Acessibilidade / Reportar erro

Comentário

ENTREVISTA

Comentário

Adriana Piscitelli

Pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu/Unicamp

Citar Gayle Rubin é quase um lugar comum nos trabalhos realizados no campo dos estudos de gênero. Refiro-me, claro, a um dos seus textos "clássicos", "The Traffic in Women".1 1 RUBIN, Gayle. The Traffic in Women. Notes on the "Political Economy" of Sex. In: REITER, Rayna (ed.) Toward an Anthropology of Women. New York, Monthly Review Press, 1975. Mas, se o "Traffic" é mundialmente considerado um trabalho pioneiro e marcante no campo dos estudos de gênero, um segundo escrito, "Thinking Sex"2 2 ID. Thinking Sex: Notes for a Radical Theory of the Politics of Sexuality [1984]. In: ABELOVE, Henry; BARALE, Michèle e HALPERIN, David. (eds.) The Lesbian and Gay Studies Reader. Nova York, Routledge, 1993, , que discute especificamente a diversidade sexual e pensa as relações entre sexualidade e gênero, não é tão conhecido no Brasil.

Na entrevista que publicamos neste número dos cadernos pagu, Judith Butler, entrevistando Gayle Rubin, deixa claras as contribuições de cada um desses textos em termos do que ela denomina "metodologia" para a teoria feminista e para os estudos gays e lésbicos. Neste comentário gostaria de chamar a atenção para aspectos particularmente relevantes desses escritos que, ampliando as discussões presentes nessa entrevista, possibilitam refletir sobre o percurso que conduziu Butler a pensar na relação entre parentesco e heterossexualidade e, especificamente, na "definição da cultura como prerrogativa da heterossexualidade".3 3 BUTLER, Judith: Is kinship always already heterosexual? Differences (13)1, 2002, p.35.

"Traffic in Women" é, sobretudo, lembrado (e, a partir de finais da década de 1980, também criticado) por ter traçado a distinção entre sexo e gênero, oferecendo elementos para a elaboração do conceito de gênero. Os aspectos do texto que me parece importante destacar são outros, que adquirem particular sentido considerando um aspecto intrigante da produção sobre sexualidade. As abordagens feministas, refletindo sobre a subordinação das mulheres, foram pioneiras no questionamento à relação direta e naturalizada entre reprodução e gênero, e um de seus efeitos é confundir sexualidade e gênero. Mas, no decorrer das décadas, e paralelamente ao vertiginoso crescimento dos estudos de sexualidade nos estudos sobre saúde reprodutiva, incluindo aqueles voltados para a AIDS, essas reflexões instigantes parecem ter se diluído. O "Traffic" foi central nesses questionamentos.

Ao desenvolver a idéia de sistema de sexo e gênero, Gayle Rubin mostra como essa relação entre reprodução e gênero perpassa certos marcos analíticos e como ela se ancora num pressuposto que tende a aparecer de maneira mais velada: o pressuposto da naturalidade da heterossexualidade.4 4 Talvez valha a pena lembrar, também, que, com o nome de sexo/gênero, Rubin se refere a um sistema, um conjunto de arranjos através dos quais a sociedade transforma a sexualidade biológica em produtos da atividade humana. Segundo ela, os sistemas de parentesco seriam formas empiricamente observáveis de sistemas de sexo/gênero. RUBIN, G. The Traffic in Women... Op. cit. A autora mostra esse procedimento a partir da leitura de diversos autores, entre eles, Lévi-Strauss, que é particularmente claro em A Família.5 5 LÉVI-STRAUSS, Claude. A Família, origem e evolução. Porto Alegre, Editorial Villa Marta, 1980. Sintetizando, a idéia do autor é que as famílias geram casamentos como o dispositivo legal mais importante que têm para estabelecer alianças entre elas. Mas é necessário garantir que o casamento seja uma necessidade fundamental. Isso seria garantido através de um dispositivo que institui um estado recíproco de dependência entre os sexos: a divisão sexual do trabalho. Assim como o princípio da divisão sexual do trabalho estabelece uma dependência mútua entre os dois sexos, obrigando-os a formar uma família, a proibição do incesto estabelece uma mútua dependência entre famílias, obrigando-as, para se perpetuarem, à criação de novas famílias. A conclusão é que a diferença entre o mundo humano e o mundo animal reside no fato de que na humanidade uma família não poderia existir sem existir a sociedade, ou seja, uma pluralidade de famílias dispostas a reconhecer que existem outros laços para além dos consangüíneos, e que o processo natural de descendência só pode ser levado a cabo através do processo social de afinidade.

Na leitura que Gayle Rubin faz de Lévi-Strauss, particularmente desse texto, ela levanta um ponto interessante. Examinando os argumentos do autor no que se refere às pré-condições necessárias para a operação dos sistemas de casamento, ela revela a estrutura lógica subjacente à sua análise do parentesco. Em termos gerais, a organização social da atividade sexual humana estaria duplamente ancorada, em algo que podemos considerar gênero e na heterossexualidade compulsória. Explico-me.

Rubin afirma que, nas formulações de Lévi-Strauss, o parentesco instaura a diferença, a oposição, exacerbando, no plano da cultura, as diferenças biológicas entre os sexos. Os sistemas de parentesco envolveriam a criação social de dois gêneros dicotômicos, a partir do sexo biológico, uma particular divisão sexual do trabalho, provocando a interdependência entre homens e mulheres, e a regulação social da sexualidade, prescrevendo ou reprimindo arranjos divergentes dos heterossexuais. E esse é o ponto interessante, a autora destaca o fato de que na teoria levistraussiana há uma relação na criação de gênero, nesses termos, e heterossexualidade. E, ainda mais, essa relação não pode ser desvinculada da reprodução, biológica e social. Os indivíduos seriam marcados por gênero para garantir o matrimônio. Mas, segundo Rubin, gênero, no trabalho de Lévi-Strauss, não significaria apenas a identificação com um sexo, exigiria também que o desejo sexual seja dirigido ao outro sexo. A divisão sexual do trabalho criaria homens e mulheres e os criaria heterossexuais. Assim, a supressão do componente homossexual da sexualidade humana e, segundo Rubin, a opressão dos homossexuais, são produtos do mesmo sistema cujas regras e relações oprimem as mulheres. Nesse sentido, a relação entre homossexualidade e parentesco é particularmente interessante, suscitando diversas perguntas. Uma delas refere-se a como o processo de desestabilizar esse pressuposto afetaria a distinção (e relação entre) natureza/ cultura. Uma segunda questão remete a pensar como gênero operaria se se levassem em conta as relações entre parentesco e homossexualidade.

Um segundo aspecto relevante de "Traffic" é o esforço por articular essas reflexões à compreensão dos efeitos das estruturas de gênero na construção das identidades individuais. Vale a pena incorporar aqui os comentários de Henrietta Moore sobre a relação entre antropologia e a compreensão das construções subjetivas. Segundo a autora, um dos conjuntos de processos ou relações mais difíceis de captar, quando se trata de discutir a construção de sujeitos marcados por gênero, é como as representações sociais do gênero afetam as construções subjetivas, e como a representação ou auto-representação subjetiva do gênero afeta sua construção social.6 6 MOORE, Henrietta. Fantasias de poder e fantasias de identidade: gênero, raça e violência. cadernos pagu (14) – Corporificando gênero –, Campinas, Núcleo de Estudos de Gênero/Pagu, Unicamp, 2000. De maneiras diferentes, Gayle Rubin, nos anos 70, e Henrietta Moore, nos 90, expressando-se numa linguagem mais afinada com as abordagens desconstrutivistas, sentem a dificuldade da antropologia para dar conta desse procedimento – e não é por acaso que as duas se voltam para a psicanálise.

Na atualidade são, sobretudo, os estudos feitos da perspectiva gay e lésbica que parecem atualizar o espírito contestador de certas linhas do pensamento feminista em relação à sexualidade. Esses estudos, destacando a distinção entre sexualidade e reprodução, insistem veementemente na distinção analítica entre gênero e sexualidade.7 7 SEDWICK, Eve Kosofsky. Gender Criticism, what isn't gender? – the Epistemology of the Closet. University of California Press, 1990. E, novamente aqui, os escritos de Rubin são pioneiros. Se em "The Traffic in Women" a autora se insere completamente no marco das discussões feministas, em "Thinking Sex" ela tenta deslocar-se de certas linhas desse pensamento que adquiriam força nos Estados Unidos, no início da década de 1980.

Esse texto, no qual a defesa de diversidade sexual, incluindo tópicos que poderíamos considerar polêmicos, tais como o dos boy lovers, adquire sentido levando em conta a maneira como certas linhas do feminismo se engajaram no debate anti-pornografia nos Estados Unidos, discutindo incansavelmente a capacidade de corrupção dos livros perigosos, a idéia de que em nome da liberdade de expressão não é possível defender a indecência, e de que conteúdos violentos podem ter efeitos criminosos. Nesse debate, que é muito interessante, se confrontam perspectivas que afirmam a crucialidade da liberdade sexual para a liberação das mulheres com outras que se perguntam se há uma relação causal entre pornografia e a violência da qual são objeto as mulheres no mundo todo.8 8 O debate foi organizado pela Signs, na década de 1980, e diversos textos, entre eles o de Catherine Mackinnon dão uma idéia da postura de certas correntes do pensamento feminista nessa discussão. Ver: FRIEDMAN, Estelle e THORNE, Barrie. Introduction to the Feminist Sexuality Debates. Signs, vol. 10, n° 11, 1984, pp.102-135; MACKINNON, Catherine. Marxism, feminism and the State: Toward Feminist Jurisprudence. Signs, vol. 7, nº 5, 1982, pp.515-544; CORNELL, Drucilla. (ed.) Feminism and Pornography. Oxford, Oxford University Press, 2000.

Inserindo-se nesse confronto, em "Thinking Sex", Rubin afirma a necessidade da separação analítica entre gênero e sexualidade, pensando o sexo como um vetor de opressão que atravessa outros modos de desigualdade social, tais como classe, raça, etnicidade ou gênero. Contestando a idéia de que o feminismo seja o espaço privilegiado para uma teoria da sexualidade, Rubin afirma que o feminismo é a teoria da opressão de gênero. A autora questiona a fusão cultural de gênero com sexualidade, feita por feministas radicais anti-pornografia, para as quais a sexualidade organiza a sociedade em dois sexos (um dos quais oprime o outro).

Na visão de Rubin, a teoria feminista teria algum poder explicativo na medida em que as hierarquias baseadas no gênero se sobrepõem às estratificações eróticas, mas não seria suficiente para englobar a organização social da sexualidade. E ela afirma que a "estratificação sexual", presente nas sociedades modernas ocidentais9 9 Nessa estratificação os estilos de sexualidade bons (normais, naturais, saudáveis), tais como modalidades heterossexuais, no marco do casamento, monogâmicos, reprodutivos, se oporiam aos "maus", expressos nas práticas sexuai s de travestis, transexuais, fetichistas, sadomasoquistas, sexo comercial, por dinheiro, entre gerações, contando com áreas intermediárias. RUBIN, G. Thinking sex... Op. cit., p.14. , perpassa inclusive ideologias consideradas progressistas, tais como o feminismo.

Em "Traffic", o interesse de Rubin foi mostrar a naturalização da heterossexualidade presente em abordagens antropológicas e psicanalíticas, mas sua leitura da construção da atividade sexual humana enquanto atividade social não deixa de considerar a centralidade da sexualidade ligada à reprodução, e a íntima conexão entre gênero e sexualidade. Em "Thinking Sex", longe de pensar em parentesco, a preocupação da autora foi a defesa política da diversidade sexual, o que hoje denominaríamos de sexualidades alternativas, e a criação de ferramentas analíticas para pensar nelas. No contexto do debate antipornografia (as sex wars) e levando seriamente em conta os efeitos dos argumentos apresentados nesse debate em termos de perseguição das minorias sexuais, a proposta da autora é oferecer elementos de um marco descritivo e conceitual para pensar sobre sexo e sua política, tentado contribuir para criar um corpo de pensamento libertador sobre a sexualidade.

E, para além de estabelecer diferenças entre sexualidade e gênero, Rubin afirma a relevância das sexualidades não reprodutivas no domínio da sexualidade. Nesses pontos ela será seguida pelas discussões de gays e lésbicas. Afirmar que essas discussões sigam essa linha não implica que, necessariamente, a distinção entre gênero e sexualidade se restrinja a essa produção. Mas, nas análises de sexualidades heterossexuais, gênero aparece freqüentemente aprisionado numa distinção binária na qual a sexualidade é atravessada por uma linha divisória entre homens e mulheres que parece estabelecer uma continuidade entre "sexo" e gênero.10 10 E, fazendo uma pequena digressão, poderíamos deter-nos para pensar nos motivos que conduzem a um caráter redutor, em termos de uma análise de gênero, de parte dessa produção. Talvez esse caráter se ancore no fato de tomar como foco ou partir da idéia implícita da existência de identidades de gênero unitárias e coerentes. Ao mesmo tempo, as linhas que pensam as identidades como fluidas, à maneira das performativistas, apresentam outros problemas. Essas abordagens dificilmente oferecem acesso aos scripts que, contextualizadamente, estão sendo performados. Em outras palavras, nessas linhas há pouco acesso ao que Judith Butler chama de "trabalhos aparentemente estáticos da ordem simbólica", que se tornariam vulneráveis frente às repetições e resignificações subversivas. Como qualquer aprendizado, aprender um gênero ou um estilo de sexualidade mantém relações com aprendizados corporais e com práticas. Mas, o que dizem as análises performativistas da maneira como gênero opera nesse contexto? Quais são as categorizações centrais através das quais é operacionalizado? Que tipo de diferenças ele expressa, e põe em jogo, e que tipo de desigualdades? Como umas e outras se relacionam com os estilos de sexualidade? Nesse sentido, vale lembrar um dos comentários mais interessantes sobre as abordagens performativistas, realizado por Arjun Appadurai. Refletindo sobre as formulações de Butler, ele assinala as dificuldades dessas abordagens para compreender os "recursos" nos quais se baseiam as performances – e acho que quando fala dos recursos ele se refere ao plano representacional. A outra questão é como trabalhar nessa abordagem sem esvaziar a análise do teor político. A primeira questão que ele levanta é como relacionar essa idéia geral de performance com o trabalho da imaginação, alinhavando a imaginação e o global, por exemplo. E como relacionar esse trabalho com as implicações emancipatórias da idéia de performance?. Ver BUTLER, Judith. Bodies that matter. On the discursive limits of sex. Routledge, 1993, p .139; Bell, Vicki. Historical Memory, Global Movements and Violence: Paul Gilroy and Arjun Appadurai in Conversation. Theory, Culture and Society, vol. 16, nº2, 1999, p.35. [Traduzido em cadernos pagu (16), 2001, pp.289-318.] Ao contrário, a relação entre gênero e sexualidade (e esse é um aspecto que merece reflexão) adquire maior complexidade na análise de sexualidades homoeróticas, e como sinal disso basta considerar as últimas páginas da entrevista de Judith Butler com Gayle Rubin. Refiro-me às relações que Rubin estabelece entre o bizarro e a masculinidade na comunidade gay de couro, no Estados Unidos.11 11 BUTLER, Judith. Sexual Traffic. Interview. In: WEED, Elisabeth e SCHOR, Nomi. Feminism Meets Queer Theory. Bloomington and Indianapolis, Indiana University Press, 1997, pp.103-104. [Traduzido neste número dos cadernos pagu.]

Cada um desses dois escritos de Rubin levanta questões instigantes, embora não necessariamente relacionadas. É Judith Butler em Is Kinship always already heterosexual? que, de maneira brilhante, articula os insights desses dois textos. Retomando o lugar que a naturalização da heterossexualidade ocupa na relação entre natureza e cultura estabelecida pelos saberes contemporâneos, essa autora articula parentesco e sexualidade alargando os alcances teóricos e políticos dos escritos de Gayle Rubin.

  • 1
    RUBIN, Gayle. The Traffic in Women. Notes on the "Political Economy" of Sex. In: REITER, Rayna (ed.)
    Toward an Anthropology of Women. New York, Monthly Review Press, 1975.
  • 2
    ID. Thinking Sex: Notes for a Radical Theory of the Politics of Sexuality [1984]. In: ABELOVE, Henry; BARALE, Michèle e HALPERIN, David. (eds.)
    The Lesbian and Gay Studies Reader. Nova York, Routledge, 1993,
  • 3
    BUTLER, Judith:
    Is kinship always already heterosexual? Differences (13)1, 2002, p.35.
  • 4
    Talvez valha a pena lembrar, também, que, com o nome de sexo/gênero, Rubin se refere a um sistema, um conjunto de arranjos através dos quais a sociedade transforma a sexualidade biológica em produtos da atividade humana. Segundo ela, os sistemas de parentesco seriam formas empiricamente observáveis de sistemas de sexo/gênero. RUBIN, G. The Traffic in Women... Op. cit.
  • 5
    LÉVI-STRAUSS, Claude.
    A Família,
    origem e evolução. Porto Alegre, Editorial Villa Marta, 1980.
  • 6
    MOORE, Henrietta. Fantasias de poder e fantasias de identidade: gênero, raça e violência.
    cadernos pagu (14) – Corporificando gênero –, Campinas, Núcleo de Estudos de Gênero/Pagu, Unicamp, 2000.
  • 7
    SEDWICK, Eve Kosofsky.
    Gender Criticism, what isn't gender? – the
    Epistemology of the Closet. University of California Press, 1990.
  • 8
    O debate foi organizado pela
    Signs, na década de 1980, e diversos textos, entre eles o de Catherine Mackinnon dão uma idéia da postura de certas correntes do pensamento feminista nessa discussão. Ver: FRIEDMAN, Estelle e THORNE, Barrie. Introduction to the Feminist Sexuality Debates.
    Signs, vol. 10, n° 11, 1984, pp.102-135; MACKINNON, Catherine. Marxism, feminism and the State: Toward Feminist Jurisprudence.
    Signs, vol. 7, nº 5, 1982, pp.515-544; CORNELL, Drucilla. (ed.)
    Feminism and Pornography. Oxford, Oxford University Press, 2000.
  • 9
    Nessa estratificação os estilos de sexualidade bons (normais, naturais, saudáveis), tais como modalidades heterossexuais, no marco do casamento, monogâmicos, reprodutivos, se oporiam aos "maus", expressos nas práticas sexuai s de travestis, transexuais, fetichistas, sadomasoquistas, sexo comercial, por dinheiro, entre gerações, contando com áreas intermediárias. RUBIN, G. Thinking sex... Op. cit., p.14.
  • 10
    E, fazendo uma pequena digressão, poderíamos deter-nos para pensar nos motivos que conduzem a um caráter redutor, em termos de uma análise de gênero, de parte dessa produção. Talvez esse caráter se ancore no fato de tomar como foco ou partir da idéia implícita da existência de identidades de gênero unitárias e coerentes. Ao mesmo tempo, as linhas que pensam as identidades como fluidas, à maneira das performativistas, apresentam outros problemas. Essas abordagens dificilmente oferecem acesso aos
    scripts que, contextualizadamente, estão sendo performados. Em outras palavras, nessas linhas há pouco acesso ao que Judith Butler chama de "trabalhos aparentemente estáticos da ordem simbólica", que se tornariam vulneráveis frente às repetições e resignificações subversivas. Como qualquer aprendizado, aprender um gênero ou um estilo de sexualidade mantém relações com aprendizados corporais e com práticas. Mas, o que dizem as análises performativistas da maneira como gênero opera nesse contexto? Quais são as categorizações centrais através das quais é operacionalizado? Que tipo de diferenças ele expressa, e põe em jogo, e que tipo de desigualdades? Como umas e outras se relacionam com os estilos de sexualidade? Nesse sentido, vale lembrar um dos comentários mais interessantes sobre as abordagens performativistas, realizado por Arjun Appadurai. Refletindo sobre as formulações de Butler, ele assinala as dificuldades dessas abordagens para compreender os "recursos" nos quais se baseiam as
    performances – e acho que quando fala dos recursos ele se refere ao plano representacional. A outra questão é como trabalhar nessa abordagem sem esvaziar a análise do teor político. A primeira questão que ele levanta é como relacionar essa idéia geral de
    performance com o trabalho da imaginação, alinhavando a imaginação e o global, por exemplo. E como relacionar esse trabalho com as implicações emancipatórias da idéia de performance?. Ver BUTLER, Judith.
    Bodies that matter. On the discursive limits of sex. Routledge, 1993, p
    .139; Bell, Vicki. Historical Memory, Global Movements and Violence: Paul Gilroy and Arjun Appadurai in Conversation.
    Theory, Culture and Society, vol. 16, nº2, 1999, p.35. [Traduzido em
    cadernos pagu (16), 2001, pp.289-318.]
  • 11
    BUTLER, Judith. Sexual Traffic. Interview. In: WEED, Elisabeth e SCHOR, Nomi.
    Feminism Meets Queer Theory. Bloomington and Indianapolis, Indiana University Press, 1997, pp.103-104. [Traduzido neste número dos
    cadernos pagu.]
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Out 2006
    • Data do Fascículo
      2003
    Núcleo de Estudos de Gênero - Pagu Universidade Estadual de Campinas, PAGU Cidade Universitária "Zeferino Vaz", Rua Cora Coralina, 100, 13083-896, Campinas - São Paulo - Brasil, Tel.: (55 19) 3521 7873, (55 19) 3521 1704 - Campinas - SP - Brazil
    E-mail: cadpagu@unicamp.br