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Entrar na Psicologia, encontrar os outros

EXPERIÊNCIA EM DEBATE

Entrar na Psicologia, encontrar os outros

Lívia Mathias Simão

Ingressar no curso de Psicologia é, para grande parte dos alunos e alunas, e conforme seus próprios relatos, uma experiência geradora tanto de curiosidade como de receio, tanto de contentamento como de ansiedade, tanto de certeza de haver feito "a escolha certa" como de desconfiança de não tê-la feito "corretamente". Trata-se, fundamentalmente, do pensar e sentir ambigüidade diante do novo, experiência esta que parece se intensificar particularmente pela natureza da própria Psicologia, enquanto campo de conhecimento diverso sobre um objeto plural.

Configura-se assim o olhar com o qual trago para aqui algumas considerações sobre os momentos iniciais da formação em Psicologia, focalizando o tema do "significado" da relação entre "esperado" e "inesperado", entre "dissonante" e "consonante", entre "convergente" e "divergente" na experiência dos alunos e alunas ingressantes. Trata-se, como é inevitável, de um olhar situado que, neste caso, é o de docente de disciplinas introdutórias no curso de Psicologia da Universidade de São Paulo (Psicologia Geral I, de 1987 a 2002 e Psicologia Geral II, de 1987 a 1995), e pesquisadora na perspectiva semiótico-construtivista em Psicologia.

Dentro das concepções teóricas presentes nessa abordagem, escolhi centralizar a discussão do tema principalmente na noção bakhtiniana de existência como diálogo, tal como a desenvolve Michael Holquist (1990), em seu livro Dialogism: Bakhtin and his World. Para tanto, farei breves sínteses de como compreendo a relação eu-outro na concepção do dialogismo bakhtiniano, entremeando-as com alguns desdobramentos para o tema em questão.

Na perspectiva do dialogismo, o encontro com o outro é fundamental para a construção do si mesmo, graças à tensão que se dá, por um lado, entre a percepção de congruência entre si mesmo e outro - através do reconhecimento, no outro, da presença daquilo que é esperado, conhecido, compreensível, acolhedor - e, por outro lado, da percepção de dissemelhança e incongruência entre si mesmo e o outro, gerando tanto estranheza e medo diante daquilo que é inesperado, desconhecido, incompreensível e desalojador, como curiosidade diante do novo. Esta é a tensão definidora da relação a que estamos chamando "relação de alteridade", e que está tematizada, sob enfoque construtivista semiótico-cultural, nas obras de Ernst Boesch (1991), Jaan Valsiner (1998), James Wertsch (1993), dentre outros.

Fundamentalmente, a relação de alteridade se dá segundo uma diferença relacional entre um "centro" e tudo aquilo que não é aquele "centro". Em nosso tema, o centro pode ser entendido como a posição em que se encontra o aluno quando se percebe e se sente a si mesmo, com suas concepções, desejos, valores, etc. Vale ressaltar que perceber-se no e a partir do centro é uma situação inalienável da existência humana. Entretanto, vale ressaltar também que, ao inverso do que pode parecer a um olhar mais fundacionista, a concepção bakhtiniana de centro não carrega a idéia de isolamento, de primazia ou de autonomia do centro. Pelo contrário, ela está assentada no relativismo da divergência complementar, isto é, o centro, por sua própria definição e para existir, sempre exige um não-centro, uma periferia, numa relação análoga à de dois corpos ocupando simultaneamente espaços diferentes. Como salienta Holquist (1990, p. 18) "'Centro' no pensamento bakhtiniano deve ser entendido conceitualmente 'pelo que ele é: um termo relativo, antes que absoluto e, como tal, sem nenhuma reivindicação a privilégio absoluto, menos ainda com ambições transcendentais'". Desta forma, a um centro, sempre corresponderá um não centro. Nada pode ser percebido a não ser contra a perspectiva de outro algo, que não é ele(a). Esta relação centro - não centro é, a nosso ver, próxima daquela postulada na lógica co-genética de Herbst (veja-se, por exemplo, HERBST, 1995; SIMÃO, 2002C; VALSINER, 1995, 2001).

Para nosso tema isto implica que os significados que o aluno tem como verdadeiros e seus só podem assim construídos na relação, não necessariamente consciente e explícita, com outros significados que não faziam parte da sua constelação, numa relação transformativa (e não de justaposição ou substituição). É importante notar que o interlocutor, seja o professor ou o colega, se vêem na mesma posição relativa, isto é, como centro, de modo que centro e não-centro o são um para o outro sempre na vice-versa e para todos os atores envolvidos na situação. Entretanto, o fato da posição central de um ator não ser absoluta não significa que sua experiência não seja situada. Pelo contrário, toda experiência se dá sempre a partir de um lugar específico, particular. Ou, nos termos de Holquist (1990), se dá de acordo com a "lei da localização", que postula que qualquer coisa é percebida de uma única posição na existência, implicando que o significado de qualquer coisa é sempre formatado pelo lugar do qual a coisa é observada. Importante ainda é o fato de que o ator é seletivo na busca, na adesão ou no aceite desta ou daquela experiência, que lhe permitirá observar deste ou daquele lugar e, portanto, colocar-se nesta ou naquela relação de alteridade com diferentes não - centros. O observador é simultaneamente um participante ativo na relação e a realidade é sempre experimentada de uma posição particular, isto é, como um evento vivido pelo ator: o evento de ser um self (HOLQUIST, 1990, p. 21). É nesse sentido que, para Bakhtin, a consciência é constantemente construída na relação de alteridade (a rigor, para ele, consciência é alteridade).

No contexto de nosso tema, os atores são, simultaneamente, o aluno, o professor, os colegas, de modo que cada um encontra os outros em situações didáticas formalizadas (as atividades curriculares planejadas) ou em situações informais (os grupos de discussão, os cafezinhos, os "choppinhos"...), situações essas que lhes colocam a exigência do diálogo, isto é, de experimentar alteridades. A estes diálogos eles poderão aderir ou não, e aderir ou recusar de diferentes formas, o que nos remete à discussão de configurações interativas diversas, com implicações bastante particulares no desenvolvimento afetivo-cognitivo dos atores, conforme abordamos em outras oportunidades, através dos conceitos de "barreira" e "fronteira", originalmente cunhados por Boesch (veja-se, por exemplo, BOESCH, 1991; SIMÃO, 2001, 2002a, 2002b).

Embora eu tenha eleito aqui a figura do aluno como focal, cabe lembrar que, pelo próprio cerne conceitual da abordagem, quando não há adesão ao diálogo, a gênese dessa recusa não pode ser compreendida ou depositada, no sentido bakhtiniano, apenas no pólo aluno ou apenas no pólo professor, já que na relação de alteridade a polarização excludente não faz sentido.

Em síntese, entrar na Psicologia e encontrar os outros é, fundamentalmente, deixar-se ou não entrar em relações de alteridade com um campo de significados, já que a Psicologia se apresenta aos alunos, via de regra, diferente do que imaginavam, o que é presentificado, por exemplo, pela diversidade teórica encontrada nas disciplinas, já desde o primeiro semestre, concretizada nas falas dos professores e professoras, dos e das colegas, dos autores e autoras dos textos. Nos termos bakhtinianos, trata-se de uma heteroglóssia, uma polifonia de forças sociais e discursivas, que se dá, no contexto cultural acadêmico-científico, sobretudo pela interanimação das vozes dos professores e professoras, das vozes das e dos colegas, dos autores e autoras de textos a serem lidos e discutidos e, finalmente, mas não menos importante, pela voz de si mesmo(a) nesse diálogo (discutir este aspecto particular seria tema para outro(s) texto(s), mas é difícil deixar de remeter pelo menos a Danziger, 1997). A partir das possíveis maneiras em que se dá esse diálogo, inclusive no tocante a que vozes estão presentes, decorrem forçosamente implicações de natureza formativa, incluindo-se, evidentemente, as éticas.

Cabe lembrar que, não raro, a maneira de professores e alunos escaparem da tensão, causada por essa polifonia de vozes, é a adesão, muitas vezes precoce, a opções ecléticas ou dogmáticas, ambas, como bem aponta Figueiredo (1995) igualmente improdutivas para o desenvolvimento do si mesmo e da / na Psicologia. Trata-se aqui de uma atitude que exime o ator da responsabilidade de fazer sua seleção com base em experiências de relação de alteridade, optando por uma a - seleção.

Finalmente, talvez o aspecto mais relevante para esta discussão seja o de que é justamente na experiência com a relação de alteridade que estão as possibilidades para a construção da identidade, entendida como um projeto, isto é, uma tarefa sempre tendente ao futuro, um vir a ser, portanto sempre em mudança (BOESCH, 1991; SIMÃO, 2002b). Como esta tarefa de construção e reconstrução contínua da própria identidade só pode ser realizada com a disponibilidade do ator entrar em relações de alteridade e, além disso, só pode ser realizada nas condições particulares desta ou daquela relação, contra este ou aquele significado como fundo, ficam evidentes as implicações éticas de ser professor ou professora: somos nós quem propomos a natureza da sugestão, por assim dizer, do convite mesmo, para os alunos se relacionarem com significados da Psicologia e conosco enquanto não-centro. Entretanto, doutra parte, na perspectiva dialógica, como já foi salientado, cada ator é ativo e seletivo na cena de ensejar esta ou aquela natureza de relação de alteridade, e os alunos, enquanto atores que são, assim o fazem com os professores, os colegas e a Psicologia. Esta evidência inapelável do aluno como co-autor principal na construção do seu projeto de ser profissional, trazida pela abordagem dialógica às relações de formação profissional, não exime, como pode parecer à primeira vista, o professor de sua responsabilidade profissional e ética, mas o desaloja da ingenuidade ou ilusão de significar a si mesmo como centro onipotente, colocando-o, assim como ao aluno, numa relação centro - não centro. Alunos e professores são, nesta medida, co-autores na construção de seus próprios projetos de identidade pessoal e profissional. Do ponto de vista ético, nenhum deles pode se eximir da responsabilidade de tentar se oferecer ao outro como um campo de significados com contornos suficientemente específicos para que se dê a relação de alteridade. Isto porque, como aponta Holquist, "para haver significado, a singularidade de cada ator precisa ser colocada no pano de fundo do compartilhamento" (HOLQUIST, 1990, p. 24-25). Na medida em que o "eu" não é algo dado a mim com o meu nascimento, todos precisamos criar a nós mesmos, com o material disponível para essa criação. Sendo esse material dado pelo outro, a minha criação do meu eu dependerá dos outros a quem eu puder escolher como experiência de alteridade.

Poderíamos nos estender bem mais na discussão das possibilidades e da procedência da concepção bakhtiniana para a compreensão de aspectos relevantes da formação acadêmica de profissionais que, em última instância, serão ou deveriam vir a ser profissionais do diálogo, no sentido aqui explicitado. Creio, entretanto, que por ora é suficiente tomar de empréstimo palavras de Holquist (1990) que sintetizam o que pretendi tematizar: "existir é co-existir ou co-ser na contraposição, e o lugar que cada um ocupa nesse diálogo, seja qual for, implica responsabilidade e co-autoria" (HOLQUIST, 1990, p. 25).

  • BOESCH, E. E. Symbolic Action Theory and Cultural Psychology New York: Springer-Verlag, 1991.
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  • ______. O significado da interação verbal para os processos de construção de conhecimento: proposta a partir da ótica boeschiana. In: LEITE, S. A. S. (Org.). Cultura, cognição e afetividade: a sociedade em movimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002a. p. 85-102
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  • WERTSCH, J. V. Voices of the mind: a sociocultural approach to mediated action. Cambridge: Harvard University Press, 1993.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2008
  • Data do Fascículo
    Dez 2007
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