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RESENHAS

Ameaças do presente* * Resenha do livro de ORDOVER, Nancy. American Eugenics: Race, Queer Anatomy, and the Science of Nationalism. Minneapolis/London, University of Minnesota Press, 2003.

Richard Miskolci

Pesquisador-Bolsista Recém-Doutor do CNPq associado ao Dep. de Sociologia da UNESP/Araraquara

Imagens de restos humanos amontoados em valas gigantescas ou de seres esqueléticos em uniformes circulando por campos de concentração ainda povoam nosso imaginário. No entanto, a angústia que estas imagens provocam em poucos suscita a reflexão sobre o que as gerou. Assim, idéias de seleção dos mais aptos na luta pela existência e a conseqüente esterilização de homens e mulheres considerados degenerados parecem temas de algum filme sobre erros humanos do passado.

Nancy Ordover nos recorda que considerar a eugenia como parte do passado é uma atitude irresponsável e perigosa. Em seu livro lançado recentemente nos Estados Unidos – American Eugenics: Race, Queer Anatomy, and the Science of Nationalism – a pesquisadora independente mostra que a eugenia não existiu apenas na Alemanha nazista, nem encontrou seu túmulo nos anais da pseudociência.

A eugenia continua viva com outros nomes e sob o pretexto de seguir objetivos distintos dos que nos legaram a vergonha das esterilizações em massa e das formas "científicas" de limpeza étnica. O Projeto Genoma, as pesquisas que buscam a determinação genética de comportamentos sexuais, além das experiências e práticas médicas que apelam para a necessidade de controle da natalidade são herdeiros diretos desta corrente científica.

O apelo das teorias eugênicas está em sua proteção do status quo e na insistência em remédios científicos e/ou tecnológicos para lidar com problemas que requerem mudanças sociais e institucionais profundas. Assim, a mudança social é rechaçada em nome da eliminação dos grupos que ameaçam a ordem estabelecida.1 1 Mike Hawkins explora a história deste apelo a soluções científicas para problemas sociais através de uma discussão sobre o social-darwinismo. Além de desvendar as relações entre o social-darwinismo e a eugenia, Hawkins também discute as relações destas duas parentes com a sociologia nascente do século XIX e com a corrente contemporânea da sociobiologia. Hawkins, Mike. Social Darwinism in European and American Thought, 1860-1945 – Nature as Model and Nature as Threat. Cambridge, Cambridge University Press, 1998.

A entrada na esfera pública de movimentos de defesa de minorias étnicas e sexuais a partir da década de 1960 não se deu sem também intensificar preconceitos entre os estabelecidos na ordem social. Não por acaso, mulheres negras, latinas e adolescentes em geral têm se tornado o alvo de medidas judiciais e médicas para o controle de natalidade. Além disso, o número crescente de pesquisas que buscam a causa da "homossexualidade" atingiu o auge na virada do milênio. Três décadas depois de Stonewall, gays e lésbicas correm o risco de serem classificados como geneticamente distintos do resto da humanidade. Para que? Ordover apresenta reflexões sobre os interesses nem tão ocultos por trás destas teorias e práticas eugênicas sob nova embalagem.

O primeiro capítulo de American Eugenics lida com as relações entre a eugenia e o nacionalismo, em especial o norte-americano. Desde sua criação pela corrente científica social-darwinista britânica de fins do século XIX, a eugenia se instituiu como ciência do nacionalismo por prover os meios para a manutenção da idéia de nacionalidade em termos raciais.2 2 O termo eugenia, do grego eu (bem) genes (nascido), foi cunhado pelo cientista britânico Francis Galton em 1883. Galton era primo de Charles Darwin e, junto com outros social-darwinistas, colaborou para a criação da eugenia como a "ciência" que buscaria o controle da hereditariedade humana para a preservação de grupos considerados superiores. O nacionalismo sempre se baseou em duas formas de racismo distintas, mas complementares: o racismo interno que justifica a estrutura de poder e os privilégios de elites, que remontam ao período de colonização européia, e o racismo externo que permitiu o controle da imigração e projetou no exterior perigos que distraem a atenção dos problemas estruturais existentes nas fronteiras de cada Estado nacional.

No caso norte-americano, a nação foi construída imaginariamente como distinta e superior a um perigo representado, sobretudo, por imigrantes de origem não-nórdica. Tais imigrantes foram controlados e crescentemente evitados através de testes de QI e avaliações médicas que viam em fatos como o analfabetismo e a pobreza sinais de condições de inferioridade geneticamente herdadas ou, para usar o termo da época: disgenia. Sob o pretexto de critérios (e testes) científicos mais de 80% dos imigrantes judeus, poloneses, italianos, húngaros e russos foram considerados "fracos mentalmente" em 1912 e retidos antes de sua entrada nos EUA. O caso teve conseqüências na mudança das leis de imigração, as quais desembocaram no ato das origens nacionais que determinou quotas para a entrada no país. Isto alçou os eugenistas ao desejado posto de guardiões do futuro político e biológico da nação americana.3 3 Ordover, N. American Eugenics... Op. cit., p. 22.

O capítulo que explora a anatomia queer (termo utilizado para se referir a gays, lésbicas e também a todos os que não se enquadram na norma social) tem o subtítulo de "Cem anos de diagnóstico, dissecação e estratégia política". Nele, Ordover retraça as relações entre teorias que buscam a "causa" da homossexualidade e movimentos de defesa dos direitos de gays, lésbicas e transgêneros sem deixar de alertar para os perigos inerentes nesta relação, sobretudo o de aceitação do que deveria ser questionado desde o início: por que buscar a "causa" de um comportamento?

A relação perigosa entre cientistas e ativistas pelos direitos GLTB data desde os primórdios da sexologia, mas teve uma de suas figuras mais importantes no alemão Magnus Hirschfeld, o qual defendia o que compreendia como o "terceiro sexo" baseado em duvidosas teorias científicas que, mais tarde, foram utilizadas contra seus objetivos políticos libertários.4 4 Joseph Bristow fornece um excelente panorama histórico das teorias sobre a homossexualidade na sexologia e na psicanálise. Bristow, Joseph. Sexuality. New York, Routledge, 1997. O próprio termo "homossexual" foi cunhado por um húngaro com objetivos libertários em 1869, mas no ano seguinte a palavra passaria a ser utilizada para deno minar uma "patologia sexual" no célebre texto sobre as sensações sexuais contrárias de Westphal citado por Michel Foucault em A Vontade de Saber. Rio de Janeiro, Graal, 1985. (Tradução: Maria Thereza da C. Albuquerque.) Ordover explora com cuidado como meios "científicos" de defesa de direitos políticos fornecem armas para os conservadores e incentivo às pesquisas que buscam formas de isolar, selecionar e, muito provavelmente, eliminar o suposto gene "causador" da homossexualidade. O histórico destes estudos já seria útil para pesquisadores da área de estudos de gênero e sexualidade, mas Ordover vai além e nos brinda com a discussão das pesquisas mais recentes e dos pressupostos funestos nos quais elas se fundamentam.

A polêmica sobre um "gene gay" voltou à tona em 1991 no altamente criticado estudo de Simon LeVay, que afirmou que um grupo de células no hipotálomo cerebral é duas vezes maior em homens heterossexuais do que em gays. A analogia de tamanho para comparar um comportamento sexual considerado normal com um anormal mal esconde o pressuposto de que o "anormal" é menor, portanto inferior.5 5 As analogias entre gênero e raça e o poder da metáfora são explorados por Ordover a partir de outros dois pesquisadores que merecem ser lembrados: Nancy Leys Stepan e Sander L. Gilman. Stepan é a autora do fundamental The Hour of Eugenics: Race, Gender, and Nation in Latin América (Ithaca, Cornell Univ. Press, 1996) e Gilman o historiador cultural que explora as relações entre teorias raciais e a psicanálise. Gilman observou que a medicalização e a classificação sociológica de judeus e homossexuais se deu ao mesmo tempo. Não por acaso os termos "homossexual" e "anti-semitismo" são contemporâneos, sendo que o último visava "criar um novo discurso científico para o ódio aos judeus" (Gilman apud Ordover, N. American Eugenics... Op. cit., p.99).

A atração dos meios de comunicação por explicações biológicas para comportamentos humanos merece atenção especial da pesquisadora. As pesquisas científicas abordadas e a reação entusiasmada da mídia revelam uma busca de eliminar os marginalizados ao invés de lutar contra sua marginalização. Conclusão curiosa, mas reveladora da razão pela qual a eugenia continua viva.

Ordover se opõe a teorias que buscam "causas" da homossexualidade e contesta até mesmo a luta entre especialistas em biologia humana e sociólogos pelo tema. Segundo ela, quer através da explicação biológica quer por teorias sociológicas construcionistas recaímos na mesma armadilha, qual seja, a de explicar a homossexualidade. Tal interesse explicativo só serve a uma coisa: a construção da heterossexualidade como normal e da homossexualidade como desvio.

No capítulo final, a autora analisa a história das esterilizações, do controle de natalidade e suas formas presentes. Desde a primeira lei de esterilização norte-americana aprovada por Indiana em 1907 até o fim da Segunda Guerra Mundial ao menos 70 mil pessoas foram esterilizadas nos Estados Unidos. Sob o pretexto do controle de natalidade de mulheres consideradas fracas mentalmente (feeble minded) e incapazes (unfit) para prover sua própria subsistência este procedimento radical sempre se dirigiu a mulheres pobres, sobretudo negras e hispânicas.

Na segunda parte do século XX as esterilizações continuaram, apenas com a alteração nos termos que justificaram esses procedimentos. Assim, no sul dos EUA quase a totalidade das mulheres que dependiam do seguro desemprego e outras formas de ajuda governamental (welfare) foi esterilizada, entre elas, algumas jovens antes mesmo de alcançarem a puberdade.6 6 Ordover faz um histórico das denúncias de utilização de Porto Rico como base de testes para métodos anticoncepcionais e afirma que em 1976 37,4% das mulheres em idade reprodutiva de Porto Rico haviam sido esterilizadas. O racismo determinante do controle populacional e da esterilização são claros quando se constata que em 1964 65% das mulheres esterilizadas na Carolina do Norte eram negras. Ainda na década de 1990, surgiram propostas legais em treze estados norte-americanos para o oferecimento de uma soma em dinheiro para mulheres pobres que usassem meios contraceptivos como o Norplant.

Neste ponto, Ordover reconstitui uma parte difícil da história do feminismo norte-americano e não desvia de questões espinhosas ao lidar com figuras importantes como a de Margaret Sanger, médica que lutou pelo controle da natalidade. A pesquisadora rejeita interpretações contemporâneas que redimem Sanger de suas afirmações racistas e afirma que não podemos reduzir as posições políticas de alguém a seu contexto histórico. Aceitar a admiração de Sanger pela eugenia como típicos naqueles dias equivale a imaginar que alguém como ela não tinha sofisticação intelectual nem capacidade de resistir a concepções hegemônicas sobre o papel da mulher na sociedade ou a suposta superioridade anglo-saxônica. Desta forma, Ordover apresenta uma reflexão premente para quem lida com a história do feminismo em qualquer país. Os laços entre feministas do início do século XX com idéias e até associações eugênicas não podem ser ignorados nem aceitos como inevitáveis. Isto também nos impõe a reflexão sobre as novas práticas médicas implementadas como política de saúde pública, as quais ainda apelam para valores e pressupostos questionáveis ética e politicamente.

Ordover conclui seu estudo com uma crítica articulada às três promessas da eugenia: o monitoramento da identidade nacional, o fornecimento de metáforas contra grupos marginalizados e a criação de antídotos tecnológicos para lidar com problemas sociais. Assim, American Eugenics alcança o objetivo de expor porque a ciência não é nenhuma porta para os direitos civis e nos recorda que o silêncio sobre a eugenia no presente é tão perigoso quanto o seu esquecimento.

Recebida para publicação em julho de 2003.

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    Resenha do livro de ORDOVER, Nancy.
    American Eugenics: Race, Queer Anatomy, and the Science of Nationalism. Minneapolis/London, University of Minnesota Press, 2003.
  • 1
    Mike Hawkins explora a história deste apelo a soluções científicas para problemas sociais através de uma discussão sobre o social-darwinismo. Além de desvendar as relações entre o social-darwinismo e a eugenia, Hawkins também discute as relações destas duas parentes com a sociologia nascente do século XIX e com a corrente contemporânea da sociobiologia. Hawkins, Mike.
    Social Darwinism in European and American Thought, 1860-1945 – Nature as Model and Nature as Threat. Cambridge, Cambridge University Press, 1998.
  • 2
    O termo eugenia, do grego
    eu (bem)
    genes (nascido), foi cunhado pelo cientista britânico Francis Galton em 1883. Galton era primo de Charles Darwin e, junto com outros social-darwinistas, colaborou para a criação da eugenia como a "ciência" que buscaria o controle da hereditariedade humana para a preservação de grupos considerados superiores.
  • 3
    Ordover, N.
    American Eugenics... Op. cit.,
    p. 22.
  • 4
    Joseph Bristow fornece um excelente panorama histórico das teorias sobre a homossexualidade na sexologia e na psicanálise. Bristow, Joseph.
    Sexuality. New York, Routledge, 1997. O próprio termo "homossexual" foi cunhado por um húngaro com objetivos libertários em 1869, mas no ano seguinte a palavra passaria a ser utilizada para deno minar uma "patologia sexual" no célebre texto sobre as sensações sexuais contrárias de Westphal citado por Michel Foucault em
    A Vontade de Saber. Rio de Janeiro, Graal, 1985. (Tradução: Maria Thereza da C. Albuquerque.)
  • 5
    As analogias entre gênero e raça e o poder da metáfora são explorados por Ordover a partir de outros dois pesquisadores que merecem ser lembrados: Nancy Leys Stepan e Sander L. Gilman. Stepan é a autora do fundamental
    The Hour of Eugenics: Race, Gender, and Nation in Latin América (Ithaca, Cornell Univ. Press, 1996) e Gilman o historiador cultural que explora as relações entre teorias raciais e a psicanálise. Gilman observou que a medicalização e a classificação sociológica de judeus e homossexuais se deu ao mesmo tempo. Não por acaso os termos "homossexual" e "anti-semitismo" são contemporâneos, sendo que o último visava "criar um novo discurso científico para o ódio aos judeus" (Gilman
    apud Ordover, N.
    American Eugenics... Op. cit., p.99).
  • 6
    Ordover faz um histórico das denúncias de utilização de Porto Rico como base de testes para métodos anticoncepcionais e afirma que em 1976 37,4% das mulheres em idade reprodutiva de Porto Rico haviam sido esterilizadas. O racismo determinante do controle populacional e da esterilização são claros quando se constata que em 1964 65% das mulheres esterilizadas na Carolina do Norte eram negras.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Out 2006
    • Data do Fascículo
      2003
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