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Fragmentos: a construção do histórico em Freud

Fragments: the construction of the historic in Freud

Resumos

O artigo parte da distinção encontrada no trabalho freudiano Moisés e o Monoteísmo: Geschichte (o acontecer histórico), a Historie (a historiografia) e o historish (o adjetivo histórico). Apoiando-se nos fragmentos de narrações, de relatos ou de imagens que constituem o acontecimento histórico e suas versões historiográficas, a construção do historish na psicanálise é acompanhada. Mostra como o historisch preenche as lacunas entrevistas na Geschichte e na Historie ao abordarem os feitos de Moisés e o estabelecimento do judaísmo. Conclui por identificar nesse procedimento o compromisso ético de Freud de sustentar o ato teórico que funda a verdade histórica dessa religião.

Psicanálise; História; Construção; Ética Psicanalítica; Ato


The text uses a distinction found in Freud´s Moses and Monotheism between Geschichte (historical event), Historie (historiography) and historish (historical truth). Supported by fragments presented in narratives, reports and images that constitute the historical event and its historiographic versions, the construction of the historish in psychoanalysis is followed. The article demonstrates how the historish comes to fulfill gaps presented by Geschichte and Historie in what concerns the deeds of Moses and the setting up of Judaism. It concludes by identifying in this procedure Freud´s ethical commitmen to support a theoretical act which founds the historical truth of this religion.

Psychoanalysis; History; Construction; Psychoanalytical Ethics; Act


Fragmentos: a construção do histórico em Freud

Fragments: the construction of the historic in Freud

Anna Carolina Lo BiancoI; Aline Vieira de AraújoII

IPrograma de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica — IP/UFRJ

IIPrograma de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica — IP/UFRJ. Endereço: Campus da Praia Vermelha, Av. Pasteur, 250 fdos 22290-240 Rio de Janeiro, RJ. E-mail: aclobianco@uol.com.br

RESUMO

O artigo parte da distinção encontrada no trabalho freudiano Moisés e o Monoteísmo: Geschichte (o acontecer histórico), a Historie (a historiografia) e o historish (o adjetivo histórico). Apoiando—se nos fragmentos de narrações, de relatos ou de imagens que constituem o acontecimento histórico e suas versões historiográficas, a construção do historish na psicanálise é acompanhada. Mostra como o historisch preenche as lacunas entrevistas na Geschichte e na Historie ao abordarem os feitos de Moisés e o estabelecimento do judaísmo. Conclui por identificar nesse procedimento o compromisso ético de Freud de sustentar o ato teórico que funda a verdade histórica dessa religião.

Palavras-chave: Psicanálise. História. Construção. Ética Psicanalítica. Ato.

ABSTRACT

The text uses a distinction found in Freud´s Moses and Monotheism between Geschichte (historical event), Historie (historiography) and historish (historical truth). Supported by fragments presented in narratives, reports and images that constitute the historical event and its historiographic versions, the construction of the historish in psychoanalysis is followed. The article demonstrates how the historish comes to fulfill gaps presented by Geschichte and Historie in what concerns the deeds of Moses and the setting up of Judaism. It concludes by identifying in this procedure Freud´s ethical commitmen to support a theoretical act which founds the historical truth of this religion.

Keywords: Psychoanalysis. History. Construction. Psychoanalytical Ethics. Act.

A psicanálise por sua difusão foi freqüentemente reputada como um prática voltada para um passado a ser reanimado, recolocado em cena, com o objetivo de, por meio da catarse, ser elaborado. Tal imagem que vigorou em dado momento no próprio trabalho de Freud, foi, no entanto, precocemente substituída por uma complexificação cada vez maior de suas concepções de tempo, história e verdade. O passado não se encontra mais, então, preservado numa memória intacta, mas passa a conservar em si os desdobramentos do que terão sido as suas marcas constitutivas. Trata-se, de uma maneira particular de considerar esse tempo anterior, com o que nele terá sucedido e com o que ele traz de efeitos para o vivido no cotidiano.

Tomaremos a distinção ressaltada por Etcheverry no texto de Freud (1939/1996, p. 14) Moisés e o Monoteísmo sobre três vocábulos: die Geschichte (o acontecer histórico), die Historie (a historiografia) e historisch (o adjetivo histórico). Estes três termos (que logo veremos como são mais que apenas termos, porque nos ajudam na conceituação do histórico para a psicanálise) desempenham uma função central no texto freudiano. Tentaremos recolher, na sua maneira de articulá-los, preciosas indicações sobre o lugar dado ao passado e em conseqüência a esse histórico dele resultante.

Veremos como o historisch vem preencher as lacunas e distorsões entrevistas na Geschichte, à qual se refere a Historie quando essa aborda os feitos de Moisés e as circunstâncias do estabelecimento do judaísmo. Apoiando-se nos fragmentos que chegam através de narrações, de relatos ou de imagens que constituem o acontecimento histórico e suas versões historiográficas, Freud tece suas teorizações sobre como se constrói o historish, usando uma peculiar concepção de tempo. Propomos apontar como essa construção se torna possível por uma tomada de posição de Freud, por uma escolha que não se faz pela via exclusiva da razão e de demonstrações factuais. Um compromisso ético que implica o desejo de Freud com o que será, doravante a realidade histórica de uma religião reconhecida por sua duração milenar.

Die Geschichte e die Historie são palavras sinônimas na língua alemã utilizadas para fazer referência à história de uma maneira geral: aos acontecimentos e fatos ocorridos, assim como ao estudo que se faz sobre estes, sem que se incorra em imprecisões ou especificidades em suas respectivas traduções. Isto é, a ciência da investigação histórica e a sucessão de eventos ao longo do tempo são atualmente campos aos quais se aplicam os dois termos acima referidos.

Ainda que não exista qualquer discriminação no uso de die Geschichte e de die Historie no uso cotidiano do idioma alemão, uma análise etimológica nos leva a constatar que eles trazem, em suas origens, significados distintos que Freud não ignorava, e, como exímio conhecedor e amante da língua e da cultura alemãs, submete-se a essa sutileza semântica buscando nela o respaldo para reconstituir a epopéia do Judaísmo, na elaboração de Moisés e o Monoteísmo (1939/1996).

Apresentamos aqui as nuances de nossa pesquisa acerca da origem das palavras, porque ela nos permitem precisar o que acreditamos embasar as formulações freudianas sobre o histórico. A fim de melhor circunscrever o emprego das palavras acima referidas, é interessante apontar como exemplo as histórias infantis, as sagas de heróis, as fábulas, as narrativas antigas e os relatos com seus termos correspondentes, tais como, die Erzählung: a narrativa, do verbo erzählen — narrar; die Erdichtung: a invenção, a ficção, do verbo erdichten — imaginar, fazer de conta, inventar, e do adjetivo erdichtete — fictício (há no alemão, para esta palavra, um sentido poético, literário); der Bericht: o relatório, o relato, do verbo berichten — relatar, informar, e que curiosamente dá origem à palavra die Berichtigung que significa retificação, correção (KLUGE, 1989; MÜLLER, 1982).

O substantivo alemão que nos interessa mais de perto, por seu uso em Freud, die Geschichte tem origem na palavra geschiht do alemão medieval (Mittelhochdeutsch), cuja raiz, por sua vez, é o termo Giskiht, oriundo também do alemão medieval (Althochdeutsch) e vem a significar der Ereignis: acontecimento, do verbo ereignen — suceder, acontecer, possuindo por sinônimos der Zufall: o acaso e der Hergang: acontecimento, desenrolar. Existe o verbo geschehen traduzido como acontecer, ter lugar, ocorrer e que tem relação mais direta com die Geschichte. Além desse, há die Historie, palavra latina que vem do grego "historein", significando originalmente inquirir. Por sua vez, o historish é um adjetivo para história, isto é, caracteriza aquilo que é histórico (KLUGE, 1989; MÜLLER, 1982).

Orientadas pela precisão etimológica, passamos a examinar a construção feita por Freud no texto sobre o monoteísmo mosaico. Apesar de inúmeros outros textos freudianos trazerem a mesma discussão sobre a construção do histórico na psicanálise (ver, por ex., FREUD, 1937a/1996, 1937b/1996, 1924/1996, 1918/1996; LO BIANCO, 2002), nos ateremos ao texto sobre a saga de Moisés, por acreditarmos que nele poderemos apresentar com precisão o que está em jogo na referida construção. Pois, em princípio, nos vemos diante de um trabalho pouco reconhecido pela ótica de uma história positiva das religiões, já que não se limita às evidências e às provas requeridas para sua aceitação inconteste pelo mundo científico. No entanto, este é o ponto central que pretendemos levantar. É desta defasagem entre aquilo que é esperado e reconhecido pela visão historiográfica (pela Historie), de um lado, e o tratamento dado por Freud à saga de Moisés, de outro, que tiraremos as coordenadas para estabelecer as características da posição psicanalítica sobre a construção da verdade histórica (do historish).

De início, ressaltamos a operação realizada por Freud (1915/1996), em seu distanciamento radical de uma perspectiva cronológica e linear de tempo. Ele introduziu uma nova temporalidade, quando, a rigor, desde seu trabalho de 1915, indicou a atemporalidade como a propriedade mais genuína do inconsciente. Estava, a partir de então, estabelecido o caráter persistente dos traços inconscientes considerados indestrutíveis, incorruptíveis a que não se tem um acesso direto, que se mantêm imunes à passagem do tempo e que tampouco obedecem a uma deliberação consciente. Nessa concepção se apóia o texto desenvolvido tantos anos depois, quando Moisés e o Monoteísmo é escrito.

Freud traz uma pergunta insistente ao longo do texto: de onde o judaísmo retira a força que o faz perdurar por tantos séculos? A explicação mais imediata, argumenta, referida à tradição comunicada de uma geração a outra, não é suficiente para dar conta dessa duração milenar. É justamente por não ter forjado um resultado definitivo e elucidativo de questão tão complexa, que podemos ver Freud, em sua busca por outras razões "aparentemente encobertas", enfrentar esse enigma e elaborar a noção de realidade histórica constituída por um núcleo de verdade histórico-vivencial.

Constatando a importância da presença de Moisés para a história do povo judeu, premissa sem a qual essa história não poderia ser entendida, Freud sai em busca de fragmentos ou de traços de sua existência. Para tanto, ele se vale de indícios léxicos e etimológicos, confirmados por outros autores, para afirmar a origem egípcia do nome de Moisés.

Tendo em vista os objetivos visados no presente trabalho, encontramos aqui o primeiro dado de uma construção histórica a exigir de Freud uma decisão e um posicionamento éticos: ele afirma que se o nome era egípcio, o portador do nome, Moisés, sem dúvida, também o era. Trata-se, nas palavras do próprio Freud (1939/1996, p. 8), de "extrair a conclusão", sustentar uma posição que atribua a Moisés uma origem não hebraica, mas egípcia. É importante enfatizarmos que a mera constatação de que o nome era egípcio, não oferece a garantia para a afirmação freudiana de que Moisés era egípcio. É preciso neste ponto — e aqui está o cerne do argumento que apresentamos nesse artigo — uma tomada de posição de Freud — o que foi chamado do "ato de Freud" (HARLY, 2002). Um ato (um "ato teórico", diria Lacôte, 1998), que, portanto, não tem em seu comando a vontade e a intenção do sujeito. Podemos dizer que é o desejo que toma o lugar do sujeito e é desse lugar que Freud irá construir a verdade histórica da religião judaica. É no momento de concluir que Moisés é egípcio, que reconhecemos uma peça da construção da realidade histórica buscada por Freud: construção essa que se torna possível, repetimos, por um ato engendrado nos desfiladeiros de seu próprio desejo.

O estabelecimento de uma verdade tão peculiar como essa não é sem conseqüências e Melman (2002) recolhe a formulação freudiana para enfatizar que os herdeiros de uma religião fundada por um estrangeiro não a herdam "naturalmente". Encontramos aí indicações preciosas para uma tentativa inicial de respondermos à pergunta freudiana sobre a durabilidade da crença transmitida pelo judaísmo: arriscaríamos a suposição de que tal duração é devedora da convocação que é feita a cada sujeito de desejo, a cada vez, e da resposta dada por cada um, a cada vez, apoiada na coragem de adotá-lo, de conquista-lo para si, de fazer dele a sua religião.

Da mesma maneira que toma o ponto de referência relativo ao nome para desenvolver a história do fundador, Freud prossegue em sua empresa, apontando novos fragmentos que lhe permitam fazer, com a certeza tirada de sua construção histórica, a suposição de ter sido Moisés um descendente da casta real egípcia. Este, ao travar contato com uma tribo semita imigrante, tê-la-ia escolhido para desenvolver a proposta monoteísta iniciada pelo faraó Akhenaten. Segundo as informações historiográficas, este atípico soberano egípcio teria reinado por um período pequeno mas suficiente para instaurar uma religião diversa daquela até então dominante na cultura egípcia. Ao invés de se dedicar ao culto de inúmeras divindades, a população se voltara para a adoção do culto ao deus-sol: Aten.

Freud se apóia nos fragmentos da Geschichte que tematizam o reinado do faraó, para afirmar que após sua queda, Moisés tomara para si o compromisso de levar adiante sua crença. Foge, então, com a tribo semita que o segue, fundando uma nova religião, já marcada em sua gênese pela preservação do culto monoteísta.

Somente um homem de grande coragem se lançaria ao desafio de dar continuidade à religião instaurada pelo faraó e à adoração de um único deus. Para alcançar o seu propósito, era preciso que Moisés tivesse uma personalidade forte, autoritária e intransigente impondo a seus seguidores os preceitos da nova crença. Sendo uma religião que deixara para trás a magia e a feitiçaria nos cultos às inúmeras divindades, eram novos valores os agora instilados; procurava impor-lhes uma doutrina talvez mais rígida do que a anteriormente instituída pelo próprio faraó.

Deparamo-nos neste ponto com uma razão para justificar o importante dado encontrado por Freud num historiador estudioso da religião judaica e da significatividade do lugar de Moisés em suas origens. Sellin (apud FREUD, 1939/1996), em uma passagem de seu livro, afirma que Moisés havia sido assassinado pelo mesmo povo que o acompanhara na fuga do Egito. Freud atribui a morte de Moisés à sua irascibilidade e à exigência de que o povo judeu não se desviasse dos padrões religiosos introduzidos pelo patriarca. Encontra novamente nesse fato traços de "extraordinária latência" (apenas para lembrarmos um comentário de LACAN, 1991, p.130), os quais demandavam uma articulação que viesse valoriza-los, permitindo extrair deles todas as conseqüências para a construção da história da religião mosaica. Os ditames rigorosos e restritivos, de um Moisés que visava instilar e perpetuar a crença monoteísta, defrontaram-se com a revolta de seus seguidores que acabaram por assassiná-lo, rejeitando os ensinamentos da vida "em verdade e em justiça (maat)" (FREUD, 1939/1996, p.130) que ele lhes legara.

Os historiadores da religião e os sacerdotes, afirma Freud, ao relatarem a vida de Moisés e as origens da tradição mosaica desconhecem essa passagem, ignoram-na e mantêm a história contínua, exagerando a coragem e as proezas do patriarca. Freud reconhece nesse exagero um expediente cujo propósito é justamente o de apagar os traços desse acontecimento. No entanto, seguindo os estudos de Meyer (apud FREUD, 1939/1996), supõe que tenha havido uma fusão posterior entre esses judeus, libertos do jugo do chefe, e tribos de regiões próximas de onde se encontravam, numa área nomeada Meribá-Cades. Tendo deixado de lado a doutrina professada por Moisés, passaram a acatar as cerimônias em honra a um deus vulcânico severo — Javé —, com características distintas do deus mosaico.

É importante assinalar que a religião de Javé não se distinguia, no essencial, dos cultos a outras divindades, mantidos pelos povos vizinhos. Deixaram de reconhecer um deus único e passaram a adorar os baalim (deuses locais). Apenas mantiveram, da anterior religião herdada de Moisés, o hábito da circuncisão. A esse hábito Freud (1939/1996, p. 38) atribui o valor de "fóssil de referência". Um fragmento que permite a reconstrução de um compromisso — feito entre o que havia restado dos preceitos mosaicos e a nova religião —, denominado de "compromisso de Cades" (FREUD, 1939/1996, p. 38).

No entanto, apesar desse compromisso que visava afastar as marcas perturbadoras do antigo líder e ignorar o feito crucial para a instalação da fé em seu deus, uma porção do povo que ainda guardava a lembrança desse feito ou que havia ouvido falar dele por seus pais ou avós, restaurou, num dado momento, a forte crença pela qual havia sido marcada. Ou seja, depois do período de latência no qual o povo não cria no que lhe havia sido legado, alguns fizeram reviver a religião judaica.

Novamente, aqui, identificamos um passo corajoso dado por Freud, conseqüência de sua decisão de estender os achados psicanalíticos a respeito do funcionamento psíquico à história da religião judaica. Da mesma maneira que postulou para a constituição da neurose uma "fórmula" implicando os estádios de "trauma precoce — defesa — latência — instalação da neurose — retorno parcial do recalcado" (FREUD, 1939/1996, p. 77), reconhece na formação dos fenômenos religiosos processos equivalentes. Após enfrentarem um acontecimento de conteúdo agressivo-sexual representado pelo assassinato do patriarca, restam marcas perenes, quase sempre esquecidas por ação da defesa; mais tarde, depois de um longo período de latência, voltam a ganhar eficácia e a exercer efeitos duradouros. Baseando-se no mito de Totem e tabu, Freud (1912-13/1996) sublinha que também no caso da religião judaica, a Geschichte tende a narrar os fatos de forma contínua. Por seu turno, as fixações que tais narrativas muitas vezes encontram, na forma escrita pela Historie, sustentam uma versão dos gestos heróicos que desconsidera os percalços encarados por seus personagens e que são exatamente os elementos necessários para que a tradição religiosa se torne efetiva.

Freud, nesse ponto, elabora uma teoria da tradição — fundada sobre a valorização dos fragmentos —, com o propósito de explicar a força de sua transmissão através dos séculos. Destaca que, cada fragmento, ao retornar do passado traz um poder particular, reclamando para si "títulos de verdade irresistível" frente aos quais "permanece impotente o veto lógico" (FREUD, 1939/1996, p. 81). É importante chamarmos a atenção para essa pequena afirmação de Freud. Ela contém um grande deslocamento em relação ao procedimento universitário, encontrado numa escrita histórica, baseada no logos, que lhe garante quase sempre o epíteto de científica. Fica descartada nela o uso da lógica adotada pelo sistema consciente, pela qual nos orientamos seja no cotidiano do senso-comum, seja, muitas vezes, no estabelecimento dessa verdade científica.

A analogia com o paradigma concebido para os transtornos psicóticos, nos introduz ao processo em questão. Na idéia delirante "se esconde um fragmento de verdade esquecida" (FREUD, 1939/1996, p. 82). Tal fragmento sofre inúmeras desfigurações, apagamentos ou esquecimentos, porém sua presença no delírio é marcante; ainda que venha envolto em ditos incompreensíveis e repletos de erros do ponto de vista do senso-comum, tais fragmentos representam o "núcleo de verdade do delírio" (FREUD, 1939/1996, p. 82). Essa é a verdade histórica (historish) escutada na psicanálise e encontrada igualmente nos artigos de fé religiosos. Ao contrastá-la com o caráter compulsivo de alguns sintomas psicóticos, observamos que enquanto esses encontram a "maldição do isolamento" (FREUD, 1939/1996, p. 82), a verdade guardada na tradição religiosa se torna compartilhada pelas massas.

Voltando à religião judaica, um fragmento importante que nos permite chegar à verdade histórico-vivencial da religião judaica é, sem dúvida, o monoteísmo. Freud, como mencionado, introduz na Gechischte, no acontecer histórico da saga mosaica, o impacto que Moisés havia sofrido com o culto a um único deus, imposto pelo faraó egípcio. Esse impacto Freud retira do acontecer histórico dando a ele o valor de um resquício cuja força para os feitos perseguidos por Moisés é insuperável. Nesse procedimento freudiano observamos mais uma vez que o estabelecimento dessa verdade contida na tradição não se dá pela via da comprovação empírica. Freud a concebe como efeito do retorno de marcas deixadas pelo atravessamento de uma situação traumática enfrentada por uma coletividade. Assim, procura dar conta do êxito do monoteísmo como progresso espiritual (FREUD, 1939/1996, p. 108) em meio a povos que não eram judeus, mas que, gradativamente, foram sendo atraídos por esta ética até a instituição do judaísmo como religião. Reconhece o poder de uma crença que faz com que a partir de sua instauração, seus adoradores adquiram a força que os direciona rumo a esse progresso. Observa em sua constituição a ordenação de algo essencial que orienta a vida de um povo por séculos a fio, cujo conteúdo imprescindível, transmitido a despeito das deturpações das narrativas orais, dos relatos bíblicos e da própria história oficial, volta na manifestação de gerações que nem mesmo conheceram Moisés, adotando seu legado ético e a sua injunção de uma vida levada "em verdade e em justiça" (FREUD, 1939/1996, p. 130). Afirma que:

Quando Moisés levou ao povo a idéia de um deus único, ela não era em nada nova, mas significava a reanimação de uma vivência das épocas primordiais da família humana, desaparecida desde muito tempo da memória consciente dos homens. Mas havia sido tão importante, havia engendrado ou encaminhado alterações tão profundas na vida dos homens, que é impossível não crer que deixara como seqüela na alma humana traços permanentes, comparados a uma tradição (FREUD, 1939/1996, p. 125).

Assim como o monoteísmo, o assassinato de Moisés é outro fragmento, cujas impressões profundas afloraram na tradição religiosa judaica. Freud recorre aos mitos de origem que permitem o avanço de sua elaboração. No mencionado texto, Totem e tabu (1912/1913), faz a hipótese de uma horda primitiva, chefiada pelo pai primevo, a cuja autoridade todos se submetiam. Em épocas primitivas, esse chefe-pai usufruía de todas as mulheres e subjugava os homens mais novos com sua autoridade. Até que os irmãos se uniram em um levante que pôs termo àquele arranjo primevo. Ao assassinarem o pai, instituíram a exogamia, estipularam um totem protetor e iniciaram novas modalidades de trocas sociais. A morte de Moisés passa a ser considerada a revivescência dessa situação primordial que havia permanecido como uma marca inconsciente e não re-conhecida, entretanto, partilhada por todos os homens. A crença judaica retira sua magnitude e seu poder dos traços que deixaram sulcos profundos na vivência desses povos, se impondo e constituindo sua tradição.

A tradição concebida por Freud, portanto, não se firma na continuidade de um conteúdo, passado de uma geração a outra desde tempos imemoriais. Não se trata de uma tradição comunicada de pais a filhos, repetida ao longo da história, que perduraria apesar de suas desfigurações. Trata-se, antes, de uma tradição calcada nesses fragmentos — nucleares —, que sustentam, por seu caráter de verdade histórico-vivencial, a sua transmissão através do tempo. Uma tradição herdada fundada em marcas, muitas vezes obscurecidas e apagadas, que produzem efeitos e exercem sua autoridade e seu poder de propagação, justamente nesse lugar de "sombras" (FREUD, 1939/1996, p. 67) em que estão, expulsas das operações conscientes. Articulam-se nos intervalos e nas lacunas do acontecer histórico e de lá saem à luz portando a certeza de sua força constituinte e matriz dessa tradição.

Falar de certeza nesse ponto, não é dar provas nem mostrar evidências, ao contrário é afirmar uma posição submetida a uma lógica regida pelo inconsciente, por um saber que não se apreende pelo estabelecimento de uma relação causa-efeito. Freud não chega ao final de seu trabalho satisfeito com suas concepções sobre a tradição e a realidade histórica: a "extraordinária complexidade de toda causação na vida e no acontecer histórico" (FREUD, 1939/1996, p. 119) o fazem se confrontar com a magnitude da questão de que trata. E, é precisamente nesse ponto onde se depara com o impossível aí implicado que surpreendemos a posição por ele sustentada: ao mais uma vez falar da tradição da religião mosaica e de como seus efeitos foram sentidos de forma extraordinariamente indireta, afirma que isso se deve ao que ele, o próprio Freud (1939/1996, p.119), "extraiu" ou "introduziu" na história dessa religião. Extrair da Geschichte o histórico-vivencial ou introduzir nela esse mesmo vivenciar histórico é o que chamamos de um compromisso ético de Freud. Através da história do judaísmo — e do ato que sustenta com respeito a essa história —, sustenta, acima de tudo, a experiência psicanalítica. .

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2008
  • Data do Fascículo
    Dez 2007
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