Acessibilidade / Reportar erro

Apresentação

DOSSIÊ: A EDUCAÇÃO DAS MASCULINIDADES

Apresentação

No impulso da chamada segunda onda do movimento feminista, que eclode nos países ocidentais nos anos 1960, ou paralelamente a ela, a academia debruçou-se de forma crescente sobre as desigualdades entre os sexos, o que dá origem aos "Estudos sobre Mulheres" (Women's Studies, nos países de língua inglesa). Trata-se inicialmente de dar visibilidade às mulheres, às suas experiências e vozes, seja no âmbito da História, seja pesquisando as operárias, o trabalho doméstico ou a psicologia feminina, por exemplo.

Sem negar a importância e o pioneirismo dessas pesquisas, hoje podemos apontar, entre seus limites, a ausência dos homens como sujeitos das investigações, o que, de certa forma, os mantinha no lugar de referência universal, enquanto as mulheres eram percebidas como diferentes e somente elas marcadas por seu sexo. Foi necessário o desenvolvimento teórico do próprio campo de estudos, que passa a articular-se em torno do conceito de gênero, para que tivéssemos uma compreensão mais alargada da experiência humana, na qual tanto homens quanto mulheres são estudados como sujeitos construídos a partir da percepção social de seu sexo. Nesse contexto, emergem os estudos sobre homens e masculinidades.

Se esse movimento é amplo nas distintas disciplinas acadêmicas que vêm lançando mão do conceito de gênero, ele não é simultâneo, nem linear. Em cada uma delas percorre um caminho particular, além de desenrolar-se dentro das especificidades dos países e regiões.

No caso da área de educação no Brasil, de início, os homens aparecem nas pesquisas, por um lado, pela via da ausência: a partir dos anos 1980, estudos sobre a chamada "feminização" do magistério indagam-se frequentemente sobre o porquê da baixa presença masculina entre os docentes, em especial na Educação Infantil e séries iniciais do ensino fundamental. Foi preciso esperar pelos anos 1990 para que os meninos e sua escolarização passassem a ser objeto de investigações e alguns estudos pioneiros fizessem a palavra "aluno" deixar de representar um ser abstrato e sem sexo e se referir então apenas à parcela masculina do corpo discente (Fraga, 1998).

De outro lado, as análises precursoras de Rosemberg (1982, 1992, 2001) já indicavam que, desde a década de 1970, as meninas e mulheres brasileiras vinham percorrendo trajetórias escolares mais bem-sucedidas, alcançando níveis de escolaridade mais altos que seus pares do sexo masculino. Essa constatação do sucesso escolar das mulheres brasileiras – de forma semelhante ao que se tem verificado nos países ocidentais – coloca para os/as estudiosos/as do campo educacional um desafio teórico, uma vez que se faz necessário explicar a aparente contradição desse sucesso com a manutenção das situações de subordinação no conjunto da sociedade (mercado de trabalho, representação política, família etc.). Essa complexidade, mal resolvida nos estudos, mesmo no plano internacional, pode ter sido uma das razões para o parco desenvolvimento de pesquisas sobre meninos e masculinidades na área educacional brasileira até recentemente.

Por fim, no que tange aos jovens e aos processos de socialização que conduzem à formação de diferentes masculinidades, o terreno não é menos árido. No senso comum, na mídia e nas agendas políticas, a associação persistente entre os jovens de sexo masculino e a violência, de forma linear e até mesmo naturalizada, soma-se à escassez de estudos acadêmicos sobre juventude e gênero, constatada, por exemplo, por Weller (2005). Em recente Estado da Arte da produção discente brasileira sobre juventude nos programas de pós-graduação em Educação, Ciências Sociais e Serviço social, entre 1999 e 2006, foram localizadas 33 teses e dissertações que tratavam da construção de masculinidades e feminilidades entre sujeitos jovens, sendo que apenas sete investigaram rapazes e três delas os abordavam a partir de atos de violência ou transgressão da ordem instituída (Sposito, 2009).

É nesse contexto de escassez de estudos e abundantes desafios teóricos que construímos este dossiê. Seus autores e autoras são, até certo ponto, desbravadores, e nos trazem pistas, questões e novas indagações a partir de diferentes inserções teóricas e disciplinares – o olhar da História, da Sociologia, dos Estudos Culturais –, lançando mão de metodologias tão díspares quanto a análise estatística, o estudo de obras literárias, entrevistas, grupos de debate e observações. Buscamos com essa diversidade refletir a riqueza de enfoques emergentes no campo educacional sobre a temática das masculinidades, sem pretensão de uma representação exaustiva do que se vem produzindo.

O artigo "Meninos na Educação Infantil: o olhar das educadoras sobre a diversidade de gênero", de Isabel de Oliveira e Silva e Iza Rodrigues da Luz, enfoca a educação dos meninos na primeira etapa da educação básica brasileira. As autoras constatam, no cotidiano das creches de Belo Horizonte, algo próximo ao que literatura internacional tem relatado para a educação escolar como um todo: uma imagem de masculinidade e de constituição dos sujeitos masculinos com muito menor necessidade de cuidados básicos – contato corporal, proteção, afetividade – se comparados com as meninas, como se aqueles pudessem "se virar sozinhos", ou seja, como se naturalmente, e com menor ajuda dos adultos, eles fossem capazes de se constituir como sujeitos no mundo.

É em torno da educação de meninos e meninas na faixa etária dos 10 aos 14 anos que se articula o texto "O trabalho como fator determinante da defasagem escolar dos meninos no Brasil: mito ou realidade?", de Amélia Cristina Abreu Artes e Marília Pinto de Carvalho. A preocupação central das autoras é discutir o argumento mais frequentemente utilizado para explicar as dificuldades escolares dos meninos: a influência negativa de sua inserção no mundo do trabalho. Com base nos microdados da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio (PNAD 2006) desenvolve-se uma modelagem estatística, visando explicar a defasagem entre idade e anos de estudo a partir da variável sexo e considerando o fator trabalho como variável de controle. Embora o trabalho prejudique o percurso escolar mais intensamente para os meninos e os afazeres domésticos de forma mais sutil para as meninas (com resultados piores para os negros de ambos os sexos), os resultados indicam que esse fator não é suficiente para explicar as diferenças entre os sexos na defasagem escolar.

O terceiro texto do dossiê avança em direção à educação secundária e nos traz a experiência de outro país, a Argentina. Em "Escolarización secundaria: asignaturas pendientes y expresiones en materia de inequidades de género", Ana Miranda e Analía Otero apresentam uma análise sobre as principais atividades dos e das jovens relacionadas às suas inserções no mundo do trabalho e nas atividades extra-escolares. A inclusão desse texto faz parte de um esforço para alargar ao conjunto da América Latina a reflexão a respeito do sucesso escolar das meninas e moças, na contramão de afirmações generalizantes de agências internacionais sobre o "terceiro mundo", segundo as quais em nossos países as mulheres seriam as maiores vítimas da exclusão e do insucesso escolares. Miranda e Otero propõem uma série de questionamentos acerca da influência das atividades extra-escolares na continuidade da educação secundária dos/das jovens argentinos/as e sustentam que existem claras expressões de desigualdade entre os sujeitos pesquisados, nas quais a condição de gênero tem implicações substantivas, uma vez que os rapazes concluem em menores proporções o ensino secundário.

Saindo do ambiente escolar, os três artigos seguintes buscam contribuir com o entendimento sobre a configuração das masculinidades em experiências culturais e políticas mais amplas, como os movimentos de jovens das periferias brasileira e francesa e a produção de representações sobre as masculinidades na literatura brasileira. O primeiro deles, de Raquel Souza – "Rapazes negros e socialização de gênero: sentidos e significados de ser homem" – propõe uma discussão sobre os processos de socialização de rapazes negros e pobres da cidade de São Paulo, problematizando como determinados sentidos e experiências sobre a masculinidade são construídos e reelaborados em suas trajetórias. A partir de trabalho empírico realizado entre 2007 e 2008, a autora argumenta em torno da ideia de que a masculinidade é um projeto construído ao longo da vida dos sujeitos, nunca acabado e marcado por revezes. Ela mostra que os rapazes construíram-se e foram construídos como sujeitos numa complexidade de espaços e de tempos, que permitiram o acesso a certa multiplicidade de valores, relações e experiências de socialização importantes para a construção de um imaginário sobre o que é "ser homem".

Apoiando-se nos estudos de gênero e culturais pós-estruturalistas e na antropologia política, o artigo "Constituição de masculinidades juvenis em contextos 'difíceis': vivências de jovens de periferia na França", de José Geraldo Soares Damico e Dagmar E. Estermann Meyer, analisa informações geradas em discussões de grupo e em entrevistas com jovens franceses de Grigny Centre – periferia de Paris – para discutir elementos, enunciados em formato de "palavras significativas", implicados com processos de constituição de identidades masculinas juvenis naquele contexto. Os autores argumentam que essas palavras significativas dimensionam modos de ser, de viver e de exercitar a masculinidade. E que essa discussão pode contribuir para pensar a "problemática" da juventude urbana pobre brasileira, em especial para modificar processos educativos que, sob a égide do argumento de "fortalecimento da auto-estima", por exemplo, continuam investindo em atributos como agressividade, competição, provisão, proteção e honra como elementos a serem, necessariamente, estimulados junto aos meninos e rapazes que educamos.

Finalmente, Matheus da Cruz e Zica e Luciano Mendes de Faria Filho abordam as "Masculinidades e experiências masculinas em Bernardo Guimarães", buscando identificar e analisar as diferentes facetas da masculinidade tais como são apresentadas na obra deste mineiro – um dos mais importantes literatos brasileiros do século XIX. A pretensão dos autores é contribuir para uma maior compreensão da forma como, no final do século XIX, a literatura participou na produção de representações e práticas de masculinidade (e de feminilidade) no Brasil. Ao mostrar como os romances retratam processos de masculinização, nos quais os personagens vão se construindo homens na disputa simbólica constante, os autores remetem aos processos de socialização que faziam (e fazem) dos homens partícipes de uma dinâmica identitária sustentada, em última instância, na busca pela admiração dos pares que, por sua vez, participam também dessa mesma lógica.

Marília Pinto de Carvalho

Luciano Mendes de Faria Filho

Referências bibliográficas

FRAGA, A. B. Do corpo que se distingue: constituição do bom-moço e da boa-moça nas práticas escolares. Dissertação de Mestrado em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1998 [ publicado posteriormente como livro: Corpo, identidade e bom mocismo: o cotidiano de uma adolescência bem comportada. Belo Horizonte-MG, Autêntica, 2000. ]

PEREIRA, Luiz. O magistério primário na sociedade de classes. Boletim nº 277, Sociologia I, nº 10, São Paulo, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, 1963, pp.1-253.

ROSEMBERG, Fúlvia. Educação formal, mulher e gênero no Brasil contemporâneo, Florianópolis, Estudos Feministas, vol. 9, nº 2, 2001, pp.515-540.

__________. Educação formal e mulher: um balanço parcial In: Costa, Albertina de O. & Bruschini, Cristina. (org.) Uma questão de gênero. Rio de Janeiro/São Paulo, Rosa dos Tempos/Fundação Carlos Chagas, 1992, pp.151-182.

__________ et alii. A educação da mulher no Brasil. São Paulo, Global, 1982.

SPOSITO, Marilia Pontes. (coord.) O Estado da arte sobre juventude na pós-graduação brasileira: Educação, Ciências Sociais e Serviço Social (1999-2006). Belo Horizonte-MG, Argvmentvm, 2009.

WELLER, Wivian. A presença feminina nas (sub)culturas juvenis: a arte de se tornar visível. Estudos Feministas, vol. 13, nº 1, Florianópolis, jan-abr. 2005, pp.107-125.

  • FRAGA, A. B. Do corpo que se distingue: constituição do bom-moço e da boa-moça nas práticas escolares. Dissertação de Mestrado em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1998 [
  • publicado posteriormente como livro: Corpo, identidade e bom mocismo: o cotidiano de uma adolescência bem comportada. Belo Horizonte-MG, Autêntica, 2000.
  • PEREIRA, Luiz. O magistério primário na sociedade de classes. Boletim nş 277, Sociologia I, nş 10, São Paulo, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, 1963, pp.1-253.
  • ROSEMBERG, Fúlvia. Educação formal, mulher e gênero no Brasil contemporâneo, Florianópolis, Estudos Feministas, vol. 9, nş 2, 2001, pp.515-540.
  • __________. Educação formal e mulher: um balanço parcial In: Costa, Albertina de O. & Bruschini, Cristina. (org.) Uma questão de gênero. Rio de Janeiro/São Paulo, Rosa dos Tempos/Fundação Carlos Chagas, 1992, pp.151-182.
  • __________ et alii. A educação da mulher no Brasil São Paulo, Global, 1982.
  • SPOSITO, Marilia Pontes. (coord.) O Estado da arte sobre juventude na pós-graduação brasileira: Educação, Ciências Sociais e Serviço Social (1999-2006). Belo Horizonte-MG, Argvmentvm, 2009.
  • WELLER, Wivian. A presença feminina nas (sub)culturas juvenis: a arte de se tornar visível. Estudos Feministas, vol. 13, nş 1, Florianópolis, jan-abr. 2005, pp.107-125.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Ago 2010
  • Data do Fascículo
    Jun 2010
Núcleo de Estudos de Gênero - Pagu Universidade Estadual de Campinas, PAGU Cidade Universitária "Zeferino Vaz", Rua Cora Coralina, 100, 13083-896, Campinas - São Paulo - Brasil, Tel.: (55 19) 3521 7873, (55 19) 3521 1704 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: cadpagu@unicamp.br