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Gayatri Chakravorty Spivak é considerada, conjuntamente com Edward Said e Homi Bhabha, uma importante representante da produção teórica pós-colonial1 1 MOORE-GILBERT, Bart. Postcolonial Theory. Contexts, Practices, Politics. London, Verso, 2000 [1997]. e é, ao mesmo tempo, uma crítica feminista relevante, em termos de sua influência na produção intelectual em escala global. Nascida em Calcutta no início da década de 1940, poucos anos antes que a Índia adquirisse independência do Império Britânico, Spivak estudou literatura inglesa e bengali na Universidade de Calcutta.2 2 Bonding in difference. Interview with Alfred Arteaga. In: LANDRY, Donna e MACLEAN, Gerald. (eds.) The Spivak Reader. New York, Routledge, 1996. Após fazer estudos de pós-graduação em Cornell e redigir uma tese de doutorado sobre Yeats, orientada por Paul de Man, ensinou em diversas universidades dos Estados Unidos sendo, no momento, professora na Universidade de Columbia. Spivak tornou-se conhecida ao publicar, em 1976, uma tradução para o inglês do livro De la Grammatologie, de Jacques Derrida. Para além de difundir essa obra entre o público de fala inglesa, essa publicação é considerada marcante pelo fato de incluir um prefácio inovador que, apresentando o autor como sujeito biográfico e como coleção de escritos publicados, oferece exemplos considerados brilhantes de prática desconstrutiva.3 3 ID., IB.

Especialistas na obra de Spivak chamam a atenção para aspectos que singularizam a produção da autora, entre os quais o estilo fragmentário, intervencionista e, até, combativo e as temáticas privilegiadas. Em termos amplos, e diferentemente dos primeiros trabalhos de Said e de Bhabha, Spivak, manifestando interesse pela diversidade de "contra-discursos", estaria longe de privilegiar o discurso colonial como objeto de análise. Esse interesse seria perceptível em vários de seus projetos, a historiografia do Indian Subaltern Studies Group; a leitura crítica de trabalhos de criação pós-coloniais, particularmente aqueles veiculados na mídia; a análise e tradução da literatura de ficção, em bengali, de Mahasweta Devi. A amplitude desse leque de interesses vincula-se à exigência de Spivak da necessidade de reconhecer a heterogeneidade das culturas do pós-colonialismo.4 4 MOORE-GILBERT, B. Postcolonial Theory... Op. cit., p.76. Além disso, distinguindo-se de outros autores que se inserem na produção teórica pós-colonial, Spivak insiste na relevância assumida pelo sujeito (sexuado) feminino como uma categoria diferenciada. A "cegueira", em termos de gênero, isto é, a falta de compreensão da crucial instrumentalidade da mulher como objeto de intercâmbio simbólico, estaria presente, inclusive, nos modos de análise cultural contra-hegemônicos. Nesse sentido, vale observar que Spivak aponta para a falta de atenção ao sujeito sexuado no trabalho de Foucault e Deleuze e, também, na historiografia do Indian Subaltern Studies Group. O feminismo "Ocidental", porém, pouco contribuiria para corrigir essa cegueira – e, em termos da maneira como tratam as mulheres "subalternas", haveria escassas diferenças entre a política das versões da crítica feminista anglo-americana e francesa.

Mas, se Spivak não privilegia necessariamente o discurso colonial como objeto de análise, também trabalha com ele. "Literatura" é a re-elaboração de "Three Women's Texts and a Critique of Imperialism"5 5 SPIVAK, Gayatri. Three Women's Texts and a Critique of Imperialism. In: GATES, Henry Louis. (ed.) "Race", Writing and Difference. Chicago, University of Chicago Press, 1986, pp.262-280. , um estudo breve, publicado por primeira vez em 1985, considerado um "clássico" na produção dos estudos pós-coloniais e da crítica feminista, que constitui precisamente um exemplo desse trabalho. Nesse texto, no marco da proposta de uma alternativa à narrativa imperialista da história, a autora analisa obras da literatura britânica do século XIX escrita por mulheres, apontando para os limites do feminismo Ocidental. Explorando a natureza racializada dos marcos conceituais que operam em textos canônicos desse período, Spivak analisa Jane Eyre (Charlotte Brontë, 1847) livro que, segundo a autora, se tornou um texto cult da literatura feminista. Analisa também Wide Sargasso Sea, de Jean Rhys (1966), texto escrito no século XX, lido como re-inscrição de Jane Eyre, e Frankenstein (Mary Shelley, 1818).

"Literatura" re-cria essa análise, ampliando seu escopo. O texto incorpora um segundo trabalho escrito no século XX, "Pterodactyl, Puran Sahay e Pirtha" da autora indiana Mahasweta Devi, mostrando críticas a axiomática do imperialismo no discurso pós-colonial e assinalando as limitações presentes também nele.6 6 Para um comentário de Mahasweta Devi sobre o texto, no qual explicita sua intenção ao escrevê-lo, mostrar o que foi feito com o mundo tribal da Índia, um mundo que foi destruído sem ter realizado o esforço de conhecê-lo, ver: The author in conversation. In: SPIVAK, G. C. (Trad. e introdução.) Imaginary Maps. Three Stories by Mahasweta Devi. New York, Routledge, 1995. A observação das limitações colocadas pela invocação de uma narrativa originária em "Pterodactyl..." remete a um argumento central, numa fase da obra da autora. Não se trata, simplesmente, de rejeitar as definições de identidade fixadas em concepções essencialistas de origens ou pertencimentos. A idéia é que qualquer noção de forma "pura" ou "original" de consciência e identidade pós-colonial implica que o neo-colonialismo não desempenha papel nenhum na construção da identidade de seus sujeitos.7 7 SPIVAK, G. The Post-Colonial Critique. In: HARASYM, Sara. (ed.) The Post-Colonial Critique, Interviews, Strategies, Dialogues, New York, Routledge, 1990. Nesse sentido, a incorporação de "Pterodactyl..." mantém vinculações com o que talvez seja o aspecto mais significativo de "Literatura", em termos de sua relação com "Three Women's Texts...": o esforço por mostrar as marcas do que Spivak denomina "consciência da cumplicidade". Nos termos da autora: "uma simples invocação de raça e gênero, sem o freio da auto-crítica, encobre com sucesso a exploração".8 8 Ver: Literatura, nota 16, traduzido nesta edição dos Cadernos Pagu.

AP

  • 1
    MOORE-GILBERT, Bart.
    Postcolonial Theory. Contexts, Practices, Politics. London, Verso, 2000 [1997].
  • 2
    Bonding in difference. Interview with Alfred Arteaga. In: LANDRY, Donna e MACLEAN, Gerald. (eds.)
    The Spivak Reader. New York, Routledge, 1996.
  • 3
    ID., IB.
  • 4
    MOORE-GILBERT, B.
    Postcolonial Theory... Op. cit., p.76.
  • 5
    SPIVAK, Gayatri. Three Women's Texts and a Critique of Imperialism. In: GATES, Henry Louis. (ed.)
    "Race", Writing and Difference. Chicago, University of Chicago Press, 1986, pp.262-280.
  • 6
    Para um comentário de Mahasweta Devi sobre o texto, no qual explicita sua intenção ao escrevê-lo, mostrar o que foi feito com o mundo tribal da Índia, um mundo que foi destruído sem ter realizado o esforço de conhecê-lo, ver: The author in conversation. In: SPIVAK, G. C. (Trad. e introdução.)
    Imaginary Maps. Three Stories by Mahasweta Devi. New York, Routledge, 1995.
  • 7
    SPIVAK, G. The Post-Colonial Critique. In: HARASYM, Sara. (ed.)
    The Post-Colonial Critique, Interviews, Strategies, Dialogues, New York, Routledge, 1990.
  • 8
    Ver: Literatura, nota 16, traduzido nesta edição dos
    Cadernos Pagu.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Mar 2007
    • Data do Fascículo
      2002
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