áreas às margens do Rio São Francisco, também chamados de barranqueiros, pensam o lugar da água na socialidade mais-que-humana (Tsing, 2013TSING, A. L. More-than-human sociality: a call for critical description. In: HASTRUP, K. Anthropology and nature. New York: Routledge, 2013. p. 27-42.) que emerge à beira do rio. A pesquisa etnográfica na qual se baseia esta reflexão vem acontecendo na comunidade quilombola e ribeirinha de Ribanceira, situada no munícipio de São Romão, região norte de Minas Gerais. Nessa investigação tenho investido em acompanhar e registrar as práticas e narrativas de meus interlocutores a partir do exercício de suas atividades de pesca e agricultura.

Esta reflexão se concentra na descrição etnográfica das entendências dos ribeirinhos acerca da paisagem na qual se encontram imersos e da qual também são agentes ativos de construção. Entendência é uma noção muito evocada por um dos meus melhores interlocutores, Juca, lavrador, folião-guia e benzedor, morador de Buritizinho, localidade vizinha à Ribanceira, mas que compõe o mesmo “campo negro”,3 3 Flávio Gomes utiliza o termo campo negro para pensar campo de relações sociais dos quilombolas do Recôncavo da Guanabara no século XIX. Ele o define como “uma complexa rede social, palco de lutas e solidariedades entre as comunidades de fugitivos, cativos nas plantações e até nas áreas urbanas vizinhas, libertos, lavradores e fazendeiros” (Gomes, 2015, p. 108). Creio que tal termo pode ser apropriado para pensar as socialidades negras do pós-abolição até hoje em dia, de modo a não isolar as comunidades negras e pensá-las relacionalmente a partir de movimentos incessantes na constituição de conexões e solidariedade. para usar o conceito do historiador Flávio Gomes (2015GOMES, F. S. Mocambos e quilombos. Rio de Janeiro: Claro-Enigma, 2015., p. 108), do qual a Ribanceira também faz parte. Entendência é uma expressão que corresponde a um modo de análise em que se é capaz de perceber as implicações das ações que se toma. Assim, ela implica mais do que conhecer ou saber fazer algo. Certa vez, Juca me mostrou de forma prática o que significava ter entendência quando comentava sobre o acidente de carro provocado por um motorista morador da Ribanceira, que havia abusado da velocidade desenvolvida pelo automóvel. Dizia ele: “Você pode saber dirigir um carro e não ter entendência da violência que ele é capaz de causar.”

Assim, faço uso da noção de entendência para denominar as práticas de sentido que envolvem a atividade reflexiva dos meus interlocutores, não apenas para descrever seus conhecimentos e habilidades práticas sobre o seu entorno habitado, mas também para incluir o que eles traçam como implicações das ações sobre o mundo que eles compõem. Utilizo modo de análise tal como operacionalizado por Stuart Kirsch (2006KIRSCH, S. Reverse anthropology: indigenous analysis of social and environmental relations in New Guinea. Stanford: Stanford University Press, 2006., p. 1), a partir da inspiração em Marilyn Strathern, ao tomar as trocas realizadas pelos Yonggom como práticas capazes de funcionar como “forma de análise social” na medida em que revelam a sua composição “por outras pessoas ou relações sociais”. Penso que, à sua maneira, as narrativas4 4 No que diz respeito à transposição textual das falas em que muitas entendências são trazidas à tona, realizei pouquíssimas correções referentes à norma culta, pois acredito que a manutenção de certos desacordos gramaticais, hesitações e repetições de expressões buscam conservar a poética característica da prosa barranqueira. e ações de meus interlocutores podem operar como modos de análise devido a sua capacidade de revelar não apenas relações de sentido, mas como práticas de traçar implicações sobre aquilo que se diz e faz. Enquanto modos de análise, as entendências barranqueiras extraídas da minha experiência em campo têm seu foco nos movimentos das águas do rio e das chuvas e em seus efeitos.

Faço aqui também um exercício de dialogar com a ideia de paisagem, pelo que ela me instiga a pensar. Assim, busco fazer ressoar as entendências barranqueiras sobre a noção de paisagem. É certo que tal termo tem importância reconhecida em disciplinas como a geografia e a arqueologia, mas desde a edição de The anthropology of landscape (Hirsch; O’Hanlon, 1995HIRSCH, E.; O’HANLON, M. (ed.). The anthropology of landscape: perspectives on place and space. Oxford: Claredon Press, 1995.), a noção de paisagem passou a ganhar um maior destaque no campo da antropologia, como um dos eixos a partir do qual a oposição ocidental entre natureza e cultura/sociedade tem sido problematizada. O que o conjunto de trabalhos que vem se acumulando desde o início do século XXI parecem indicar é que a ideia de paisagem deixa de ser tomada como cenário inerte ou mero suporte físico-material para as práticas humanas e dá lugar a estudos em que as classificações, relações e significados dos entes que compõem os mundos estudados são etnograficamente situados.

Neste trabalho, busco combinar as perspectivas, por um lado, de Tim Ingold (2011)INGOLD, T. Landscape or weather-world? In: INGOLD, T. Being alive: essays on movement, knowledge and description. London: Routledge, 2011. p. 126-135., em que as paisagens emergem das práticas humanas e mais-que-humanas imersas em mundos-climas,5 5 Em seu texto “Landscape or weather-world?”, Tim Ingold (2011) faz uma crítica de sua formulação anterior exposta em “Temporality of landscape” (Ingold, 2000) para incluir os meios fluidos (luz. sons, ventos, etc.) na conformação das superfícies. isto é, envoltas no emaranhamento entre superfícies e meios fluidos, e, por outro, de Anna Tsing, em que essas mesmas paisagens construídas por práticas de “habitabilidade” mais-que-humanas (Tsing, 2015TSING, A. L. In the midst of disturbance: symbiosis, coordination, history, landscape. In: ASSOCIATION OF SOCIAL ANTHROPOLOGISTS ANNUAL CONFERENCE 2015: symbiotic anthropologies: theoretical commensalities and methodological mutualisms, 13th-16th April 2015, University of Exeter, Exeter. Annals […]. [S. l.]: ASA, 2015.) contam histórias que coexistem em “cotemporalidades” (Tsing, 2021TSING, A. L. O Antropoceno mais que humano. Ilha, Florianópolis, v. 23, n. 1, p. 176-191, fev. 2021.). A noção de paisagem, como gostaria de esclarecer, não é utilizada pelos meus interlocutores de pesquisa e, logo, não encontra seu “equivalente nativo” em nenhuma outra expressão. Entretanto, ela é, nos termos de Lévi-Strauss, boa para pensar, pelo menos enquanto ponto de partida. Ela é boa para pensar a produção do mundo em que se vive. Um mundo inacabado, em perpétuo movimento, em processo constante de transformação, mesmo que em escala infinitesimal. Enfim, ela é boa para pensar a apreensão relacional dos sujeitos pesquisados com seu entorno, a partir de suas ações imbricadas em relações entre entes humanos e outros-que-humanos, entre forças e materiais.

Dessa forma, as entendências aqui apresentadas versam sobre a paisagem compósita em que meus interlocutores se encontram simultaneamente imersos e atuantes e seus processos de mudança. O mundo compósito de que falo se situa à margem esquerda do Rio São Francisco, em sua porção mineira. Os habitantes da Ribanceira residem em um povoado de uma área rural às margens do Velho Chico, aproximadamente 15 km ao sul da sede do município de São Romão. O surgimento do povoado data de 1979, quando uma grande enchente causada pela combinação de intensas chuvas e da vazão sem avisos da barragem de Três Marias desabrigou todos os moradores da Ilha da Martinha e de outras áreas marginais do São Francisco, próximas ao entorno do que hoje é a Ribanceira. Nessa ocasião, o então prefeito de São Romão comprou de um fazendeiro uma área próxima à ilha no alto de um grande barranco, no qual foram feitos loteamentos para alojar os desabrigados. Assim foi forjado o nome de Ribanceira para a comunidade. Mesmo com essa fixação, seus moradores ainda mantêm conexão com as áreas lindeiras de onde vieram e nas quais muitos de seus parentes e amigos ainda permanecem.

Hoje em dia, mesmo que as gerações mais novas pouco se envolvam, uma parcela significativa da população da Ribanceira ainda “mexe com roça e pesca”, sobretudo os mais velhos. Tal expressão designa a dimensão do trabalho presente no cotidiano desses interlocutores. A categoria mexer guarda uma equivalência com o verbo trabalhar, mas com frequência funciona como uma ideia mais ampla de lidar com algo. A atividade agrícola, exercida na Ilha da Martinha e na margem do São Francisco oposta à comunidade, costuma se alternar com a pesca para muitos dos meus interlocutores.

As águas são um componente crucial da vida social dos habitantes da Ribanceira. As atividades na roça e na pesca estão intrinsicamente ligadas aos dois ciclos climáticos do norte mineiro: o tempo das águas e o tempo da seca, ou simplesmente as águas e a seca. O tempo das águas oscila mais ou menos entre outubro e março, correspondendo ao período em que as chuvas são mais frequentes e intensas. Nessa época, sobe o nível das águas do São Francisco e de seus afluentes. Com a cheia dos rios, a água transborda e forma lagoas que se transformam em criatórios naturais de peixes. As áreas alagadiças que se localizam nas margens de rios, córregos, veredas ou de qualquer curso d’água se constituem em terrenos férteis para chamada a agricultura de vazante praticada no início do período da seca, que vai de abril a setembro.

A vida, o rio e seus movimentos

Tal como já exposto, da perspectiva barranqueira, a água é pensada por categorias temporais, o tempo das águas e da seca (os dois ciclos climáticos marcados pela frequência ou pela ausência de chuvas), e por meio da intensidade das águas do rio e das águas que se precipitam do céu sob a forma da chuva. Assim, a vida ribeirinha encontra-se alinhavada à temporalidade das águas, cujos ritmos, fluxos e intensidades produzem respostas dos entes viventes do curso e das margens do Chicão. O que reivindico aqui é o caráter (co)constitutivo da água na socialidade ribeirinha. Isso implica tanto a ubiquidade da água na vida social barranqueira quanto como a conformação de tais relações sociais (intra e alter-humanas) vai modelando o que a água vem a ser, tal como consigna um conjunto de trabalhos recentes (Ballestero, 2019BALLESTERO, A. The anthropology of water. Annual Review of Anthropology, [s. l.], n. 48, p. 405-421, 2019.; Hastrup; Hastrup, 2017HASTRUP, K.; HASTRUP, F. (ed.). Waterworlds: anthropology in fluid environments. New York: Berghahn Books, 2017.; Helmreich, 2009HELMREICH, S. Alien ocean: anthropological voyages in microbial seas. Berkeley: University of California Press, 2009.; Krause; Harris, 2021KRAUSE, F.; HARRIS, M. (ed.). Delta life: exploring dynamic environments where rivers meet sea. New York: Berghahn Books, 2021.; Krause; Strang, 2016KRAUSE, F.; STRANG, V. Thinking relationships through water. Society & Natural Resources, [s. l.], v. 29, n. 6, p. 633-638, 2016.; Strang, 2004STRANG, V. The meaning of water. Oxford: Berg, 2004., 2014STRANG, V. Fluid consistences: material relationality in human engajaments with water. Archaeological Dialogues, [s. l.], v. 21, n. 2, p. 133-150, 2014.).

Nas entendências barranqueiras, a atenção para os movimentos das águas dá ideia de como se configura a (co)constituição da vida social ribeirinha. De acordo com as palavras dos meus interlocutores, o rio enche e vaza. O movimento de encher está intrinsecamente ligado às chuvas, cujo maior fluxo se dá no tempo das águas, ainda que hoje haja uma percepção bastante difundida de que elas ficaram menos frequentes e intensas no referido período. Embora as grandes enchentes sejam eventos que ficaram apenas na memória, as cheias do rio provocadas pela chuva no tempo das águas continuam sendo importantes para assegurar a força das águas do rio. As chuvas fazem o rio correr, ter corrida ou correnteza. A corrida do rio é algo que se avalia não apenas no tempo das águas, mas durante o ano todo, em especial quando se encerra o período de chuvas. A correnteza carrega a areia, terra, as ripas e paus, isto é, pedaços de galhos e troncos de árvores que caem no rio. Por isso, na época das chuvas, as águas do rio barram ou ficam sujas, isto é, com cor mais escura, em tons turvos e marrons. Acima de tudo, rio com corrida é rio com força, segundo meus interlocutores.

As chuvas que fazem o rio ter corrida criam condições extremamente favoráveis para a atividade de pesca. Vejamos esta conversa que tive com Sabino, antigo pescador da Ribanceira, quando ele defendia a suspensão da pesca no São Francisco por um longo período, com uma contraprestação paga aos pescadores pelo governo:

- […] Quando chove, o rio enche e muda muito, melhora a pesca, […], o movimento do peixe é outro, o peixe com as água, o peixe tem mais possibilidade de se render.

- Como assim, render?

- Produzir.

- Ah, de se reproduzir mais.

- Mais peixe, né? Igual tá aqui, por exemplo, aqui tem o que: uns quase dez anos, uns dez anos parece que não tem enchente grande, quer dizer, aí vai só diminuindo. Vai diminuindo as águas e vai diminuindo os peixes, né? […] Sem ninguém pescar nada, então vou botar os guarda pra vigiar o rio mesmo, pra ninguém pescar nada, e Deus ajuda que tem bastante chuva, bastante chuva, aí as águas vão render […] daqui cinco anos, se parar pra pescar, Felipe, e tiver bastante chuva pra água render, se você vir aqui com cinco anos, você estranha de peixe, porque o peixe rende rápido. Mas só que o peixe rende rápido, mas depende da água, porque o peixe, por exemplo: o peixe de rio não produz no rio, o peixe da lagoa não produz na lagoa […], por exemplo: o peixe da lagoa vem pro rio, produz no rio, da lagoa; e o do rio vai pra lagoa, produz na lagoa, quando vem a enchente aí traz, fica naquela vai e vem, né? Porque se não tiver enchente, o peixe não produz. Você vai na lagoa este ano, pega uma curimba6 6 Peixe também denominado curimatá, curimatã ou curimbatá (Prochilodus lineatus). ela tá ovada.

Nessa narrativa de Sabino sobre a reprodução dos peixes há algo que é importante salientar: a drástica redução das chuvas na última década. O volume e a intensidade das chuvas são indicativos do atributo de força das chuvas que não só faz o rio ter corrida, mas torna fértil a terra na qual os barranqueiros plantam, seja nas áreas altas ou nas de vazante.

As lembranças de enchentes antigas, em especial a de 1979, marco do surgimento do povoado de Ribanceira, indicam as perdas, mas também os ganhos após as águas do rio vazarem, isto é, fazerem o movimento de retorno das áreas alagadas para o leito do rio, após o cessar do período de chuvas. Nas palavras de Pedro, cuja roça se situa na Ilha da Martinha, o ano de 1979 foi simultaneamente bom e ruim:

Perdeu, perdeu muita coisa, muita coisa! Tinha mandioca, tinha milho, feijão plantado, na época o prejuízo foi meio grande. Só que em compensação foi um ano de muita perca, né? Perdeu muito, mas… Quando passou a enchente foi um ano de muita fartura também, porque tudo o que você plantou depois que passou a enchente, cê colheu. Foi muito bom […].

O significado ambivalente das grandes enchentes não oblitera o seu caráter desejável pelos barranqueiros. Enchente é produto de duradouras e intensas chuvas, cuja força “leva tudo por diante” e põe em movimento o rio, fazendo-o ter corrida, transbordar, alagar áreas que se transformam em lagoas e, portanto, criatórios para os peixes, bem como fertilizam a terra, tornando-a própria para a agricultura, quando as águas vazam. Vida e socialidade emaranham-se em meio à fluidez e intensidade dos movimentos das águas.

Da seca e do rio parado ou como a época emerge

As mudanças climáticas, sentidas por meio da redução das chuvas e do consequente aumento dos períodos de estiagem, têm como um dos efeitos mais relatados pelos meus interlocutores o movimento de avanço da terra sobre o rio. É claro que a relação entre terra e rio é percebida também por outras dinâmicas que estão aquém ou além do que a intensificação das secas tem proporcionado. Desde a minha primeira passagem pelo campo, eu me impressionava com as descrições de um dos meus interlocutores, Vital, sobre a formação das ilhas no São Francisco. Há mais de dez anos, enquanto navegávamos pelo rio, Vital chamava a minha atenção para alguns galhos rodeados de um pouco de terra, em meio ao rio. “Fica os paus na enchente e vai juntando terra em volta. As águas trazem os paus. Aí as ilhas vão formando, vão juntando”, dizia ele, me alertando para os singelos movimentos de materiais orgânicos (paus e outras formas de vegetação), minerais (terra e água) e atmosféricos (vento) que produziam mudanças infinitesimais, mas significativas no relevo do rio com os distintos ciclos climáticos.

Conforme vai se estendendo e se intensificando o tempo da seca, após o cessar do tempo das águas, o rio vai sendo descrito como parado. Embora a condição de parado seja aceitável, sobretudo no auge das secas, o rio tem padecido dessa situação por muito tempo, segundo meus interlocutores. Ano após ano, o rio tem se mantido preocupantemente parado, sem corrida, logo, raso e enfraquecido. A situação ficou mais grave nos anos 2000, quando a região enfrentou a pior seca registrada até 2020, quando as chuvas de fevereiro e março, cujo volume foi o maior registrado nos oito anos anteriores, trouxeram lembranças dos tempos antigos. À redução do volume de chuvas anuais acrescenta-se o acúmulo de areia e paus que fazem o rio ficar progressivamente sem corrida ou parado, aumentando as áreas das ilhas e criando outras novas. Nesse contexto, os peixes procuram áreas de águas mais profundas onde se refugiam em esconderijos formados por paus e pedras no fundo dos rios, dificultando a sua pesca. Neste cenário também encolhem as áreas passíveis de praticar a agricultura de vazante.

Embora meus interlocutores incluam os desígnios de Deus nas suas explicações acerca das transformações do mundo em que vivem, certamente eles não ignoram o papel da agência humana nesse cenário, tal como pode se depreender deste longo diálogo que tive com dois interlocutores, Vital e Pedro:

- E o que o senhor acha que está acontecendo para chover menos?

- [Pedro] Moço, é o seguinte, eu mesmo, eu não sei nem o que é disso, mas eu tenho ouvido mais, essa parte, é da boca do povo. Uns falam que é os desmato, outros falam que é a época, né?

- A época?

- [Pedro] É, assim, os tempos vão chegando né.

- Os tempos? Como assim?

- [Pedro] Os tempos assim, porque diz que quando chegasse no final dos tempos, né, das era, tudo ia mudar, né? E então hoje eu tô meio grilado nisso, que eu tô achando que tá mudando mesmo, não sei se tá chegando o fim, não sei, né? Mas que tem mudança, tem. O que aconteceu, ó, de 2000 pra cá aqui mudou muito, o peixe acabou, tá acabando, as água tá secando, né? O povo, uns falam […] que é os desmato, outros falam que é as queimada, eu também não duvido de nada […], porque isso aí tudo pode ajudar mesmo, né? Porque antigamente, no tempo dos pais da gente, dos avós, plantavam uma roça aí, queimava aquilo tudo, nos primeiro ano a roça dava muito boa que tava aquela terra, mas no segundo ano daí a terra morria, né? Cê põe um fogo numa coivara aí, que ela queima que dá brasa, aquilo fica o resto da vida lá, queimado lá, nunca que aquela terra volta ao normal mais. A não ser que venha uma enxurrada e carregue aquilo lá e venha outra e remonte.7 7 “Remonte” são modificações irregulares de relevo provocadas no solo pelo alagamento de áreas de terra atingidas pela cheia do rio. Tais áreas geralmente correspondem às terras baixas ou de vazante localizadas às margens do rio ou nas ilhas. Segundo meus interlocutores os remontes renovam as condições de fertilidade da terra pelo conjunto de material orgânico trazido e impregnado na terra pela água. […] Mas cê vê hoje, o rio estreitou e o peixe acabou, né? E a corrida do rio acabou, né? […] essa Ilha aqui, como nós conhecemos ela [referindo- se à Ilha da Martinha]. Como nós conhecemos ela, aí é o seguinte, essa Ilha aqui ela cresceu, tem lugar aqui que ela cresceu quase metade de largura.

- Ela aumentou?

- [Pedro] Aumentou. Aí, Felipe, a Ilha ali se você for lá e te mostrar lá aonde que era a ponta da Ilha, aonde que terminava a Ilha, aonde é que era rio hoje, é pouca gente que acredita não é compadre? É pouca gente que acredita.

- [Vital] Quem que vai falar hoje, ali entre as duas ilhas, era o rio? […] No meio das duas ilhas, passava um rio, nessa época ainda tava correndo. […] Esse outro rio que passava lá dentro da Ilha, uma época dessa eu cansei de passar rede lá pescando.

- [Pedro] Tinha água mais do que essa aqui, ó [apontando para o trecho de água entre a margem esquerda e a Ilha da Martinha], na época da seca agora, e tinha mais água do que esse aqui, o rio secou, emendou as ilhas.

- [Vital] O rio enche, o rio vaza e tá lá, não pega um peixe mais, quer dizer assim, vindo das lagoas. Porque o fazendeiro hoje faz aterro, pra fechar aquela água lá.

- Ah, eles aterram também?

- [Pedro] Aterra a boca do […] Aqui nós se trata de sangrador, entrada de sangrador. […] Ele vem do rio, faz aquele córrego e joga nas lagoas, naquelas praias, né, fora.

- E os fazendeiros estão aterrando?

- [Pedro] Aqui acolá eles aterram. […] Aqui também, essa lagoa aqui do Bonfim, eles aterraram lá.

- Mas por que fizeram isso? O que eles diziam?

- [Pedro] Uai, ruindade do homem, rapaz. […] Secava pra sair o pasto, né?

- Ah, por causa do pasto pro gado… - [Pedro] Porque a beira da lagoa é sempre, é bom pra pasto, né? E secando, aumenta mais a terra. Hoje o que acontece? Os homens fizeram isso, vários deles fizeram isso, aterraram, meteram a draga naquele lugar que era lagoa, meteu a draga, dentro das lagoa, plantaram bem, plantou outros tipo de capim, hoje tem a terra, mas cadê a água? E o que fizeram aqui uma vez pra secar uma nascente que tinha ali dentro, hoje tá chorando, né? Por exemplo, mesmo ali no X [fazendeiro próximo],8 8 Nome omitido para evitar quaisquer transtornos aos meus interlocutores. tiveram que pôr, abrir poço artesiano, né? Um lugar rico de água igual eles tinham, né?

Hoje em dia, os pescadores reclamam que os fazendeiros da região, cujas lagoas se formavam em suas propriedades, têm fechado as bocas das lagoas, isto é, a entrada dos sangradouros. Esses canais naturais conduziam a entrada e depois a saída das águas do rio e foram fechados para evitar o alagamento de áreas que foram transformadas em pastagem para a criação de gado, atividade que tem se expandido na região. Por outro lado, as práticas de controle dos órgãos ambientais também são evocadas para diagnosticar o excesso de terra que reduz a corrida do rio. Pedro e Vital me explicaram desta maneira:

- [Pedro] Agora, Felipe, tem uma coisa que […] eu não sei se pode concordar ou disconcorda da ideia, mas tem uma coisa, que eu não sou contra o Ibama, [Polícia] Florestal, eu não sou contra não, que tem ajudado muito. Mas se tem uma coisa que eu tô achando, na minha opinião, o que eles não tão querendo aceitar, por exemplo, aqui pra baixo é rio, o rio vazou, nasceu aquele tanto de mato dentro do rio, aquele mato você não pode cortar.

- [Vital] Aquela areia que tem não pode tirar.

- [Pedro] Aquele mato, se a Florestal passar aí ou o Ibama e ver você cortando aquele mato de dentro do rio, eles até prendem, acham ruim. E […] é o seguinte, nós já vimos… a gente convive aqui na beira do rio com a natureza, a gente já viu muita coisa acontecer, você enfia um pau aqui e outro aí, aqui você põe, amarra umas vara nele, deixa ali. Quando o rio enche, que ele chega aqui, ali faz um murundu ali, sabe o que é um murundu?

- O que é murundu?

- [Pedro] Murundu é um monte de terra. Faz aquele monte de terra, mesmo que cê pegue aquele monte […] quando o rio vazou, foi lá você, desatou aquilo, mas aquela terra ali não baixa mais, é o que tá acontecendo com o rio.

- [Vital] O rio enfraqueceu a corrida, né?

- [Pedro] O rio enfraqueceu a corrida.

- Aí ele corre menos, é isso? - [Vital] Corre menos, porque tudo que ia ter aqui ele… a corrida diminui. E o mato de lá dentro do rio, o que tá acontecendo é isso, mato nasce dentro do rio, se você cortar e eles verem, não pode cortar, e devia ser cortado. Eu vou dizer assim, no barranco tudo bem, mas dentro do rio devia ser cortado, porque todo ano que o rio vem e dá enchente, passa levantando a terra, só levantando, aí ele vai só aterrando. Aí no outro rio de lá mesmo, onde é a vazante nossa lá, roça nossa lá, lá deve ter crescido uns cem metros ou mais da onde era o barranco do rio pra lá, né? Então esse mato, vai nascendo capim, nasce capim, nasce alagadiço e vai só suspendendo. Toda vez que a enchente vem, vai só fazendo mais remonte, vai só remontando e vai só subindo. Ali o rio, no correr da seca já não volta de mais, vai ficar pra lá. […]

- [Pedro] Pois é, aqui ó, se você pôr uma draga ali na ponta da ilha ali, pra tirar areia e jogar fora, se não for registrado, você não pode mexer.

Assim, na perspectiva barranqueira, tanto a ação dos órgãos ambientais quanto a dos fazendeiros têm criado mais obstáculos à já enfraquecida corrida do São Francisco, derivada da decrescente precipitação das chuvas. Contudo, há ainda um outro produto da ação humana que tem contribuído para a condição parada do Rio São Francisco: as barragens. Vejamos a continuação da conversa com Vital e Pedro:

- [Pedro] E outra coisa que eu acho que enfraqueceu muito a corrida do rio daí pra cá foi que veio os aterro no rio mais as barragens.

- As barragens?

- [Vital] As barragens, eu acho, você sabe por quê? […] a barragem, ela é […] de Sobradinho, […] De lá da barragem de Sobradinho, “ah, não, mas daqui em Sobradinho tem não sei quantos mil quilômetro de distância”. É, tá certo tá, mas ela lá, essa terra lá, a areia do rio ela movimenta, ela ia embora lá pro mar, né? Mas fez a barragem lá, ela chega lá, ela acumula, você tá entendendo? […] […] Então quando compara o rio, a mesma coisa. Daqui no Sobradinho tem muita distância, mas lá, ela vai parando lá, a outra também vai parando pra cá, ué, a mesma coisa. Ou então, a força do… a água já não corre mais, ela corria, e a areia também vai só levantando, ela vai levantando aqui, ela vai levantando pra trás. […]

- [Pedro] Então isso, eu acho assim, às vez pode não ser, igual eu te falei, pode ser época mesmo, tá chegando o final dos tempos mesmo. Mas pode tudo isso, ajudar.

- [Vital] Mas pode ser também ser coisa do homem, [pois] a sabedoria do homem tá muita, e ele tá acabando com as coisas.

Fins e ressurgências

O passado se insinua com frequência nas percepções acadêmicas e nativas do São Francisco, principalmente para contrastá-lo com um presente desalentador. A “inexorável extinção do Rio São Francisco” tem sido muito repercutida não só nos círculos acadêmicos e na imprensa nos últimos anos. O debate sobre as décadas de intervenção humana na bacia do Velho Chico tem produzido uma consciência, não raro pessimista, sobre os graves efeitos da criação de barragens, da destruição progressiva da vegetação nativa de suas encostas, bem como do contínuo e intenso lançamento de resíduos industriais, sanitários e de agrotóxicos aplicados em larga escala pelas monoculturas no leito do rio e de seus afluentes. O assoreamento e a poluição do rio, bem como o comprometimento da reprodução dos peixes (piracema) devido às barragens, além do impacto de longos períodos de estiagem que se sucedem pelas mudanças climáticas, são alguns dos efeitos com os quais os barranqueiros vêm lidando com dificuldade, mas com incrível lucidez. A percepção de quem mora nas beiras do São Francisco não é menos severa do que a dos cientistas, embora suas práticas cotidianas relacionadas à pesca e à agricultura sejam afirmações pungentes e resilientes da vida que se refaz permanentemente. Se os tempos da seca se tornaram ciclicamente mais intensos e longos que os das águas, fazendo avançar a terra que torna o rio estreito, parado e sem corrida, a agência humana em diferentes registros é um dos importantes vetores de transformação degradante da paisagem são-franciscana. A ação dos próprios pescadores, dos agentes públicos que constroem barragens e fiscalizam atividade dos pescadores, mas são permissivos com a degradação perpetrada pelos fazendeiros que fecham as bocas das lagoas para plantar pasto para o gado e cujo uso de agrotóxicos em larga escala contamina o rio, parece dar cores à época, de que falam os barranqueiros, ao menos os que se identificam como católicos, em tom apocalipticamente bíblico.

Se, como afirmou Vital, o que se passa no Vale do São Francisco “pode ser coisa do homem, [pois] a sabedoria do homem tá muita, e ele tá acabando com as coisas”, tal entendência nos remete ao problema do dualismo entre mundanidade e humanidade presente em várias narrativas do “fim do mundo” (Danowski; Viveiros de Castro, 2014DANOWSKI, D.; VIVEIROS DE CASTRO, E. Há mundo por vir?: ensaio sobre os medos e os fins. Florianópolis: Cultura e Barbárie: ISA, 2014., p. 33), e não apenas na escatologia cristã. Isto é, o problema barranqueiro formulado como época ou fim dos tempos tem sua correspondência com a “desaparição de um dos polos da dualidade entre o mundo e seu Habitante, o ente do qual o mundo é mundo” (Danowski; Viveiros de Castro, 2014DANOWSKI, D.; VIVEIROS DE CASTRO, E. Há mundo por vir?: ensaio sobre os medos e os fins. Florianópolis: Cultura e Barbárie: ISA, 2014., p. 33), conforme a perspectiva ocidental da excepcionalidade humana. A ação antrópica que pode levar a um “mundo sem nós”, só referenciado a um momento original da criação que antecedeu ao surgimento do homem na cosmologia cristã, é pensada pelos barranqueiros como um tipo de “reciprocidade não correspondida” [unrequited reciprocity] (Kirsch, 2006KIRSCH, S. Reverse anthropology: indigenous analysis of social and environmental relations in New Guinea. Stanford: Stanford University Press, 2006., p. 95-98) pelo homem.

Convém lembrar das palavras de Sabino ao sugerir a suspensão temporária da pesca para além dos períodos regrados, como os do defeso.9 9 Período de reprodução dos peixes em que a pesca é suspensa e os praticantes da pesca registrados nas colônias de pescadores recebem uma renda por quatro meses paga pelo governo federal. Ao fazer sua parte no jogo mútuo de dons e contradons que também envolve Deus, chuva, rio, lagoas e peixes, os homens (pescadores e agentes de fiscalização estatal) podem propiciar as condições para o reequilíbrio e reequacionamento da atividade de pesca. É certo também que a “sabedoria do homem” evocada pelos barranqueiros hierarquiza as ações humanas e explicita suas desigualdades. Em suas narrativas, as práticas dos fazendeiros, a construção de infraestruturas de barragens e a fiscalização estatal (Ibama e Polícia Florestal) incidem em maior intensidade na perturbação antrópica da paisagem são-franciscana, bem como suscitam efeitos “ferais” (Tsing, 2021TSING, A. L. O Antropoceno mais que humano. Ilha, Florianópolis, v. 23, n. 1, p. 176-191, fev. 2021., p. 177) da mesma.

Entretanto, a vida parece ressurgir a todo o momento em que o movimento de humanos e outros-que-humanos, aqui não incluídos apenas as formas ditas bióticas de existência, mas também as águas, o sol, as nuvens, a terra, os ventos, se entrelaçam para vazar, transbordar ou exceder uma ideia biológica de vida, imersa no imaginário do carbono, de que fala Elizabeth Povinelli (2016)POVINELLI, E. Geontologies: a requiem to late liberalism. Durham: Duke University Press, 2016.). Meus interlocutores têm uma trajetória marcada por pequenas e grandes itinerâncias, tal como já expus em Benites (2018BENITES, L. F. What happens between the roça and the urban periphery? Some questions about movement. Vibrant, [s. l.], v. 15, n. 1, e151402, 2018., p. 5): “caçando uma vida melhor” de fazenda em fazenda, nas quais foram agregados, devido a desentendimentos, não raro violentos, com os proprietários; nos rituais que envolvem os giros de folia entre casas da comunidade e fora dela; nos deslocamentos duradouros ou temporários para trabalhar em outras localidades, sobretudo nas grandes metrópoles.

Viver ganha sentido para os meus interlocutores por meio de verbos e expressões associados a movimentações que designam determinadas práticas e relações, como, por exemplo, mexer com algo (roça, pesca, rio, etc.) ou alguém (fazendeiros, gado, peixes, santos, etc.), tal como expus em Benites (2015b)BENITES, L. F. Mexendo com a roça: trabalho e movimento no Sertão Mineiro. Ruris, Campinas, v. 9, n. 1, p. 39-61, out. 2015b.. O Rio São Francisco demonstra sua força vital ou seu enfraquecimento por meio dos seus movimentos de encher e vazar, ter corrida ou ficar parado. Assim também, as nuvens se movem e se juntam para formar o tempo conferindo beleza ao céu cinzento que por sua vez torna-se prenúncio do movimento de precipitação das águas sob a forma da chuva, essencial para fertilização da terra e para fazer o rio ter corrida. A terra, embora seja um dos entes mais atravessados por forças de estabilização, também é conduzida em parte pelas águas que carregam tudo, mas encontram nas infraestruturas das barragens seus pontos de acúmulo e retorno para o fundo do rio.

O movimento de tais entes humanos e outro-que-humanos inscreve e conforma a paisagem ao longo de ritmos e temporalidades próprias que se justapõem. Com isso, gostaria de chamar a atenção para as “cotemporalidades” em que as coordenações dos elementos sobrepostos contam “histórias mais-que-humanas” (Tsing, 2021TSING, A. L. O Antropoceno mais que humano. Ilha, Florianópolis, v. 23, n. 1, p. 176-191, fev. 2021., p. 187). Por exemplo, os desmontes e remontes provocados pelas águas das enchentes deixam marcas nas barrancas do rio visíveis em faixas de sedimentos de cores claras e escuras que se sobrepõem para contar histórias do rio e de suas margens, assim como as narrativas de deslocamento para “caçar uma vida melhor” (Benites, 2018BENITES, L. F. What happens between the roça and the urban periphery? Some questions about movement. Vibrant, [s. l.], v. 15, n. 1, e151402, 2018.) perto ou distante da Ribanceira compõem os rastros das histórias de muitos barranqueiros. A paisagem são-franciscana é composta por essas distintas histórias que se imbricam e enredam. Tais histórias também se emaranham aos ciclos dos tempos das águas e da seca e de outras sazonalidades da vida social barranqueira como os tempos das festas ou o tempo da política (Benites, 2010BENITES, L. F. Olhando da ribanceira: perspectivas de influência e vulnerabilidade no Vale do Alto-Médio São Francisco. 2010. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010., 2015aBENITES, L. F. Da ‘consideração’ e da acusação: notas etnográficas sobre reputação, fofocas e rumores na política. In: COMERFORD, J.; CARNEIRO, A.; DAINESE, G. (org.). Giros etnográficos em Minas Gerais: casa, comida, prosa, festa, política, briga e o diabo. Rio de Janeiro: 7 Letras: Faperj, 2015a. p. 65-92., 2015bBENITES, L. F. Mexendo com a roça: trabalho e movimento no Sertão Mineiro. Ruris, Campinas, v. 9, n. 1, p. 39-61, out. 2015b.). É atento a essas “cotemporalidades” em que os movimentos de pessoas, águas, terras, plantas, peixes, entre outros actantes, se enredam que podemos apreender como o entorno do São Francisco vai sendo moldado como uma paisagem cada vez mais imersa em uma atmosfera seca.

Quando o fim não termina

Poderia se indagar quanto ao status ontológico das entendências extraídas das práticas e narrativas barranqueiras. Afinal, relatos como o de Pedro têm em seu início o seguinte alerta: “Eu tenho ouvido mais, essa parte, é da boca do povo.” Aqui me parece fundamental a lembrança de Luzimar Pereira (2018PEREIRA, L. O diabo da dúvida: histórias de pacto com o demônio no norte e noroeste de Minas Gerais. Revista del Museo de Antropología, Córdoba, v. 11, supl. 1, p. 25-34, 2018., p. 28) sobre o “não comprometimento ontológico” do narrador com as formulações de narrativas no norte mineiro, pois deixa “a avaliação de sua veracidade para o ouvinte de um relato produzido por uma coletividade de pessoas dispersa estrategicamente no tempo e no espaço”. Tal atitude pode sugerir que

o efeito deste distanciamento é ambíguo: se for “invenção”, foi o “povo” […] que “inventou”. Logo, o narrador não estaria repassando “mentira” como se fosse verdade. Mas, por outro lado, se o “povo diz”, pode ser que seja real. No norte e noroeste de Minas Gerais, como atesta o ditado, a voz do povo também pode ser a voz de deus; o que, noutros termos, revela [o] poder criativo de sua palavra. (Pereira, 2018PEREIRA, L. O diabo da dúvida: histórias de pacto com o demônio no norte e noroeste de Minas Gerais. Revista del Museo de Antropología, Córdoba, v. 11, supl. 1, p. 25-34, 2018., p. 28).

Ora, é essa criatividade que reivindico aqui. Os modos de análise barranqueiros demonstram uma abertura a outras explicações. Afinal, como afirma Pedro, “eu também não duvido de nada […], porque isso aí tudo pode ajudar mesmo, né?”. Assim, ao não reivindicar qualquer exclusividade explicativa, a abertura barranqueira suscita a possibilidade da imiscuidade entre ciências globais e locais na articulação de consensos científicos sobre as mudanças ambientais e as ontologias de diferentes povos e comunidades “por meio de encontros pragmáticos que transpõem fronteiras ontológicas”, tal como sugere Mauro Almeida (2021ALMEIDA, M. Anarquismo ontológico e verdade no Antropoceno. In: ALMEIDA, M. Caipora e outros conflitos ontológicos. São Paulo: Ubu, 2021. p. 309-334., p. 331). A etnografia que venho conduzindo também está em movimento tal como as águas e o pensamento barranqueiro e, provavelmente, me levará a outras correntezas, travessias e remansos da reflexão e, quiçá, aproxime-se heuristicamente do que a tem inspirado: as entendências.

Referências

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  • BENITES, L. F. Da ‘consideração’ e da acusação: notas etnográficas sobre reputação, fofocas e rumores na política. In: COMERFORD, J.; CARNEIRO, A.; DAINESE, G. (org.). Giros etnográficos em Minas Gerais: casa, comida, prosa, festa, política, briga e o diabo. Rio de Janeiro: 7 Letras: Faperj, 2015a. p. 65-92.
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  • TSING, A. L. O Antropoceno mais que humano. Ilha, Florianópolis, v. 23, n. 1, p. 176-191, fev. 2021.
  • 1
    Uma obra (Siqueira Filho et al., 2012SIQUEIRA FILHO, J. A. de et al. Flora das caatingas: história natural e conservação. Recife: Andreia Jacobson Estudio, 2012.) que se tornou uma referência importante no campo da conservação e história natural anunciava “a inexorável extinção do Rio São Francisco”. Desde então a preocupação com a situação agonizante do rio tem reverberado nos círculos científicos e jornalísticos.
  • 2
    A pesquisa na qual se baseia este texto é financiada pelo Edital Universal do CNPq.
  • 3
    Flávio Gomes utiliza o termo campo negro para pensar campo de relações sociais dos quilombolas do Recôncavo da Guanabara no século XIX. Ele o define como “uma complexa rede social, palco de lutas e solidariedades entre as comunidades de fugitivos, cativos nas plantações e até nas áreas urbanas vizinhas, libertos, lavradores e fazendeiros” (Gomes, 2015GOMES, F. S. Mocambos e quilombos. Rio de Janeiro: Claro-Enigma, 2015., p. 108). Creio que tal termo pode ser apropriado para pensar as socialidades negras do pós-abolição até hoje em dia, de modo a não isolar as comunidades negras e pensá-las relacionalmente a partir de movimentos incessantes na constituição de conexões e solidariedade.
  • 4
    No que diz respeito à transposição textual das falas em que muitas entendências são trazidas à tona, realizei pouquíssimas correções referentes à norma culta, pois acredito que a manutenção de certos desacordos gramaticais, hesitações e repetições de expressões buscam conservar a poética característica da prosa barranqueira.
  • 5
    Em seu texto “Landscape or weather-world?”, Tim Ingold (2011)INGOLD, T. Landscape or weather-world? In: INGOLD, T. Being alive: essays on movement, knowledge and description. London: Routledge, 2011. p. 126-135. faz uma crítica de sua formulação anterior exposta em “Temporality of landscape” (Ingold, 2000INGOLD, T. Temporality of landscape. In: INGOLD, T. The perception of environment: essays in livelihood, dwelling and skill. London: Routledge, 2000. p. 189-208.) para incluir os meios fluidos (luz. sons, ventos, etc.) na conformação das superfícies.
  • 6
    Peixe também denominado curimatá, curimatã ou curimbatá (Prochilodus lineatus).
  • 7
    “Remonte” são modificações irregulares de relevo provocadas no solo pelo alagamento de áreas de terra atingidas pela cheia do rio. Tais áreas geralmente correspondem às terras baixas ou de vazante localizadas às margens do rio ou nas ilhas. Segundo meus interlocutores os remontes renovam as condições de fertilidade da terra pelo conjunto de material orgânico trazido e impregnado na terra pela água.
  • 8
    Nome omitido para evitar quaisquer transtornos aos meus interlocutores.
  • 9
    Período de reprodução dos peixes em que a pesca é suspensa e os praticantes da pesca registrados nas colônias de pescadores recebem uma renda por quatro meses paga pelo governo federal.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    29 Ago 2022
  • Aceito
    26 Fev 2023
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