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Projetos profissionais e/ou maternidade: críticas a um dilema/sofrimento feminino (ainda) contemporâneo

RESENHAS

Projetos profissionais e/ou maternidade. Críticas a um dilema/sofrimento feminino (ainda) contemporâneo* * Resenha de Badinter, Elisabeth. O conflito: a mulher e a mãe. Rio de Janeiro, Record, 2011. Recebida para publicação em 13 de maio de 2011, aceita em 11 de agosto de 2011.

Ana Paula Tatagiba

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, E-mail: atatagibab@gmail.com

As primeiras notícias sobre Le conflite, la femme et la mère, último livro de autoria de Elisabeth Badinter, por certo, referiram-se à celeuma que a obra causou tão logo foi lançada em Paris, no primeiro semestre de 2010. Lançado recentemente em português, pela Editora Record, foi traduzido por Vera Lucia dos Reis e teve revisão técnica de Joel Birman.

Iniciando sua argumentação, distribuída ao longo de 222 páginas, divididas em três seções e sete capítulos, Badinter oferece um Panorama Geral sobre As Ambivalências da Maternidade.

No breve capítulo inicial, a autora retoma questões longamente desenvolvidas no clássico Um amor conquistado: o mito do amor materno (1985) que se tornou best-seller nos anos 1980. Ela rememora a inconstância e a não universalidade do desejo das mulheres conceberem, avaliando que o fato de "pôr um filho no mundo" é "a decisão mais perturbadora que um ser humano é levado a tomar na vida" (18) – obviamente referindo-se às situações na qual a geração de um ser humano envolve a reflexão prévia dos envolvidos.

Um amor conquistado..., cujas ideias perpassam O conflito..., continua sendo uma temática muito atual, tanto que a autora afirma que "nada é mais inconfessável em nossa sociedade" do que o reconhecimento (por parte da mãe) de "que se enganou, que não era feita para ser mãe" (24). Por certo, tal afirmação, ainda hoje, faz da mulher que assume "que obteve com isso poucas satisfações (...) uma espécie de monstro" (24). No entanto, a autora informa que "fibra materna" é um termo mais adequado, em substituição à "instinto materno", expressão que está fora de moda, sendo rejeitada hoje pelos simpatizantes das ideias ais quais o termo faz alusão (32).

Ao avaliar que justificativas racionais têm um peso ínfimo na escolha de homens e mulheres para encararem a tarefa de ser "pai" e "mãe", Elisabeth Badinter ressalta que ambos desconhecem os motivos que os levam a optar pela pater/maternidade. Assim, questões afetivo-normativas "um casal sem filhos parece hoje uma anomalia" (20) tendem a exercer uma influência maior entre os casais, embora, nem sempre sejam explicitadas.

Ao ressaltar a baixa ocorrida nas taxas de fecundidade em cerca de quinze países e a heterogeneidade das opções femininas – que fizeram com que pesquisadores como Catherine Hakim e Neil Gilbert sugerissem a categorização das mulheres europeias, considerando a sua proximidade com a vida familiar e com o trabalho –, Badinter conclui esse capítulo introdutório caracterizando esses tempos que correm: eles marcam a volta da "boa mãe"!

Na segunda parte do livro, a autora desenvolve sua análise sobre a Ofensiva Naturalista, destacando processos ideológicos, porque "não fortuitos" (78) que, estando em curso desde os anos 1970/80, têm contribuído para recrudescer a luta pela autonomia/emancipação das mulheres, a saber: o crescimento do movimento ecológico, o retorno da fibra materna como chave-explicativa para comportamentos femininos e as mudanças ocorridas no âmbito do próprio movimento feminista.

O discurso ecológico é, na visão da autora, um dos responsáveis por uma "nova", ou melhor dizendo "retrógrada", postura feminina em relação à maternidade, provocando o rechaçamento de processos envolvendo a química (até mesmo – pasmem! – em relação à ingestão da pílula anticoncepcional e o uso da anestesia peridural no momento do parto); a valorização de procedimentos não-invasivos na hora do nascimento com a ressignificação até mesmo do ato de sofrer a dor dele decorrente; os comprometimentos da utilização de fraldas descartáveis para o meio ambiente; e as vantagens da amamentação no esquema de "demanda espontânea", ou seja, onde, quando e em quê quantidade a criança solicitar.

Ao abordar a revalorização do instinto de ser mãe, Elisabeth Badinter remete às explicações alicerçadas na Biologia que enxergam a "fêmea" no lugar da mulher, valorizando a teoria do vínculo (bonding) e o "período sensível", cujo respeito seria fundamental para que houvesse maior aceitação do bebê por parte da parturiente, garantindo, inclusive, melhor desenvolvimento infantil ao longo do primeiro ano de vida.

Analisando características das feministas da segunda onda, a autora considera que, desde os anos 1980, a maternidade vem sendo (re)considerada como "a experiência crucial da feminilidade" (71); contextualizando os trabalhos de Alice Rossi e Carol Gilligan que defendem, respectivamente, as ideias de "diferença identitária e maternalismo natural (já que tal capacidade está geneticamente dada)" e de "solicitude inerente à mulher com os outros" (a noção de care).

Ao término da segunda parte do livro, a autora, destacando o modelo sueco – no qual se pretende "conciliar maternidade e carreira, criando condições de igualdade profissional entre os sexos" (137) –, endossa questões já apresentadas quanto à disponibilidade que a mãe deve ter em relação à/ao filha/o. Destaca, assim, que há uma secundarização da existência de um casal que antecedeu a chegada da criança, interferindo na vivência de sua intimidade e sexualidade, num cenário em que o pai é, popularmente falando, "posto para escanteio" para, posteriormente, a própria mulher ser o alvo de um auto-esquecimento em benefício da prole.

Esse auto-esquecimento, inclusive, é motivo de cobrança das jovens que, nascidas em 1970, criticam suas mães e o movimento feminista (a ponto de não se identificarem "nele" nem "com ele") pela negligência de terem valorizado mais o qualitativo em detrimento do quantitativo quando o assunto era a atenção dada às/aos filhas/os (134, 135), apesar de lhes serem gratas pelos avanços no âmbito da contracepção e do aborto, a observar-se a experiência francesa.

Na terceira parte do trabalho – De tanto superestimar –, Elisabeth Badinter discorre sobre a diversidade das aspirações femininas, podendo incluir ou não a vivência da maternidade, abordando a questão da nuliparidade (que faz com que a mulher se sinta "amputada de sua existência"), a decisão feminina de permanecer childfree ou a situação dos postponers (casais que prorrogam a chegada da criança).

Discorrendo sobre o que alcunhou A greve dos ventres, o texto parece ganhar fôlego novo, o que é uma grata surpresa para um capítulo que se presta a encaminhar para as conclusões. Analisando que o "ideal materno choca-se violentamente contra as obrigações cada vez mais exigentes do mundo do trabalho" (158), a autora tece comentários sobre a necessária redefinição da identidade feminina que parece gritar a partir da "surda resistência contra a maternidade" empreendida por algumas mulheres (163).

A autora, analisando dados de diferentes países referentes aos nascimentos e constituição familiar, aponta que "o modelo da complementaridade dos sexos que comanda a estrita separação dos universos masculino e feminino" e a "ausência de uma política familiar decididamente cooperante para as mulheres" (164) são fatores decisivos para que a maternidade seja cada vez mais posta em xeque e adiada. Finaliza o trabalho conferindo ênfase à experiência das mulheres francesas, mal-faladas por serem pouco afeitas à amamentação e bastante desprendidas para encaminhar sua cria à creche, destacando as políticas públicas implementadas pelo Estado francês.

Apesar de a autora cometer certo exagero ao afirmar que o uso da mamadeira possibilitou certa "divisão de papéis diferente", sugerindo um maior compartilhamento das tarefas de cuidados entre os casais no último quartel do século XX, e entendendo que, a partir de seu uso, os homens tivessem maximizado o seu envolvimento com as tarefas referentes ao bebê, os exemplos que elenca são bastante pertinentes quanto ao que se pode denominar "ditadura do peito".

Obviamente, existem artifícios disponíveis no mercado que podem conferir maior liberdade às mães nos primeiros meses/anos de vida do bebê. No entanto, muito antes de envolverem os homens com as atividades tidas como "femininas", eles costumam envolver outras mulheres, como os estudos sobre intergeracionalidade comprovam.

É importante também lembrar que alguns instrumentos disponíveis podem ser pseudo-facilitadores e, para algumas mulheres brasileiras, a mamadeira inclui-se aqui: se, por um lado, o aleitamento materno deixa a mãe à mercê do bebê, o uso da mamadeira, além de dispendioso, requer um ritual de higienização que algumas preferem dispensar.

Listagem de custos e benefícios à parte, o que parece importar não é polemizar quanto à pertinência do aleitamento materno, mas discutir a forma como a mensagem tem chegado às mães, como se "fora do peito não houvesse salvação".

A abordagem dos temas que Elisabeth Badinter ressalta faz vir à lembrança padrões de domesticidade e práticas de maternagem já recomendadas desde o século XIX. Hilda Agnes Hübner Flores (2000), ao destacar quesitos que compunham o Original contrato de casamento que basearia a união de Honorina Gabriela de Almeida e Ferdinando Martino, residentes no Rio Grande do Sul, menciona os compromissos assumidos pela esposa:

9. Serei a primeira a erguer-me do leito ao despertar o dia, para aprontar o café, arrumar a casa, dar ordens à criada, observar o asseio da cozinha, dos pratos, das panelas, xícaras, talheres, limpeza dos aposentos e do pátio, assim como determinar o preciso para o almoço e janta, e não consentirei que criadas levem trouxinhas para casa;

16. Se tivermos filhos, serão por mim amamentados, salvo ordem contrária do médico (Flores, 2000:72-73).

Honorina, sem pestanejar, reagiu fortemente e declinou do compromisso! Optou pelo trabalho de cozinheira e, ironicamente, foi trabalhar na casa de Ferdinando após o seu enlace com uma outra senhora.

Em que pese a importância do trabalho feminino desenvolvido em casa, a invisibilidade lhe é uma ingrata característica. A fim de oportunizar uma reviravolta nas análises elaboradas em diferentes campos do saber – pois como bem avaliam Hildete Pereira e Marta Castilho, "O que se observa é que a economia, a sociologia e a política esquecem-se do autêntico objetivo das pessoas: a vida, o bem-estar e a reprodução" (Pereira; Castilho, 2007:5) – ampliam-se perspectivas de estudo que consideram a chamada "economia do cuidado".

De acordo com a Red Internacional de Genero y Comercio, o termo "economia do cuidado" possibilita considerar o

espaço de bens, serviços, atividades, relações e valores que permitem cumprir com as necessidades mais básicas para a existência e a reprodução das pessoas. [Ainda que parte dos serviços seja] prestada nos lares, com base no trabalho não remunerado das mulheres, também são oferecidos pelo setor público e pelo mercado. O uso do termo "economia do cuidado" enfatiza que estes bens ou serviços geram ou contribuem para gerar valor econômico (Red Internacional de Género y Comercio, 2008:10).

Assim, sua cunhagem traz uma grandiosa contribuição para consolidar a politização do debate acerca do trabalho cotidianamente desenvolvido nos marcos do lar. Ressalta-se que, a mulher, que permanece executando incontáveis e repetidas atividades no âmbito privado, costuma responder que "não faz nada" quando indagada sobre sua situação ocupacional, confundindo "trabalho" com "emprego", acaba por não dar visibilidade aos esforços que empreende no dia-a-dia, eo seu trabalho, que também pesa no mundo mercantil, torna-se, ociosidade.

No contexto brasileiro, políticas públicas, como nos modelos suecos e francês, resguardadas as suas particularidades e necessidades de adequação a cada contexto social, devem compor, de forma incisiva, a agenda política dos movimentos sociais (embora de maneira um tanto equivocada pareçam importar apenas às feministas). E "a briga será boa", pois "é bastante arraigada a ideia de que os responsáveis pelas tarefas relativas ao cuidado dos indivíduos são os próprios membros da família" (Guedes, 2007:18).

Recentemente, ao término de um dos estudos realizados no COMEM – Coletivo de Mulheres que estudam Mulheres, quando teciam-se comentários quanto à pauta atual do movimento feminista brasileiro, Denise Fonseca, coordenadora do trabalho, bem lembrou de um argumento que parece descrever a motivação para que algumas mulheres brasileiras que podem, adiem a retomada das atividades profissionais quando chega um bebê: "Eu não vou deixar meu filho com ninguém. Não quero que criem ele por mim".

Diante desse cenário, de fato, Elisabeth Badinter se detém em mostrar que está em curso uma "suave tirania dos deveres maternos", composta por discursos (principalmente o maternalista) que, ao que tudo indica, tem feito eco entre as mulheres. No entanto, o ressonar desse ideário saudosista-conservador não se faz sem resistências.

E esse é um dos muitos méritos de O conflito: a mulher e mãe: denunciar a forma como as mulheres têm sido, veementemente, convocadas a se doarem ainda mais em prol do cuidado com os outros, cuja personificação maior ainda é o/a filho/a, embora essa lista de necessitados de atenção feminina seja bem maior.

  • Badinter, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985. [Tradução: Waltensir Dutra]
  • Flores, Hilda Agnes Hübner. Corimbo (1883-1943) e feminismo no Brasil. Faces de Eva, nş 4. Estudos sobre a Mulher. Lisboa, Edições Colibri, 2000, pp.71-88.
  • Guedes, Moeda. A economia do cuidado: As instituições no Brasil. Comercio, Gênero y Equidad em América Latina: generando conocimiento para la acción política Red Internacional de Gênero y Comercio. Setembro, 2007.
  • [http://www.equit.org.br/docs/publicacoes/livros/CGE_Br_Economia.pdf - Acesso em 09 de maio de 2011]
    » link
  • Melo, Hildete Pereira de; Castilho, Marta R. Brasil Trabalho reprodutivo: quem faz? Comercio, Gênero y Equidad em América Latina: generando conocimiento para la acción política Red Internacional de Gênero y Comercio. Setembro, 2007. [www.generoycomercio.org/areas/.../Br-Trabalho-reprodutivo.pdf Acesso em: 9 mai. 2011]
  • Red Internacional de Género y Comercio. Boletim Capítulo Latino-Americano, nş 8, abril/maio, 2008.
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    Resenha de Badinter, Elisabeth.
    O conflito: a mulher e a mãe. Rio de Janeiro, Record, 2011. Recebida para publicação em 13 de maio de 2011, aceita em 11 de agosto de 2011.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Nov 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2011
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