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A organização das feministas negras no Brasil, Núbia Regina Moreira

Mulheres negras em movimento: rizomas da negritude e do feminismo?* * Resenha de MOREIRA, Núbia Regina. A organização das feministas negras no Brasil. Vitória da Conquista-BA, Edições UESB, 2011. Recebida para publicação em 13 de julho de 2011, aceita em 23 de abril de 2012.

Clovis Carvalho Britto

Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília. Professor da Universidade Estadual de Goiás e do Centro de Ciências de Jussara. clovisbritto5@hotmail.com

Tendo como guia os itinerários do movimento de mulheres negras do Rio de Janeiro e São Paulo entre 1985 e 1995, a pesquisa A organização das feministas negras no Brasil, da socióloga Núbia Regina Moreira, permite a reconstrução e a problematização de instigantes facetas da formação do feminismo negro brasileiro. Na verdade, para além das discussões dos movimentos e feminismos no plural, o trabalho permite visualizarmos, através de uma acurada etnografia repleta de entrevistas, levantamentos documentais e imersão dentre punhos negros e corações feministas, dois dos principais interlocutores do movimento de mulheres negras: os movimentos negros e feministas. Movimentos que contribuíram para a formatação da democracia no Brasil e para a instituição de novos matizes nas representações sociais e políticas de mulheres negras militantes no feminismo, nos partidos políticos e/ou em organizações não-governamentais; dois caudalosos rios que desembocaram na foz apresentada pela pesquisadora. Em outras palavras, os caminhos traçados não deixaram a cor passar em branco ao demonstrar aspectos ainda pouco estudados no que concerne à profissionalização da militância.

Para tanto, torna-se importante destacarmos, de antemão, a opção epistemológica por não somente apontar a diferença das mulheres, mas atentar para a diferença nas mulheres ao levantar o véu de Ísis da institucionalização e consolidação do feminismo negro. Evidenciando não-ditos, discursos de diferença e identidade e problematizando os direcionamentos basilares das feministas negras brasileiras, analisa a objetivação da representação política dessas mulheres. O trabalho, fruto da dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Campinas, demonstra como a representação da identidade feminina negra gera fissuras no interior das organizações na medida em que a determinação da raça se torna insuficiente para sustentar uma identidade feminina negra que pretende abarcar as diferentes nuanças das mulheres negras. No mesmo sentido, apresenta outros marcadores de desigualdades que atingem de modo distinto as mulheres negras de acordo com sua posição no espaço social e os trajetos desenvolvidos por cada uma das agentes; orientação que dialoga com o referencial teórico-metodológico de Pierre Bourdieu (2007) quando concebeu os acontecimentos biográficos como alocações e deslocamentos no espaço social e que a trajetória ou envelhecimento social do agente se visualiza conjuntamente com a reconstrução dos estados sucessivos do campo em que ela se esboçou. A partir dos diferentes trajetos de algumas agentes que possuíam em comum as marcas étnicas, de gênero e de mobilização política, a autora entreabriu a possibilidade de compreender o conjunto das relações que as vincularam e vinculam ao espaço social e, consequentemente, ao conjunto dos demais agentes envolvidos nesse espaço.

A opção metodológica de tecer a trajetória do feminismo negro a partir (e para além) das fronteiras dos movimentos feministas e negros encaminha para visualizarmos de que modo a temática racial integrava o feminismo "tradicional" no Brasil, o lugar das mulheres negras no movimento feminista, as demandas do movimento negro e o papel das mulheres em sua configuração, dentre outras questões fundamentais para a compreensão das organizações brasileiras. Nesse aspecto, analisa o feminismo negro como um movimento social nos moldes das orientações de Maria da Glória Gohn (2006), apontando um mapeamento do cenário da organização das feministas negras no país, sua institucionalização e os impactos da emergência desses novos atores. Todavia, avança ao entrecruzar sua análise em movimentos sobre temas específicos (raça e movimento das mulheres), tecendo olhares interseccionais, e ao suscitar de que modo essa intersecção influencia a militância feminista de mulheres negras. Na verdade, dialoga, de certo modo, com as análises de Ochy Curiel (2004) e Vanilda Oliveira (2006) quando destacaram de que forma a atenção para as intersecções têm dado origem a diferentes politizações dos sujeitos (subalternizados) no feminismo, realizando uma dupla desterritorialização.

Essa percepção inovadora, a despeito das escassas pesquisas sobre o feminismo negro e o campo feminista, como sublinhado pela professora Lourdes Bandeira no prefácio da obra, foi construída a partir da própria trajetória de Núbia Moreira. É uma mulher negra, pesquisadora e que militou no Fórum de Mulheres Negras do Rio de Janeiro, possuindo em seu habitus muitas das questões suscitadas no livro. Nesses moldes outra contribuição da obra é demonstrar eixos analíticos capazes de enfrentar com paixão e rigor o desafio da proximidade. Estranhar o familiar possibilitou que a reflexão sobre a singularidade de uma época e de determinadas vidas com ideais comuns constituísse um atalho para a instituição de um texto perpassando a história das ideias. Há algumas décadas os estudos de histórias de vida e de grupos tornaram-se matéria importante para as ciências sociais por esboçarem as interações dos indivíduos, percebidos como sujeitos de ação social tecida a partir de uma rede de significados. Os cientistas sociais passam a visualizar os indivíduos como intérpretes de mapas e códigos socioculturais, fator que enfatizaria a dinamicidade da vida social e instituiria pontes entre os níveis micro e macro (cf. Velho, 2003).

Além disso, conhecer melhor o pensamento sociológico requer compreender como os cientistas sociais "conversam, como pensam, quais são suas crenças, valores, idiossincrasias, suas influências, suas vaidades, seus princípios explicativos e referências teóricas" (Bastos et alii, 2006:7). Nesses termos, a autora, mergulhando em sua vivência e na vivência de diferentes mulheres, conseguiu captar questões até então pouco estudadas pelas ciências sociais, fundamentais para a compreensão da organização das feministas negras e, à flor da pele, articulou a tríade representação-identidade-diferença como eixo basilar de suas discussões.

Sensível aos conflitos que resultaram no que definiu como a quebra da homogeneidade da identidade feminina negra, apresenta-nos as origens das primeiras organizações não-governamentais de mulheres negras (ONGs) e os percursos da representatividade política dessas agentes frente aos organismos nacionais e internacionais de deliberação de políticas públicas. Desse modo, destaca que, independentemente das militantes se reconhecerem como feministas ou integrantes do movimento negro, suas vozes encaminhavam para a problemática em torno da representação política para e nas organizações de mulheres negras:

A nossa atenção se volta para compreender o contexto de afirmação de uma representação política que fosse legítima para negociar as demandas específicas referentes às experiências das mulheres negras, em que se assiste a uma crise identitária, impulsionada com o desvelar ou a quebra da abstração universal mulher negra. É um acertar de contas entre as mulheres negras, que se encaminha para a constituição de organizações de mulheres negras que serão definidas e agrupadas pelas afinidades, não puramente étnicas, mas, principalmente, políticas (Moreira, 2011:17).

Em outros termos, Núbia inventariou e analisou um fenômeno em formação, algo então novo no campo dos movimentos sociais no Brasil, tornando-se uma das primeiras estudiosas a mapear e lançar luzes sobre essa movimentação que surgia. Embora suas pesquisas de campo tenham sido realizadas apenas nas cidades do Rio de Janeiro e em São Paulo, concordamos com a generalização estampada no título. Para além de suas especificidades, as organizações de feministas negras em outras cidades e regiões brasileiras não diferem significativamente da estrutura inicial e das demandas mestras instituídas por suas precursoras fundadas nessas duas cidades. Não sem motivos, impactaram a trajetória do movimento em âmbito nacional:

A escolha das cidades deve-se ao fato de terem sido palco das manifestações e decisões mais importantes referentes ao feminismo negro, como passeatas, encontros e seminários regionais e nacionais, assim como a consolidação e institucionalização em âmbito governamental e não governamental (Moreira, 2011:15).

Nesse aspecto, a leitura do texto desestabiliza os espaços das práticas de mulheres feministas e de mulheres negras militantes detendo-se na análise das feministas negras não de modo homogêneo, mas visualizando as especificidades proporcionadas pelas organizações de mulheres negras. A pesquisadora realizou, assim, uma etnografia na década de 1990, período marcado por novas formas de experiência política. Frescor que pode ser revisitado no texto, marcado pelos embates de uma recente fase de organização das mulheres negras que a autora congregou no binômio autonomia versus institucionalização. Sobressaem, assim, tanto a análise de agrupamentos de mulheres sem sede própria, estatuto e desvinculadas de órgãos estatais, quanto a de ONG's de mulheres negras.

Essa perspectiva sugere a consolidação de um movimento singular que requer uma representatividade e extrapola as demandas do feminismo e do movimento negro, sem deles se afastar. Um movimento construído em um entre-lugar, no intermezzo, para utilizarmos a categoria rizoma. Aquilo que Deleuze e Guattari (1995) definem como agenciamento. Segundo entendem, seria construído a partir de matérias diferentemente formadas, com linhas de articulação, estratos, linhas de fuga, desterritorialização e desestratificação. Multiplicidade em conexão com outros agenciamentos. Um rizoma possui formas diversas, conecta um ponto qualquer com outro ponto qualquer e seus traços não remetem obrigatoriamente a traços de mesma natureza, colocando em jogo regimes de signos muito diferentes. Um rizoma é aliança, é um entre, "não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo" (Deleuze; Guattari, 1995:37).

A leitura do trabalho de Núbia Moreira explicita como as feministas negras organizadas desestabilizaram convenções rompendo com binarismos. Enfrentando questões de identidade e diferença questionaram a abstração "mulher negra" que encobre diferenças sociais (econômicas, religiosas, geracionais, de orientação sexual etc.), pensamento que nos remete às lições de Foucault (2007) quando reconheceu que a produção dos discursos é ao mesmo tempo organizada, controlada e redistribuída por procedimentos que conjugam poderes e perigos. Em nossa sociedade um desses procedimentos seria a exclusão, manifesta através de uma série de interdições:

Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa. Tabu do objeto, ritual da circunstância, direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala: temos aí o jogo de três tipos de interdições que se cruzam, se reforçam ou se compensam, formando uma grade complexa que não cessa de se modificar. Notaria apenas que, em nossos dias, as regiões onde a grade é mais cerrada, onde os buracos negros se multiplicam, são as regiões da sexualidade e as da política como se o discurso (...) fosse um dos lugares onde elas exercem, de modo privilegiado, alguns de seus mais terríveis poderes. Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder (Foucault, 2007:9-10).

Tais orientações se aproximam da pesquisa de Núbia: basta observarmos o modo como desvendou o surgimento do feminismo negro a partir do enfrentamento de demandas do cotidiano dessas mulheres. Nesses termos, explicita a forma com que essas agentes desenvolveram estratégias, ecoaram suas vozes por entre as grades cerradas da sexualidade e da política mesmo que, para tanto, fosse necessário se posicionar frente aos ditames dos movimentos negro e feminista:

A singularidade da condição racial da mulher negra e a categoria raça serviu no momento inicial como moeda simbólica para, frente às feministas "brancas", criar a diferenciação - moeda da condição mulher (gênero) como instrumento de questionamento ao movimento negro a respeito das posições secundárias assumidas e impostas às lideranças femininas no seio das entidades dos vários segmentos do movimento negro (Moreira, 2011:116-117).

Disposta em três capítulos, a primeira parte da obra revela as imagens e representações da mulher negra construídas histórica, política e culturalmente no cenário brasileiro, sem, contudo, deixar de destacar autores que articularam suas análises à questão da representação política. Em um segundo momento, realiza um esboço da formação da organização das mulheres negras do Rio de Janeiro e São Paulo, apresentando os trajetos sócio-históricos da categoria movimentos sociais e o modo como podemos compreender o feminismo negro como um movimento social urbano. Contribuindo para o debate, destaca alguns itinerários do movimento feminista no Brasil e do movimento negro, considerando-os como espaços de aprendizagem e interlocução para as feministas negras. Por fim, centra suas análises na profissionalização da militância, desvendando as motivações e estratégias fabricadas pelas feministas negras em prol da autonomia e da construção de alternativas de representação, a exemplo das formas organizativas institucionalizadas.

A obra se torna um convite ao estudo e à valorização das memórias e trajetos das mulheres negras. Mulheres que, em movimento, se organizaram e ampliaram o caleidoscópio de vozes e cores não apenas em prol da constituição de um lugar de fala dissonante, mas de um lugar onde suas vozes em uníssono adquirissem ressonância.

  • BASTOS, Elide Rugai et alii. Conversas com sociólogos brasileiros. São Paulo, Editora 34, 2006.
  • BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas, SP, Papirus, 2007.
  • CURIEL, Ochy. Identidades esencialistas o construccion de identidades politicas: El dilema de las feministas negras. Jan. 2004. Disponível em: <http://www.creatividadfeminista.org/articulos>
  • DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro, Editora 34, 1995.
  • FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo, Loyola, 2007.
  • GOHN, Maria da Glória. Teorias dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo, Edições Loyola, 2006.
  • OLIVEIRA, Vanilda Maria de. Um olhar interseccional sobre feminismos, negritudes e lesbianidades em Goiás. Dissertação de Mestrado em Sociologia, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2006.
  • VELHO, Gilberto. O desafio da proximidade. In: VELHO, Gilberto; KUSCHNIE, Karina. (orgs.) Pesquisas urbanas: desafios do trabalho antropológico. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2003.
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    Resenha de MOREIRA, Núbia Regina. A organização das feministas negras no Brasil. Vitória da Conquista-BA, Edições UESB, 2011. Recebida para publicação em 13 de julho de 2011, aceita em 23 de abril de 2012.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Jul 2012
    • Data do Fascículo
      Jun 2012
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