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Apresentação

Apresentação

A tarefa de organizar um dossiê dedicado à relação entre alimentação e gênero coloca, logo de início, organizadores e autores em meio a algumas problemáticas interessantes que não poderiam deixar de ser mencionadas nesta apresentação. Se por um lado, examinados isoladamente, os estudos de gênero e os estudos sobre alimentação constituem campos de produção científica profícua desde o final do século XX, trabalhos desenvolvidos sob uma perspectiva que associe as duas categorias são ainda pouco comuns na esfera acadêmica.1 1 No Brasil, a primeira e única iniciativa, até onde foi possível verificar, é o dossiê dedicado à comida e gênero organizado por Mônica Abdala e Renata Menasche publicado em 2008 no Caderno Espaço Feminino, do Núcleo de Estudos de Gênero e Pesquisa sobre a Mulher da Universidade Federal de Uberlândia. O texto introdutório do dossiê aponta para essa invisibilidade das práticas culinárias nos estudos de gênero tanto no cenário acadêmico internacional quanto nacional. Além disso, olhando mais de perto para o conjunto dessa escassa produção, nota-se que advêm das ciências sociais trabalhos nos quais gênero e alimentação constituem objeto central de investigação científica. A contribuição dos estudos históricos é ainda bastante rara se comparada a de outras disciplinas das ciências humanas. Nesse caso, um exemplo clássico do predomínio da Antropologia é o livro de Carole M. Counihan (Nova Iorque, 1999) representado neste dossiê com a tradução de um capítulo. No entanto, é evidente o destaque que a temática da alimentação vem conquistando na área de História, assim como seu caráter interdisciplinar e extremamente abrangente enquanto domínio de investigação.2 2 Enquanto nos anos 1970 a história da alimentação se afirmava na historiografia europeia, no Brasil, essa área de estudos só recebeu um impulso maior na década de 1990, como pode ser observado nos primeiros balanços historiográficos empreendidos sobre a temática. Ver Antunes (1997:154-171) e Meneses e Carneiro (1997:9-92). São numerosas as abordagens possíveis e que instigam hoje médicos, biólogos, nutricionistas e cientistas sociais, além dos profissionais da gastronomia, os quais, cada vez mais, se preocupam em pensar a comida e a cozinha e não apenas em fazê-las.

Em grande parte, esse crescente interesse acadêmico pela alimentação deve-se à descoberta de seu enorme potencial como categoria explicativa da sociedade. Em primeiro lugar, reconheceu-se que a alimentação, pensada a partir de qualquer uma de suas dimensões (produção, distribuição, preparo, consumo e descarte), permite conhecer como se estruturam socialmente grupos humanos ao longo da história (Poulain, 2004:19). Além disso, a investigação dos processos de escolha envolvidos na distinção entre o simplesmente comestível e a comida propriamente dita, em diferentes culturas, iluminou os pesquisadores acerca da enganadora banalidade do ato de comer e tudo que o envolve; reforçando e expandindo a observação de Mary Douglas (2001:204) de que a comida "não é simples sustento" e sim um importante e complexo construto cultural.

Diante de tal cenário, este dossiê foi concebido com a proposta de reunir artigos de especialistas que, direta ou indiretamente, vêm trabalhando dentro do campo de estudos da alimentação – o qual por extrapolar fronteiras disciplinares é muitas vezes denominado food studies –, e aceitaram o convite para participar da experiência de refletir sobre alimentação a partir da categoria gênero. Os artigos aqui publicados fornecem, assim, algumas perspectivas de aproximação com a problemática, na tentativa de chamar a atenção para a riqueza de possibilidades que a abordagem traz para o desenvolvimento de ambos os campos de estudo.

De forma geral, é possível distinguir dois eixos principais em torno dos quais se articulam os ensaios do dossiê: primeiramente a questão do fazer a cozinha, da qual nos falou Luce Giard (Petrópolis, 2005), tanto em termos de ambiente arquitetônico, como das formas de produção dos alimentos e de seus agentes históricos: os cozinheiros e as cozinheiras. Os trabalhos de Thaís da Rocha Silva, Raffaella Sarti, Isabel e Paulo Drummond Braga e Carlos Alberto Dória tratam diretamente da atribuição de papéis desses agentes. Sarti, em uma perspectiva diacrônica, fortemente ancorada na documentação textual e iconográfica produzida na Europa, ao longo dos séculos XVI e XIX, levanta problemas em relação à suposta feminilização da cozinha e da qual decorrem as indiscutíveis atribuições da mulher: amamentar e cozinhar para a família. O artigo evidencia a necessidade de uma investigação histórica mais rigorosa, pois a questão quando abordada a partir de diferentes recortes revela já não ser mais possível afirmar que a associação entre mulher e cozinha seja algo somente da ordem do natural, tampouco apenas do cultural.

Exemplos da importância de tal rigorosidade na análise histórica estão nos trabalhos de Thaís da Rocha Silva e de Isabel e Paulo Drummond Braga. Rocha Silva, com base em documentação textual e pictórica, discute a construção dos papéis feminino e masculino na distribuição de atribuições domésticas, principalmente àquelas atreladas à alimentação, no Egito antigo. Com evidente preocupação teórico-metodológica, seu texto mostra que a noção de gênero e sua relação com a alimentação no Egito antigo não podem ser de fato entendidos se não analisados a partir do binômio história-historiografia. Já Isabel e Paulo Drummond Braga optam por estudar a construção da ideia de mulher que atendia à ideologia do Estado Novo Português. A partir da análise comparativa de matérias e receitas veiculadas em revistas femininas do período, verificam que o domínio do saber culinário pelas mulheres funcionava como marca positiva de distinção social da mesma forma que faziam outros atributos para com os homens.

Sob uma perspectiva sociológica, o problema instiga igualmente Carlos Alberto Dória que procura, em seu artigo, detectar onde reside o feminino da cozinha. O diálogo com o trabalho de Sarti e Drumond Braga é enriquecedor, uma vez que Dória, ao contrário dos historiadores, preocupa-se mais evidentemente com a busca de modelos que estruturem a distinção do masculino e feminino envolvidos na preparação culinária em um tempo mais distendido. O caminho escolhido por ele para pensar tal questão, muito acertadamente, é o da corporalidade e do que ele chama de gestos culinários.

É o corpo, aliás, que está no centro do segundo eixo identificado neste dossiê: consumo de alimentos. Corpo e consumo estão intimamente imbricados quando se trata de escolha e hábitos alimentares adotados nos diversos ambientes sociais. Daniela Calainho, por exemplo, a partir principalmente da documentação dos processos inquisitoriais, discorre sobre como a detenção do saber sobre a comida pelas africanas (e suas descendentes) estabelecidas em Portugal entre os séculos XVII e XVIII estava estreitamente relacionado com sua sobrevivência naquela sociedade. O conhecimento das propriedades curativas e mágicas de ervas e outros alimentos, bem como sua correta administração e consumo nos corpos dos outros, conferia àquelas mulheres, forras ou escravas, estratégias de subsistência material naquela sociedade desigual. Em outras palavras, manobrar o consumo alimentar era, em certo sentido, exercer poder, ainda que de maneira limitada.

Rosa Perez aprofunda essa reflexão sobre comida e poder usando como pano de fundo a Índia rural, mais especificamente a região do Guajarate. A antropóloga mostra como os alimentos considerados poluídos e mesmo situações de consumo alimentar vistas como poluídas (comida preparada por mulheres menstruadas, por exemplo) são usados pelas indianas para controlar o próprio corpo ou para agirem sobre os homens e sobre o grupo social do qual fazem parte. Ou seja, contrariamente ao que se poderia imaginar, a capacidade de poluir e a poluição em si não correspondem ali à ausência de poder; ao contrário, devem ser vistas como marcas de poder, o poder de destruir a alimentação dos outros.

Denise Sant'Anna, por fim, abordará o consumo alimentar de uma outra perspectiva. A partir da investigação de documentação constituída por Atas da Câmara, jornais da cidade de São Paulo e algumas obras literárias, seu artigo permite perceber as transformações nos hábitos alimentares paulistanos entre o final do século XIX e início do século XX. A autora evidencia a presença cada vez mais marcada entre um comer (hábitos e alimentos) tradicional representante do passado colonial da cidade e um comer moderno que anunciava o novo posicionamento de São Paulo na economia e política do país. Nesse cenário de mudanças, Denise chama a atenção para as relações de gênero que passam a organizar a alimentação feminina e masculina daqueles que se estabeleciam na cidade, os "paulistanos da gema".

Em termos metodológicos há, ainda no dossiê, uma clara intenção em oferecer uma visão histórica da relação entre gênero e alimentação, quer seja na perspectiva da produção, do consumo ou mesmo da recusa deliberada de alimentos. Daí o interesse em apresentarmos estudos que nos levem a temporalidades distantes do nosso presente, do Egito antigo à contemporaneidade. Ou seja, quando possível, procuramos introduzir no debate mais uma variável a qual acreditamos ser indispensável ao trabalho do historiador: o tempo. A importância do tempo em termos de instrumento de análise nos leva também ao ensaio de Carole Counihan e à justificativa ou à opção por sua publicação após mais de uma década da edição de seu livro.

O artigo bibliográfico de Counihan foi escrito a partir dos comentários referentes a três livros não traduzidos para o português e publicados entre 1985 e 1988 dedicados ao jejum radical de mulheres ocidentais. O objetivo da autora é construir uma explicação para tal comportamento. Para ela, essas mulheres – desde as santas medievais às anoréxicas modernas – desenvolveram uma relação simbólica com a comida por mais de oito séculos, a qual é diferente de outros jejuns observados por antropólogos ao redor do mundo. É o desenvolvimento de seu argumento e as análises empreendidas sobre as persistências e mudanças culturais dessa forma de jejum, ao longo dos séculos, que faz com que o ensaio seja ainda bastante atual, mesmo levando-se em conta as transformações que o conceito de cultura sofreu nos últimos quinze anos. Nesse aspecto, o artigo de Counihan permite observar como o próprio conceito de cultura é historicamente construído, oferecendo um registro impecável de sua utilização nas últimas décadas do século XX.

Fechando o dossiê, na seção de resenhas, Wanessa Asfora comenta o livro Donne e cibo. Una relazione nella storia (Muzzarelli e Tarozzi, 2003). Sua resenha "alargada" Comer como um passarinho, cozinhar como uma feiticeira evidencia como a produção e o consumo de alimentos – os dois eixos em torno dos quais se articulam os artigos do dossiê – são muitas vezes inseparáveis e estiveram ao longo dos séculos associados às construções de gênero. Sua análise acaba por se configurar em uma síntese instigante de várias questões abordadas neste número do cadernos pagu, inclusive no que toca à importância do tempo histórico.

Pensar a relação entre alimentação e gênero coloca em discussão, portanto, aspectos diretamente ligados ao corpo, à sexualidade, à disputa pelo poder e à dominação entre os gêneros, tanto no interior da família, como em um universo social mais dilatado. Permite, acima de tudo, levantar interpretações que fogem da clivagem rígida que polariza, de um lado, as práticas e, de outro, as representações. Isso porque, como dito inicialmente, o ato de alimentar-se é eminentemente complexo e integra dimensões múltiplas – da necessidade primordial de sobrevivência do corpo biofísico às escolhas revestidas de significações simbólicas que compõem o corpo inscrito nas diversas culturas e sociedades. Os artigos deste dossiê confirmam, assim, a potencialidade da reflexão sobre os grupos humanos tecida a partir dessas duas categorias.

Leila Mezan Algranti e Wanessa Asfora

  • Antunes, Carlos Roberto dos Santos. Por uma história da alimentação. História, Questões e Debates (26-27), Curitiba-PR, Editora da UFPR, 1997, pp.154-171.
  • Antunes, Carlos Roberto dos Santos. (org.) Dossiê História da Alimentação. História, Questões e Debates (42), Curitiba-PR, Editora da UFPR, 2005, pp.1-111.
  • Counihan, Carole. An Anthropological View of Western Women's Prodigious Fasting. A Review Essay. In: Counihan, Carole. The Anthropology of Food and Body Gender, Meaning, and Power. New York/London, Routledge, 1999, pp.93-112.
  • Douglas, Mary. Introducción. In: Kuper, Jessica Kuper. (org) La Cocina de los antropólogos TUSQuets Editores, Barcelona, 2001, pp.13-24.
  • Giard, Luce. Cozinhar. In: De Certeau, Michel; Giard, Luce; Mayol, Pierre. A Invenção do cotidiano morar, cozinhar, vol 2. Petrópolis, Vozes, 2005, pp.268-269.
  • Meneses, Ulpiano Bezerra de; Carneiro, Henrique. A História da Alimentação: balizas historiográficas. Anais do Museu Paulista História e Cultura Material (5), São Paulo, jan/dez 1997, pp.9-91.
  • Poulain, Jean-Pierre. Sociologia da Alimentação: os comedores e o espaço social alimentar. Florianópolis-SC, Editora da UFSC, 2004.
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    No Brasil, a primeira e única iniciativa, até onde foi possível verificar, é o dossiê dedicado à comida e gênero organizado por Mônica Abdala e Renata Menasche publicado em 2008 no Caderno Espaço Feminino, do Núcleo de Estudos de Gênero e Pesquisa sobre a Mulher da Universidade Federal de Uberlândia. O texto introdutório do dossiê aponta para essa invisibilidade das práticas culinárias nos estudos de gênero tanto no cenário acadêmico internacional quanto nacional.
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    Enquanto nos anos 1970 a história da alimentação se afirmava na historiografia europeia, no Brasil, essa área de estudos só recebeu um impulso maior na década de 1990, como pode ser observado nos primeiros balanços historiográficos empreendidos sobre a temática. Ver Antunes (1997:154-171) e Meneses e Carneiro (1997:9-92).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Nov 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2012
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