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O debate do aborto: a votação do aborto legal no Rio Grande do Sul

The debate on abortion: the voting of legal abortion in Rio Grande do Sul

Resumos

Este artigo apresenta e discute os argumentos dos dois representantes - igrejas e movimento feminista - presentes no debate travado no parlamento gaúcho por ocasião da votação do projeto de lei do Deputado Marcos Rolim (PT) sobre o aborto legal. O texto é analisado a partir da perspectiva teórico-metodológica de Bourdieu, entendendo a religião como um sistema simbólico presente na estruturação dos habitus dos indivíduos. O debate é compreendido como uma disputa pelo monopólio da verdade. Neste conflito, duas formas distintas de pensar a questão do aborto, afirmam-se como representantes legítimas de uma visão de mundo, e nele, uma visão prevaleceu: a religiosa.

Aborto; Religião; Vida; Verdade


This article presents and discusses the two arguments - those of the church and the feminist movement - within the debate in the gaúcho State Assembly in the voting of Representative Marcos Rolim's bill on legal abortion. The conflict is analyzed from Bourdieu's theoretical-methodological perspective, understanding religion as a symbolic system present in the structuring of the individuals' habitus. The debate is understood as a dispute for the monopoly of truth. In this conflict, two different forms of conceiving abortion are affirmed as legitimate representatives of a worldview, and in it, a vision prevailed: the religious one.

Abortion; Feminism; Religion; Life; Truth


ARTIGOS

O debate do aborto:a votação do aborto legal no Rio Grande do Sul* * Este artigo é fruto da dissertação de mestrado em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – A votação do projeto de regulamentação do aborto legal na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul: o projeto de lei n° 148/97, Porto Alegre, 2000. Agradeço a Mercedes Schaefer Kalsing, Ângela Denise Schaefer Kalsing, Márcio Antônio Martins Santana, Alexandre Chiele e Luis Leonel Rodrigues pela leitura atenta, sugestões e críticas.

The debate on abortion: the voting of legal abortion in Rio Grande do Sul

Vera Simone Schaefer Kalsing

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

RESUMO

Este artigo apresenta e discute os argumentos dos dois representantes – igrejas e movimento feminista – presentes no debate travado no parlamento gaúcho por ocasião da votação do projeto de lei do Deputado Marcos Rolim (PT) sobre o aborto legal. O texto é analisado a partir da perspectiva teórico-metodológica de Bourdieu, entendendo a religião como um sistema simbólico presente na estruturação dos habitus dos indivíduos. O debate é compreendido como uma disputa pelo monopólio da verdade. Neste conflito, duas formas distintas de pensar a questão do aborto, afirmam-se como representantes legítimas de uma visão de mundo, e nele, uma visão prevaleceu: a religiosa.

Palavras-chave: Aborto, Religião, Vida, Verdade.

ABSTRACT

This article presents and discusses the two arguments – those of the church and the feminist movement – within the debate in the gaúcho State Assembly in the voting of Representative Marcos Rolim's bill on legal abortion. The conflict is analyzed from Bourdieu's theoretical-methodological perspective, understanding religion as a symbolic system present in the structuring of the individuals' habitus. The debate is understood as a dispute for the monopoly of truth. In this conflict, two different forms of conceiving abortion are affirmed as legitimate representatives of a worldview, and in it, a vision prevailed: the religious one.

Key-words: Abortion, Feminism, Religion, Life, Truth.

Introdução

Em dezembro de 1997, a Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul aprovou o Projeto de Lei n° 148/97, de autoria do então Deputado Marcos Rolim (Partido dos Trabalhadores-PT). O projeto dispõe sobre o atendimento nos hospitais da rede pública de saúde nos casos de aborto previstos no Código Penal brasileiro – gravidez resultante de estupro ou que represente risco de vida para a gestante – e, quando submetido à sanção do governador, foi vetado. A Assembléia Legislativa, em março de 1998, acatou o veto. Entre os 17 parlamentares que haviam votado favoravelmente ao projeto, 11 mudaram seu voto após o veto do governador.

Na sessão de apreciação do veto, estabeleceu-se um conflito entre duas formas distintas de perceber a questão do aborto: de um lado, a posição religiosa1 1 No caso estudado, destacou-se a atuação conjunta da Igreja Católica com o Movimento em Defesa da Vida, todavia, houve também atuação de igrejas evangélicas e presença em plenário de representantes da doutrina espírita e outras. Sendo assim, no debate no parlamento propriamente, a posição religiosa estava representada na voz dos parlamentares católicos e dos evangélicos (em sua maioria pastores). Para mais informações, ver KALSING, Vera Simone Schaefer. A votação do projeto de regulamentação do aborto legal na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul: o projeto de lei nº 148/97. Dissertação de Mestrado em Sociologia, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2000. Sobre a atuação do Movimento em Defesa da Vida no processo, ver KALSING, Vera Simone Schaefer. O Movimento em Defesa da Vida na Votação do Aborto Legal, artigo publicado na Internet – www.sociologos.org.br –, abril de 2002. e, de outro, a posição do movimento feminista.2 2 Posição representada, em alguma medida, pelo deputado Marcos Rolim e alguns parlamentares que apoiaram o projeto, destacando-se a deputada Jussara Cony (PC do B). A primeira considera esse ato um crime, pois acredita na existência da vida humana a partir da fecundação do óvulo, a segunda argumenta que o início da vida se dá a partir da formação do córtex cerebral e entende que o aborto deve ser tratado como um problema de saúde pública3 3 No Brasil, são realizados aproximadamente 1.400.000 abortos por ano. Sabe-se que, na sua grande maioria, são feitos de forma clandestina, colocando a vida das mulheres em risco, por isso, problemas associados ao processo abortivo constituem-se como a terceira causa da mortalidade materna. CENTRO FEMINISTA DE ESTUDOS E ASSESSORIA. Dossiê aborto. Brasília, 1998. e como uma questão de liberdade de escolha da mulher. Ambas afirmam-se como representantes legítimas de sua visão de mundo.

No debate estabelecido no parlamento gaúcho, naquele momento, a posição religiosa foi vitoriosa. Este artigo apresenta e discute os argumentos desses dois representantes e o enfrentamento entre eles, com o objetivo de elucidar a questão, trazendo elementos que, de certa forma, expliquem as razões do desfecho.

A disputa pela definição social legítima do aborto

Uma das discussões centrais a respeito do problema do aborto gira em torno da questão do início da vida humana, ou seja, indaga-se sobre qual seria o momento exato em que o embrião4 4 De acordo com a embriologia, o primeiro produto da fecundação é chamado de zigoto unicelular; durante a primeira semana de sua existência, incluindo sua implantação na parede uterina, a entidade não-nascida é chamada de conceptus; o termo embrião refere-se à entidade entre a segunda e a oitava semana; e feto é um termo reservado para a entidade a partir das oito semanas de gestação até seu nascimento. DWYER, Susan. Entendendo o Problema do Aborto. In: ROSENFIELD, Denis et alii. Filosofia Política. Vol. 2, Porto Alegre, Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1998, pp.124-150. pode ser considerado um ser humano. Neste debate, manifestam-se interlocutores com posições e pontos de vista explicitamente distintos. Representantes das igrejas Católica5 5 BARBIERI, Piero. Aborto: ponto de vista cristão. Petrópolis, Vozes, 1ª ed. 1997, (Coleção Mundo Novo). , Evangélica e de outras religiões, e alguns autores da ciência médica e da bioética6 6 VARGA, Andrew C. Problemas de Bioética. São Leopoldo, UNISINOS, 1990 (edição revisada). defendem a opinião de que a vida humana começa a partir da fecundação. Para estes, portanto, em qualquer fase da gestação, o aborto é considerado um assassinato. Outros representantes da ciência médica (embriologia experimental, teoria do córtex), filósofos bioeticistas7 7 MORI, Maurizio. A moralidade do aborto. Brasília, Editora UnB, 1ª ed. 1997 (Coleção saúde, cidadania e bioética). e representantes do movimento feminista8 8 BARSTED, Leila de Andrade Linhares. Legalização e criminalização do aborto no Brasil: 10 anos de luta feminista. Estudos Feministas, vol. 0, nº 0, 1999, pp.104-130; e Movimento Feminista e a descriminalização do aborto. Estudos Feministas, vol. 5, nº 2, 1997, pp.397-402; PIMENTEL, Silvia. A favor da mulher. Leis e políticas sobre o aborto: desafios e possibilidades. São Paulo, Conselho Estadual da Condição Feminina, 1991, pp.105-107; e A sacralidade da vida e o aborto: idéias (in)conciliáveis? Estudos Feministas, vol. 4, nº 2, 1996, pp.532-538; BARROSO, Carmen. Consulta popular é oportuna. Leis e políticas sobre o aborto: desafios e possibilidades. São Paulo, Conselho Estadual da Condição Feminina, 1991, pp.96-98; e O Aborto legal. Leis e políticas sobre o aborto: desafios e possibilidades, São Paulo, Conselho Estadual da Condição Feminina, 1991, pp.93-95; BARROSO, Carmem & CUNHA, Maria José Carneiro. O que é o aborto. São Paulo, Frente das Mulheres Feministas/Cortez, 1980; NUNES, Maria José F. Rosado. O tratamento do aborto pela Igreja Católica. Estudos Feministas, vol. 5, nº 2, 1997, pp.413-417; ROCHA, Maria Isabel Baltar da. A questão do aborto no Brasil: o debate no Congresso. Estudos Feministas, vol. 4, nº 2, 1996, pp.381-398; PRADO, Danda. O que é aborto. São Paulo, Abril Cultural/ Brasiliense, 1ª ed. 1985 (Coleção Primeiros Passos). têm dúvidas quanto ao exato momento a partir do qual se pode falar em vida humana. Entre estes, alguns defendem o argumento de que só pode haver vida a partir da formação do córtex cerebral, processo que só se anuncia ao término do terceiro mês de gestação, posição defendida pelo deputado Marcos Rolim. O movimento feminista tem como principal argumento o direito inalienável da mulher ao próprio corpo, sob a alegação de que o aborto constitui um problema de fórum íntimo e que deve ser lhe dado o direito de escolha quanto ao número e o momento de ter filhos. Cabe ao Estado oferecer o atendimento, ao menos nos casos de aborto permitidos pelo Código Penal brasileiro, evitando, assim, sua clandestinidade, o que acarreta um número muito grande de abortos feitos de forma insegura.9 9 Conforme Ardaillon, o aborto inseguro é definido como um procedimento para interromper uma gravidez indesejada, seja por pessoas sem a necessária capacitação, seja em ambientes que não apresentam as mínimas condições sanitárias ou ambos. ARDAILLON, Danielle. Cidadania de corpo inteiro: discursos sobre o aborto em número e gênero. São Paulo, Tese de Doutorado em Sociologia, Departamento de Sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, 1997, p.97.

A posição da Igreja Católica com relação ao aborto, dada sua importância na formação histórica ocidental, tem relevância para o tratamento do tema e suas implicações e repercussões. Essa problemática não permaneceu estática durante os séculos, tendo em vista que a posição oficial dessa instituição modificou-se de acordo com os diferentes entendimentos que se tinha do momento exato em que a alma se aloja no corpo, o que corresponderia ao início da vida humana. Desse modo, ora a Igreja baseava-se na teoria da animação imediata, ora na da animação mediata.10 10 Mais detalhes, ver KALSING, Vera Simone Schaefer. A votação do projeto de regulamentação do aborto legal... Op. cit. O debate permanece até os dias atuais, considerando que estudiosos da bioética, da filosofia, da ciência médica e, por outro lado, as diferentes religiões não possuem um consenso a respeito.

No que diz respeito à votação do projeto na Assembléia, constatou-se que o debate estabelecido foi o mesmo, ou seja, o deputado Marcos Rolim construiu sua argumentação principal contrapondo-se a uma posição moral e religiosa que, segundo ele, era o argumento de seu principal opositor, a Igreja Católica, que concebe o aborto como um crime, um pecado perante Deus, e acredita na existência da vida a partir da fecundação. Neste sentido, o parlamentar entendeu que não seria relevante, tampouco estratégico, discutir o aborto como um problema de saúde pública, apresentando dados de milhares de mulheres que morrem em conseqüência de abortos feitos de forma insegura e, sim, enfrentar o argumento filosófico da Igreja.

Por que eu acho que era fundamental que se fizesse o enfrentamento nesse nível [filosófico]? Porque o adversário naquele momento era a argumentação da Igreja Católica e a argumentação da Igreja Católica precisa ser respondida. Se a posição religiosa responde ao aborto dizendo assim: eu sou pela defesa da vida e o aborto é um crime, esse era o debate, tu não podes fingir que esse argumento não existe, eu acho que o movimento feminista nunca enfrentou esse argumento... Eu acho que foi decisivo fazer esse enfrentamento ao argumento de fundo da Igreja Católica, que é um argumento que pode ser contestado e para ser contestado, tem que ser contestado filosoficamente, tu não podes contestá-lo na área de política pública.11 11 Deputado Marcos Rolim em entrevista concedida à autora em setembro de 1999.

A partir do depoimento acima, são evidenciados princípios de dominação presentes na posição do deputado, no momento em que é explicitada sua opinião de que ele enfrentou e contestou filosoficamente o argumento da Igreja, enquanto o movimento feminista, quando deveria fazer, não o fez.

Ao visualizar a superfície de emergência desta problemática, identificamos os diferentes agentes presentes neste conflito: os movimentos sociais, organizados para exercer pressão com o objetivo de defender seus interesses (movimento feminista versus igrejas12 12 Igreja Católica, igrejas evangélicas e o Movimento em Defesa da Vida (MDV). ) e os agentes legítimos para atuar neste campo de disputas13 13 Ou seja, os especialistas da produção simbólica neste espaço político, neste caso, os deputados pertencentes ao grupo parlamentar católico e os somente católicos, os evangélicos, em sua maioria, pastores. Esse conceito foi apropriado de Bourdieu. Utilizou-se essa abordagem para analisar o papel das igrejas no caso estudado. As considerações do autor a respeito da religião e de seu papel são relevantes, considerando o tratamento que se concede às igrejas, principalmente, à Igreja Católica, e também para a compreensão de sua atuação neste processo, já que, no caso estudado, foi decisiva para a manutenção do veto influenciando a mudança de voto dos deputados. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa, Difel, 1ª ed. 1989 (Memória e sociedade); Economia das trocas simbólicas. São Paulo, Perspectiva, 3ª ed. 1992 (Coleção Estudos). : de um lado, o deputado Marcos Rolim (autor do projeto) e os deputados favoráveis e, de outro, os deputados contrários. Ficou evidente tratar-se de uma disputa pelo monopólio da verdade, a verdade do aborto. O que é o aborto? Qual é a verdade do aborto? O aborto deve ser tratado como crime ou como um direito da mulher? Ou ainda, quando de fato começa a vida humana?

...no fundo, a questão que está presente no projeto do Rolim, no projeto do João Motta14 14 Projeto aprovado no âmbito do município de Porto Alegre, em 1996. Mais detalhes ver KALSING, Vera S. S. A votação do projeto de regulamentação do aborto legal... Op. cit. e em muitos outros projetos que tramitam por aí, alguns até regularmente aprovados em certas Câmaras de Vereadores do país, é a questão de saber o seguinte: o feto é uma vida humana ou não? Aquela vida é humana ou não? Se eu digo que sim, e digo que sim, então eu vou defender esta vida como defendo toda outra vida humana (...) então, no fundo, era isso que se discutia.15 15 Percival Puggina foi um dos principais articuladores da intermediação entre os membros da Igreja Católica e do MDV e o governador, tendo em vista que o mesmo é católico e atua em conjunto com o MDV, e era também o contato deste grupo com a Assembléia Legislativa, fornecendo as informações a respeito do quadro da votação (diz respeito ao quadro dos parlamentares que ainda estavam indecisos e dos que haviam manifestado a decisão de mudar o voto). Puggina, na época, não desempenhava nenhuma função política no Legislativo, mas representava, e representa, um importante nome dentro do PPB gaúcho e também da Igreja Católica.

Trata-se de explicitar os interesses em jogo16 16 Um dos principais interesses em jogo era, com certeza, a reeleição, visto que se tratava de momento pré-eleitoral. Os deputados que defendiam e representavam os interesses das igrejas (Católica e evangélicas) poderiam estar preocupados em preservar o apoio político das camadas mais conservadoras, por isso mudaram sua posição inicial favorável ao projeto. , do mesmo modo que a correlação de forças existentes neste conflito, buscando investigar como os agentes engajados nesse jogo constróem a problemática do aborto como uma problemática significativa, colocando-se na qualidade de representantes legítimos em defesa de uma visão de mundo reconhecida como verdadeira, por meio de um trabalho de representação17 17 Conceito apropriado de Bourdieu. Entende-se aqui o trabalho realizado, tanto por parte das igrejas e movimentos ligados a elas, como pelas lideranças do movimento feminista. Estas também realizam um trabalho de representação que, neste caso, foi bem menos expressivo que o da Igreja. É um trabalho que se efetiva em forma de palestras, missas, cultos, catequese, divulgação das idéias das igrejas via jornal, televisão; os parlamentares em seus discursos e as feministas também realizam esse trabalho em forma de palestras, mobilizações, manifestações e eventos promovidos pelas diversas entidades feministas. BOURDIEU, P. O poder simbólico. Op. cit. que os mesmos realizam permanentemente. Ou ainda, trata-se de investigar de que maneira os representantes no campo político constróem sua intervenção na realidade, como disputam a verdade.

Na figura abaixo, é possível visualizar o espaço onde foi travado o conflito, os agentes envolvidos e a correlação de forças presentes, ou seja, fez-se uma reconstituição do cenário da luta política. Constatou-se que as forças atuantes no sentido de impor a visão de mundo religiosa foram mais eficazes, pela pressão exercida sobre os deputados do grupo parlamentar católico, da bancada evangélica e sobre os demais. As forças favoráveis à destituição do veto – o movimento feminista – não tiveram muita expressão, inclusive a articulação entre as representantes e o autor do projeto foi quase inexistente.

A Igreja Católica é a expressão (agente) legitimada para defender uma visão de mundo reconhecida que, em embates políticos deste tipo, mostra sua força institucional e seu poder de convencimento, ou seja, a sua capacidade de lobby. A Igreja se vale de situações sem conotação religiosa, como um processo político, uma situação muito concreta e vinculada a interesses materiais dos agentes envolvidos no jogo político – a reeleição dos deputados e do governador – para impor sua visão de mundo.

Para Rolim, "normalmente, as religiões professam a idéia da existência de uma 'verdade revelada'. Haveria, então, noções verdadeiras por definição e que só são verdadeiras porque nos foram oferecidas pela palavra de Deus." E a hierarquia da Igreja Católica, segundo ele, afirma-se perante seus fiéis como representante dessa verdade. 18 18 ROLIM, Marcos. Pronunciamentos. Diário da Assembléia, ano 56, nº 7157, 25 de março de 1998, p.71.

Porém, ele afirma não compartilhar desta premissa, argumentando que a verdade jamais nos pode ser oferecida ou encontrada em algum lugar,

porque o verdadeiro é aquilo que nos parece verdadeiro, aquilo que aceitamos como expressão da verdade. Por isso mesmo, toda noção tida como verdadeira é histórica no sentido de que apareceu no tempo e no tempo se transformará. O fato incontestável é que aquelas 'verdades reveladas' necessitam, sempre, de uma interpretação por parte dos sujeitos que as lêem. Pela interpretação é que o sentido é construído pela elementar razão de que, entre o texto e o leitor, medeia a cultura.19 19 ID., IB.

No caso da Igreja Católica, as tarefas de interpretação são sempre monopolizadas pelo Vaticano: por teólogos especialmente habilitados, autorizados e legitimados a sacramentar o que pode ser aceito como verdadeiro. Para ela, só existe um critério da verdade a ser aceito: o critério teológico ou da fé. Baseada na idéia de que o homem é um ser irrepetível, criado à imagem e semelhança de Deus, a Igreja Católica se afirma radicalmente contrária a qualquer tentativa de interrupção de uma gravidez, considerando que com isso se estará impedindo o nascimento de uma pessoa.

Naturalmente, nós nos baseamos num fundamento religioso, não biológico, nem sócio-econômico, e sim religioso, dado que, sendo o homem criatura de Deus, criado à sua imagem e semelhança, um ser irrepetível, não há duas pessoas absolutamente idênticas como pretende hoje a clonagem, nós temos que ter o maior respeito à vida. Partindo do valor da vida, a vida é o primeiro valor, não precisa ser Igreja hoje, nem aderir à fé cristã para aceitar esse princípio como primeiro valor.20 20 Dom Antônio Cheuiche.

Tendo a vida como primeiro valor e baseando-se na Constituição Federal que, em seu artigo 5º, garante a inviolabilidade deste direito fundamental, a Igreja Católica e as religiões entendem o aborto como um crime.

Para nós, cristãos, o aborto é um crime. É o crime mais hediondo, porque é o crime contra o mais indefeso dos seres, qualquer outra pessoa poderia se defender, mas aquele que ainda não nasceu, que está no ventre materno, ainda totalmente dependente do corpo da mãe, então, nós oprimimos o mais indefeso. Esse é o princípio no qual se funda a Igreja para defender o valor da vida.21 21 ID., IB.

Para nós, a vida é um direito fundamental, se este é perdido, todos vêm abaixo. Qual é o alicerce de todos os direitos humanos se não o direito à vida? [...] para nós cristãos, o direito à vida é um direito que emana da natureza humana e só Deus pode tolhê-lo. Deus que é soberano e senhor nos chama, nos convoca à vida, só ele é árbitro da vida e da morte. Assim como somos contrários à pena de morte, consideramos o aborto uma pena de morte sobre alguém que não existe ainda e que tem direito a existir. Nós somos concepcionistas, isto é, admitimos que a partir do óvulo fecundado existe um ser humano original, uma vida que é sagrada, a partir da concepção. Não somos só, como defende o direito civil, natalistas, só a partir do nascimento que existe uma pessoa humana, para nós, a pessoa humana já existe desde a concepção, por conseguinte a malícia do aborto, o aborto está tolhendo esse direito a uma pessoa.22 22 Pe. Roberto Paz (grifos meus).

Percebe-se uma contradição fundamental no depoimento do padre, que diz respeito ao cerne do argumento da Igreja Católica com relação ao aborto. No mesmo momento em que ele afirma que a Igreja é contrária ao aborto porque este representa um assassinato, "uma pena de morte sobre alguém que não existe ainda", mais adiante, ele afirma que "a partir do óvulo fecundado, existe um ser humano original" e, para a Igreja, "a pessoa humana já existe desde a concepção". O que é existir? Primeiramente ele diz que não existe ainda e depois que existe antes do nascimento? O próprio representante religioso não se dá conta da contradição presente em seu discurso. Pode ter sido apenas uma desatenção, no entanto, entende-se que as posições devem ser bem sustentadas e os argumentos construídos com muito cuidado, principalmente, em se tratando do principal argumento da Igreja Católica contra o aborto: a existência da vida humana desde a fecundação.

Para as feministas e os representantes simpatizantes da causa das mulheres, o conceito de vida divide a humanidade porque é uma questão polêmica, sendo assim, não se pode criar uma legislação que imponha para a sociedade uma única concepção em relação a esse conceito.23 23 GENOÍNO, José. Aspectos políticos sobre a questão do aborto. Quando a paciente é mulher. Brasília, Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, 1989, pp.63-64.

A Igreja Católica atuou historicamente, de forma muito intensa, na tentativa de impedir a implementação de políticas de planejamento familiar ou de legislações menos punitivas com relação ao aborto, promovendo mobilizações e manifestações quando se trata de aprovar projetos que versam sobre a matéria.

A Igreja atuou sempre de uma forma moral (...) A Igreja nunca teve cárcere para conter as tendências abortistas, a Igreja não teve poder, portanto, ela teve autoridade, qual autoridade? Autoridade moral. Autoridade moral, por quê? Porque o aborto é um crime. E o crime é um pecado. O pecado é o mal. O mal feito contra o outro. (...) O mal que se comete diante de Deus se chama pecado. O crime que eu cometi não é um crime puramente social ou econômico, é um crime religioso também, aí onde houve maior força da Igreja para conter as tendências abortistas das culturas e, principalmente, no Império Romano.24 24 Dom Antônio Cheuiche.

A principal argumentação dos grupos contrários ao aborto, mesmo em caso de estupro, é a de que não se deve decretar a pena de morte ao nascituro, já que o mesmo não se faz com o estuprador. E, ainda, se a mulher estuprada não tiver condições de criar o filho, ela deve entregá-lo à adoção.

Os dois casos caracterizados no Código Penal não são admitidos pela religião Católica. Haja vista que são também superáveis, a assistência médica pode tranqüilamente resolvê-los. Em caso de estupro, evidentemente, não. Não tem legitimidade, porque se trata de aplicar uma pena a um inocente, que é a pena de aborto a quem não tem nada a ver com o estupro, se o estuprador não é morto, como vai se matar uma criança? Também uma falta de logicidade, um absurdo legal admitir que uma mãe possa abortar uma criança gerada por estupro, porque está se penalizando não o estuprador, está se penalizando uma criatura inocente que passa a ser o inimigo, mas foi gerado sem nenhuma culpa da sua parte.25 25 Pe. Roberto Paz.

Na opinião do deputado Marcos Rolim, ser contra o aborto em caso de estupro é obrigar as mulheres vitimadas pela violência sexual a levarem até o fim uma gravidez resultante de um ato criminoso. É submeter as mulheres, contra a sua vontade, à maternidade, além de condenar, antes mesmo do nascimento, a criança à orfandade, uma criança que já não terá pai e que não encontrará em sua mãe o acolhimento providenciado pelo desejo à maternidade. "Concretamente, defendem um segundo estupro, violando, desta vez, seus direitos reprodutivos".26 26 ROLIM, M. Pronunciamentos, 1998, Op.cit. Obrigar uma mulher a gerar um filho não desejado, mesmo que não seja proveniente de um estupro é

reduzi-la à condição de um aparelho reprodutor, que funciona com uma dinâmica de máquina mesmo, de quem se tivesse subtraído todo e qualquer desejo, como de resto a própria condição de ser livre.27 27 Id. Pronunciamentos. Diário da Assembléia, Porto Alegre, ano 55, nº 7053, 4 de dezembro de 1997, p.31.

A questão da defesa da vida humana em qualquer estágio torna-se para os defensores da escolha (pro choice)28 28 Optou-se aqui pela divisão e classificação dos representantes do argumento contrário ao aborto como pro life e dos representantes do argumento favorável ao direito de escolha como pro choice, classificação utilizada por Sagan e pelos próprios representantes das duas posições. SAGAN, Carl. Aborto: é possível ser "pró-vida" e "pró-escolha"? In: SAGAN, C. Bilhões e Bilhões. Reflexões sobre vida e morte na virada do milênio. São Paulo, Companhia das Letras, 3ª reimpressão 1998, pp.180-196. um tanto quanto frágil no momento em que a Igreja posiciona-se contrária ao aborto em caso de risco de vida para a mãe, por exemplo. Neste caso, a Igreja afirma que o médico deve esforçar-se ao máximo para tentar salvar as duas vidas, caso isso não seja possível, ele deve salvar a do feto. Ou seja, consagra-se mais humanidade a uma vida em potencial do que a uma vida em ato.

Para Alves29 29 ALVES, Rubem. O Nervo Exposto. Folha de S.Paulo, 28-12-1997. , a Igreja Católica, em nome do princípio da preservação da vida, declara o aborto, em quaisquer circunstâncias, moralmente proibido, mesmo em situações em que a vida da mãe esteja em perigo. No entanto, segundo o autor, nem sempre a Igreja se manifestou de forma tão intransigente em defesa da vida como o faz na questão do aborto, lembrando que ela própria já patrocinou, na Inquisição, a eliminação física de pessoas consideradas hereges. Outro exemplo é o caso da violência criminosa e de guerra que se deve ao lucrativo negócio da fabricação e venda de armas. No entanto, nesse caso, em nome do princípio da preservação da vida, a Igreja não luta politicamente para pôr fim a esse negócio ou excomunga seus fabricantes e vendedores.

Desta forma, o autor questiona a oposição da Igreja ao aborto em nome do princípio da preservação da vida. Para ele, a sensibilidade moral da Igreja entra em ação, de forma preferencial, quando o sexo está em jogo, como no aborto, desnudando, deste modo, sua fragilidade diante de assuntos sexuais, "como se o sexo fosse o seu nervo exposto e lhe fosse insuportável qualquer permissividade nesta área".30 30 ID., IB., p.1. Estaria em jogo, então, não o princípio da preservação da vida, mas o da preservação da moral sexual da Igreja.

A Igreja Católica é contrária ao aborto em qualquer circunstância, posição que se mantém desde 1869. Também contra o uso de preservativos, pretende impor sua visão a todos os (as) fiéis e, como se não bastasse, ao conjunto da sociedade, com o intuito de atingir, ao mesmo tempo, dois terrenos: o da objetividade e o da subjetividade. Ao impedir a implementação de políticas de planejamento familiar ou de legislações menos punitivas com relação ao aborto, promovendo mobilizações e manifestações quando se trata de aprovar projetos que versam sobre a matéria, a Igreja atinge o terreno da objetividade. Nesse ponto, sua atuação se efetivou historicamente de forma muito intensa. O terreno da subjetividade é atingido no momento em que o pensamento religioso influencia condutas particulares. Isso se dá por meio da internalização destas idéias, como um habitus31 31 BOURDIEU, P. O poder simbólico. Op. cit.; e Economia das trocas simbólicas. Op.cit. , ou seja, uma estrutura estruturada e estruturante que molda as práticas dos indivíduos, levando-os a agir de determinada forma, um sistema de predisposições à incorporação dos valores do grupo. No caso da religião, regras morais normatizadoras orientam o comportamento das pessoas, constituindo-se como um conjunto de idéias presentes no imaginário social. Para realizar essa assimilação e interiorização de suas idéias, a Igreja fia-se no trabalho de representação realizado permanentemente por seus porta-vozes autorizados, clérigos e leigos.

Nunes, em seu estudo sobre o tratamento do aborto pela Igreja Católica, identifica-a como um dos opositores mais poderosos dos grupos feministas na luta desenvolvida em favor da legalização e/ou da descriminalização do aborto no Brasil.

De fato, a Igreja age como um importante grupo de pressão junto ao Estado. Utilizando-se do poder social de que é detentora, influi sobre os meios de comunicação de massa, atua com seu lobby junto aos parlamentares e, evidentemente, transmite aos seus fiéis e especialmente às suas fiéis, através de seus quadros especializados – homens e mulheres –, a doutrina oficial Católica sobre o assunto.32 32 NUNES, M. J. F. R. O tratamento do aborto pela Igreja Católica. Op. cit., p.413.

Segundo a autora, uma das estratégias da Igreja Católica para manter seu poder coercitivo junto à população feminina e seu poder de influência política junto ao Parlamento e à mídia é apresentar o discurso oficial como unívoco e uníssono na instituição.

Dada a repressão da Igreja a discursos "dissonantes" do oficial, os contra-discursos elaborados por agentes da instituição, em diversos níveis, não recebem tratamento midiático, não têm visibilidade pública.33 33 ID., IB., p.414.

O contra-discurso é elaborado a partir do lugar do não-poder na instituição. A inaudibilidade pública desse discurso impossibilita as mulheres, particularmente das camadas populares, de chegarem a uma elaboração moral alternativa, que lhes permita desconstruir a culpabilidade em relação a suas práticas abortivas. Por outro lado, também torna difícil o trabalho dos parlamentares, no sentido de elaborar contra-argumentos aos princípios éticos religiosos tradicionais.34 34 ID., IB., pp.414 e 415.

Conforme Ávila, historicamente, a Igreja Católica tem interferido nos assuntos ligados à reprodução e à sexualidade. Tendo como princípio a relação sexual para a procriação, esta instituição não admite comportamento diferente de sua norma, mesmo para pessoas que não comungam de sua doutrina e/ou não querem se submeter a sua lei como prerrogativa fundamental da liberdade de credo garantida constitucionalmente. Sua ação não se restringe apenas à pregação pastoral para manutenção da sua hegemonia no campo religioso, mas também tem como uma de suas metas influenciar ou mesmo definir o conteúdo das políticas sociais e da legislação. Isto faz com que o diálogo com os representantes do Poderes Executivo e Legislativo (na sua maioria) esteja sempre sob censura de ordem transcendental e teológica.35 35 ÁVILA, Maria Betânia. Modernidade e cidadania reprodutiva. Estudos Feministas, vol. 1, nº 2, 1993, pp.382-393.

No campo das leis, a descriminalização do aborto é ponto central da polêmica. A Igreja Católica parece perceber aí o lugar fundamental de expressão de seu poder sobre o conjunto da sociedade e não apenas sobre aqueles que comungam de suas idéias.36 36 ID., IB., p.390.

Para Bourdieu, a religião, enquanto um sistema simbólico, cumpre um papel de legitimador da ordem vigente, no momento em que se afirma como representante legítima de uma visão de mundo, muitas vezes dominante, e cumpre uma função social na medida em que os leigos não esperam dela apenas justificações de existir, mas de existir em uma posição social determinada.

O autor considera os sistemas simbólicos (neste caso, a religião) como um instrumento de poder, ou de legitimação do poder dos dominantes. Bourdieu privilegia as funções sociais cumpridas pelos sistemas simbólicos, as quais tendem, no limite, a se transformar em funções políticas, na medida em que a função lógica de ordenação do mundo subordina-se às funções socialmente diferenciadas de legitimação das diferenças.37 37 BOURDIEU, P. Economia das trocas simbólicas. Op. cit. A religião, enquanto um sistema simbólico, cumpriria, assim, uma função política de legitimação das diferenças. Neste caso, não somente as diferenças de classe, mas, sobretudo, as de sexo.

Para Bourdieu,

as categorias de percepção do mundo social são, no essencial, produto da incorporação das estruturas objetivas do espaço social. Em conseqüência, levam os agentes a tomarem o mundo social tal como ele é, a aceitarem-no como natural, mais do que se rebelarem contra ele, a oporem-lhe possíveis diferentes, e até mesmo antagonistas: o sentido da posição como sentido daquilo que se pode ou não se pode "permitir-se a si mesmo" implica uma aceitação tácita da posição, um sentido dos limites ("isso não é para nós") (...)38 38 ID. O poder simbólico. Op. cit., p.141.

Em se tratando de percepção de mundo da Igreja, pelo fato de ser uma instituição religiosa, ela sustenta dogmas, os quais, muitas vezes, não são questionados, por serem encarados como naturais, ou por serem princípios de fé. "A Igreja, como instituição religiosa, possui os seus dogmas, ela trabalha em cima disso, e dentro dessa linha, ela está correta, toda vida é um dom de Deus e tu não podes te opor a Deus".39 39 Jerson Garcia, voluntário do MDV. Desse modo, ela cumpre sua função social de legitimação do poder dos dominantes, na medida em que os que estão sujeitos ao seu poder, à imposição de seus dogmas, não questionam esse poder, aceitando-o como legítimo e não como arbitrário.

O estabelecimento da crença e do consenso a respeito da organização do mundo permitiu à Igreja exercer um papel de legitimadora e sancionadora da ordem vigente. Conforme Bourdieu,

a organização do mundo e a fixação de um consenso a seu respeito constituem uma função lógica necessária que permite à cultura dominante, numa dada formação social, cumprir sua função político-ideológica de legitimar e sancionar um determinado regime de dominação.40 40 BOURDIEU, P. Economia das trocas simbólicas. Op. cit., p.16.

A religião contribui para a imposição (dissimulada) dos princípios de estruturação da percepção e do pensamento do mundo e, em particular, do mundo social, na medida em que impõe um sistema de representações cuja estrutura objetivamente fundada em um princípio de divisão política apresenta-se como a estrutura natural-sobrenatural do cosmos.41 41 ID., IB., p.34.

Para realizar a imposição de suas idéias e a imposição do consenso a respeito da organização do mundo social, a Igreja, muitas vezes, incumbe seus representantes no parlamento, já que este é o lugar, por excelência, das decisões políticas. Para Bourdieu42 42 BOURDIEU, P. O poder simbólico. Op. cit. , os representantes legítimos dos sistemas simbólicos defendem uma visão de mundo de acordo com seus interesses, de acordo com o capital que lhes é outorgado, isto é, o reconhecimento do grupo que eles representam.

As diferentes classes e frações de classes estão envolvidas numa luta propriamente simbólica para impor a definição do mundo social mais conforme aos seus interesses, e impor o campo das tomadas de posições ideológicas reproduzindo em forma transfigurada o campo das posições sociais. Elas podem conduzir esta luta, quer diretamente nos conflitos simbólicos da vida cotidiana43 43 Neste caso, padres, pastores das igrejas evangélicas, voluntários do Movimento em Defesa da Vida e outros movimentos ligados às igrejas, assim como os diversos movimentos sociais e, presente neste conflito, especificamente, o movimento feminista. , quer por procuração, por meio da luta travada pelos especialistas da produção simbólica44 44 Deputados, pertencentes ou não, ao grupo parlamentar católico e evangélicos (pastores ou não). , na qual está em jogo o monopólio da violência simbólica legítima, quer dizer, do poder de impor, e mesmo de inculcar, instrumentos de conhecimento e de expressão arbitrários, embora ignorados como tais, da realidade social.45 45 BOURDIEU, P. O poder simbólico. Op. cit., pp.11-12.

Na luta pela imposição de suas idéias, a Igreja torna-se, muitas vezes, detentora de um poder simbólico, sobretudo quando consegue fazer valer seu modo de pensar e impor sua visão de mundo a toda sociedade.

A Igreja exerceria um poder simbólico sobre a prática dos indivíduos que vivem em sociedade, influenciando-os em suas decisões e tomadas de posição. Essa influência, evidentemente, não se efetiva diretamente. Segundo Bourdieu, o poder simbólico é uma espécie de poder de construção do mundo e os sistemas simbólicos consistem em formas de ver o mundo, em um conjunto de idéias a respeito da organização do mundo social. Neste sentido, através da imposição da visão de mundo da Igreja, da internalização dos valores religiosos, os indivíduos agem de determinada forma, como um habitus, "sistema de disposições inconscientes que constitui o produto da interiorização das estruturas objetivas".46 46 ID. Economia das trocas simbólicas. Op. cit., p.41. Lembrando que, para Bourdieu,

o poder simbólico não reside nos "sistemas simbólicos" em forma de uma illocutionary force, mas se define numa relação determinada – e por meio desta – entre os que exercem o poder e os que lhe estão sujeitos, quer dizer, na própria estrutura do campo em que se produz e se reproduz a crença.47 47 ID. O poder simbólico. Op. cit., p.14 (grifos no original). [ainda] é enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento que os "sistemas simbólicos" cumprem a sua posição [função] política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica) dando o reforço de sua própria força às relações de força que as fundamentam e contribuindo, assim, segundo a expressão de Weber, para a "domesticação dos dominados".48 48 ID., IB., p.11.

Deste modo, tanto a religião, enquanto um sistema simbólico, representada institucionalmente pela Igreja, quanto os movimentos sociais e os representantes políticos seriam detentores de um poder simbólico definido na luta política pela imposição de sua visão do mundo, uns no sentido de confirmá-la e outros no sentido de transformá-la. Assim, o poder simbólico é compreendido como

o poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo, portanto o mundo.49 49 ID., IB., p.14.

Conforme Bourdieu, para compreender uma tomada de posição política, é importante conhecer as pressões (demandas) da base e o universo das tomadas de posição propostas em concorrência no interior do campo. Uma tomada de posição é um ato que só ganha sentido relacionalmente. É preciso ter conhecimento dos grupos cujos agentes políticos presentes neste jogo representam, para então conhecer os interesses que estão em jogo.

Importa conhecer não somente a representação que os agentes têm do mundo social, mas também sua contribuição para a construção da visão desse mundo e, assim, para sua própria construção, por meio do trabalho de representação que continuamente realizam na tentativa de impor sua visão do mundo, ou de sua identidade social.50 50 ID., IB.

Ainda segundo Bourdieu, a força das idéias que o porta-voz propõe é medida não pelo seu valor de verdade (mesmo que elas devam uma parte de sua força a sua capacidade para convencer que ele detém a verdade), como no terreno da ciência, mas sim pela força de mobilização que elas encerram, quer dizer, pela força do grupo que as reconhece, nem que seja pelo silêncio.

No Brasil, a importância política da Igreja Católica tem colocado a questão do aborto no âmbito das normas de conduta intocáveis devido a valores cristãos que formulariam tais regras. O movimento feminista constitui-se como o ator social que tem historicamente se contraposto à instituição religiosa, no sentido de reivindicar a laicização do Estado e a garantia de liberdade de escolha da mulher para realizar um aborto quando assim o desejar e/ou necessitar. Este, juntamente com lideranças partidárias, vem disputando publicamente a normatização de uma lei do Código Penal, defendendo o direito da mulher dispor de seu próprio corpo e de ter condições adequadas para a realização do aborto, principalmente a mulher pobre. O Estado deve ser laico, não permitindo que valores morais e religiosos particulares se sobreponham como regras de conduta dentro de uma sociedade. Para que esta seja verdadeiramente democrática, não se pode obrigar uma mulher a gerar um filho proveniente de um ato de violência, seria como condená-la à perpetuação de seu trauma e interferir no seu direito à liberdade de escolha, um dos direitos fundamentais do ser humano.

O movimento feminista entende a questão do aborto, sobretudo, como um problema de controle sobre o corpo da mulher, a reprodução e a sexualidade. Também para Sagan, "as proibições legislativas sobre o aborto despertam a suspeita de que sua real intenção é controlar a independência e a sexualidade das mulheres".51 51 SAGAN, C. Aborto: é possível ser "pró-vida" e "pró-escolha"? Op. cit., p.183.

Este movimento tem lutado para exterminar as formas de discriminação contra as mulheres, produto das relações de gênero, muitas vezes, constituídas e evidenciadas como relações de poder que ainda se sustentam na vida contemporânea. Se existe essa sustentação, é porque tais relações são vistas como naturais, estão incorporadas num processo de naturalização social, são calcadas na tradição, reproduzidas e perpetuadas historicamente.

A não regulamentação do atendimento nos casos previstos na legislação brasileira pode ser compreendida como uma forma de preservação da ordem vigente, para a qual a Igreja contribuiria. Ao tentar impor sua visão contrária ao aborto, através da luta contra sua legalização e/ou descriminalização no Brasil, a Igreja contribui para a legitimação das desigualdades (lê-se as sexuais) que estão calcadas nas diferenças anatômicas, ou, ainda, para a preservação do status quo.

Para Ávila, a incorporação de novos códigos sociais exige uma desestruturação da ordem simbólica patriarcal que rege, desde sempre, os princípios do Estado no Brasil. Tradicionalmente instrumentalizado como agente controlador do corpo das mulheres, a perspectiva feminista da autonomia vem confrontar os vários setores que se interessam52 52 Entre eles e, sobretudo, a Igreja Católica. , por razões diferenciadas, pela manutenção desta ordem.53 53 ÁVILA, M. B. Modernidade e cidadania reprodutiva. Op. cit., p.387.

A relação entre as idéias divergentes se estabelece de forma conflituosa. Para se impor como instituição representante legítima de uma visão de mundo verdadeira, a Igreja Católica necessita realizar um trabalho permanente, seja de forma direta, através de seus porta-vozes autorizados (clérigos), seja através de seus representantes no parlamento54 54 Também porta-vozes autorizados. e em outras esferas. Outros movimentos religiosos, que se afirmam como defensores da vida desde a fecundação, também contribuem significativamente para a imposição da visão de mundo da Igreja, neste caso, os representantes do Movimento em Defesa da Vida.55 55 Os grupos Pró Vida têm atuação de destaque em vários países, principalmente, na América Latina e nos Estados Unidos.

Estas considerações são relevantes, já que o papel (ou atuação) das igrejas, principalmente a Católica, influenciando a ação dos deputados, foi decisivo para a manutenção do veto. Considerando que o poder simbólico é o resultado (efeito) indireto da correlação de forças, no caso estudado, esse poder privilegiou a visão de mundo da Igreja, ela foi a vencedora, no momento em que definiu a forma legítima de tratar a questão do aborto, determinando que o Estado não deve oferecer um serviço de atendimento nos casos de aborto legal. Para as feministas, o corpo da argumentação do autor do projeto pode ter sido um dos elementos que influenciaram esse desfecho.

O debate na Assembléia

No entender de algumas representantes do movimento feminista, a discussão travada no campo filosófico pode ter sido uma das causas que levou à manutenção do veto na Assembléia, tendo em vista que na esfera municipal, quando da aprovação do projeto do vereador João Motta, a discussão foi estabelecida em outros termos.

Eu acompanhei o debate feito lá na Assembléia Legislativa e observei que foi um debate feito no plano filosófico, religioso, não entrou na discussão sobre as perdas das vidas das mulheres, saúde pública e tal... enquanto que o Motta tinha um programa muito concreto, trabalhava com as instâncias de direitos reprodutivos como um direito tanto a ter filhos como a não ter filhos, dentro de uma perspectiva de planejamento da prole e tal, e colocava bem fortemente a visão da importância da saúde pública nisso. (...) o debate do Motta, eu acho que foi um debate feito com muita parcimônia, com muito critério, com muita propriedade em relação ao tema de saúde pública.

...e o Motta sempre tratou disso como representante dos interesses das mulheres, ele não tratou disso como a sua visão filosófica, independente da realidade e eu acho que o Rolim encaminhou muito nesse sentido, "é uma visão filosófica que eu tenho" independente da realidade, de forças da realidade, de articulação das mulheres para garantir esse direito e tal. Então, pra mim, foi isso que derrotou o seu projeto, grosso modo.56 56 Márcia Camargo, na época, coordenadora do programa e técnica da casa de apoio Viva Maria de Porto Alegre, que presta atendimento a vítimas de violência sexual e doméstica.

O conjunto da argumentação do deputado Rolim não contempla a discussão e a defesa dos direitos reprodutivos. O autor se atem à argumentação a respeito do início da vida humana, à explicação científica de quando se inicia o processo de formação do córtex cerebral, que, segundo ele, é o momento a partir do qual se pode falar em existência de vida, e ao argumento de defesa da qualidade de vida.

As feministas afirmaram que a construção da argumentação filosófica, sem o relevo e a devida importância no que tange aos dados de milhares de mulheres que morrem em conseqüência de abortos feitos de forma insegura, foi problemática e comprometedora, levando o "outro lado" a utilizar-se dessa argumentação, beneficiando-se dela. Os próprios integrantes do MDV afirmam ter utilizado as declarações de Rolim, presentes no conjunto da sua argumentação, ao afirmar que "um amontoado de células não é uma pessoa"57 57 Estas ponderações estão presentes num dos pronunciamentos feitos pelo parlamentar na sessão de votação da derrubada do veto, em 24 de março de 1998. O voluntário do MDV, Jerson Garcia, informou que parte das ponderações do deputado foi reproduzida por esse grupo em panfletos distribuídos para a comunidade no dia da votação. , e que isso auxiliou na mobilização dos grupos religiosos como forma de revoltar a opinião pública. Alguns parlamentares, contrários ao projeto, também se utilizaram do discurso do deputado para defender seu argumento. O recurso ao argumento filosófico pode ter fragilizado a defesa do deputado e a própria discussão em si.

Na opinião das feministas, a falta de articulação do deputado com as lideranças fez com que o movimento não tivesse tempo de pautar a discussão na imprensa, dando margem para que os setores mais conservadores da sociedade, como igrejas e movimentos ligados a elas, o fizessem.

O projeto foi à votação sem aviso e o movimento feminista foi pego de surpresa, como aconteceu isso, não foi articulada a apresentação desse projeto, não foi debatido anteriormente, no sentido de que o movimento feminista conduzisse a discussão, acabou acontecendo que os setores mais atrasados, mais fanáticos, mais conservadores, conduziram a discussão. Nós vimos o movimento de mulheres e outros movimentos da Igreja, movimentos, na nossa opinião, muito conservadores, conduzindo a discussão naquele dia lá na Assembléia, fazendo orações, fazendo rezas, fazendo vigílias...58 58 Cora Chiapetta, na época das votações do projeto, assessora legislativa da Deputada Jussara Cony (PC do B) e, na época da entrevista, dirigente da União Brasileira de Mulheres, seção RS.

Segundo Cora, interessa ao movimento de mulheres discutir projetos que dizem respeito ao problema do aborto, por se tratar de uma questão delicada, visto que envolve conceitos morais, éticos e religiosos, conceitos de livre arbítrio das mulheres. Considerando que os debates são sempre muitos acalorados e fanatizados por parte de alguns setores presentes (setores conservadores, contrários ao aborto), era muito importante que o projeto fosse bem debatido, que tivesse havido articulação entre o movimento e o deputado, autor da matéria, a estratégia de sua colocação à votação fosse bem debatida, para evitar o que acabou acontecendo, a manutenção do veto na Assembléia.

Para Cora, o debate foi mal conduzido. A discussão deveria se dar no sentido de que se trata de um problema de saúde pública e não de um problema filosófico.

Não sei porque cargas d'água o deputado resolveu simplesmente botar em votação, aí nós demos margem pra que esses setores mais atrasados, mais conservadores, tomassem para si a pauta da discussão e conduzissem todo o debate e aí, é óbvio, esses setores são setores que têm influência, porque são setores que lidam muito com o imaginário, com os conceitos, com a formação [moral] das pessoas, são conceitos religiosos, as pessoas no Brasil, a gente não pode esquecer que são pessoas que têm conceitos religiosos muito fortes, muito arraigados e esses setores sabem fazer pressão.59 59 ID.

E isso foi muito ruim e daí a gente não conseguiu mobilizar as mulheres e eu te digo o seguinte: aquela votação de derrubada do veto na Assembléia, com centenas de carolas lá xingando a gente de assassinas, de bruxas e aquele idiota, o Eliseu Santos60 60 O deputado Eliseu Santos não é pastor evangélico, mas destacou-se pela sua atuação no processo, tanto por meio de visitas aos gabinetes, como pelos pronunciamentos na sessão de votação da derrubada do veto, fazendo uso, inclusive, da Bíblia. , a nos exorcizar de cima daquela tribuna, como se fosse um púlpito, como se ele fosse um padre exorcista, deu um quadro claro do quanto aquela Assembléia estava despreparada para esse debate político, do quanto ela estava distante do movimento das mulheres, do quanto ela não conseguiu sensibilizar as mulheres, inclusive para a sua própria causa, e o quanto as mulheres também naquele momento estavam despreparadas para o debate. Então, eu acho que foi uma derrota fruto de uma conjunção de fatores, que dificilmente daria noutra coisa. Nós fomos para aquela Assembléia, embora a gente tivesse uma previsão, feita por alguns deputados da oposição de que a gente poderia ganhar, eu, sinceramente, não acreditava que a gente poderia ganhar.61 61 Télia Negrão, presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM) na época da votação do projeto.

O debate na Assembléia polarizou-se entre os defensores do projeto e os que eram contra. Os primeiros argumentavam que o aborto deveria ser discutido e tratado como um problema de saúde pública que afeta principalmente as mulheres pobres, apresentando dados de mortes em virtude de abortos mal feitos. Também argumentavam em favor da liberdade da mulher para optar pelo aborto em casos de estupro ou risco de vida. Os contrários ao projeto se declaravam como os "defensores da vida", argumentando em seu favor desde a fecundação, tendo em vista que a vida é um dom divino e só Deus pode tolhê-lo.

Os defensores do projeto vêem a inexistência de regulamentação do aborto legal como um mecanismo de restrição do direito da mulher. Seus opositores consideram que a aprovação do projeto de lei significaria a manipulação do direito à vida do embrião.

O tema do aborto dentro do movimento feminista62 62 No caso, refere-se ao movimento feminista do Rio Grande do Sul.

Mesmo dentro do movimento feminista, o aborto ainda permanece como um tema tabu. Não há discussão no intuito de propiciar maior reflexão e compreensão do problema e maior amadurecimento e conscientização das mulheres no que tange ao seu direito de escolha. Não há também entendimento de que o aborto é uma questão de controle sobre o corpo e a reprodução. Apenas as lideranças possuem uma noção mais amadurecida a respeito dessas questões, assim como da legalização do aborto.

Segundo Télia Negrão, o movimento feminista não tem conseguido alcançar um consenso de opiniões no que se refere ao tema do aborto. Isso se deve à falta de discussões e de iniciativas na busca da mudança e da construção de uma opinião em torno da despenalização do aborto. A representante faz uma crítica e uma autocrítica, argumentando que há uma omissão muito grande por parte do movimento.

Eu acho que se discute muito pouco a despenalização e a legalização do aborto. Eu defendo a legalização. Despenalização é caminho. Porque se você fizer uma discussão lá na base social mesmo, você vai ver a massa de mulheres que aprova o aborto e faz o aborto. Então, tem uma barreira cultural muito séria nesse debate.63 63 Télia Negrão.

Trata-se de um fator que sinaliza uma dificuldade para a mobilização dos grupos feministas em ocasiões de votação de projetos de regulamentação do aborto legal. Se não se tem consenso de opiniões no que tange a esse problema, não há como conseguir mobilizar as mulheres, porque elas não estarão convencidas de lutar por essa causa.

O debate sobre o aborto mexe com concepções filosóficas, religiosas, pessoais, por isso as pessoas têm dificuldade de debater. E tem mais uma questão, eu acho que em nome da chamada unidade do movimento64 64 Segundo Télia, o movimento feminista atualmente traz uma característica muito questionada por parte das feministas francesas – a questão do "consenso". "Nós temos trabalhado sempre em busca do consenso, embora haja o debate no campo feminista, busca se trabalhar com o consenso. Por exemplo, no Fórum Municipal da Mulher eu me lembro de pouquíssimas votações. Não se votam as coisas. Quando nós não temos consenso, nós procuramos algum ponto de unidade. Então, até onde dá para ir? 'Dá para ir até aqui, daqui para frente não dá para avançar porque não se tem consenso'. Essa é uma característica do movimento feminista mundial. É a busca do consenso. As francesas e as espanholas fazem críticas a essa permanente tentativa do consenso das mulheres porque isso, em determinados momentos, faz com que o movimento não avance". , da permanente tentativa do consenso das mulheres, em determinados momentos, faz com que o movimento não avance. Por outro lado, como nós estamos mexendo com questões culturais profundas, se não for pelo consenso, é muito difícil você conseguir o efetivo engajamento das mulheres. Nós podemos aprovar no Fórum municipal de mulheres por consenso ou por votação que nós vamos lutar pela despenalização do aborto, mas você pode ter certeza de que só vão se engajar nessa luta as pessoas que estiverem convencidas disso.65 65 Télia Negrão.

Como no caso do aborto não existe esse consenso por falta de discussão, de um aprofundamento teórico e prático, acaba havendo uma dificuldade muito grande de engajamento das mulheres nessa luta. Por isso também, a sustentação do argumento das feministas no momento do debate ficou enfraquecida.

Para Ardaillon,

Sociedades diferentes politizam um tema espinhoso de maneira e em momentos diferentes, justamente porque há, em cada uma delas, uma multiplicidade de discursos organizados sobre o tema e, portanto, uma multiplicação de saberes e poderes que dificultam as possibilidades de consenso.66 66 ARDAILLON, D. Cidadania de corpo inteiro... Op. cit., p.16.

Além disso, na opinião de Télia, é preciso ter pessoas de grande expressão política empunhando essas bandeiras. É preciso ter mais parlamentares comprometidos com a causa das mulheres.

Eu acho que é uma luta muito frágil ainda, extremamente frágil. Acho que a gente não pode ter a ilusão de que as bandeiras de mudanças de comportamento possam se afirmar se a gente não tiver pessoas de grande expressão política empunhando essas bandeiras. E eu acho que a bandeira do aborto é uma delas. É uma bandeira que passa pela compreensão do caráter do estupro, do caráter do assédio sexual, do caráter da violência doméstica contra as mulheres, que muitas vezes acaba numa gestação indesejada e num aborto, ou seja, no caráter profundamente desumano de violação dos direitos humanos mais essenciais das mulheres e que o aborto se constitui num direito das mulheres.67 67 Télia Negrão.

Para a presidente do COMDIM, as dificuldades em relação ao avanço no debate sobre o aborto estão situadas, principalmente, nas concepções religiosas que existem no interior do movimento feminista. Entre as mulheres militantes e ativistas, encontram-se muitas religiosas, que não somente professam sua fé em Deus, mas, de fato, têm uma prática religiosa. São pessoas que freqüentam centros espíritas, igrejas e conhecem as rezas, orações e ritos da Igreja Católica.

Às vezes, me espanta ver a quantidade de mulheres no movimento que segue os ritos. Eu acho que isso pesa dentro do movimento, isso, eu estou falando do movimento feminista, não estou nem falando das mulheres trabalhadoras que atuam em sindicatos, porque, nesse caso, é muito mais forte o apego a certos dogmas, porque a discussão do feminismo ainda não chegou... Eu acredito que seja muito mais forte o apego a certos dogmas religiosos que impedem um aprofundamento dessa discussão, que passa pela quebra de dogmas. Então, ainda que se veja, muitas vezes, um discurso em torno dos direitos sexuais e reprodutivos, dos direitos das mulheres a determinarem sobre o seu próprio corpo, pela sua livre sexualidade, falarem pela despenalização do aborto, até pela legalização do aborto, do ponto de vista de uma militância, é preciso mais do que isso. É preciso acreditar que esse é um direito efetivo das mulheres e é preciso atuar concretamente...68 68 ID, IB.

Atuar concretamente significaria, no seu entender, a realização de manifestações públicas para levar a posição e a argumentação do movimento feminista com relação ao problema do aborto. Enfrentar o debate público através dos meios de comunicação. Na opinião de Télia, a discussão nos meios de comunicação, muitas vezes, é feita perifericamente em torno do eixo do ser contra e do ser a favor do aborto.

Esse é o eixo mais equivocado pelo qual pode caminhar a discussão do aborto ou da despenalização do aborto, ou da legalização, é o do contra ou a favor, porque eu posso ser a favor e nunca precisar fazer na minha vida e eu posso ser contra e ter que fazer e me obrigar a fazer. Portanto, tem um equívoco fundamental nessa questão. A questão está no direito de acesso a uma possibilidade de escolher o momento, a hora, a oportunidade, se é bom ou é ruim pra mim a maternidade ou o aborto naquele momento. Mas eu acho que essa discussão, esse debate coloca muitas vezes em cheque convicções das pessoas, então a gente não vê projetos de lei de fato tramitando por aí, alguns poucos.69 69 ID, IB.

Considerações finais

Em virtude do que foi exposto, percebe-se a existência de um entrave muito grande em se tratando da regulamentação do aborto nas hipóteses previstas no Código Penal brasileiro. Trata-se de um debate espinhoso para a sociedade em geral, inclusive dentro do movimento feminista.

No conflito estabelecido na Assembléia Legislativa Estadual foram constatados alguns elementos que explicam a manutenção do veto, dando, assim, vitória à posição religiosa. São eles, de um lado, a falta de um aprofundamento da discussão sobre o aborto dentro do movimento feminista; a falta de unicidade e de consenso entre os discursos do deputado e das representantes do movimento feminista, apresentando discursos diferentes e sem homogeneidade; esses fatores estão associados à falta de comunicação e articulação entre o deputado e as entidades feministas para organizarem a mobilização. De outro, a homogeneidade e univocidade do discurso religioso e o poder institucional das igrejas, especialmente em se tratando da Igreja Católica, o que facilitou sua forte mobilização no dia da sessão da derrubada do veto.

Esta é a força diferencial entre esses dois atores. Um dos lados se assenta sobre uma forte estrutura e, ao mesmo tempo, possui uma inserção enorme na sociedade, o outro lado, o movimento feminista, não possui a mesma influência, pelo contrário, ainda é visto com preconceitos. Este, historicamente, tem conseguido se contrapor a essa força institucional na base de um movimento muito ativo. Não há como comparar o poder de mobilização, a força política, enfim, a capacidade de organização que a Igreja Católica tem com a inserção do movimento feminista na sociedade.

A religião é um sistema simbólico, não se pode dizer o mesmo do movimento feminista.70 70 Entendido como visão de mundo feminista ou consciência de gênero, "ser feminista é contestar o status, a condição e a situação da mulher na sociedade, é contestar as relações existentes entre os sexos" [Télia Negrão], "percebidas como relações de poder". ARDAILLON, D. Cidadania de corpo inteiro... Op. cit. As concepções religiosas estão presentes no imaginário social de forma profundamente enraizada no inconsciente e se refletem nas práticas cotidianas dos fiéis, e não só deles, mas dos indivíduos de modo geral. Fazem parte da cultura, de um arsenal de conceitos e valores morais e religiosos construídos historicamente na cultura ocidental cristã. A consciência de gênero, por sua vez, delonga para edificar-se no imaginário social, até mesmo no feminino, já que a maioria das mulheres não possui uma consciência de gênero, muito menos uma prática de gênero e acaba, muitas vezes, reproduzindo os valores da cultura dominante (machista) na própria educação (e principalmente nela) que dá aos seus filhos.71 71 Sobre a forma como as mulheres reproduzem os valores da cultura dominante, contribuindo assim para a sua própria dominação, ver BOURDIEU, P. Conferência do prêmio Goffman: A dominação masculina revisitada. In: LINS, Daniel. (org.) A dominação masculina revisitada. Campinas, Papirus, 1998, pp.11-27 e KALSING, Vera S. S. A mulher em Pelotas: uma análise sociológica. Monografia de Graduação em Ciências Sociais, Instituto de Sociologia e Política, Universidade Federal de Pelotas, 1995.

Em razão da magnitude do enraizamento do ideário religioso, este acaba por ser aceito como natural, na forma de um consenso a respeito da organização do mundo social.

Recebido para publicação em setembro de 2002.

  • 1 No caso estudado, destacou-se a atuaçăo conjunta da Igreja Católica com o Movimento em Defesa da Vida, todavia, houve também atuaçăo de igrejas evangélicas e presença em plenário de representantes da doutrina espírita e outras. Sendo assim, no debate no parlamento propriamente, a posiçăo religiosa estava representada na voz dos parlamentares católicos e dos evangélicos (em sua maioria pastores). Para mais informaçőes, ver KALSING, Vera Simone Schaefer. A votaçăo do projeto de regulamentaçăo do aborto legal na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul: o projeto de lei nş 148/97. Dissertaçăo de Mestrado em Sociologia, Instituto de Filosofia e Cięncias Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2000.
  • Sobre a atuaçăo do Movimento em Defesa da Vida no processo, ver KALSING, Vera Simone Schaefer. O Movimento em Defesa da Vida na Votaçăo do Aborto Legal, artigo publicado na Internet www.sociologos.org.br , abril de 2002.
  • 4 De acordo com a embriologia, o primeiro produto da fecundaçăo é chamado de zigoto unicelular; durante a primeira semana de sua existęncia, incluindo sua implantaçăo na parede uterina, a entidade năo-nascida é chamada de conceptus; o termo embriăo refere-se ŕ entidade entre a segunda e a oitava semana; e feto é um termo reservado para a entidade a partir das oito semanas de gestaçăo até seu nascimento. DWYER, Susan. Entendendo o Problema do Aborto. In: ROSENFIELD, Denis et alii. Filosofia Política. Vol. 2, Porto Alegre, Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1998, pp.124-150.
  • 5 BARBIERI, Piero. Aborto: ponto de vista cristăo. Petrópolis, Vozes, 1Ş ed. 1997, (Coleçăo Mundo Novo).
  • 6 VARGA, Andrew C. Problemas de Bioética. Săo Leopoldo, UNISINOS, 1990 (ediçăo revisada).
  • 7 MORI, Maurizio. A moralidade do aborto. Brasília, Editora UnB, 1Ş ed. 1997 (Coleçăo saúde, cidadania e bioética).
  • 8 BARSTED, Leila de Andrade Linhares. Legalizaçăo e criminalizaçăo do aborto no Brasil: 10 anos de luta feminista. Estudos Feministas, vol. 0, nş 0, 1999, pp.104-130;
  • e Movimento Feminista e a descriminalizaçăo do aborto. Estudos Feministas, vol. 5, nş 2, 1997, pp.397-402;
  • PIMENTEL, Silvia. A favor da mulher. Leis e políticas sobre o aborto: desafios e possibilidades Săo Paulo, Conselho Estadual da Condiçăo Feminina, 1991, pp.105-107;
  • e A sacralidade da vida e o aborto: idéias (in)conciliáveis? Estudos Feministas, vol. 4, nş 2, 1996, pp.532-538;
  • BARROSO, Carmen. Consulta popular é oportuna. Leis e políticas sobre o aborto: desafios e possibilidades Săo Paulo, Conselho Estadual da Condiçăo Feminina, 1991, pp.96-98;
  • e O Aborto legal. Leis e políticas sobre o aborto: desafios e possibilidades, São Paulo, Conselho Estadual da Condição Feminina, 1991, pp.93-95;
  • BARROSO, Carmem & CUNHA, Maria José Carneiro. O que é o aborto Săo Paulo, Frente das Mulheres Feministas/Cortez, 1980;
  • NUNES, Maria José F. Rosado. O tratamento do aborto pela Igreja Católica. Estudos Feministas, vol. 5, nş 2, 1997, pp.413-417;
  • ROCHA, Maria Isabel Baltar da. A questăo do aborto no Brasil: o debate no Congresso. Estudos Feministas, vol. 4, nş 2, 1996, pp.381-398;
  • PRADO, Danda. O que é aborto Săo Paulo, Abril Cultural/ Brasiliense, 1Ş ed. 1985 (Coleçăo Primeiros Passos).
  • 9 Conforme Ardaillon, o aborto inseguro é definido como um procedimento para interromper uma gravidez indesejada, seja por pessoas sem a necessária capacitaçăo, seja em ambientes que năo apresentam as mínimas condiçőes sanitárias ou ambos. ARDAILLON, Danielle. Cidadania de corpo inteiro: discursos sobre o aborto em número e gęnero. Săo Paulo, Tese de Doutorado em Sociologia, Departamento de Sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Cięncias Humanas, USP, 1997, p.97.
  • 13 Ou seja, os especialistas da produçăo simbólica neste espaço político, neste caso, os deputados pertencentes ao grupo parlamentar católico e os somente católicos, os evangélicos, em sua maioria, pastores. Esse conceito foi apropriado de Bourdieu. Utilizou-se essa abordagem para analisar o papel das igrejas no caso estudado. As consideraçőes do autor a respeito da religiăo e de seu papel săo relevantes, considerando o tratamento que se concede ŕs igrejas, principalmente, ŕ Igreja Católica, e também para a compreensăo de sua atuaçăo neste processo, já que, no caso estudado, foi decisiva para a manutençăo do veto influenciando a mudança de voto dos deputados. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa, Difel, 1Ş ed. 1989 (Memória e sociedade);
  • Economia das trocas simbólicas. Săo Paulo, Perspectiva, 3Ş ed. 1992 (Coleçăo Estudos).
  • 18 ROLIM, Marcos. Pronunciamentos. Diário da Assembléia, ano 56, nş 7157, 25 de março de 1998, p.71.
  • 23 GENOÍNO, José. Aspectos políticos sobre a questăo do aborto. Quando a paciente é mulher. Brasília, Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, 1989, pp.63-64.
  • 27 Id. Pronunciamentos. Diário da Assembléia, Porto Alegre, ano 55, nş 7053, 4 de dezembro de 1997, p.31.
  • 28 Optou-se aqui pela divisăo e classificaçăo dos representantes do argumento contrário ao aborto como pro life e dos representantes do argumento favorável ao direito de escolha como pro choice, classificaçăo utilizada por Sagan e pelos próprios representantes das duas posiçőes. SAGAN, Carl. Aborto: é possível ser "pró-vida" e "pró-escolha"? In: SAGAN, C. Bilhőes e Bilhőes. Reflexőes sobre vida e morte na virada do milęnio. Săo Paulo, Companhia das Letras, 3Ş reimpressăo 1998, pp.180-196.
  • 29 ALVES, Rubem. O Nervo Exposto. Folha de S.Paulo, 28-12-1997.
  • 35 ÁVILA, Maria Betânia. Modernidade e cidadania reprodutiva. Estudos Feministas, vol. 1, nş 2, 1993, pp.382-393.
  • 71 Sobre a forma como as mulheres reproduzem os valores da cultura dominante, contribuindo assim para a sua própria dominaçăo, ver BOURDIEU, P. Conferęncia do pręmio Goffman: A dominaçăo masculina revisitada. In: LINS, Daniel. (org.) A dominaçăo masculina revisitada. Campinas, Papirus, 1998, pp.11-27
  • e KALSING, Vera S. S. A mulher em Pelotas: uma análise sociológica. Monografia de Graduaçăo em Cięncias Sociais, Instituto de Sociologia e Política, Universidade Federal de Pelotas, 1995.
  • *
    Este artigo é fruto da dissertação de mestrado em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – A votação do projeto de regulamentação do aborto legal na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul: o projeto de lei n° 148/97, Porto Alegre, 2000. Agradeço a Mercedes Schaefer Kalsing, Ângela Denise Schaefer Kalsing, Márcio Antônio Martins Santana, Alexandre Chiele e Luis Leonel Rodrigues pela leitura atenta, sugestões e críticas.
  • 1
    No caso estudado, destacou-se a atuação conjunta da Igreja Católica com o Movimento em Defesa da Vida, todavia, houve também atuação de igrejas evangélicas e presença em plenário de representantes da doutrina espírita e outras. Sendo assim, no debate no parlamento propriamente, a posição religiosa estava representada na voz dos parlamentares católicos e dos evangélicos (em sua maioria pastores). Para mais informações, ver KALSING, Vera Simone Schaefer.
    A votação do projeto de regulamentação do aborto legal na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul: o projeto de lei nº 148/97. Dissertação de Mestrado em Sociologia, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2000. Sobre a atuação do Movimento em Defesa da Vida no processo, ver KALSING, Vera Simone Schaefer. O Movimento em Defesa da Vida na Votação do Aborto Legal, artigo publicado na Internet –
    www.sociologos.org.br –, abril de 2002.
  • 2
    Posição representada, em alguma medida, pelo deputado Marcos Rolim e alguns parlamentares que apoiaram o projeto, destacando-se a deputada Jussara Cony (PC do B).
  • 3
    No Brasil, são realizados aproximadamente 1.400.000 abortos por ano. Sabe-se que, na sua grande maioria, são feitos de forma clandestina, colocando a vida das mulheres em risco, por isso, problemas associados ao processo abortivo constituem-se como a terceira causa da mortalidade materna. CENTRO FEMINISTA DE ESTUDOS E ASSESSORIA.
    Dossiê aborto. Brasília, 1998.
  • 4
    De acordo com a embriologia, o primeiro produto da fecundação é chamado de zigoto unicelular; durante a primeira semana de sua existência, incluindo sua implantação na parede uterina, a entidade não-nascida é chamada de
    conceptus; o termo embrião refere-se à entidade entre a segunda e a oitava semana; e feto é um termo reservado para a entidade a partir das oito semanas de gestação até seu nascimento. DWYER, Susan. Entendendo o Problema do Aborto. In: ROSENFIELD, Denis
    et alii.
    Filosofia Política. Vol. 2, Porto Alegre, Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1998, pp.124-150.
  • 5
    BARBIERI, Piero.
    Aborto: ponto de vista cristão. Petrópolis, Vozes, 1ª ed. 1997, (Coleção Mundo Novo).
  • 6
    VARGA, Andrew C.
    Problemas de Bioética. São Leopoldo, UNISINOS, 1990 (edição revisada).
  • 7
    MORI, Maurizio.
    A moralidade do aborto. Brasília, Editora UnB, 1ª ed. 1997 (Coleção saúde, cidadania e bioética).
  • 8
    BARSTED, Leila de Andrade Linhares. Legalização e criminalização do aborto no Brasil: 10 anos de luta feminista.
    Estudos Feministas, vol. 0, nº 0, 1999, pp.104-130; e Movimento Feminista e a descriminalização do aborto.
    Estudos Feministas, vol. 5, nº 2, 1997, pp.397-402; PIMENTEL, Silvia.
    A favor da mulher. Leis e políticas sobre o aborto: desafios e possibilidades. São Paulo, Conselho Estadual da Condição Feminina, 1991, pp.105-107; e A sacralidade da vida e o aborto: idéias (in)conciliáveis?
    Estudos Feministas, vol. 4, nº 2, 1996, pp.532-538; BARROSO, Carmen.
    Consulta popular é oportuna. Leis e políticas sobre o aborto: desafios e possibilidades. São Paulo, Conselho Estadual da Condição Feminina, 1991, pp.96-98; e
    O Aborto legal. Leis e políticas sobre o aborto: desafios e possibilidades, São Paulo, Conselho Estadual da Condição Feminina, 1991, pp.93-95; BARROSO, Carmem & CUNHA, Maria José Carneiro.
    O que é o aborto. São Paulo, Frente das Mulheres Feministas/Cortez, 1980; NUNES, Maria José F. Rosado. O tratamento do aborto pela Igreja Católica.
    Estudos Feministas, vol. 5, nº 2, 1997, pp.413-417; ROCHA, Maria Isabel Baltar da. A questão do aborto no Brasil: o debate no Congresso.
    Estudos Feministas, vol. 4, nº 2, 1996, pp.381-398; PRADO, Danda.
    O que é aborto. São Paulo, Abril Cultural/ Brasiliense, 1ª ed. 1985 (Coleção Primeiros Passos).
  • 9
    Conforme Ardaillon, o aborto inseguro é definido como um procedimento para interromper uma gravidez indesejada, seja por pessoas sem a necessária capacitação, seja em ambientes que não apresentam as mínimas condições sanitárias ou ambos. ARDAILLON, Danielle. Cidadania de corpo inteiro: discursos sobre o aborto em número e gênero. São Paulo, Tese de Doutorado em Sociologia, Departamento de Sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, 1997, p.97.
  • 10
    Mais detalhes, ver KALSING, Vera Simone Schaefer.
    A votação do projeto de regulamentação do aborto legal... Op. cit.
  • 11
    Deputado Marcos Rolim em entrevista concedida à autora em setembro de 1999.
  • 12
    Igreja Católica, igrejas evangélicas e o Movimento em Defesa da Vida (MDV).
  • 13
    Ou seja, os
    especialistas da produção simbólica neste espaço político, neste caso, os deputados pertencentes ao grupo parlamentar católico e os somente católicos, os evangélicos, em sua maioria, pastores. Esse conceito foi apropriado de Bourdieu. Utilizou-se essa abordagem para analisar o papel das igrejas no caso estudado. As considerações do autor a respeito da religião e de seu papel são relevantes, considerando o tratamento que se concede às igrejas, principalmente, à Igreja Católica, e também para a compreensão de sua atuação neste processo, já que, no caso estudado, foi decisiva para a manutenção do veto influenciando a mudança de voto dos deputados. BOURDIEU, Pierre.
    O poder simbólico. Lisboa, Difel, 1ª ed. 1989 (Memória e sociedade);
    Economia das trocas simbólicas. São Paulo, Perspectiva, 3ª ed. 1992 (Coleção Estudos).
  • 14
    Projeto aprovado no âmbito do município de Porto Alegre, em 1996. Mais detalhes ver KALSING, Vera S. S.
    A votação do projeto de regulamentação do aborto legal... Op. cit.
  • 15
    Percival Puggina foi um dos principais articuladores da intermediação entre os membros da Igreja Católica e do MDV e o governador, tendo em vista que o mesmo é católico e atua em conjunto com o MDV, e era também o contato deste grupo com a Assembléia Legislativa, fornecendo as informações a respeito do quadro da votação (diz respeito ao quadro dos parlamentares que ainda estavam indecisos e dos que haviam manifestado a decisão de mudar o voto). Puggina, na época, não desempenhava nenhuma função política no Legislativo, mas representava, e representa, um importante nome dentro do PPB gaúcho e também da Igreja Católica.
  • 16
    Um dos principais interesses em jogo era, com certeza, a reeleição, visto que se tratava de momento pré-eleitoral. Os deputados que defendiam e representavam os interesses das igrejas (Católica e evangélicas) poderiam estar preocupados em preservar o apoio político das camadas mais conservadoras, por isso mudaram sua posição inicial favorável ao projeto.
  • 17
    Conceito apropriado de Bourdieu. Entende-se aqui o trabalho realizado, tanto por parte das igrejas e movimentos ligados a elas, como pelas lideranças do movimento feminista. Estas também realizam um trabalho de representação que, neste caso, foi bem menos expressivo que o da Igreja. É um trabalho que se efetiva em forma de palestras, missas, cultos, catequese, divulgação das idéias das igrejas via jornal, televisão; os parlamentares em seus discursos e as feministas também realizam esse trabalho em forma de palestras, mobilizações, manifestações e eventos promovidos pelas diversas entidades feministas. BOURDIEU, P.
    O poder simbólico. Op. cit.
  • 18
    ROLIM, Marcos. Pronunciamentos.
    Diário da Assembléia, ano 56, nº 7157, 25 de março de 1998, p.71.
  • 19
    ID., IB.
  • 20
    Dom Antônio Cheuiche.
  • 21
    ID., IB.
  • 22
    Pe. Roberto Paz (grifos meus).
  • 23
    GENOÍNO, José.
    Aspectos políticos sobre a questão do aborto. Quando a paciente é mulher. Brasília, Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, 1989, pp.63-64.
  • 24
    Dom Antônio Cheuiche.
  • 25
    Pe. Roberto Paz.
  • 26
    ROLIM, M. Pronunciamentos, 1998, Op.cit.
  • 27
    Id. Pronunciamentos.
    Diário da Assembléia, Porto Alegre, ano 55, nº 7053, 4 de dezembro de 1997, p.31.
  • 28
    Optou-se aqui pela divisão e classificação dos representantes do argumento contrário ao aborto como
    pro life e dos representantes do argumento favorável ao direito de escolha como
    pro choice, classificação utilizada por Sagan e pelos próprios representantes das duas posições. SAGAN, Carl. Aborto: é possível ser "pró-vida" e "pró-escolha"? In: SAGAN, C.
    Bilhões e Bilhões. Reflexões sobre vida e morte na virada do milênio. São Paulo, Companhia das Letras, 3ª reimpressão 1998, pp.180-196.
  • 29
    ALVES, Rubem. O Nervo Exposto.
    Folha de S.Paulo, 28-12-1997.
  • 30
    ID., IB., p.1.
  • 31
    BOURDIEU, P.
    O poder simbólico. Op. cit.; e
    Economia das trocas simbólicas. Op.cit.
  • 32
    NUNES, M. J. F. R. O tratamento do aborto pela Igreja Católica. Op. cit., p.413.
  • 33
    ID., IB., p.414.
  • 34
    ID., IB., pp.414 e 415.
  • 35
    ÁVILA, Maria Betânia. Modernidade e cidadania reprodutiva.
    Estudos Feministas, vol. 1, nº 2, 1993, pp.382-393.
  • 36
    ID., IB., p.390.
  • 37
    BOURDIEU, P.
    Economia das trocas simbólicas. Op. cit.
  • 38
    ID.
    O poder simbólico. Op. cit., p.141.
  • 39
    Jerson Garcia, voluntário do MDV.
  • 40
    BOURDIEU, P.
    Economia das trocas simbólicas. Op. cit., p.16.
  • 41
    ID., IB., p.34.
  • 42
    BOURDIEU, P.
    O poder simbólico. Op. cit.
  • 43
    Neste caso, padres, pastores das igrejas evangélicas, voluntários do Movimento em Defesa da Vida e outros movimentos ligados às igrejas, assim como os diversos movimentos sociais e, presente neste conflito, especificamente, o movimento feminista.
  • 44
    Deputados, pertencentes ou não, ao grupo parlamentar católico e evangélicos (pastores ou não).
  • 45
    BOURDIEU, P.
    O poder simbólico. Op. cit., pp.11-12.
  • 46
    ID.
    Economia das trocas simbólicas. Op. cit., p.41.
  • 47
    ID.
    O poder simbólico. Op. cit., p.14 (grifos no original).
  • 48
    ID., IB., p.11.
  • 49
    ID., IB., p.14.
  • 50
    ID., IB.
  • 51
    SAGAN, C. Aborto: é possível ser "pró-vida" e "pró-escolha"? Op. cit., p.183.
  • 52
    Entre eles e, sobretudo, a Igreja Católica.
  • 53
    ÁVILA, M. B. Modernidade e cidadania reprodutiva. Op. cit., p.387.
  • 54
    Também porta-vozes autorizados.
  • 55
    Os grupos Pró Vida têm atuação de destaque em vários países, principalmente, na América Latina e nos Estados Unidos.
  • 56
    Márcia Camargo, na época, coordenadora do programa e técnica da casa de apoio Viva Maria de Porto Alegre, que presta atendimento a vítimas de violência sexual e doméstica.
  • 57
    Estas ponderações estão presentes num dos pronunciamentos feitos pelo parlamentar na sessão de votação da derrubada do veto, em 24 de março de 1998. O voluntário do MDV, Jerson Garcia, informou que parte das ponderações do deputado foi reproduzida por esse grupo em panfletos distribuídos para a comunidade no dia da votação.
  • 58
    Cora Chiapetta, na época das votações do projeto, assessora legislativa da Deputada Jussara Cony (PC do B) e, na época da entrevista, dirigente da União Brasileira de Mulheres, seção RS.
  • 59
    ID.
  • 60
    O deputado Eliseu Santos não é pastor evangélico, mas destacou-se pela sua atuação no processo, tanto por meio de visitas aos gabinetes, como pelos pronunciamentos na sessão de votação da derrubada do veto, fazendo uso, inclusive, da Bíblia.
  • 61
    Télia Negrão, presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM) na época da votação do projeto.
  • 62
    No caso, refere-se ao movimento feminista do Rio Grande do Sul.
  • 63
    Télia Negrão.
  • 64
    Segundo Télia, o movimento feminista atualmente traz uma característica muito questionada por parte das feministas francesas – a questão do "consenso". "Nós temos trabalhado sempre em busca do consenso, embora haja o debate no campo feminista, busca se trabalhar com o consenso. Por exemplo, no Fórum Municipal da Mulher eu me lembro de pouquíssimas votações. Não se votam as coisas. Quando nós não temos consenso, nós procuramos algum ponto de unidade. Então, até onde dá para ir? 'Dá para ir até aqui, daqui para frente não dá para avançar porque não se tem consenso'. Essa é uma característica do movimento feminista mundial. É a busca do consenso. As francesas e as espanholas fazem críticas a essa permanente tentativa do consenso das mulheres porque isso, em determinados momentos, faz com que o movimento não avance".
  • 65
    Télia Negrão.
  • 66
    ARDAILLON, D. Cidadania de corpo inteiro... Op. cit., p.16.
  • 67
    Télia Negrão.
  • 68
    ID, IB.
  • 69
    ID, IB.
  • 70
    Entendido como visão de mundo feminista ou consciência de gênero, "ser feminista é contestar o
    status, a condição e a situação da mulher na sociedade, é contestar as relações existentes entre os sexos" [Télia Negrão], "percebidas como relações de poder". ARDAILLON, D. Cidadania de corpo inteiro... Op. cit.
  • 71
    Sobre a forma como as mulheres reproduzem os valores da cultura dominante, contribuindo assim para a sua própria dominação, ver BOURDIEU, P. Conferência do prêmio Goffman: A dominação masculina revisitada. In: LINS, Daniel. (org.)
    A dominação masculina revisitada. Campinas, Papirus, 1998, pp.11-27 e KALSING, Vera S. S. A mulher em Pelotas: uma análise sociológica. Monografia de Graduação em Ciências Sociais, Instituto de Sociologia e Política, Universidade Federal de Pelotas, 1995.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Mar 2007
    • Data do Fascículo
      2002

    Histórico

    • Recebido
      Nov 2002
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