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Crise como criticidade e cronicidade: a recorrência dos desastres da mineração em Minas Gerais

Crisis as criticality and chronicity: the recurrence of mining disasters in Minas Gerais, Brazil

Resumo

A recorrência dos desastres evidenciados pelos rompimentos das barragens de rejeitos de mineração de ferro em Minas Gerais, somada às reiteradas ameaças de rompimento, tem colocado em debate o neoextrativismo como força motriz da economia brasileira. A partir de situações etnografadas em Minas, o texto aborda o desastre como crise que compreende elementos de criticidade e cronicidade, evento e processo. Nesse sentido, para além de um evento crítico, a análise aborda as dimensões processuais e estruturantes dos desastres, identificando seus padrões históricos, políticos, institucionais e socioambientais no contexto do neoextrativismo. Ênfase é dada à violência lenta, representada pelos processos de desregulação e desmonte da governança ambiental erigida no país desde a década de 1980 e pela economia de visibilidades presente tanto no licenciamento ambiental de grandes obras quanto nas formas de reparação dos desastres, a qual acentua a geografia das obras (ou da “lama”) acima das geografias dos territórios sociais.

Palavras-chave:
desastres; neoextrativismo; crise; meio ambiente

Abstract

The recurrence of disasters as evidenced by the collapse of iron mining tailings dams in Minas Gerais, coupled with the repeated threats of disruption, has brought into question the neoextractivism as a driving force of the Brazilian economy. Based on ethnographic cases in Minas, the paper addresses the disaster as a crisis that includes elements of criticality and chronicity, event and process. In this sense, beyond a critical event, the analysis approaches the structuring dimensions of disasters, identifying their historical, political, institutional and socio-environmental patterns in the context of neo-extractivism. Emphasis is given to the slow violence, represented by the deregulation and dismantling of the environmental governance set up in the country since the 1980s; and by the economy of visibilities both in the environmental assessment of large projects and in disaster reparation, which accentuates the geography of the projects (or of the “mud”) above the geographies of social territories.

Keywords:
disasters; neoextractivism; crisis; environment

Introdução1 1 Agradeço ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq 303639/2020-2 e 421726/2018-0) e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG: APQ 01598-16 e APQ 01887-18) pelo apoio às pesquisas que possibilitaram as reflexões contidas neste artigo.

A origem etimológica da palavra crise remete à Grécia antiga, onde krinô significava separação e corte, mas também decisão e julgamento. Comumente associada aos campos da lei, da medicina e da teologia, foram os sentidos médicos da palavra que prevaleceram desde os séculos V e IV antes de Cristo (Roitman, 2012ROITMAN, J. Crisis. Political Concepts: a critical lexicon, [s. l.], n. 1, Winter 2012. Disponível em: Disponível em: http://www.politicalconcepts.org/roitman-crisis/ . Acesso em: 28 out. 2022.
http://www.politicalconcepts.org/roitman...
). Filiada à escola de Hipócrates, na gramática médica a noção de crise denotava um ponto de virada no processo de uma doença, ou seja, um momento crítico em que a vida e a morte estavam em questão e uma decisão era imperativa. Nesse ponto, a crise não era a doença em si, mas uma condição que clamava por tomada de decisão entre alternativas possíveis. Os sentidos legal e teológico, no entanto, não se perderam ao longo do tempo e, através de múltiplos deslocamentos, foram constituindo uma rede de significados que, junto ao campo médico, passaram a associar a noção de crise à prognose. Esta se conjuga intimamente à ideia de tempo, sobretudo a partir da Europa do século XVIII, quando a temporalização da história se estabelece com maior vigor. Nesse contexto, a palavra crise passa a remeter tanto a um evento histórico quanto a uma condição prolongada. Crise se torna, assim, um termo através do qual a história é julgada por meio de um diagnóstico de tempo. Segundo Roitman (2012)ROITMAN, J. Crisis. Political Concepts: a critical lexicon, [s. l.], n. 1, Winter 2012. Disponível em: Disponível em: http://www.politicalconcepts.org/roitman-crisis/ . Acesso em: 28 out. 2022.
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, é nesse caminhar que a noção de crise se torna central como forma de narrar a história no mundo contemporâneo. Na prática, a crise se apresenta como um julgamento do tempo em termos de intervalos análogos, e um julgamento da história em termos de significância (eventos críticos, mudanças relevantes, como as que dizem respeito a uma nova ordem social), configurando um meio pelo qual a história é apreendida como mudança e transformação.

Interessante assinalar que crítica e crise são termos cognatos, sendo que a crítica clama a crise no sentido de uma distinção que produz significado evocado para reafirmar “momentos de verdade”, a instância em que o “real” se faz presente e algo é revelado. Nesse diapasão, crise configuraria uma espécie de não lugar que permite um posicionar-se para a emergência de perguntas do tipo: o que é que deu errado? Houve ruptura de uma ordem? Que avaliações podem ser feitas?

Ora, como uma modalidade de crise, os desastres da mineração apresentam dimensões críticas e crônicas e, do ponto de vista do princípio revelador, trazem a lume o que estava latente ou ocultado, constituindo lugares de interrogação sobre o neoextrativismo na América Latina, no Brasil e em Minas Gerais.

De fato, nos últimos anos, a recorrência dos desastres evidenciados pelos rompimentos das barragens de rejeitos da mineração de ferro em Minas Gerais, somada às reiteradas ameaças de rompimento, tem colocado em debate o neoextrativismo como força motriz da economia brasileira centrada na exportação de commodities, bem como os processos associados de desregulação e desmonte da governança ambiental erigida no país desde a década de 1980.

A barragem de Fundão, que se rompeu em Mariana, em novembro de 2015, propriedade da Samarco Mining, Inc. Company - uma joint venture envolvendo a Vale S.A. e a BHP Billiton Brasil Ltda. -, despejou aproximadamente 50 milhões de metros cúbicos de rejeito mineral pelo Rio Doce até sua foz, no Oceano Atlântico. Dezenove pessoas morreram de imediato, outras tantas ao longo do processo, enquanto milhares de moradores continuam deslocados, enfrentando a perda de suas casas, terras, plantas, animais, vizinhos, amigos, comunidade… No momento em que escrevo estas linhas, sete anos se passaram e o desastre perdura e se desdobra para além do evento que ensejou sua criticidade. Moradores dos distritos rurais destruídos foram forçados a viver em casas alugadas e espalhadas pela cidade de Mariana. Vivem isolados dos vizinhos e parentes, presos a negociações diárias e que lhes são desfavoráveis, à espera do reassentamento e/ou da indenização, amargando incertezas sobre o futuro e indignados pela impunidade dos agentes corporativos e estatais. Aqueles cujas casas não foram totalmente destruídas permanecem no lugar de origem como deslocados in situ (Feldman; Geisler; Silberling, 2003FELDMAN, S.; GEISLER, C.; SILBERLING, L. Moving targets: displacement, impoverishment and development. International Social Science Journal, [s. l.], v. 55, n. 175, p. 7-13, 2003.), convivendo com a lama contaminada e a desconfiança permanente sobre os alimentos e a água que consomem.2 2 Conforme será discutido adiante, a governança do desastre se faz, entre outras estratégias, por meio de um fracionamento da realidade em classes de atingidos a partir de critérios arbitrários construídos com base numa visão patrimonial e rentista própria ao mundo dos negócios. Assim, a classificação entre atingidos diretos e indiretos, ou entre deslocados físicos e deslocados econômicos, conforme grade estabelecida pelo International Finance Corporation (2012), promove uma separação com hierarquização dos atingidos para fins de reparação. Trata-se de uma divisão delimitada pela “calha da lama”, o que tende a delimitar e escalonar financeiramente o escopo dos recursos a serem mobilizados para a reparação. Ver ainda Zhouri et al. (2018); Oliveira et al. (2020) e Teixeira, Zhouri e Motta (2021). O adoecimento físico e mental tornou-se uma constante entre as famílias atingidas. O comprometimento da vida no Rio Doce até o mar, no Espírito Santo, trouxe prejuízos significativos para milhões de habitantes que compreendem uma diversidade etnocultural entre moradores urbanos, indígenas, comunidades tradicionais, agricultores, turistas…

Em janeiro de 2019, três anos após o rompimento de Fundão, a barragem 1 da mina Córrego do Feijão, propriedade da Vale S.A., desmorona no município de Brumadinho, distante 50 km da capital mineira. Dessa vez, um volume de 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos atingiu de súbito as estruturas operacionais e administrativas da empresa, soterrando escritórios, o restaurante e os trabalhadores que ali almoçavam. Ao menos 272 pessoas foram mortas no rompimento. Tal como em Fundão, essa era igualmente uma barragem construída a montante, logo acima do centro administrativo da Vale e dos vilarejos há tempos estabelecidos a jusante. Os rejeitos foram rapidamente arrastados pelo Rio Paraopeba até a usina hidrelétrica de Retiro Baixo, destruindo o rio que é responsável pelo abastecimento de água para milhões de pessoas na região metropolitana de Belo Horizonte. Dezenove municípios foram afetados pelo desastre até o reservatório de Três Marias, no rio São Francisco. Novamente, entre as vítimas estão comunidades de pescadores, agricultores familiares, empreendimentos voltados para o turismo ecológico, assentamentos indígenas e de quilombolas, moradores urbanos, além de todo o ecossistema que compreende a bacia do Rio Paraopeba.

A partir daí, um clima de terror se instalou na região metropolitana da capital mineira, na medida em que o risco de desabamento de outras dezenas de barragens veio a público, sobretudo no Quadrilátero Ferrífero/Aquífero.3 3 Quadrilátero Ferrífero é o nome da região centro-sul de Minas Gerais considerada a maior província mineral do Brasil. Aproximadamente 60% do minério de ferro do país sai dessa região. Compreende 7 mil quilômetros quadrados de área abrangendo municípios como Caeté, Itabira, Itaúna, João Monlevade, Mariana, Ouro Preto, Rio Piracicaba, Sabará e Santa Bárbara. Entre as estratégias da resistência à mineração está a disputa pela nomeação do território, uma vez que o Quadrilátero detém os principais mananciais de água que abastecem a Região Metropolitana de Belo Horizonte. Ambientalistas defendem que o Quadrilátero seja pautado em lógicas de conservação ambiental e de reprodução da vida (a exemplo, ver Aguiar e Souza, 2021). Desde 2019, avaliações sobre risco de rompimento de barragens, emitidas por empresas e órgãos de fiscalização, como a Agência Nacional de Mineração (ANM), têm levado à evacuação preventiva de moradores, sobretudo, mas não exclusivamente, aqueles que vivem nos distritos rurais a jusante dos empreendimentos.4 4 Sobre o dilema vivido pela população da cidade de Congonhas, que vive sob a ameaça de ruptura da barragem Casa de Pedra na área urbana, ver Dotta (2022) e também Colodeti e Andrade (2022). Enquanto escrevo esta nota, em 7/10/2022, recebo mais uma notícia sobre risco de rompimento de barragem no município de Santa Barbara (cf. Fantti, 2022). As pessoas são removidas de suas casas e hospedadas em hotéis, na casa de parentes ou em imóveis alugados. Em algumas localidades, o fechamento de pequenos estabelecimentos comerciais e de hospedarias provocou instabilidades, incertezas, medo e a suspensão da vida, uma situação que fez emergir um debate sobre os “atingidos pela lama invisível” e o “terrorismo das barragens” (Laschefski, 2020LASCHEFSKI, K. Rompimento de barragens em Mariana e Brumadinho: desastres como meio de acumulação por despossessão. Ambientes: revista de geografia e ecologia política, [s. l.], v. 2, n. 1, p. 98-143, 2020.).

A despeito da atualidade e da emergência do fenômeno na esfera pública e como objeto de pesquisa acadêmica, sobretudo nas ciências humanas, não é demasiado lembrar a recorrência desse tipo de desastre em Minas, a exemplo de Fernandinho (1986), Rio Verde (2001), Rio Pomba (2007) e Herculano (2014), com destaque para os intervalos cada vez menores e sistemáticos a partir dos anos 2000, período que marca a reprimarização da economia e o boom das commodities. Neste artigo, retomarei considerações sobre as condições de produção dos desastres da mineração (Zhouri, 2019ZHOURI, A. Desregulação ambiental e desastres da mineração no Brasil. Uma perspectiva da ecologia política. In: CASTRO, E.; CARMO, E. do. Desastres e crimes da mineração em Barcarena. Belém: NAEA/UFPA, 2019a. p. 43-54.a) para apontar os padrões econômicos, políticos e institucionais que subjazem à sua recorrência numa dimensão estrutural, com destaque para o jogo entre os componentes crônicos e críticos da crise (Vigh, 2008VIGH, H. Crisis and chronicity: anthropological perspectives on continuous conflict and decline. Ethnos, [s. l.], v. 73, n. 1, p. 5-24, Mar. 2008.), as dimensões da violência lenta (Nixon, 2011NIXON, R. Introduction. In: NIXON, R. Slow violence and the environmentalism of the poor. Cambridge: Havard University Press, 2011. p. 1-44.) e da violência nua (Zhouri, 2022ZHOURI, A. O anti-ambientalismo no Brasil: da violência lenta à violência nua. In: ZUCARELLI, M. et al. (org.). Infraestrutura para produção de commodities e povos etnicamente diferenciados: efeitos e danos da implantação de “grandes projetos de desenvolvimento” em territórios sociais. Rio de Janeiro: Mórula, 2022. p. 105-145.) no campo ambiental do modelo neoextrativista de sociedade.

Sobre as formas de nomeação e seus efeitos: acidente, crime e desastre

Embora segmentos corporativos e agentes governamentais se refiram aos rompimentos das barragens como acidentes, e essa categoria tenha se tornado a forma mais comum de nomeação do fenômeno, como se pretende argumentar, não há nada de fortuito, ocasional ou acidental nos rompimentos das barragens de rejeitos da mineração. Conforme adverte Bourdieu (1996)BOURDIEU, P. A economia das trocas linguísticas: o que falar quer dizer. São Paulo: Edusp, 1996., os nomes importam, na medida em que o ato de nomear está imerso em relações de poder que geram efeitos de sentidos na realidade. Assim, a palavra acidente evoca uma ausência de intencionalidade, ou melhor, a ocorrência de um fenômeno de caráter natural ou sobrenatural que, de todo modo, tem origem fora do alcance da sociedade e da história, o que, em última instância, gera sentidos de isenção no que diz respeito à responsabilidade e responsabilização dos agentes sociais. Em outro giro, a indignação pública e a norma jurídica identificam tais eventos críticos como sendo criminosos, em função das falhas, negligências e riscos conscientemente assumidos pelas mineradoras, conforme inquéritos judiciais, investigações feitas pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Barragens no Congresso Nacional5 5 Comissão Parlamentar de Inquérito Rompimento da Barragem de Brumadinho. Ver relatório final em Brasil (2019). e informações amplamente veiculadas pela grande mídia.

Entretanto, a partir de uma abordagem da ecologia política, interessa argumentar neste artigo as condições socioantropológicas de produção dos rompimentos de barragens. Para tal, esses fenômenos serão identificados como ocorrências em meio a um processo histórico-ambiental mais abrangente, ou seja, como eventos críticos em processos crônicos que configuram os desastres sociotécnicos (Zhouri et al., 2018ZHOURI, A. et al. O desastre no Rio Doce: entre as políticas de reparação e a gestão das afetações. In: ZHOURI, A. (org.). Mineração: violências e resistências: um campo aberto à produção de conhecimento no Brasil. Marabá: Editorial iGuana: ABA, 2018. p. 28-64.).

A categoria desastre sociotécnico permite sublinhar as dimensões propriamente sociológicas e antropológicas (Oliver-Smith, 1999OLIVER-SMITH, A. What is a disaster? Anthropological perspectives on a persistent question. In: OLIVER-SMITH, A.; HOFFMAN, S. (ed.). The angry Earth: disaster in anthropological perspective. London: Routledge, 1999. p. 18-34.; Valencio, 2014VALENCIO, N. Desastre: tecnicismo e sofrimento social. Ciência e Saúde Coletiva, [s. l.], v. 19, n. 9, p. 3631-3644, 2014.) de um processo que vai além de uma avaria ou de um erro meramente técnico, remetendo-nos tanto a questões que dizem respeito à política econômica e ambiental quanto às falhas da gestão responsáveis por padrões de vulnerabilização socioambiental que, de fato, expõem a população ao risco. Trata-se, portanto, de um conceito que remete ao campo da ecologia política dos desastres, na medida em que problematiza “o processo sócio-histórico no bojo do qual se desenrola a dinâmica socioespacial” (Valencio, 2014VALENCIO, N. Desastre: tecnicismo e sofrimento social. Ciência e Saúde Coletiva, [s. l.], v. 19, n. 9, p. 3631-3644, 2014., p. 3633). Nessa concepção, a reflexão extrapola as considerações sobre parâmetros geofísicos e problemas de predição, quantificação das consequências e confiabilidade técnica do sistema, para entender a lógica que subjaz à localização geográfica das instalações perigosas, às visões sobre segurança e prevenção, às decisões políticas relativas ao licenciamento dessas estruturas e à escolha técnica das barragens como formas de disposição de rejeitos, fatores que engendram, enfim, a produção e reprodução das iniquidades ambientais (Zhouri et al., 2018ZHOURI, A. et al. O desastre no Rio Doce: entre as políticas de reparação e a gestão das afetações. In: ZHOURI, A. (org.). Mineração: violências e resistências: um campo aberto à produção de conhecimento no Brasil. Marabá: Editorial iGuana: ABA, 2018. p. 28-64., p. 40). Afinal, como adverte Oliver-Smith (1999OLIVER-SMITH, A. What is a disaster? Anthropological perspectives on a persistent question. In: OLIVER-SMITH, A.; HOFFMAN, S. (ed.). The angry Earth: disaster in anthropological perspective. London: Routledge, 1999. p. 18-34., p. 25, tradução minha): “os desastres estão profundamente imbricados tanto na estrutura social e cultura de uma sociedade quanto no meio ambiente”. Dessa forma, “um desastre se torna inevitável pelos padrões de vulnerabilidade produzidos historicamente, evidenciados pela localização, infraestrutura, estrutura sociopolítica, padrão de produção e ideologia que caracteriza uma sociedade” (Oliver-Smith, 1999OLIVER-SMITH, A. What is a disaster? Anthropological perspectives on a persistent question. In: OLIVER-SMITH, A.; HOFFMAN, S. (ed.). The angry Earth: disaster in anthropological perspective. London: Routledge, 1999. p. 18-34., p. 29, tradução minha).

Portanto, mais do que eventos circunscritos em frações de tempo e espaço, medidos por um “antes” - tempo de normalidade - e um depois - o “pós-desastre” -, visão que sugere a retomada de uma condição supostamente normal que foi interrompida, os desastres merecem ser compreendidos como processos que se estendem para além da criticidade da manifestação repentina e catastrófica, a violência espetacular e nua (Zhouri, 2022ZHOURI, A. O anti-ambientalismo no Brasil: da violência lenta à violência nua. In: ZUCARELLI, M. et al. (org.). Infraestrutura para produção de commodities e povos etnicamente diferenciados: efeitos e danos da implantação de “grandes projetos de desenvolvimento” em territórios sociais. Rio de Janeiro: Mórula, 2022. p. 105-145.) de um rompimento de barragem. A delimitação do desastre em uma grade temporal do “antes” e do “pós-desastre” impossibilita a compreensão de suas dimensões crônicas e críticas, aspecto que pode induzir à perpetuação de injustiças socioambientais pela suposição da resolução do problema pela simples passagem do tempo. Nos casos em tela, a gestão do tempo e das formas da reparação, em geral sob o controle das empresas (Melendi; Lopo, 2021MELENDI, L. P; LOPO, R. M. A Fundação Renova como forma corporativa: estratégias empresariais e arranjos institucionais no desastre da Samarco/Vale/BHP Billiton no Rio Doce, Mariana (MG). Ambientes: revista de geografia e ecologia política, [s. l.], v. 3, n. 2, p. 206-250, 2021.; Teixeira; Lima, 2022TEIXEIRA, R.; LIMA, M. A política do tempo no desastre: disputas pela reparação no reassentamento da comunidade de Paracatu de Baixo. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, [s. l.], v. 24, E202201pt, 2022.), torna-se elemento constitutivo do desastre, gerando sofrimento social (Das; Kleinman; Lock, 1996DAS, V.; KLEINMAN, A.; LOCK, M. Introduction. Daedalus, [s. l.], v. 125, n. 1, p. XI-XX, 1996. Special issue on social suffering.) e danos subsequentes às vítimas.

Entre os elementos de cronicidade (Vigh, 2008VIGH, H. Crisis and chronicity: anthropological perspectives on continuous conflict and decline. Ethnos, [s. l.], v. 73, n. 1, p. 5-24, Mar. 2008.) a configurar a violência lenta (Nixon, 2011NIXON, R. Introduction. In: NIXON, R. Slow violence and the environmentalism of the poor. Cambridge: Havard University Press, 2011. p. 1-44.) na produção social dos desastres da mineração, destaco um conjunto padronizado e rotinizado de processos políticos, institucionais e econômicos que tem impulsionado o neoextrativismo no Brasil. Entre esses, assume papel central a sistemática flexibilização das normas ambientais e o controle de espaços decisórios nos conselhos de política ambiental, assim como nos parlamentos, pelo lobby das mineradoras. Nas situações que envolvem Fundão e Córrego do Feijão, ambas as barragens sofreram alteamentos sucessivos e cresceram para além do que fora planejado a princípio. A conjunção de fatores que combinam a lógica da rentabilidade dos negócios, compreendendo uma opção tecnológica ultrapassada, porém mais barata, qual seja, barragem de alteamento a montante, bem como falhas institucionais no que se refere à fiscalização e ao monitoramento (Zhouri, 2019aZHOURI, A. Desregulação ambiental e desastres da mineração no Brasil. Uma perspectiva da ecologia política. In: CASTRO, E.; CARMO, E. do. Desastres e crimes da mineração em Barcarena. Belém: NAEA/UFPA, 2019a. p. 43-54.), encontram-se na linha de frente dos problemas relativos ao risco calculado para essas estruturas. Não obstante tais fatores terem sido evidenciados nos debates públicos que se seguiram aos rompimentos, importa compreender as questões estruturais e estruturantes dos desastres, seus aspectos de fundo crônico.

Dimensões da cronicidade dos desastres da mineração: a violência lenta

O neoextrativismo como modelo civilizacional

Recentemente, a teoria crítica latino-americana tem identificado no modelo primário-exportador, que se consolidou em diferentes países do continente desde o inicio dos anos 2000, elementos de continuidade com as formas históricas coloniais de sua inserção no mercado global baseadas na exportação da natureza. Nesse sentido, o neoextrativismo seria algo mais do que um modo técnico de produção passível de ser replicado em qualquer modelo de sociedade. Em sua escala global, ele seria a expressão de um padrão civilizatório antropocêntrico, patriarcal e colonial de destruição da vida (Machado Aráoz, 2022MACHADO ARÁOZ, H. America(n)-Nature, conquestual habitus and the origins of the “Anthropocene”. Mine, plantation and their geological (and anthropological) impacts. Die Erde, Berlin, v. 153, n. 3, p. 162-177, 2022.; Lander, 2017LANDER, E. Neo-extractivismo: debates y conflictos en los países con gobiernos progresistas en suramerica. In: ALIMONDA, H.; TORO PÉREZ, C.; MARTÍN, F. (coord.). Ecología política latinoamericana: pensamiento crítico, diferencia latinoamericana y rearticulación epistémica: volumen 2. Ciudad de México: Clacso, 2017. p. 79-92.; Svampa, 2013SVAMPA, M. Consenso de los commodities y lenguajes de valorácion en America Latina. Revista Nueva Sociedad, [s. l.], n. 244, p. 30-46, marzo/abril 2013.). Não se trata, pois, de mero regime de produção, mas conforma uma matriz de poder que constitui um certo tipo de sociedade que forja instituições, padrões políticos e até subjetividades ao promover agentes sociais envolvidos em processos de mineralização da vida. Essa análise parece ir ao encontro da advertência feita por David Kopenawa e Bruce Albert (2015)KOPENAWA, D.; ALBERT, B. A queda do céu. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. a propósito da mineração na Amazônia. A atividade dos “canibais do minério”, os homens que agem como “tatus-canastra” extraindo as coisas maléficas das profundezas da terra, seria coisa bizarra aos olhos dos Yanomami, podendo induzir à queda do céu.

As coisas que os brancos extraem das profundezas da terra com tanta avidez, os minérios e o petróleo, não são alimentos. São coisas maléficas e perigosas, impregnadas de tosses e febres, que só Omama conhecia. Ele porém decidiu, no começo, escondê-las sob o chão da floresta para que não nos deixassem doentes. Quis que ninguém pudesse tirá-las da terra, para nos proteger. Por isso devem ser mantidas onde ele as deixou enterradas desde sempre. A floresta é a carne e a pele de nossa terra, que é o dorso do antigo céu Hutukara caído no primeiro tempo. O metal que Omama ocultou nela é seu esqueleto que ela envolve de frescor úmido. São essas as palavras dos nossos espíritos, que os brancos desconhecem. Eles já possuem mercadorias mais do que suficientes. Apesar disso, continuam cavando o solo sem trégua, como tatus-canastra. Não acham que fazendo isso serão tão contaminados quanto nós somos. Estão enganados. (Kopenawa; Albert, 2015KOPENAWA, D.; ALBERT, B. A queda do céu. São Paulo: Companhia das Letras, 2015., p. 357).

A magnitude e o compasso acelerado da destruição da vida sobre a terra - em um primeiro momento evidenciados pelas formas de subjugação e extinção dos diversos modos de vida, processos identificados como etnocídio (Clastres, 2004CLASTRES, P. A arqueologia da violência. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.), ou como genocídio na chave decolonial (Molina, 2020MOLINA, L. A subversão como método: repensando o genocídio a partr das terras e das lutas indígenas. In: VIEIRA, S. de A.; VILLELA, J. M. (org.). Insurgências, ecologias dissidentes e antropologia modal. Goiânia: Editora da Imprensa Universitária, 2020. E-book sem paginação.) - têm ensejado um debate sobre crise para além da sua dimensão socioambiental. A despeito de certa tendência à naturalização presente nos debates sobre o antropoceno, diferentes vertentes das ciências sociais críticas têm refletido sobre as raízes e as características sócio-históricas das alterações geológicas em curso no planeta (Chakrabarty, 2009CHAKRABARTY, D. Clima y historia. Cuatro tesis. Pasajes: revista de pensamiento contemporáneo, [s. l.], v. 1, n. 31, p. 51-69, 2009.; Haraway, 2016HARAWAY, D. Antropoceno, capitaloceno, plantacionoceno, chthuluceno: generando relaciones de parentesco. Revista Latinoamericana de Estudios Críticos Animales, [s. l.], v. 1, p. 15-26, 2016.; Moore, 2016MOORE, J. Introduction. In: MOORE, J. (ed.) Anthropocene or Capitalocene?: nature, history, and the crisis of capitalism. Oakland: PM Press, 2016. p. 1-13.). Numa perspectiva global e igualmente decolonial, Machado Aráoz (2022MACHADO ARÁOZ, H. America(n)-Nature, conquestual habitus and the origins of the “Anthropocene”. Mine, plantation and their geological (and anthropological) impacts. Die Erde, Berlin, v. 153, n. 3, p. 162-177, 2022., p. 16) identifica alterações geossociometabólicas que colocam a “Conquista da América” como gênese e elemento estruturante do antropoceno:

[…] una entidad geosocial emergente de un contexto de violencias y violentamientos extremos. Hay fundadas razones y sólidas evidencias para considerar la “Conquista” de “América” como el entorno geohistórico donde tuvo lugar la conformación de tal emergencia. En esas circunstancias, bajo los móviles y prácticas del Conquistador, tuvo lugar la configuración de una nueva matriz de poder; un nuevo régimen de subjetividad y de verdad.

Nessa interpretação, a conquista como modo fundante da existência ocidental-moderna tem como base a violência extrativa disseminada para além dos sítios minerados e que reproduz, na realidade, padrões históricos de dominação colonial que são intrinsicamente patriarcais, raciais, étnicos e culturais (ver ainda Bolados, 2018BOLADOS, P. Acuerpándonos frente al extractivismo minero energético. In: ERPEL, A. (comp.). Mujeres en defensa de territorios: reflexiones feministas frente al extractivismo. Santiago: Fundacion Heinrich Böll, Oficina Regional Cono Sur, 2018. p. 8-19. Disponível em: Disponível em: https://cl.boell.org/sites/default/files/mujeres_defensa_territorios_web.pdf . Acesso em: 28 out. 2022.
https://cl.boell.org/sites/default/files...
; Cabnal, 2010CABNAL, L. Acercamiento a la propuesta del feminismo comunitario Abya Yala. In: CABNAL, L. (ed.). Feminismos diversos: el feminismo comunitario. Madrid: Acsure Las Segovias, 2010. p. 11-25.; Paredes, 2010PAREDES, J. Hilando fino desde el feminismo comunitario. 3a ed. La Paz: CEDEC: Mujeres Creando Comunidad, 2010.).

Tendo como referência esse contexto global e estruturante da crise crônica e civilizacional encetada pelo neoextrativismo, que apresenta no desejo da conquista um elemento central da ideologia do desenvolvimento (Escobar, 2007ESCOBAR, A. La invención del Tercer Mundo: construcción y deconstrucción del desarrollo. Caracas: Fundación Editorial el perro y la rana, 2007.; Sachs, 1992SACHS, W. (ed.). The development dictionary: a guide to knowledge as power. London: Zed Books, 1992.), interessa sublinhar suas dimensões operacionais para a compreensão dos processos que ensejam a recorrência dos desastres da mineração em Minas Gerais. Conforme dito, o neoextrativismo expressa um padrão de acumulação baseado na superexploração da natureza e no avanço sobre os territórios considerados “improdutivos” (Svampa, 2013SVAMPA, M. Consenso de los commodities y lenguajes de valorácion en America Latina. Revista Nueva Sociedad, [s. l.], n. 244, p. 30-46, marzo/abril 2013., p. 34). Ele instaura uma dinâmica vertical que irrompe de forma violenta sobre os territórios formados por relações horizontalizadas, desestruturando mercados e economias locais e regionais, destruindo a biodiversidade e os modos de vida das comunidades ali existentes (Bebbington, 2007BEBBINGTON, A. Elementos para una ecología política de los movimientos sociales y el desarrollo territorial en zonas mineras. In: BEBBINGTON, A. (ed.). Minería, movimientos sociales y respuestas campesinas: una ecología política de transformaciones territoriales. Lima: IEP: CEPES, 2007. p. 23-46.; Svampa, 2013SVAMPA, M. Consenso de los commodities y lenguajes de valorácion en America Latina. Revista Nueva Sociedad, [s. l.], n. 244, p. 30-46, marzo/abril 2013.; Zhouri; Bolados; Castro 2016ZHOURI, A.; BOLADOS, P.; CASTRO, E. Mineração na América do Sul: neoextrativismo e lutas territoriais. São Paulo: Annablume, 2016.). De fato, a mineração de ferro foi intensificada no início dos anos 2000 ao tempo que foram reduzidos os custos fixos para sua operação, sobretudo aqueles envolvendo manutenção, fiscalização e monitoramento de estruturas, como as barragens de rejeitos. A reprimarização da economia impulsionou a abertura de novas fronteiras econômicas sobre os territórios de povos indígenas, comunidades tradicionais e florestas, os quais são identificados pelos economistas como áreas de “enclaves econômicos” (Bebbington, 2007BEBBINGTON, A. Elementos para una ecología política de los movimientos sociales y el desarrollo territorial en zonas mineras. In: BEBBINGTON, A. (ed.). Minería, movimientos sociales y respuestas campesinas: una ecología política de transformaciones territoriales. Lima: IEP: CEPES, 2007. p. 23-46.; Svampa, 2013SVAMPA, M. Consenso de los commodities y lenguajes de valorácion en America Latina. Revista Nueva Sociedad, [s. l.], n. 244, p. 30-46, marzo/abril 2013.), na realidade, verdadeiras “zonas de sacrifício” (Bolados, 2018BOLADOS, P. Acuerpándonos frente al extractivismo minero energético. In: ERPEL, A. (comp.). Mujeres en defensa de territorios: reflexiones feministas frente al extractivismo. Santiago: Fundacion Heinrich Böll, Oficina Regional Cono Sur, 2018. p. 8-19. Disponível em: Disponível em: https://cl.boell.org/sites/default/files/mujeres_defensa_territorios_web.pdf . Acesso em: 28 out. 2022.
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) a serviço do neoextrativismo. Enquanto isso, as áreas mais tradicionais da mineração no Brasil, como o Quadrilátero Ferrífero, em Minas Gerais, se tornaram mais vulneráveis à ocorrência dos desastres.

Vale sublinhar que a reprimarização da economia ocorreu de forma ampliada na América Latina e envolveu tanto os governos identificados como progressistas quanto os conservadores, sendo o fenômeno denominado por Svampa (2013)SVAMPA, M. Consenso de los commodities y lenguajes de valorácion en America Latina. Revista Nueva Sociedad, [s. l.], n. 244, p. 30-46, marzo/abril 2013. como o “Consenso das Commodities”. Para esse consenso, as mineradoras apostaram no apoio de diferentes ramificações do Estado e, sobretudo, na flexibilização das normativas ambientais, como ocorrido no Brasil, processo analisado por Zhouri (2022)ZHOURI, A. O anti-ambientalismo no Brasil: da violência lenta à violência nua. In: ZUCARELLI, M. et al. (org.). Infraestrutura para produção de commodities e povos etnicamente diferenciados: efeitos e danos da implantação de “grandes projetos de desenvolvimento” em territórios sociais. Rio de Janeiro: Mórula, 2022. p. 105-145., em diálogo com Nixon (2011)NIXON, R. Introduction. In: NIXON, R. Slow violence and the environmentalism of the poor. Cambridge: Havard University Press, 2011. p. 1-44., como uma espécie de violência lenta indutora da cronicidade da crise.

O licenciamento ambiental sob a égide do neoextrativismo

Durante os últimos 20 anos, a observação sistemática dos processos de governança ambiental que regem o licenciamento de grandes obras, tais como hidrelétricas e mineração (Zhouri, 2014bZHOURI, A. Mapeando desigualdades ambientais: mineração e desregulação ambiental. In: ZHOURI, A.; VALENCIO, N. Formas de matar, de morrer e de resistir: limites da resolução negociada de conflitos ambientais. Belo Horizonte: Ed. UFMG , 2014b. p. 111-141., 2019aZHOURI, A. Desregulação ambiental e desastres da mineração no Brasil. Uma perspectiva da ecologia política. In: CASTRO, E.; CARMO, E. do. Desastres e crimes da mineração em Barcarena. Belém: NAEA/UFPA, 2019a. p. 43-54.), permite argumentar que os desastres da mineração apresentam recorrência em função da vigência e da reprodução de certos padrões político-institucionais funcionais ao neoextrativismo na prática. Nesse sentido, é válido lembrar que, nos anos 1980 e 1990, em resposta ao agravamento dos problemas ambientais e à sistematização das denúncias e reações críticas a ele correspondentes, houve no país um processo de ambientalização dos conflitos sociais e institucionalização das questões ambientais (Zhouri, 2022ZHOURI, A. O anti-ambientalismo no Brasil: da violência lenta à violência nua. In: ZUCARELLI, M. et al. (org.). Infraestrutura para produção de commodities e povos etnicamente diferenciados: efeitos e danos da implantação de “grandes projetos de desenvolvimento” em territórios sociais. Rio de Janeiro: Mórula, 2022. p. 105-145.). Desde então, o licenciamento ambiental de obras potencialmente degradadoras do meio ambiente se constituiu como uma das principais ferramentas da política ambiental no país. Organizado em torno de um modelo trifásico de licenças sequenciais - prévia, de instalação e de operação - as análises sobre a viabilidade socioambiental de determinado empreendimento eram previstas para a primeira fase, a do licenciamento prévio, a partir de uma avaliação técnica dos estudos de impacto ambiental (EIAs). Efetivamente, então, essa fase seria crucial para que um empreendimento vislumbrasse a possibilidade de sua execução. Concebido na perspectiva da modernização ecológica (Blowers, 1997BLOWERS, A. Environmental policy: ecological modernization or the risk society? Urban Studies, [s. d.], v. 34, n. 5-6, p. 845-871, 1997.), concepção hegemônica no bojo da ideologia do desenvolvimento sustentável, a adequação ambiental seria sua faceta operacional. Nesse paradigma, a ideia central é a de que os empreendimentos poderiam ser licenciados desde que cumprissem certos requisitos ambientais de natureza técnica e jurídica. Assim, a aposta nas formas de correção tecnológica e normativa, bem como nos mecanismos de decisão participativa consensuada, constituíram as bases do licenciamento ambiental para implementação do desenvolvimento sustentável.

Tal visão gerencial das questões ambientais, formulada como aquela passível de conciliar os interesses econômicos, sociais e ambientais propalados pela ideologia do desenvolvimento sustentável, na realidade tem como efeito a obliteração da dimensão política e inerentemente conflituosa das distintas formas de se conceber e se relacionar com a natureza. Ao longo dos anos, o jogo de poder prevalente na realidade do campo ambiental tornou evidente o predomínio dos interesses econômicos no licenciamento, não obstante fosse este frequentemente acusado por alguns setores empresariais e governamentais de obstaculizar o desenvolvimento econômico do país. Como observa Carneiro (2005)CARNEIRO, E. J. A oligarquização da ‘política ambiental’ mineira. In: ZHOURI, A.; LASCHEFSKI, K.; PEREIRA, D. B. (org.). A insustentável leveza da política ambiental: desenvolvimento e conflitos socioambientais. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. p. 67-88., ao longo dos anos, o jogo da mitigação e da compensação que vigora no licenciamento ambiental permitiu a concessão de licenças a projetos que, muitas vezes, apresentavam pouca sustentação no quesito técnico, mas eram viabilizados por meio de uma listagem de condicionantes. Estas configuram pendências supostamente técnicas, ou seja, um conjunto de ausências ou insuficiências de informações que, em tese, deveriam ser apresentadas como forma de “adequação ambiental” dos empreendimentos e possibilidade da continuidade do fluxo do licenciamento em suas etapas posteriores. Com o correr do tempo, licenças passaram a ser concedidas com listagens de condicionantes e medidas mitigadoras em número cada vez mais crescente e nem sempre cumpridas de fato. Sua função passou a ser aquela de adequação normativa ou legal dos empreendimentos no âmbito do rito burocrático e do jogo entre legalidades e alegalidades que nele vigora (Santos, 2014SANTOS, A. F. “Não se pode proibir comprar e vender terra”: terras de ocupação tradicional em contextos de grandes empreendimentos. In: ZHOURI, A.; VALENCIO, N. Formas de matar, de morrer e de resistir: limites da resolução negociada de conflitos ambientais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2014. p. 143-165.; Zhouri, 2014bZHOURI, A. Mapeando desigualdades ambientais: mineração e desregulação ambiental. In: ZHOURI, A.; VALENCIO, N. Formas de matar, de morrer e de resistir: limites da resolução negociada de conflitos ambientais. Belo Horizonte: Ed. UFMG , 2014b. p. 111-141.). A titulo de exemplo, vale lembrar distintos projetos como a hidrelétrica de Belo Monte, no Xingu, e a mineração de ferro da Anglo American, em Minas Gerais, ambos licenciados com mais de 400 condicionantes cada, as principais delas referentes à identificação e à resolução dos problemas que incidem sobre o reconhecimento da população atingida.

Economia de visibilidades, afrouxamento das normas e controle político das mineradoras

Ao longo dos anos, os estudos de impacto ambiental foram perdendo qualidade técnica, o que explica, no sentido operacional, o incremento do número de condicionantes associado a cada projeto no correr das décadas. Em sua origem, no entanto, os chamados EIA-RIMAs se apresentam como uma espécie de dispositivo de governo que arregimenta certos tipos de expertise e de poder que funcionam como mecanismos de visibilização e invisibilização, ou seja, de inclusão e exclusão daquilo que se deseja classificar e reconhecer como universo atingido e, por conseguinte, das responsabilidades estatais e empresariais (Teixeira; Zhouri; Motta, 2021TEIXEIRA, R.; ZHOURI, A.; MOTTA, L. Os estudos de impacto ambiental e a economia de visibilidades do desenvolvimento. Revista Brasileira de Ciências Sociais, [s. l.], v. 36, n. 105, e3610501, 2021.). Trata-se de uma linguagem ficcional da realidade que, por meio de uma narrativa linear, encadeia sequência de diagnósticos, intervenções e resultados, apresentados sob a forma de descrições, fotografias, tabelas, compilações de dados estatísticos, mapas e a denominada matriz de impactos. Assim, os EIA-RIMAs configuram um documento que reivindica expertise e poder (Li, 1999LI, T. M. Compromising power: development, culture and rule in Indonesia. Cultural Anthropology, [s. l.], v. 14, n. 3, p. 295-322, 1999.) calcado sobre as imagens de territórios vazios, abandonados ou carentes onde a implantação do empreendimento operaria como fonte ou motor do desenvolvimento (Teixeira; Zhouri; Motta, 2021TEIXEIRA, R.; ZHOURI, A.; MOTTA, L. Os estudos de impacto ambiental e a economia de visibilidades do desenvolvimento. Revista Brasileira de Ciências Sociais, [s. l.], v. 36, n. 105, e3610501, 2021.). São dispositivos elaborados pelas próprias empresas, ou pelas empresas de consultoria ambiental diretamente contratadas pelos interessados, os quais detém o controle sobre todo o processo, incluindo os resultados a serem apresentados. O mesmo é igualmente válido para os relatórios de monitoramento das barragens. Os relatórios são elaborados pelas próprias empresas ou por consultorias diretamente contratadas pelas mesmas, sendo que os agentes do Estado, por sua vez, são parte ativa na aprovação tanto das licenças ambientais quanto dos relatórios de fiscalização.6 6 Na situação de Fundão, em Mariana, relatórios do órgão ambiental (Fundação Estadual do Meio Ambiente, 2012, 2014) e do Instituto Prístino (2013), entidade de pesquisa independente que presta assessora ao MPMG, apontavam falhas existentes na barragem dois a três anos antes do seu rompimento. O Instituto Prístino evidenciou em 2013 a sobreposição da área da represa de Fundão com a pilha de estéril União, de propriedade da Vale S.A. E sublinhou: “áreas de contato entre a pilha de estéril e a represa, situação não recomendada para ambas as estruturas em função da possibilidade de instabilidade do maciço e da potencialidade de processos erosivos” (Instituto Prístino, 2013). O relatório recomendava ainda diversos procedimentos a serem seguidos para a garantia da segurança da barragem, os quais não foram executados. Já no caso da barragem 1 em Córrego do Feijão, Brumadinho, a responsabilização da empresa de fiscalização alemã Tüv Süd correu em processo judicial. Nele, entende-se que embora a empresa Tüv Süd tenha atestado a condição de estabilidade da barragem, “os documentos acostados ao processo indicam que a situação da barragem era crítica quanto ao fator de segurança para liquefação, havendo indícios de que funcionários da TUV SUD, em diversos níveis hierárquicos, cientes da criticidade do empreendimento, se articulavam para encobrir a real situação da barragem que se rompeu, visando a manutenção de contratos firmados com a Vale S/A, uma vez que, se não apresentassem a declaração de estabilidade junto ao poder público as atividades da Mina Córrego do Feijão seriam paralisadas” (Pavanelli, 2019). Não raro se observa o expediente da “porta giratória”, em que técnicos ambientais que ocupam lugar de decisão no órgão ambiental podem, em um mesmo processo administrativo, tornar-se funcionários contratados pela parte interessada, a mineradora, podendo ainda retornar ao órgão ambiental em outro momento, e assim por diante. Esse processo é responsável por trânsitos de informações e tráfico de influências que comprometem tanto as ações de licenciamento quanto as ações de fiscalização apontadas acima.

A esses aspectos, soma-se o aumento do poder político das mineradoras, não apenas no âmbito das agências de controle ambiental, mas no próprio campo legislativo. As mineradoras têm incidido diretamente sobre a elaboração de propostas normativas e contribuído com significativos aportes financeiros para as campanhas eleitorais de representantes parlamentares. Em 2014, por exemplo, quando a legislação ainda permitia doações diretas por parte de empresas privadas, 70% dos deputados da Assembleia Legislativa de Minas Gerais receberam financiamentos de empresas mineradoras. Em nível federal, dos 53 políticos mineiros eleitos para a Câmara de Deputados, 46 foram financiados por mineradoras. Portanto, os interesses da mineração constituem um poderoso lobby a dominar o cenário político do estado e do país. No plano federal, desde 2004 tramitava no Congresso Nacional um projeto de lei para modificações das normas do licenciamento ambiental. Sob o argumento de que a morosidade do licenciamento dificulta a atração de investimentos no país, a nova lei geral do licenciamento ambiental, finalmente aprovada pela Câmara Federal em 2021 - e em tramitação no Senado ainda em 2022 - propõe “desburocratizar” o rito e “destravar” projetos. Entre as inúmeras mudanças, a lei aprovada retira a obrigatoriedade do licenciamento para 13 modalidades de empreendimentos e prevê novas categorias de licenças, tais como as simplificadas e concomitantes, além do autolicenciamento. Ademais, prevê licenciamento ambiental somente para territórios indígenas homologados e terras quilombolas declaradas, o que abre uma zona de vulnerabilidade para a maioria das terras indígenas e quilombolas ainda em trâmite no que concerne ao reconhecimento e à regularização.

Em Minas, mesmo sob a comoção da sociedade diante do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, a Assembleia Legislativa do Estado aprovou, poucos dias depois, a Lei nº 21.972/2016 (Minas Gerais, 2016MINAS GERAIS. Lei nº 21.972, de 21 de janeiro de 2016. Dispõe sobre o Sistema Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos - Sisema - e dá outras providências. Minas Gerais: caderno 1: diário do Executivo, Belo Horizonte, ano 124, n. 14, p. 1-3, 22 jan. 2016.), que reformulou o Sistema Estadual de Meio Ambiente, medida que favorece os interesses das mineradoras. Entre as mudanças, a lei cria a Superintendência de Projetos Prioritários (a Suppri), órgão que tem a competência para retirar e analisar processos que estejam tramitando no Conselho de Política Ambiental (Copam), mas que sejam considerados importantes pelo Conselho Estadual de Desenvolvimento Econômico e Social ou pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, referentes a projetos privados e públicos respectivamente, e devolvê-los com uma “recomendação de voto” para os conselheiros (Minas Gerais, 2016MINAS GERAIS. Lei nº 21.972, de 21 de janeiro de 2016. Dispõe sobre o Sistema Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos - Sisema - e dá outras providências. Minas Gerais: caderno 1: diário do Executivo, Belo Horizonte, ano 124, n. 14, p. 1-3, 22 jan. 2016., art. 24). Estabelece, ainda, procedimentos específicos para acelerar o licenciamento, tal como a modalidade de licenciamento ambiental simplificado e concomitante, suprimindo as três fases sequenciais de análise (LP, LI e LO). Em seguida, a Deliberação Normativa Copam nº 217/2017 (Minas Gerais, 2017MINAS GERAIS. Secretaria de Estado do Meio Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável. Deliberação Normativa Copam nº 217, de 06 de dezembro de 2017. Estabelece critérios para classificação, segundo o porte e potencial poluidor, bem como os critérios locacionais a serem utilizados para definição das modalidades de licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades utilizadores de recursos ambientais no Estado de Minas Gerais e dá outras providências. Minas Gerais: caderno 1: diário do Executivo, Belo Horizonte, ano 125, n. 227, p. 14-33, 8 dez. 2017.) passou a alterar critérios de classificação de risco e de localização de empreendimentos para enquadramento nas diferentes modalidades de licenciamento que foram criadas. Em dezembro de 2018, uma controvérsia envolvendo alterações na classificação de risco das estruturas atreladas à mina Córrego do Feijão, que se romperam em Brumadinho, em janeiro de 2019, colocou em questão os critérios de segurança adotados nas referidas mudanças normativas (Laschefski, 2020LASCHEFSKI, K. Rompimento de barragens em Mariana e Brumadinho: desastres como meio de acumulação por despossessão. Ambientes: revista de geografia e ecologia política, [s. l.], v. 2, n. 1, p. 98-143, 2020.).

Com efeito, a liberdade de ação e o domínio dos espaços políticos de decisão pelas corporações contrastam com o processo de precarização do controle social ou de inscrição dos dispositivos que limitam a participação efetiva da população nos processos decisórios. Desde o estágio mais inicial, o planejamento para a construção de grandes projetos é feito de forma centralizada, sem a construção de um debate público em que a população participe, na verdade, das escolhas acerca dos destinos dos territórios. Decisões são tomadas quando acordos políticos e compromissos financeiros já foram firmados a portas fechadas em uma fase que antecede o licenciamento ambiental. Assim, a participação no processo de licenciamento acontece de forma tardia e é obstaculizada por diferentes expedientes, a exemplo da violência epistêmica (Zhouri, 2019bZHOURI, A. Megaprojetos e violência epistêmica. Desafios para a ética ecológica. In: FLORIT, L.; SAMPAIO, C. A. C.; PHILIPI JR., A. Ética socioambiental. Barueri: Manole, 2019b. p. 522-538.), que prioriza a retórica da técnica e desqualifica saberes e experiências da população atingida. No rito do licenciamento, a presença da população está prevista para ocorrer nas audiências públicas, as quais também ocorrem tardiamente no âmbito do processo e se tornaram verdadeiro simulacro de democracia. Grande parte da população não tem acesso prévio às informações sobre o projeto em licenciamento. Sua participação nas audiências é reduzida ao ritualístico, com espaços e tempos exíguos de fala. Nessas, como já dito, conteúdos e formatos são desqualificados por um discurso supostamente técnico, lançado ali com a finalidade de silenciamento do outro e de deslegitimação de seus pleitos.7 7 Minha indignação diante do descaso das autoridades e do sofrimento imposto à população atingida no ritual de licenciamento para o projeto Minas-Rio da Anglo American em setembro de 2014 foi registrada num desabafo realizado nas redes sociais intitulado “Eu vi o horror e vos acuso!” (Zhouri, 2014a).

A propósito desse silenciamento e da construção daquilo que é visível e invisível, tanto no licenciamento ambiental quanto nos processos de reparação dos desastres, é relevante sublinhar a centralidade das disputas em torno da identificação do universo daquilo e daqueles que são atingidos pela economia de visibilidades do EIA-RIMA (Teixeira; Zhouri; Motta, 2021TEIXEIRA, R.; ZHOURI, A.; MOTTA, L. Os estudos de impacto ambiental e a economia de visibilidades do desenvolvimento. Revista Brasileira de Ciências Sociais, [s. l.], v. 36, n. 105, e3610501, 2021.) e dos desastres (Oliveira et al., 2020OLIVEIRA, R. et al. Normas técnicas, cálculos (in)críveis e a incerteza irredutível: equivalências e suficiências contestadas na reparação de um desastre. In: ANTUNES, H.; RIGOTTO, R. (org.). Ninguém bebe minério: águas e povos versus mineração. Rio de Janeiro: 7 letras, 2020. p. 74-104.), pelo caráter de violação de direitos e perpetuação das iniquidades socioambientais produzidas no processo.

A geografia dos projetos e da “lama” sobreposta à geografia das territorialidades comunitárias

As disputas em torno da identificação da população atingida e da espacialização dos danos provocados pela instalação de um determinado empreendimento, ou pelo rompimento de uma barragem, configuram o ponto nevrálgico dos conflitos e das injustiças socioambientais. Isso porque há um sistemático subdimensionamento das perdas e danos causados tanto no caso de um projeto em implementação como no contexto de um desastre em ocorrência. Os grupos deslocados compulsoriamente e a população atingida a jusante, ou seja, a que permanece na área identificada como “zona de autossalvamento”8 8 Um eufemismo institucionalizado para “zonas de sacrifício”, uma vez que a denominação “autossalvamento” admite, na verdade, a impotência do Estado e das empresas para salvamento das pessoas que ali vivem. no caso das barragens de rejeitos da mineração, são constituídos, em geral, por sujeitos que enfrentam processos históricos de vulnerabilização (camponeses, pescadores, pequenos produtores rurais, indígenas, quilombolas, trabalhadores). Muitos apresentam um componente de etnicidade e modos de vida diferenciados que permitem identificar os processos de deslocamento, incluindo o deslocamento in situ (Feldman; Geisler; Silberling, 2003FELDMAN, S.; GEISLER, C.; SILBERLING, L. Moving targets: displacement, impoverishment and development. International Social Science Journal, [s. l.], v. 55, n. 175, p. 7-13, 2003.), como aqueles que perpetuam desigualdades socioambientais com elementos de racismo ambiental (Bullard, 1983BULLARD, R. Solid waste sites and black Houston community. Sociological Inquiry, [s. l.], v. 53, n. 2, p. 273-288, 1983.).

O deslocamento in situ se refere ao comprometimento dos recursos e formas de reprodução social pela instalação de projetos ou rompimento das barragens. Refere-se aos processos em que as pessoas permanecem no lugar, mas têm suas condições de existência significativamente alteradas, modificando sua posição social, em especial suas condições de vulnerabilidade e risco. Portanto, o deslocamento compulsório diz respeito não ao movimento físico em si, mas às relações a partir das quais as pessoas perdem acesso e controle sobre suas condições de existência e reprodução social, incluindo recursos naturais, moradia, segurança, redes de solidariedade, confiança e parentesco (Feldman; Geisler; Silberling, 2003FELDMAN, S.; GEISLER, C.; SILBERLING, L. Moving targets: displacement, impoverishment and development. International Social Science Journal, [s. l.], v. 55, n. 175, p. 7-13, 2003.). Seja no contexto do licenciamento ambiental de grandes projetos, seja no gerenciamento dos desastres, definições e parâmetros para identificação da área atingida conjugam a lógica da rentabilidade dos negócios com tecnologias de governança que alijam as comunidades locais das condições de reprodução da sua existência, quando não as deslocam fisicamente.

Numa abordagem de viés exclusivamente demográfico, tecnologias de governo estabelecidas desde o século XVIII na Europa (Foucault, 2008FOUCAULT, M. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008.) recorrem aos dispositivos matemáticos e estatísticos, os recursos censitários, que se valem da padronização do tecido social por meio de categorias como população e espaço, com a finalidade de controle do outro e do espaço. Artefatos como mapas, listas, cadastros mobilizam e dispõem números que, a propósito de apreender a realidade, na verdade, constroem-na. A ficção dos números organiza, pois, o real atribuindo-lhe significado. Cria-se, então, fórmulas de legibilidade e ilegibilidade que permitem incluir e excluir grupos de pessoas (Scott, 1998SCOTT, J. Seeing like a state: how certain schemes to improve human condition have failed. New Haven: Yale University Press, 1998.). A matriz de danos, enquanto quadro sinóptico, representa uma ficção do real em grade fixa previamente estabelecida. O efeito é a invibilização da vida tecida nos territórios, as redes de relações sociais que envolvem trabalho, família, economia, comunidade, afetividade, socialidades distintas, as quais nem sempre são expressadas pela lógica individualizada e cartorial da propriedade privada e da renda formal. A geografia dos empreendimentos, que mobiliza categorias como área de influência direta (ADA) e área de influência indireta (AII) nos EIA-RIMAs, inspira a geografia da “lama”9 9 “Lama” é a palavra usada popularmente para se referir aos rejeitos de minério de ferro e os entulhos com eles carreados pelos rompimentos das barragens. “Lama invisível” tornou-se um termo referente aos contextos em que as pessoas são ou se sentem ameaças por um rompimento de barragem. Geralmente acionado pelas populações que vivem a jusante das barragens de rejeito sob risco de rompimento e cuja angústia e insegurança as tornam atingidas pela “lama invisível”. presente nos instrumentos de reparação dos desastres. Ambas produzem efeitos de apagamento das geografias das comunidades, performando, dessa maneira, atos simbólicos e práticos de violência e violação de direitos.

No contexto dos desastres, é vigente a prática da identificação das famílias atingidas como aquelas adstritas à “calha da lama”. Como ocorrido em Mariana, muitas pessoas que residiam fora desse polígono em função da topografia do terreno (ruas mais elevadas, casas nos altos dos morros) foram desconsideradas como atingidas. Assim, famílias dos distritos rurais cujas casas haviam sido inteiramente destruídas pela “lama” foram temporariamente alojadas em casas alugadas na cidade. Mas aquelas cujas casas permaneciam de pé foram deixadas na localidade em meio aos destroços do lugar, completamente isoladas e desamparadas pela perda de sua comunidade, suas redes de relações afetivas e econômicas, como ocorrido com moradores da Rua Furquim, em Paracatu de Baixo. Muitos lutaram por meses e anos para serem incluídos na categoria de “deslocado econômico”,10 10 As categorias “deslocamento físico” e “deslocamento econômico” foram mobilizadas a partir da distinção proposta pelo International Finance Corporation (2012), instituição vinculada ao Banco Mundial. Elas remetem, respectivamente, ao critério da perda da moradia e da perda de rendimentos em função da tragédia. Essa distinção foi tomada como ponto de partida para um escalonamento das “afetações” em termos de gravidade e grau de emergência, ordenando o cenário do desastre em situações diferenciadas de intervenção e resposta institucional (Zhouri et al., 2018). para serem, enfim, legíveis ao recebimento do auxilio emergencial, uma das medidas previstas na ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público de Minas Gerais.11 11 O MPMG adotou uma série de medidas judiciais e extrajudiciais que buscavam garantir direitos às vítimas. A principal delas foi uma ação civil pública (ACP) ajuizada em 10 de dezembro de 2015 na Comarca de Mariana contra as empresas. No âmbito dessa ACP, foi homologado um acordo que garantia assistência emergencial e reparação integral aos atingidos. Isso envolvia moradia alugada pela Samarco até o reassentamento das comunidades; remuneração mensal aos atingidos que perderam renda e compensação financeira parcial na forma de 20 mil reais para famílias que perderam suas casas. Desse montante, metade seria antecipação de futuras indenizações e a outra metade seria assistencial de fato, o valor (10 mil) não podendo ser deduzido das futuras indenizações.

De outro lado, além da delimitação restritiva referente à geografia da lama, com o consequente estabelecimento de modalidades distintas de atingidos e escalonamento das afetações em termos de gravidade e grau de emergência relativos a essa espacialidade, registra-se uma prática que visa também a circunscrição pontual do desastre no tempo. Denominado de acidente, palavra que evoca um acontecimento fortuito e único, conforme abordado acima, os dispositivos acionados a propósito de uma justificativa “técnica”, o cadastramento das vítimas, visavam a frigorificação das mesmas no tempo. Tal estratégia foi evidenciada em expedientes como termos utilizados e perguntas formuladas para o questionário cadastral aplicado aos atingidos.12 12 Uma análise detalhada sobre o instrumento cadastral elaborado pelas empresas Samarco e Synergia Consultoria Ambiental encontra-se em Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (2016). Esse cadastro procurava congelar o desastre no tempo ao restringir a identificação das afetações à data do rompimento da barragem, referida como a “data do evento” nas perguntas. Nesse sentido, buscava-se coletar dados sobre possíveis perdas havidas por meio da fixação das atividades laborais e de cultivo da terra ao dia 5 de novembro, a “data do evento”, artifício que ignora não apenas o ciclo anual da agricultura, mas subtrai aquilo que a torna possível, a saber, a terra e a disponibilidade hídrica.

Com efeito, a etnografia dos expedientes acionados nos processos de reparação do desastre (Melendi; Lopo, 2021MELENDI, L. P; LOPO, R. M. A Fundação Renova como forma corporativa: estratégias empresariais e arranjos institucionais no desastre da Samarco/Vale/BHP Billiton no Rio Doce, Mariana (MG). Ambientes: revista de geografia e ecologia política, [s. l.], v. 3, n. 2, p. 206-250, 2021.; Oliveira et al., 2020OLIVEIRA, R. et al. Normas técnicas, cálculos (in)críveis e a incerteza irredutível: equivalências e suficiências contestadas na reparação de um desastre. In: ANTUNES, H.; RIGOTTO, R. (org.). Ninguém bebe minério: águas e povos versus mineração. Rio de Janeiro: 7 letras, 2020. p. 74-104.; Teixeira; Zhouri; Motta, 2021TEIXEIRA, R.; ZHOURI, A.; MOTTA, L. Os estudos de impacto ambiental e a economia de visibilidades do desenvolvimento. Revista Brasileira de Ciências Sociais, [s. l.], v. 36, n. 105, e3610501, 2021.; Zucarelli, 2021ZUCARELLI, M. C. As tecnologias sociais de gestão da crise e da crítica. In: ZUCARELLI, M. C. A matemática da gestão e a alma lameada: crítica à mediação em licenciamentos e desastres na mineração. Campina Grande: EDUEPB, 2021. p. 219-281. Disponível em: Disponível em: https://conflitosambientaismg.lcc.ufmg.br/wp-content/uploads/2022/01/A-matem%C3%A1tica-da-gest%C3%A3o-e-a-alma-lameada.pdf . Acesso em: 28 out. 2022.
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) informam sobre a necessidade de se reforçar a advertência sobre as implicações do uso frequente da categoria “pós-desastre” em diferentes trabalhos acadêmicos quando se referem, na verdade, aos processos que se desenrolam no pós-rompimento da barragem. A ideia de um “pós-desastre” corrobora a interpretação restritiva de que o desastre se resume ao evento crítico e catastrófico representado pelo rompimento da barragem. E sugere que após esse rompimento haveria uma retomada da “normalidade”, algo que contrasta com as reiteradas denúncias dos próprios atingidos, quando dizem que a vida está “pausada” ou que o reassentamento significaria “uma volta a si”.13 13 Depoimentos de Luzia Queiroz e Expedito, respectivamente, no evento III UFMG Debate: para além do rompimento: as lições de Mariana, ocorrido em 15 de março de 2019 (ver III UFMG…, 2019).

Conforme argumentado anteriormente (Zhouri et al., 2018ZHOURI, A. et al. O desastre no Rio Doce: entre as políticas de reparação e a gestão das afetações. In: ZHOURI, A. (org.). Mineração: violências e resistências: um campo aberto à produção de conhecimento no Brasil. Marabá: Editorial iGuana: ABA, 2018. p. 28-64.), a violência e o sofrimento social são agravados pelo tratamento institucional dispensado aos desastres que se arrastam por anos em processos de negociação sob controle das empresas (Melendi; Lopo, 2021MELENDI, L. P; LOPO, R. M. A Fundação Renova como forma corporativa: estratégias empresariais e arranjos institucionais no desastre da Samarco/Vale/BHP Billiton no Rio Doce, Mariana (MG). Ambientes: revista de geografia e ecologia política, [s. l.], v. 3, n. 2, p. 206-250, 2021.). Tal controle se expressa por meio de um modelo de governança que aciona dispositivos como a participação tutelada dos atingidos (Cunha Oliveira, 2022CUNHA OLIVEIRA, N. A institucionalização da assessoria técnica aos atingidos por barragens em Minas Gerais: uma análise a partir do desastre do Rio Doce em Mariana-MG. 2022. Monografia de conclusão do curso (Graduação em Ciências Sociais) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2022.; Zucarelli, 2021ZUCARELLI, M. C. As tecnologias sociais de gestão da crise e da crítica. In: ZUCARELLI, M. C. A matemática da gestão e a alma lameada: crítica à mediação em licenciamentos e desastres na mineração. Campina Grande: EDUEPB, 2021. p. 219-281. Disponível em: Disponível em: https://conflitosambientaismg.lcc.ufmg.br/wp-content/uploads/2022/01/A-matem%C3%A1tica-da-gest%C3%A3o-e-a-alma-lameada.pdf . Acesso em: 28 out. 2022.
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), as “estratégias de enumeração” (Appadurai, 2004APPADURAI, A. As dimensões culturais da globalização. Lisboa: Teorema, 2004.) representadas pelo instrumento cadastral (com suas categorias e procedimentos restritivos de identificação e mensuração dos danos), bem como por uma visão jurídica centrada na ideia da rough justice (justiça possível, conforme o juízo da 12ª Vara)14 14 Em sua crítica ao emprego do conceito de justiça possível (rough justice, em inglês) pelos juízes responsáveis pelo processo de reparação do Rio Doce, sobretudo o juízo da 12ª Vara Federal, Dias Netto Junior (2022) explica que se trata de conceito usado na “justiça de transição”. Diferentemente da “justiça integral”, a justiça de transição se refere a contextos de pós-guerra ou ditaduras, e visa restaurar memórias, por exemplo, uma situação diversa do contexto do desastre em que indenizações individuais são necessárias e passíveis de serem apuradas. Acrescento a esta crítica o elemento de desigualdade que conforma um certo olhar sobre os atingidos. Um olhar configurado por preconceitos de classe, raça e gênero de modo a conceber que aos pobres, negros e mulheres caberia uma justiça possível. em um contexto de desigualdades dominado pelo modelo neoextrativista de sociedade.

Contudo, as diferentes formas de navegação social em meio à crise (Vigh, 2008VIGH, H. Crisis and chronicity: anthropological perspectives on continuous conflict and decline. Ethnos, [s. l.], v. 73, n. 1, p. 5-24, Mar. 2008.) fazem também emergir processos de subjetivação da pessoa atingida em modos de acorpamento e apoderamento (Bolados, 2018BOLADOS, P. Acuerpándonos frente al extractivismo minero energético. In: ERPEL, A. (comp.). Mujeres en defensa de territorios: reflexiones feministas frente al extractivismo. Santiago: Fundacion Heinrich Böll, Oficina Regional Cono Sur, 2018. p. 8-19. Disponível em: Disponível em: https://cl.boell.org/sites/default/files/mujeres_defensa_territorios_web.pdf . Acesso em: 28 out. 2022.
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; Cabnal, 2010CABNAL, L. Acercamiento a la propuesta del feminismo comunitario Abya Yala. In: CABNAL, L. (ed.). Feminismos diversos: el feminismo comunitario. Madrid: Acsure Las Segovias, 2010. p. 11-25.; Paredes, 2010PAREDES, J. Hilando fino desde el feminismo comunitario. 3a ed. La Paz: CEDEC: Mujeres Creando Comunidad, 2010.). Desde 2016, um grupo de moradores de Bento Rodrigues, autodenominados Loucos por Bento, realiza visitas sistemáticas ao território, agora controlado pela Samarco, a fim de realizar o churrasco de final de semana em uma das casas que resistiu à lama, localizada na parte mais alta da vila, onde também resistiu a igrejinha das Mercês, local de celebração das festas religiosas. Esse é um tipo de gramática política do cotidiano, ou maneira de navegar o desastre, que visa transgredir as formas prescritivas da governança. A propósito da participação do(a) atingido(a) nos espaços institucionalizados de gerenciamento do desastre, refletem Luzia, atingida de Paracatu de Baixo, e Simone, moradora de Barra Longa, respectivamente:

Nós, que trabalhávamos no campo, a gente nunca imaginou que teria que sair desse espaço nosso lá, nossa vidinha, nosso cotidiano, pra ter que brigar com pessoas tão poderosas. […] E hoje eu também tive que me capacitar, eu, Marlene e Maria somos promotoras populares, só que não conseguimos fazer nem a reciclagem, só com o que a gente aprendeu a gente lidera nossas comunidades, ainda somos um pouco tutoras de cada povo nosso. (III UFMG…, 2019III UFMG DEBATE: para além do rompimento: lições de Mariana. 1 vídeo (2h53min32s). Belo Horizonte: Gesta, 15 mar. 2019. Publicado no canal CAC UFMG. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=DE2aM1V7d5A . Acesso em: 30 out. 2022.
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).

Eu costumo dizer hoje que eu tô fazendo doutorado em o que é ser atingido, eu já passei pela faculdade… pela graduação, pela pós, já passei, gente. Estou fazendo doutorado, já posso receber um diploma, porque o atingido, ele é: psicólogo, ele passa a ser psicólogo, ele passa a ser advogado, assistente social, [da] área da saúde, ele passa a ocupar todas as áreas sem nunca ter ido numa universidade estudar. Sem ter tido esse privilégio. Então, gente, ser negro num espaço de fala não é brinquedo. Sendo negra, mulher, piorou. Sabe?

[…] nós não podemos deixar ninguém contar a nossa história. Sou eu que tenho que contar a minha história, e hoje eu costumo dizer: nós somos a história. Nós viramos a história. Somos o protagonista da nossa história porque aprendemos.15 15 Em participação em aula da matéria Ecologia Política Feminista Latinoamericana, 28 de agosto de 2021, UFMG, por videoconferência.

Conforme sinaliza Vigh (2008)VIGH, H. Crisis and chronicity: anthropological perspectives on continuous conflict and decline. Ethnos, [s. l.], v. 73, n. 1, p. 5-24, Mar. 2008., para a maioria daqueles estruturalmente violados, socialmente marginalizados e pobres, o mundo é caracterizado pela possiblidade sempre presente do conflito e do desequilibro. A crise não é uma exceção, mas um contexto de vida em luta. Não à tona Simone define o desastre como uma guerra:

[…] Os atingidos não eram aceitos nesses espaços [institucionais criados para gerir o desastre, como o Comitê Interfederativo - CIF] porque esses espaços não foram feitos pra nós atingidos, pras pessoas que não são… que não têm o canudo, eu costumo dizer canudo, né? Encanudados. Porque esses espaços são feitos pra quem possui canudo, os doutorados e doutorandos, pra nós, não. Pra nós atingidos de território, ainda mais de interior, que não fomos preparados pra essa guerra, porque é uma guerra né, gente? Bobo quem diz que não é uma guerra. É uma guerra.16 16 Em participação em aula da matéria Ecologia Política Feminista Latinoamericana, 28 de agosto de 2021, UFMG, por videoconferência.

A imagem da guerra acionada por Simone é corroborada pela fala de Mauro, morador de Bento Rodrigues, durante o evento em memória dos sete anos do desastre: “enquanto tiver bambu, há flecha”. Mauro recorre a uma frase de Douglas Krenak, indígena igualmente atingido pelo desastre no Rio Doce, para asseverar sua disposição em lutar não apenas para si, mas pelos conterrâneos que agora, segundo ele, ganharam um sobrenome comum, o de atingido (depoimento público no dia 5 de novembro de 2022, na igreja de Nossa Senhora das Mercês, em Bento Rodrigues). A luta que já dura sete anos, e pode durar mais sete, 14 ou mais anos, conforme Mauro, evidencia as condições de desigualdade presentes na reparação do desastre, as quais reproduzem padrões históricos da violência extrativa, configurando a cronicidade da justiça possível destinada à gente crítica.

Considerações finais

As barragens de mineração construídas com alteamento a montante tem sido abordadas como uma tecnologia ultrapassada, barata e de alto risco. Elas são como lagoas espessas contendo material semiendurecido, um composto de água e de rejeitos sólidos da mineração de ferro. Essas estruturas podem apresentar falhas motivadas por diferentes coisas, a maioria com algum nível de previsão técnica: elas podem transbordar se enchidas rapidamente; podem conter vazamentos ou apresentar rachaduras diante de tremores sísmicos ou provocados, e até mesmo serem o resultado de má construção e/ou manutenção. Diferentemente dos barramentos para geração de energia elétrica, essas barragens não têm muros de concreto que funcionem como dispositivos de contenção dos rejeitos. Ao contrário, as barragens de minério construídas a montante se apoiam na expectativa de solidificação do próprio rejeito como forma de autocontenção. Em ambos os casos, Fundão e Córrego do Feijão, por motivações mercadológicas, as barragens sofreram alteamentos sucessivos e cresceram para além do que fora planejado a princípio. Portanto, a existência dessas barragens configura um cálculo financeiro, um risco assumido pelas empresas e uma aposta sobre a vida das pessoas que vivem e/ou trabalham a jusante. As empresas e o Estado, ao institucionalizarem uma “zona de autossalvamento” para os que vivem abaixo dessas estruturas, admitem impotência quanto à garantia da vida dos que ali vivem, eximindo-se, assim, das responsabilidades pelas vidas em perigo. Nesse sentido, sirenes são instaladas e rotas de fuga são sinalizadas na expectativa de que as pessoas possam, por elas mesmas, se salvar ao ouvirem os sinais. Vale lembrar que nos dois casos em análise, Fundão e Córrego do Feijão, tais dispositivos não funcionaram, as sirenes sequer tocaram. De todo modo, os grupos que são removidos compulsoriamente para instalação dessas estruturas, ou que são deixados residir a jusante, são constituídos, em geral, por aqueles dentre os mais vulnerabilizados por processos históricos de formação da sociedade brasileira: comunidades rurais, povos indígenas, comunidades tradicionais e trabalhadores.

A conjunção de fatores que envolvem a lógica da rentabilidade dos negócios, ou seja, uma opção tecnológica ultrapassada, porém mais barata, e falhas institucionais no que se refere à fiscalização e ao monitoramento dessas estruturas, são os aspectos mais visíveis dos problemas relativos ao risco das barragens. Não obstante, tais fatores ocorrem em um contexto de fundo que remete a processos econômicos, históricos, políticos e institucionais vinculados à sociedade neoextrativa. O boom econômico associado à exportação das commodities minerárias desde os anos 2000 no Brasil e na América Latina provocou um ataque sobre ecossistemas relevantes e os territórios tradicionalmente ocupados, assim como levou à vulnerabilização da população que convive com as estruturas da mineração em áreas de antiga exploração, como o Quadrilátero Ferrífico/Aquífero em Minas Gerais. Tal vulnerabilização foi corroborada pela flexibilização das normas e procedimentos para licenciamento e fiscalização ambientais.

De fato, ao longo dos anos, o sistema ambiental tornou-se amigável aos projetos degradadores do ambiente, apesar de subscrever formalmente aos princípios da governança ambiental internacional (relatórios técnicos, audiências públicas, conselhos participativos, etc.). As medidas de compensação e de mitigação foram substituindo gradualmente as análises voltadas para a viabilidade ambiental dos projetos, permitindo a sua execução por meio de dispositivos ad hoc de legalização, tais como condicionantes continuadas e em número crescente. Nesse processo, a análise da realidade socioambiental dos atingidos é subsumida à prerrogativa da inexorabilidade dos projetos justificados pela ideologia do desenvolvimento.

Como visto, um dos aspectos mais controversos do processo de licenciamento ambiental diz respeito à identificação da área, ou melhor, do universo socioambiental a ser afetado. Em geral, na linguagem ficcional dos EIA-RIMAs, a lógica e os interesses das corporações prevalecem, a despeito das condições socioecológicas e dos lugares existentes. Dessa maneira, a área afetada e o universo das pessoas atingidas são frequentemente subdimensionados, sendo reduzidos às áreas coincidentes às estruturas dos projetos, quer dizer, o reservatório, a barragem de rejeitos, a pilha de estéril, entre outras.

A mesma lógica dita os procedimentos para identificação dos danos e das pessoas atingidas pelos desastres da Samarco no Rio Doce e da Vale na bacia do Paraopeba. O universo atingido é definido pelas localidades/propriedades que coincidem com a área delimitada pela “calha da lama”, quando deveriam, de fato, partir das redes territorializadas que configuram o modo de vida nas localidades. Situações de deslocamento formuladas a partir de parâmetros previamente estabelecidos pelo Banco Mundial, por exemplo, funcionam como dispositivos de legibilidade que promovem inclusão/exclusão para fins de adequação financeira em benefício das mineradoras. A geografia dos projetos, assim como a geografia da “lama”, se sobrepõe às geografias dos territórios de vida, tornando as comunidades invisíveis aos olhos do Estado e das corporações.

As formas de violência simbólica e material estão alinhadas à violência que muda sistemas regulatórios estabelecendo, assim, políticas de deslocamentos forçados nas quais a violação de direitos humanos não é exceção, especialmente o direito à informação, à água potável, ao ir e vir, à alimentação e à justa reparação. Nesse cenário, contra a ficção de realidade apresentada pelos quadros sinópticos - listas, cadastros, mapas - que pretendem representar objetivamente o universo das afetações, os atingidos emergem como sujeitos a reivindicar visibilidade e retomada da autonomia solapada pelos procedimentos institucionais de gestão da crise. Trata-se de uma luta contínua a desnudar elementos de cronicidade do desastre para além do evento crítico que o ensejou.

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    » https://conflitosambientaismg.lcc.ufmg.br/wp-content/uploads/2022/01/A-matem%C3%A1tica-da-gest%C3%A3o-e-a-alma-lameada.pdf
  • 1
    Agradeço ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq 303639/2020-2 e 421726/2018-0) e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG: APQ 01598-16 e APQ 01887-18) pelo apoio às pesquisas que possibilitaram as reflexões contidas neste artigo.
  • 2
    Conforme será discutido adiante, a governança do desastre se faz, entre outras estratégias, por meio de um fracionamento da realidade em classes de atingidos a partir de critérios arbitrários construídos com base numa visão patrimonial e rentista própria ao mundo dos negócios. Assim, a classificação entre atingidos diretos e indiretos, ou entre deslocados físicos e deslocados econômicos, conforme grade estabelecida pelo International Finance Corporation (2012)INTERNATIONAL FINANCIAL CORPORATION. Handbook for preparing a ressetlement action plan. Washington DC: IFC, 2012., promove uma separação com hierarquização dos atingidos para fins de reparação. Trata-se de uma divisão delimitada pela “calha da lama”, o que tende a delimitar e escalonar financeiramente o escopo dos recursos a serem mobilizados para a reparação. Ver ainda Zhouri et al. (2018)ZHOURI, A. et al. O desastre no Rio Doce: entre as políticas de reparação e a gestão das afetações. In: ZHOURI, A. (org.). Mineração: violências e resistências: um campo aberto à produção de conhecimento no Brasil. Marabá: Editorial iGuana: ABA, 2018. p. 28-64.; Oliveira et al. (2020)OLIVEIRA, R. et al. Normas técnicas, cálculos (in)críveis e a incerteza irredutível: equivalências e suficiências contestadas na reparação de um desastre. In: ANTUNES, H.; RIGOTTO, R. (org.). Ninguém bebe minério: águas e povos versus mineração. Rio de Janeiro: 7 letras, 2020. p. 74-104. e Teixeira, Zhouri e Motta (2021)TEIXEIRA, R.; ZHOURI, A.; MOTTA, L. Os estudos de impacto ambiental e a economia de visibilidades do desenvolvimento. Revista Brasileira de Ciências Sociais, [s. l.], v. 36, n. 105, e3610501, 2021..
  • 3
    Quadrilátero Ferrífero é o nome da região centro-sul de Minas Gerais considerada a maior província mineral do Brasil. Aproximadamente 60% do minério de ferro do país sai dessa região. Compreende 7 mil quilômetros quadrados de área abrangendo municípios como Caeté, Itabira, Itaúna, João Monlevade, Mariana, Ouro Preto, Rio Piracicaba, Sabará e Santa Bárbara. Entre as estratégias da resistência à mineração está a disputa pela nomeação do território, uma vez que o Quadrilátero detém os principais mananciais de água que abastecem a Região Metropolitana de Belo Horizonte. Ambientalistas defendem que o Quadrilátero seja pautado em lógicas de conservação ambiental e de reprodução da vida (a exemplo, ver Aguiar e Souza, 2021AGUIAR E SOUZA, L. Do Quadrilátero Ferrífero ao Quadrilátero Aquífero: territorialidades conflitantes na produção de um espaço social extensivo à Região Metropolitana de Belo Horizonte-MG. Geousp, São Paulo, v. 25, n. 3, e-18865, 2021.).
  • 4
    Sobre o dilema vivido pela população da cidade de Congonhas, que vive sob a ameaça de ruptura da barragem Casa de Pedra na área urbana, ver Dotta (2022)DOTTA, R. População rejeita avaliação de agência que garante estabilidade de barragem em Congonhas (MG). Brasil de Fato, 11 jan. 2022. Disponível em: Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2022/01/11/populacao-rejeita-avaliacao-de-agencia-que-garante-estabilidade-de-barragem-em-congonhas-mg . Acesso em: 12 out. 2022.
    https://www.brasildefato.com.br/2022/01/...
    e também Colodeti e Andrade (2022)COLODETI, E.; ANDRADE, N. Moradora de Congonhas (MG) teme barragem: ‘vivo embaixo da bomba-relógio’. TAB UOL, 15 jan. 2022. Disponível em: Disponível em: https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2022/01/15/moradores-de-congonhas-temem-rompimento-da-maior-barragem-de-mg.htm . Acesso em: 12 out. 2022.
    https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/...
    . Enquanto escrevo esta nota, em 7/10/2022, recebo mais uma notícia sobre risco de rompimento de barragem no município de Santa Barbara (cf. Fantti, 2022FANTTI, B. Barragem em Minas Gerais entra em estado de alerta. Folha de S. Paulo, São Paulo, 8 out. 2022. Disponível em: Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/10/barragem-em-minas-gerais-entra-em-estado-de-alerta.shtml . Acesso em: 8 out. 2022.
    https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/...
    ).
  • 5
    Comissão Parlamentar de Inquérito Rompimento da Barragem de Brumadinho. Ver relatório final em Brasil (2019)BRASIL. Câmara dos Deputados. Comissão Parlamentear de Inquérito Rompimento da Barragem de Brumadinho. Relatório final da CPI. Brasília: Câmara dos Deputados, out. 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.camara.leg.br/internet/comissoes/cpi/cpibruma/RelatorioFinal.pdf . Acesso em: 29 jun. 2022.
    https://www.camara.leg.br/internet/comis...
    .
  • 6
    Na situação de Fundão, em Mariana, relatórios do órgão ambiental (Fundação Estadual do Meio Ambiente, 2012FUNDAÇÃO ESTADUAL DO MEIO AMBIENTE. Lista de barragens 2012. Belo Horizonte: Feam, 2012. Disponível em: Disponível em: http://feam.br/component/content/40?task=view . Acesso em: 7 mar. 2017.
    http://feam.br/component/content/40?task...
    , 2014FUNDAÇÃO ESTADUAL DO MEIO AMBIENTE. Inventário de barragem do estado de Minas Gerais: ano 2014. Belo Horizonte: Feam, 2014. Disponível em: Disponível em: http://feam.br/images/stories/2015/DECLARACOES_AMBIENTAIS/GESTAO_DE_BARRAGENS/correo_inventrio%20de%20barragens_2014_final.pdf . Acesso em: 7 mar. 2017.
    http://feam.br/images/stories/2015/DECLA...
    ) e do Instituto Prístino (2013)INSTITUTO PRÍSTINO. Laudo técnico em resposta ao Parecer Único No. 257/2013. Belo Horizonte: Instituto Prístino, 2013., entidade de pesquisa independente que presta assessora ao MPMG, apontavam falhas existentes na barragem dois a três anos antes do seu rompimento. O Instituto Prístino evidenciou em 2013 a sobreposição da área da represa de Fundão com a pilha de estéril União, de propriedade da Vale S.A. E sublinhou: “áreas de contato entre a pilha de estéril e a represa, situação não recomendada para ambas as estruturas em função da possibilidade de instabilidade do maciço e da potencialidade de processos erosivos” (Instituto Prístino, 2013INSTITUTO PRÍSTINO. Laudo técnico em resposta ao Parecer Único No. 257/2013. Belo Horizonte: Instituto Prístino, 2013.). O relatório recomendava ainda diversos procedimentos a serem seguidos para a garantia da segurança da barragem, os quais não foram executados. Já no caso da barragem 1 em Córrego do Feijão, Brumadinho, a responsabilização da empresa de fiscalização alemã Tüv Süd correu em processo judicial. Nele, entende-se que embora a empresa Tüv Süd tenha atestado a condição de estabilidade da barragem, “os documentos acostados ao processo indicam que a situação da barragem era crítica quanto ao fator de segurança para liquefação, havendo indícios de que funcionários da TUV SUD, em diversos níveis hierárquicos, cientes da criticidade do empreendimento, se articulavam para encobrir a real situação da barragem que se rompeu, visando a manutenção de contratos firmados com a Vale S/A, uma vez que, se não apresentassem a declaração de estabilidade junto ao poder público as atividades da Mina Córrego do Feijão seriam paralisadas” (Pavanelli, 2019PAVANELLI, L. TJ suspende empresa que atestou estabilidade de barragem da Vale. R7, [s. l.], 15 maio 2019. Disponível em: Disponível em: https://noticias.r7.com/minas-gerais/tj-suspende-empresa-que-atestou-estabilidade-de-barragem-da-vale-15052019 . Acesso em: 18 ago. 2019.
    https://noticias.r7.com/minas-gerais/tj-...
    ).
  • 7
    Minha indignação diante do descaso das autoridades e do sofrimento imposto à população atingida no ritual de licenciamento para o projeto Minas-Rio da Anglo American em setembro de 2014 foi registrada num desabafo realizado nas redes sociais intitulado “Eu vi o horror e vos acuso!” (Zhouri, 2014aZHOURI, A. Eu vi o horror e vos acuso!. In: COMBATE Racismo Ambiental. [S. l.]: Tania Pacheco, 2014a. Disponível em: Disponível em: https://acervo.racismoambiental.net.br/2014/10/01/eu-vi-o-horror-e-vos-acuso-por-andrea-zhouri-denuncia-forte-e-corajosa-que-precisa-ser-espalhada/ . Acesso em: 28 out. 2022.
    https://acervo.racismoambiental.net.br/2...
    ).
  • 8
    Um eufemismo institucionalizado para “zonas de sacrifício”, uma vez que a denominação “autossalvamento” admite, na verdade, a impotência do Estado e das empresas para salvamento das pessoas que ali vivem.
  • 9
    “Lama” é a palavra usada popularmente para se referir aos rejeitos de minério de ferro e os entulhos com eles carreados pelos rompimentos das barragens. “Lama invisível” tornou-se um termo referente aos contextos em que as pessoas são ou se sentem ameaças por um rompimento de barragem. Geralmente acionado pelas populações que vivem a jusante das barragens de rejeito sob risco de rompimento e cuja angústia e insegurança as tornam atingidas pela “lama invisível”.
  • 10
    As categorias “deslocamento físico” e “deslocamento econômico” foram mobilizadas a partir da distinção proposta pelo International Finance Corporation (2012)INTERNATIONAL FINANCIAL CORPORATION. Handbook for preparing a ressetlement action plan. Washington DC: IFC, 2012., instituição vinculada ao Banco Mundial. Elas remetem, respectivamente, ao critério da perda da moradia e da perda de rendimentos em função da tragédia. Essa distinção foi tomada como ponto de partida para um escalonamento das “afetações” em termos de gravidade e grau de emergência, ordenando o cenário do desastre em situações diferenciadas de intervenção e resposta institucional (Zhouri et al., 2018ZHOURI, A. et al. O desastre no Rio Doce: entre as políticas de reparação e a gestão das afetações. In: ZHOURI, A. (org.). Mineração: violências e resistências: um campo aberto à produção de conhecimento no Brasil. Marabá: Editorial iGuana: ABA, 2018. p. 28-64.).
  • 11
    O MPMG adotou uma série de medidas judiciais e extrajudiciais que buscavam garantir direitos às vítimas. A principal delas foi uma ação civil pública (ACP) ajuizada em 10 de dezembro de 2015 na Comarca de Mariana contra as empresas. No âmbito dessa ACP, foi homologado um acordo que garantia assistência emergencial e reparação integral aos atingidos. Isso envolvia moradia alugada pela Samarco até o reassentamento das comunidades; remuneração mensal aos atingidos que perderam renda e compensação financeira parcial na forma de 20 mil reais para famílias que perderam suas casas. Desse montante, metade seria antecipação de futuras indenizações e a outra metade seria assistencial de fato, o valor (10 mil) não podendo ser deduzido das futuras indenizações.
  • 12
    Uma análise detalhada sobre o instrumento cadastral elaborado pelas empresas Samarco e Synergia Consultoria Ambiental encontra-se em Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (2016)GRUPO DE ESTUDOS EM TEMÁTICAS AMBIENTAIS. Parecer sobre o Cadastro Integrado do Programa de Levantamento e Cadastro dos Impactados (PLCI) elaborado pelas empresas Samarco e Synergia Consultoria Ambiental. Belo Horizonte: Gesta, 2016. Disponível em: Disponível em: https://conflitosambientaismg.lcc.ufmg.br/wp-content/uploads/2017/02/GESTA-UFMG-Parecer-sobre-Cadastro-Integrado-do-PLCI-Samarco-Synergia.pdf . Acesso em: 28 out. 2022.
    https://conflitosambientaismg.lcc.ufmg.b...
    .
  • 13
    Depoimentos de Luzia Queiroz e Expedito, respectivamente, no evento III UFMG Debate: para além do rompimento: as lições de Mariana, ocorrido em 15 de março de 2019 (ver III UFMG…, 2019III UFMG DEBATE: para além do rompimento: lições de Mariana. 1 vídeo (2h53min32s). Belo Horizonte: Gesta, 15 mar. 2019. Publicado no canal CAC UFMG. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=DE2aM1V7d5A . Acesso em: 30 out. 2022.
    https://www.youtube.com/watch?v=DE2aM1V7...
    ).
  • 14
    Em sua crítica ao emprego do conceito de justiça possível (rough justice, em inglês) pelos juízes responsáveis pelo processo de reparação do Rio Doce, sobretudo o juízo da 12ª Vara Federal, Dias Netto Junior (2022)DIAS NETTO JUNIOR, E. A. Contribuição para uma sociologia das ausências: alguns apontamentos sobre o processo de reparação do desastre na bacia do Rio Doce. In: ZUCARELLI, M. et al. (org.). Infraestrutura para produção de commodities e povos etnicamente diferenciados: efeitos e danos da implantação de “grandes projetos de desenvolvimento” em territórios sociais. Rio de Janeiro: Mórula, 2022. p. 388-455. explica que se trata de conceito usado na “justiça de transição”. Diferentemente da “justiça integral”, a justiça de transição se refere a contextos de pós-guerra ou ditaduras, e visa restaurar memórias, por exemplo, uma situação diversa do contexto do desastre em que indenizações individuais são necessárias e passíveis de serem apuradas. Acrescento a esta crítica o elemento de desigualdade que conforma um certo olhar sobre os atingidos. Um olhar configurado por preconceitos de classe, raça e gênero de modo a conceber que aos pobres, negros e mulheres caberia uma justiça possível.
  • 15
    Em participação em aula da matéria Ecologia Política Feminista Latinoamericana, 28 de agosto de 2021, UFMG, por videoconferência.
  • 16
    Em participação em aula da matéria Ecologia Política Feminista Latinoamericana, 28 de agosto de 2021, UFMG, por videoconferência.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    10 Nov 2022
  • Aceito
    28 Nov 2022
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