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Apresentação

DOSSIÊ: FEMINISMOS JOVENS

Apresentação

O falogocentrismo foi ovulado pelo

sujeito dominador, o galo

inseminador das galinhas permanentes da história. Mas no

ninho com este ovo prosaico foi

posto o germe de uma fênix que

falará todas as línguas de um

mundo virado de ponta cabeça.

(Donna Haraway em Gênero para um dicionário marxista:

a política sexual de uma palavra)

O movimento feminista e as mulheres jovens que se reconhecem como feministas compõem o recorte específico deste dossiê que traz como tema geral a questão das gerações no interior de movimentos sociais. Embora no exterior a bibliografia a respeito dessas temáticas seja extensa se comparada ao contexto brasileiro, optamos por concentrar nossa atenção nas produções que se voltam para o cenário nacional, com o intuito de levantar questões que envolvem o feminismo e a atuação de jovens mulheres no Brasil, e de, ao mesmo tempo, colaborar para o preenchimento de uma lacuna de pesquisas e publicações nessa área.

Algumas perspectivas teóricas e políticas inspiraram a organização deste dossiê. A primeira é a que reconhece a relação necessária e interfecunda entre os estudos de gênero e o movimento feminista, que lhe deu origem e que permanece como horizonte ético e político de sua produção. A segunda é aquela que nos orienta a observar e refletir sobre experiências geracionais a partir do contexto em que emergem (Mannheim, 1982; Featherstone, 1998; Debert, 1998; Simões e Debert, 2006; Simões, 2004) e mais que isso, considerar as experiências geracionais a partir de seus próprios termos (Abramo, 1994).

Sabemos da responsabilidade que implica dar qualquer passo na direção de iniciar uma reflexão que mobilize as ansiedades que emergem ao nos aproximarmos de reflexões que nos levam a pensar no futuro do legado feminista. Sabemos também da quase impossibilidade de escapar a convenções sociais que associam juventude com a construção do futuro. Tentamos assim nos mover no terreno do encontro entre perspectivas e demandas de duas gerações.

De um lado, percebemos o desejo de reflexão e diálogo a partir de uma trajetória feminista consolidada e ao mesmo tempo o tom nostálgico com o qual nossas ex-professoras, ao debater coletivamente trabalhos de jovens pesquisadores da área de gênero, deixam escapar lembranças de seus tempos de atuação mais intensa no ativismo feminista, bem como imagens de si mesmas como feministas jovens de outrora. De outro lado, nos deparamos com a demanda de feministas jovens e jovens feministas na direção de serem situadas a partir do contexto em que vivem e produzem suas reflexões e práticas e de seus próprios termos.

A inspiração para organizar este dossiê nasce desse encontro e traz um resultado cujo caráter é bastante específico. Diferente de situações em que são reunidos um conjunto de reflexões de referência acerca de um tema já consolidado ou em consolidação, nos propusemos a reunir um conjunto de autoras e de trabalhos que constituísse um primeiro convite à reflexão e à produção nas várias temáticas que derivam da reflexão mais geral aqui proposta.

Nas pesquisas que antecederam a elaboração desta proposta, observamos que há uma produção ainda bastante reduzida sobre o tema mais geral deste dossiê no Brasil. Contudo, no decorrer desse processo tivemos notícias de vários trabalhos recém-finalizados ou em curso, conduzidos, na maior parte das vezes, por jovens pesquisadoras ou por poucas pesquisadoras que dedicaram sua vida acadêmica à pesquisa sobre jovens e/ou juventude.

Percebemos, além disso, que a maior parte das pesquisadoras que têm empreendido essas reflexões, ainda bastante experimentais e pioneiras, é formada por autoras situadas a partir de um duplo lugar: acadêmicas e ativistas. Talvez não pudesse ser diferente. Partimos de um contexto em que a luta feminista nos possibilitou conjugar produção científica no feminino. Atualmente, uma mulher pode buscar "renome" no meio científico sem que seja preciso ser "renomeada" - a partir do nome de um marido ou pai – ou sem necessariamente passar à história como "personagem menor", cercada por "anedotas impublicáveis", como foi o caso das antropólogas que atuaram entre fins de século XIX e os anos 1940 no Brasil (Corrêa, 2003). O grau de institucionalização dos estudos de gênero, de mulheres e sobre feminismos em diversas áreas do conhecimento já nos permite uma reflexão interdisciplinar e que seja capaz de nos afastar de um possível não-lugar, outrora destinado àquelas que transitassem entre o campo acadêmico e a militância. Se as tensões entre produção acadêmica e ativismo não se dissiparam e são mesmo produtivas, o próprio desenrolar do campo propicia um lugar mais confortável para as pesquisadoras que trabalhamos a partir de uma inserção dupla, na academia e na militância, evitando que sejamos necessariamente remetidos àquele espaço ambíguo – já observado por Gregori (1993) – pelo qual seríamos vistos como "ativistas" por outros pesquisadores e como "acadêmicas" pelas ativistas.

A partir da valorização da produção de saberes localizados (Haraway, 1995), a proposta deste dossiê foi a de que esse passo no sentido da reflexão compartilhada fosse dado por meio da reunião de artigos inéditos de pesquisadoras e ativistas implicadas com o feminismo, que produzem a partir do contexto brasileiro, tomando por foco o feminismo no Brasil contemporâneo e questões geracionais, em especial, na interface entre feminismo e juventude. Se o duplo pertencimento – acadêmico e ativista – é um traço que une as organizadoras e as autoras que integram este dossiê1 1 Regina Facchini teve sua primeira formação como cientista social (FESP-SP, 1995), cursou mestrado em Antropologia Social (2002) e doutorado em Ciências Sociais (2008) na Unicamp e atuou no movimento de direito à cultura na periferia, no movimento sindical, no movimento estudantil, no de redução de danos e no LGBT - nestes dois últimos coordenando grupos de mulheres e fazendo a interface com questões e ativistas feministas. Isadora Lins França formou-se inicialmente em História (USP, 2003), cursou o mestrado em Antropologia Social (USP, 2006) e o doutorado em Ciências Sociais (2010) na Unicamp, atuou no movimento anticapitalista de inflexão autonomista, movimento estudantil, movimento de democratização da informação e movimento LGBT, tendo participado de coletivos feministas. São pesquisadoras ainda jovens na vida acadêmica, sendo que ambas se envolveram na pesquisa sobre gênero, sexualidade e movimentos sociais desde o final de seus cursos de graduação. Embora isso não tenha sido "combinado", cada autora deste dossiê indicou suas inserções acadêmicas e ativistas nos seus próprios artigos. , procuramos diversificar ao máximo no espaço de que dispunhamos, as abordagens, áreas de conhecimento, níveis de formação e contextos abordados.

Tomamos como foco o movimento feminista como movimento social na atualidade, de modo a enfrentar questões concernentes aos estudos de gênero e de cultura e política. Na interface entre esses dois modos de aproximação dessa temática, o interesse desta proposta foi explorar questões relacionadas ao sujeito político do feminismo, às tensões entre igualdade e diferença e às intersecções entre marcadores sociais de diferença. Além das intersecções entre gênero e geração, postas pela própria temática, interessava-nos trabalhar a intersecção com questões raciais, de classe e sexualidade, entre outras. Na perspectiva das conexões entre cultura e política, queríamos estimular reflexões sobre as novas formas da política no feminismo contemporâneo, sobretudo na interface entre produção cultural, estilos juvenis e política feminista, bem como sobre as diversas modalidades de participação política próximas ao feminismo.

Esse nosso convite preliminar à reflexão e à produção reúne cinco artigos inéditos, produzidos a partir de pesquisas bastante recentes. Eliane Gonçalves e Joana Plaza Pinto iniciam esse diálogo com uma reflexão orientada por uma pesquisa voltada para a compreensão dos aspectos envolvidos na transmissão intergeracional no feminismo brasileiro, desenvolvida a partir de sua inserção na universidade, como professoras universitárias, e também de sua trajetória no movimento, como colaboradoras de longa data do Grupo Transas do Corpo, de Goiânia.

O artigo, a partir da já extensa literatura a respeito do feminismo, problematiza a compreensão desse movimento a partir do estabelecimento de uma trajetória linear marcada por gerações – ou "ondas" – de ativistas, que trariam demandas, questões e estratégias de organização particulares. Ao mesmo tempo, sublinha o diálogo entre movimento social e academia no âmbito do feminismo. Apoiando-se num quadro mais amplo de análise, as autoras se esforçam por traçar caminhos para a compreensão da emergência de uma nova vertente jovem no feminismo, que situam mais como resultado das transformações e debates internos ao movimento do que como conseqüência das reconfigurações nas relações sociais e de novas demandas das mulheres. Por fim, apontam a necessidade de estudos empíricos que possam qualificar o conhecimento ainda pouco consolidado sobre as novas gerações de ativistas e localizá-las num cenário mais abrangente de prática e reflexão feminista.

Julia Paiva Zanetti nos traz resultados de sua pesquisa e sua experiência de atuação como jovem feminista no Rio de Janeiro, no Observatório Jovem da Universidade Federal Fluminense (UFF) e como integrante do Espaço Brasil do Fórum Cone Sul de Mulheres Jovens Políticas (Forito). Seu artigo oferece uma interessante colaboração à compreensão sobre a participação de jovens feministas e sobre as novas gerações no feminismo brasileiro, partindo do contexto carioca, de meados dos anos 2000. Contextualiza a organização de jovens como sujeitos políticos no interior do movimento, situando-a a partir do processo de emergência de novos sujeitos políticos, focalização de políticas públicas e de "especificação" de demandas no Brasil contemporâneo, bem como do consequente processo de "hifenização" das identidades políticas.

Ao descrever o processo de aproximação e de ingresso de jovens no movimento, Zanetti recupera o lugar multi-situado a partir do qual constituem suas identidades políticas, especialmente no que diz respeito às intersecções entre gênero, geração e cor/"raça", e nos oferece pistas para pensar sobre transformações recentes advindas do processo de institucionalização e de especificação de atores e demandas nos movimentos sociais brasileiros e no movimento feminista em particular. Na melhor tradição dos estudos sobre movimentos sociais, incorpora uma perspectiva processual, revelando algumas das tensões entre gerações no cotidiano do ativismo e permitindo entrever a diversidade interna do conjunto de ativistas a que se refere.

O artigo apresentado por Dieuwertje Dyi Huijg é fruto de pesquisa realizada em 2005 na cidade de São Paulo, por meio da qual a autora procurava apreender experiências cotidianas relacionadas a questões raciais vividas por jovens mulheres que tinham em comum a atuação no movimento feminista. O texto explora o modo como a intersecção entre gênero e raça se dá no processo complexo de identificação de feministas jovens, descritas pela autora como "(não) brancas", onde o "não" entre parênteses indica a escolha de suspender e problematizar a identidade racial tal como é expressa por essas mulheres. Cabe enfatizar que não se trata apenas de mulheres jovens, mas que também atuam em movimentos sociais.

Assim, esse processo de identificação é analisado por Huijg à luz das complexas negociações envolvidas no encontro entre prática feminista – e prática política de modo geral – e as visões e pressupostos que orientam essa prática em sujeitos cuja constituição é atravessada por diversos marcadores de diferença social. O trabalho dialoga com o contexto de especificação de identidades políticas e de participação das jovens ativistas feministas a partir da inserção em diferentes movimentos sociais.

Ainda a partir do contexto paulistano de meados para o final da década de 2000, Regina Facchini e Michelle Alcântara Camargo nos oferecem um olhar sobre a atuação de jovens feministas, críticas dos espaços institucionalizados de atuação feminista, que se organizaram, desde meados dos anos 1990, a partir de uma cena cultural juvenil, contraposta ao sexismo na cena musical punk/hardcore e inspirada pelas riot grrrls norte-americanas: a das minas do rock.

O olhar para as minas do rock se torna bastante oportuno num momento em que diversas formas de atuação e mobilização política pautadas por manifestações artístico-culturais emergem e se consolidam no Brasil. Paradas do Orgulho LGBT, movimento hip hop, saraus nas periferias (Nascimento, 2009) têm se feito visíveis e se tornado objeto de atenção de pesquisadores nos últimos anos, sobretudo a partir da constatação dos limites colocados pela institucionalização dos movimentos sociais no que diz respeito à comunicação e à capacidade de mobilização das suas chamadas "bases".2 2 No que diz respeito ao feminismo e à participação de mulheres em mobilizações político-culturais, podemos citar como exemplos: a expansão da cena do rock de mina pelas principais capitais e recente fortalecimento no nordeste do país; a criação do projeto Hip Hop Mulher, do Coletivo Minas da Rima e a rede Graffiteiras br; as Caminhadas de Mulheres Lésbicas e Bissexuais, que emergem em várias capitais desde o início dos anos 2000; a maior participação de mulheres e criação de atividades específicas em espaços como o da Cooperifa em São Paulo; a organização de agremiações culturais voltadas para mulheres e cultura afro, como o Bloco Ilú-Obá-de-Min, de São Paulo; bem como a organização de atividades culturais em organizações como é o caso da ONG Liberdade do Amor entre Mulheres (LAMCE) do Ceará ou a criação de coletivos culturais a partir de organizações feministas.

O artigo de Regina Facchini, produzido a partir de denso material etnográfico sobre as minas do rock na cidade de São Paulo no período entre 2004 e 2007, nos conduz a uma reflexão sobre interfaces entre cultura, política e produção cultural/"estilos juvenis" no âmbito do feminismo jovem. Com base em literatura feminista sobre interseccionalidades e estudos sobre "estilos juvenis", a autora se move entre letras de música, descrições de shows – especialmente nos LadyFest Brasil – e de performances nos palcos, debates, difusão de materiais na internet, relatos sobre processos de produção de sujeitos e de classificações e nos convida a explorar as relações entre produção cultural e agência política, nos âmbitos pessoal e coletivo, e a pensar em estilos como "operadores de diferenças".

Por fim, o artigo de Michelle Alcântara Camargo nos traz dados de sua pesquisa de mestrado em Antropologia Social e de sua experiência anterior como riot grrrl no interior de São Paulo, que a levou a investigar o feminismo das minas do rock na segunda metade dos anos 2000. A autora faz uma análise de publicações independentes – fanzines de papel – confeccionadas por jovens mulheres que circularam na cena das minas do rock da grande São Paulo entre os anos de 1996 e 2007. As fontes documentais dão oportunidade para o empreendimento de uma discussão sobre como estratégias e temas caros ao feminismo são reapropriados de maneira bastante multifacetada por essas jovens mulheres/autoras, que encontram nos fanzines um suporte e uma linguagem que lhes possibilita falar de seu universo. Dessa maneira, as publicações e o contexto da cena revelam-se terreno de agência para jovens mulheres inspiradas pelo feminismo. A análise do material empreendida pela autora permite, ainda, entrever tensões, como as que se dão entre diversão e feminismo e entre diversas perspectivas feministas, e diferentes "gerações" de zineiras na cena durante o período estudado.

Esses e outros feminismos jovens

Se o Forito fosse uma pessoa, seria uma

mulher jovem. Uma jovem brasileira, negra

e branca, estudante e trabalhadora, urbana

e rural, de origem nordestina, amazônica,

do Sul, Sudeste ou do Centro-Oeste, e

com um fazer político permanente pelos

direitos das mulheres. Do Brasil e do

mundo todo, pelo Brasil e com hermanas

nas vizinhanças. Se o Forito fosse uma

pessoa, já não seria criança, mas poderia

ser lésbica, jovem mãe, ou mulher que

optou por não ser mãe ainda jovem. Seria

uma militante político-partidária, ativista

de ONGs, mulher jovem com trajetória em

movimentos como o estudantil ou das

pastorais, e que já disputou cargos no

Legislativo, tendo sido até vereadora.

Sindicalizada, educadora popular,

acadêmica engajada, grafiteira ou MC,

radialista, enfim, toda sorte de

comunicadora! Desconfiada, mas também

sonhadora, a pessoa Forito seria assim,

cheia de jeitos para caber na diversidade,

sem preconceitos para não ser dona da

verdade. Mas com certeza e especialmente

seria sempre assim: uma bela feminista. Ou

várias delas!

(Fernanda Papa, introdução ao livro Jovens feministas presentes)

O material oferecido neste dossiê pode ser lido em conjunto com duas outras iniciativas. A primeira delas, a publicação, em 2009, do livro Jovens feministas presentes, fruto de oito anos de encontros do Forito – Espaço Brasil, apoiada pela ONG Ação Educativa e pela Fundação Friedrich Ebert. A segunda, a pesquisa Juventude e Integração Sul-Americanas: diálogos para a construção da democracia regional, conduzida pelas ONGs Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais (Pólis) e Instituto Brasileiro de Análises Socioeconômicas (IBASE) em 2008, que, pela primeira vez, incorporaram às suas pesquisas sobre participação e demandas juvenis um módulo específico sobre feministas.

Os artigos do livro Feministas jovens presentes (Papa; Souza, 2009) exploram intersecções entre o sujeito político jovens mulheres e os seguintes temas: políticas públicas; aborto; questões relacionadas a mulheres negras e produção cultural, com ênfase no hip hop; tráfico de pessoas e prostituição; integração feminista e latino-americana. Os depoimentos que integram o livro são de duas candidatas jovens ao legislativo que relatam essa experiência e de uma jovem feminista que integra a ONG feminista e antirracista CFEMEA, de Brasília, que atua com advocacy no Legislativo e relata dificuldades e estratégias utilizadas na luta por direitos sexuais e reprodutivos.

Na pesquisa Juventude e Integração Sul-Americana, gostaríamos de ressaltar alguns dados produzidos a partir da realização de um grupo focal com jovens ativistas integrantes de diferentes redes nacionais e internacionais3 3 As ativistas faziam parte dos seguintes grupos/redes: Marcha Mundial de Mulheres, Fuzarca Feminista, Jovens Feministas de SP, Associação Frida Kahlo, Encontro Nacional de Juventudes Negras (ENJUNE), Negras Jovens Feministas, Ocupação Afirmativa, Portal Quitéria, LadyFest Brasil, Articulação Política de Juventudes Negras e Yowli. Havia também as que exerciam função de representação ou coordenação no Conselho Nacional de Juventude, no Diálogos Feministas e no Cone-Sul da Rede-Lac de Jovens pelos Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos. Uma última representou o Brasil na discussão das metas do milênio na ONU (Escritório de Esporte pela Paz e Desenvolvimento). É preciso ressaltar a diversidade de grupos e redes representadas por esse conjunto de ativistas, bem como vale sublinhar o fato de que, como é comum nos movimentos sociais, algumas ativistas têm atuação política em mais de um grupo ou rede. e que remetem a características e à agenda política do movimento (Abramo; Facchini, 2008). Naquela situação, as jovens ativistas foram convidadas a elaborar coletivamente uma série de reflexões e a produzirem materiais para situações hipotéticas, como um ranking de prioridades em sua agenda política, após listarem uma pauta ampla que incluía: as 21 prioridades da Conferência Nacional da Juventude; várias demandas relacionadas a questões raciais, produção de conhecimento e de políticas de educação, trabalho, lazer, saúde; visibilização de jovens como sujeitos de direitos e atores políticos; direitos sexuais e reprodutivos; capacitação para uso de tecnologias de comunicação e para a participação cidadã; e apoio facilitado para a produção de formas de expressão cultural por e para mulheres jovens.

No âmbito das demandas que circulam nos espaços de participação na América do Sul, listaram: aborto, Estado laico, questão agrária, direitos sexuais e reprodutivos, promoção da igualdade racial, acesso a recursos para coletivos autônomos de jovens, participação política, acesso a recursos para coletivos autônomos de jovens, diálogo entre as diversidades e identidades; combate à violência e ao tráfico internacional de mulheres; transparência e modelos de Estado; papel das esquerdas na América-Latina, questões indígena e ecológica.

Para o ranking prioritário foram pactuados pelo grupo apenas três demandas:

1. Todas as demandas de jovens devem ser consideradas a partir da diversidade dos jovens e da diversidade regional brasileira;4 4 A noção de diversidade apareceu no discurso das jovens como algo necessário para pensar as demandas da juventude, assim como políticas públicas e programas que beneficiem essa população.

2. Publicizar o termo e efetivar o Estado Laico, levando em conta sua importância tanto para a efetiva liberdade religiosa quanto para a garantia de direitos sexuais e reprodutivos;

3. Participação política com auto-representação.5 5 A ideia de participação com auto-representação aparece informada pela importância de que as próprias jovens possam vocalizar suas necessidades e prioridades e ajudem a pensar, assim como reivindiquem, políticas que contemplem seu melhor interesse.

Algumas das prioridades e da agenda mais ampla presentes nesses dois materiais remetem a características também observadas em alguns dos artigos que compõem este dossiê. Uma delas diz respeito ao múltiplo pertencimento identitário e à participação em vários movimentos sociais (Abramo; Facchini, 2008; Papa; Souza, 2009), como vemos nos artigos de Zanetti, Huijg, Facchini e Camargo. Outra reside na ênfase na diversidade e na habilidade – certamente forjada a partir da necessidade – de articular igualdade e diferenças (Abramo; Facchini, 2008; Papa; Souza, 2009), como vemos em todos os artigos deste dossiê.

Essas duas características apontam para o processo de questionamento do caráter essencial da categoria mulher como sujeito do feminismo e para processos de re-elaboração desse sujeito político, que para as jovens é vivido não como um desenvolvimento recente dos debates feministas, mas como algo intrínseco à própria atuação feminista – que, como relata Zanetti, se inicia a partir da inserção em outros movimentos e se mantém por meio da múltipla inserção ativista, também abordada por Huijg. A necessidade de articular igualdade e diferenças não se restringe aos espaços de atuação institucional de jovens feministas, fazendo-se presente, como indica Facchini ao explorar a categoria e o que chama de "drama dyke", nos debates das minas do rock e no próprio processo que constitui as dykes como ícones do seu feminismo.

A inserção de jovens no movimento por meio de fóruns e redes mais amplos ou por meio de ONG, como nos mostra Zanetti e os outros materiais indicados neste tópico, remete a um processo de institucionalização. Tudo isso ainda é muito novo no cenário dos movimentos sociais brasileiros. Trata-se de uma realidade que se configura a partir de meados dos anos 1990. Por outro lado, nota-se a constituição de espaços de atuação às margens das formas institucionais reconhecidas, como mostram os artigos de Facchini e Camargo e as intervenções de jovens relacionadas às minas do rock e à Marcha Mundial de Mulheres na pesquisa relatada por Abramo e Facchini (2008). A reiteração da necessidade de espaços de controle social que não se limitem aos conselhos de políticas públicas e da pertinência do uso de estratégias de "ação direta" é ainda outro aspecto dos debates que acompanham a institucionalização.

A ênfase nas intersecções com questões raciais e de sexualidade chamam muita atenção no conjunto dos artigos apresentados e nos materiais que aproximamos para refletir sobre características que marcam o feminismo das jovens.

Com relação à intersecção entre gênero, geração e sexualidade, abordada nos artigos de Zanetti, Facchini e Camargo, mas mais especialmente nas estratégias das minas do rock, gostaríamos de tecer algumas hipóteses que se referem às relações intergeracionais no movimento feminista. Os direitos sexuais são uma bandeira do movimento feminista desde meados dos anos 1990, embora essa temática estivesse presente desde os anos 1970 no cenário nacional, mesmo que formulada em outros termos. No entanto, parece hoje haver maior preocupação com uma série de questões relacionadas à sexualidade entre as jovens. É como se o aprofundamento da incorporação do lema "o pessoal é político" tivesse trazido o "dispositivo de sexualidade" (Foucault, 1977) para o centro da agenda feminista jovem: demandas relativas ao combate à violência, por exemplo, passam a incorporar mais fortemente questões como assédio, tráfico e turismo sexual, como nos relata Zanetti; homofobia, abuso sexual de crianças e adolescentes no âmbito familiar e as possibilidades de violência no âmbito de relações afetivo-sexuais entre mulheres, bem como sua discussão a partir da noção de "consenso sexual", como nos mostra Facchini.

Os artigos deste dossiê indicam a difusão do ideário feminista por vários movimentos e práticas sociais. Os conflitos intergeracionais existem, sobretudo, no que diz respeito ao reconhecimento das jovens como sujeitos políticos no interior do feminismo, como indicam os artigos de Gonçalves e Pinto e de Zanetti. Contudo, como mostram os trabalhos aqui reunidos, tais conflitos não implicam necessariamente rupturas em relação a referências e estratégias mais tradicionais do feminismo. Ao contrário, o que vemos são re-apropriações de temas e estratégias caros ao feminismo, que passam a conviver com novas formas de organização e de práticas políticas.

Tensões entre atuação em coletivos ou organizações ativistas e nas universidades; ativistas que procuram manter a unidade do sujeito político e as que apostam na diversidade; atuação por meio de espaços institucionalizados ou autônomos: tudo isso colabora para compor a multiplicidade e a riqueza do feminismo atual. O feminismo continua plural, complexo, instigante, reflexivo e, acima de tudo, vivo!

Para finalizar, gostaríamos de agradecer às diversas pessoas e instituições que colaboraram para que este dossiê fosse organizado. Ao Comitê Editorial dos cadernos pagu pelo convite que levou à elaboração deste dossiê. À Mariza Corrêa, pelas oportunidades de diálogo e pelo estímulo a esta proposta. Às pesquisadoras do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu com quem pudemos compartilhar ideias a respeito deste projeto em diversas ocasiões, especialmente a Maria Filomena Gregori e Júlio Assis Simões. Às autoras que aceitaram construir conosco esta empreitada, com empenho e generosidade. Ao Pólis e ao Ibase, e mais especialmente a Helena Abramo, por nos propiciarem uma primeira ocasião de reflexão mais sistemática sobre movimentos juvenis e feminismos jovens na pesquisa Juventudes e Integração Sul Americana. Por fim, agradecemos à equipe editorial dos cadernos pagu, sobretudo a Luciana Camargo Bueno, que contribuiu de várias maneiras para que este projeto se concretizasse.

Desejamos que a leitura deste nosso convite à reflexão e à produção seja prazerosa e estimulante. Boa leitura!

Regina Facchini e Isadora Lins França

  • Abramo, Helena W. Cenas juvenis: punks e darks no espetáculo urbano São Paulo, Scritta, 1994.
  • Abramo, Helena W.; Facchini, Regina. Relatório Juventude e integração sul-americana: diálogos para construir uma democracia regional. Informe dos grupos focais no Brasil. São Paulo, Pólis, 2008. Disponível em: http://www.juventudesulamericanas.org.br/index.php/biblioteca/doc_download/44-juventude-e-integracao-sulamericanadialogos-para-construir-uma-democracia-regional-brasil Acesso em 25/03/2011.
  • Corrêa, Mariza. Antropólogas & Antropologia Belo Horizonte, Ed. da UFMG, 2003.
  • Debert, Guita Grin. Pressupostos da reflexão antropológica sobre a velhice. In: Debert, Guita Grin. A antropologia e a velhice - Textos Didáticos, 2Ş ed., 1 (13), Campinas, IFCH/Unicamp, 1998, pp.07-28.
  • Featherstone, Mike. O curso da vida: corpo, cultura e imagens do processo de envelhecimento. In: Debert, Guita Grin. A antropologia e a velhice - Textos Didáticos, 2Ş ed., 1 (13), Campinas, IFCH/Unicamp, 1998, pp.49-71.
  • Foucault, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber Rio de Janeiro, Graal, 1977.
  • Gregori, Maria Filomena. Cenas e Queixas - um estudo sobre relações violentas, mulheres e feminismo São Paulo, Paz e Terra/ANPOCS, 1993.
  • Haraway, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu (5), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero - Pagu/Unicamp, 1995, pp.7-41.
  • __________. Gênero para um dicionário marxista: a política sexual de uma palavra. Cadernos Pagu (22), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero - Pagu/Unicamp, 2004, pp.201-246.
  • Mannheim, Karl. O problema sociológico das gerações. In: Foracchi, Marialice M. (org.) Karl Mannheim: Sociologia São Paulo, Ática, 1982, pp.67-95.
  • Nascimento, Érica Peçanha do. Vozes marginais na literatura Rio de Janeiro, Aeroplano, 2009.
  • Papa, Fernanda de Carvalho; Souza, Raquel. Jovens Feministas Presentes São Paulo/Brasília, Ação Educativa, Fundação Friedrich Ebert/UNIFEM, 2009.
  • Simões, Júlio A.; Debert, Guita G. Envelhecimento e velhice na família contemporânea. In: Freitas, Elizabete Viana et alii (org.) Tratado de geriatria e gerontologia, vol. 1, 2Ş ed., Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 2006, pp.1366-1373.
  • Simões, Júlio A. Homossexualidade masculina e curso da vida: pensando idades e identidades sexuais. In: Piscitelli, Adriana; Gregori, Maria F.; Carrara, Sérgio. Sexualidade e saberes: convenções e fronteiras Rio de Janeiro, Garamond, 2004, pp.415-447.
  • 1
    Regina Facchini teve sua primeira formação como cientista social (FESP-SP, 1995), cursou mestrado em Antropologia Social (2002) e doutorado em Ciências Sociais (2008) na Unicamp e atuou no movimento de direito à cultura na periferia, no movimento sindical, no movimento estudantil, no de redução de danos e no LGBT - nestes dois últimos coordenando grupos de mulheres e fazendo a interface com questões e ativistas feministas. Isadora Lins França formou-se inicialmente em História (USP, 2003), cursou o mestrado em Antropologia Social (USP, 2006) e o doutorado em Ciências Sociais (2010) na Unicamp, atuou no movimento anticapitalista de inflexão autonomista, movimento estudantil, movimento de democratização da informação e movimento LGBT, tendo participado de coletivos feministas. São pesquisadoras ainda jovens na vida acadêmica, sendo que ambas se envolveram na pesquisa sobre gênero, sexualidade e movimentos sociais desde o final de seus cursos de graduação. Embora isso não tenha sido "combinado", cada autora deste dossiê indicou suas inserções acadêmicas e ativistas nos seus próprios artigos.
  • 2
    No que diz respeito ao feminismo e à participação de mulheres em mobilizações político-culturais, podemos citar como exemplos: a expansão da cena do
    rock de mina pelas principais capitais e recente fortalecimento no nordeste do país; a criação do projeto Hip Hop Mulher, do Coletivo Minas da Rima e a rede Graffiteiras br; as Caminhadas de Mulheres Lésbicas e Bissexuais, que emergem em várias capitais desde o início dos anos 2000; a maior participação de mulheres e criação de atividades específicas em espaços como o da Cooperifa em São Paulo; a organização de agremiações culturais voltadas para mulheres e cultura afro, como o Bloco Ilú-Obá-de-Min, de São Paulo; bem como a organização de atividades culturais em organizações como é o caso da ONG Liberdade do Amor entre Mulheres (LAMCE) do Ceará ou a criação de coletivos culturais a partir de organizações feministas.
  • 3
    As ativistas faziam parte dos seguintes grupos/redes: Marcha Mundial de Mulheres, Fuzarca Feminista, Jovens Feministas de SP, Associação Frida Kahlo, Encontro Nacional de Juventudes Negras (ENJUNE), Negras Jovens Feministas, Ocupação Afirmativa, Portal Quitéria, LadyFest Brasil, Articulação Política de Juventudes Negras e Yowli. Havia também as que exerciam função de representação ou coordenação no Conselho Nacional de Juventude, no Diálogos Feministas e no Cone-Sul da Rede-Lac de Jovens pelos Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos. Uma última representou o Brasil na discussão das metas do milênio na ONU (Escritório de Esporte pela Paz e Desenvolvimento). É preciso ressaltar a diversidade de grupos e redes representadas por esse conjunto de ativistas, bem como vale sublinhar o fato de que, como é comum nos movimentos sociais, algumas ativistas têm atuação política em mais de um grupo ou rede.
  • 4
    A noção de diversidade apareceu no discurso das jovens como algo necessário para pensar as demandas da juventude, assim como políticas públicas e programas que beneficiem essa população.
  • 5
    A ideia de participação com auto-representação aparece informada pela importância de que as próprias jovens possam vocalizar suas necessidades e prioridades e ajudem a pensar, assim como reivindiquem, políticas que contemplem seu melhor interesse.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Maio 2011
    • Data do Fascículo
      Jun 2011
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