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Apresentação

Em maio de 2012, Sérgio Carrara apresentou um texto instigante num seminário realizado na Universidade Estadual de Campinas.1 1 Carrara, Sérgio: Sexualidade e Moralidades: a emergência dos direitos sexuais. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, Campinas, 17 de maio de 2012. Nesse momento, ele se perguntava se era possível pensar que nos últimos dez anos havia emergido nova configuração da sexualidade, ancorada na linguagem dos direitos e marcada pelo deslocamento da centralidade concedida, no passado, ao âmbito biomédico, que teria sido ocupada por instâncias sóciojurídicas. Ainda, segundo ele, nesse deslocamento parecia destacar-se uma noção de direitos (sexuais) ancorada no consentimento e na ideia de controle sobre o sexo que deve ser exercido pelo indivíduo, a partir da qual o sexo "problemático" passaria a ser o sexo não consentido e o não responsável. E, nesse quadro, as intervenções sobre a sexualidade voltadas para a afirmação da cidadania estariam assumindo formas diversificadas, dirigidas à educação e também à criminalização de algumas práticas sexuais.

As atividades realizadas alguns meses depois, na 28ª Reunião da Associação Brasileira de Antropologia, em São Paulo, no âmbito do trabalho do Comitê Gênero e Sexualidade dessa Associação2 2 Workshop pré-ABA Sexualidade, organizado por Laura Moutinho, Regina Facchini e Sérgio Carrara, e Simpósio Antropologia, gênero e sexualidade no Brasil: balanço e perspectivas, organizado por Adriana Piscitelli e Sérgio Carrara. , propondo uma avaliação crítica da produção antropológica sobre gênero e sexualidade no Brasil3 3 Diversas atividades realizadas por esse comitê na gestão 2011/2012, sob a presidência de Bela Feldman Bianco, mantêm relações com essas ideias. Os fóruns organizados pela parceria ABA/ANPOCS estiveram voltados para o reconhecimento de direitos GLBT (Fórum 04, Do estigma à cidadania: o processo de reconhecimento dos direitos LGBT no Brasil, 26/10/2011 (org. Camilo de Albuquerque Braz e Sérgio Carrara) e de trabalhadoras/es sexuais em situações de mobilidade e para o questionamento das novas ondas de criminalização envolvendo o sexo comercial (Fórum Tráfico de Pessoas, novas flexões no debate, org. Adriana Piscitelli, Márcia Anita Sprandel e José Miguel Olivar). Essas atividades foram organizadas reagindo a acontecimentos de relevância política no âmbito nacional: considerando a decisão do Supremo Tribunal Federal, que reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo sexo, em maio de 2011 e a partir da preocupação suscitada pela instalação, em abril de 2011, da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre tráfico nacional e internacional de pessoas, no Senado Federal. , ofereceram elementos para explorar algumas dessas ideias. Nas discussões que tiveram lugar nessas atividades, a noção de direitos sexuais adquiriu destaque no âmbito de reflexões sobre a constituição de sujeitos de direitos, a produção de categorias de identidade e de subjetividades e suas vinculações com as trajetórias e as reivindicações políticas de diferentes movimentos sociais. Versões iniciais dos textos que integram este dossiê foram apresentadas no espaço desse debate.

O interesse em realizar uma avaliação dessa produção tem relação com nossa preocupação em compreender os deslocamentos e as novas tendências presentes no conhecimento antropológico na área, considerando a explosão de estudos sobre sexualidade que teve lugar a partir da década de 2000 e levando em conta que, no Brasil, o peso da antropologia alimentada pelo feminismo e pelo movimento homossexual passou a ser visível já a partir de finais da década de 1970. É claro que, historicamente, a antropologia tem se preocupado com aspectos vinculados à sexualidade, e também ao que hoje denominamos gênero, tratando de temas diversificados como família, papéis sexuais, reprodução, cotidiano e práticas sexuais (Heilborn e Sorj, 1999HEILBORN, Maria Luiza e SORJ, Bila. Estudos de gênero no Brasil. In: MICELI, Sérgio (org.). O que ler na ciência social brasileira (1970-1995). Editora Sumaré, ANPOCS, Brasília-DF, CAPES, 1999, pp.183-221.). Essa inquietação é evidente nas primeiras reuniões da Associação Brasileira de Antropologia, realizadas na década de 1950.4 4 Os Anais da Segunda RBA, realizada em 1955, em Salvador, mostram como esses temas estavam presentes naquele momento. Na seção Antropologia Cultural, no texto Notas preliminares ao estudo da família no Brasil, a Dra. Maria Carmelita Ayres Hutchinson, do Programa de Pesquisas Sociais do Estado da Bahia, vinculado à Universidade de Columbia, discute a suposta permanência da família patriarcal brasileira à luz da existência de outros tipos de famílias, distribuídos em diferentes classes sociais. E considera o lugar neles ocupado pelo adultério masculino e feminino, pela perda da virgindade das moças e ainda leva em conta as práticas sexuais das classes mais baixas, nas quais ela não detecta grupos de prostitutas reconhecidas como tais, mas, sim de raparigas de alguns senhores, disponíveis para outros senhores e ainda outra categoria de mulheres que chama de "iniciantes", que engravidam e vão tendo filhos de pais diferentes. Disponível em: <http://www.abant.org.br/conteudo/ANAIS/ABA%20-%20Anais%20da%20II%20RBA.pdf>. Acessado em 20 de junho de 2012. Mas há, claro, uma significativa distância entre os trabalhos que discutiram problemas presentes nas preocupações "clássicas" da antropologia e aqueles orientados pelas inquietações políticas vinculadas ao feminismo, aos movimentos homossexuais e GLBTT, que dialogam com questões específicas colocadas no campo dos estudos sobre a sexualidade.

Os Anais das Reuniões da Associação Brasileira de Antropologia (RBA) permitem perceber que, na segunda metade da década de 19705 5 Agradeço a Regina Facchini o levantamento sobre esse material que me facilitou. e nos primeiros anos da década de 1980, trabalhos que remetiam a discussões sobre sexualidade eram apresentados em grupos de trabalho voltados para temáticas amplas. Nesses anos, diferentes grupos abrigaram estudos que marcaram o campo tratando pioneiramente de temáticas como a organização do feminismo no Brasil, a violência conjugal, sexualidade entre adultos e jovens heterossexuais, homossexualidades, aborto, prostituição feminina e masculina.6 6 Na X RBA, em 1976, Peter Fry apresentou reflexões sobre a sexualidade nas religiões africanas no Brasil, e Mazzariol uma das primeiras etnografias sobre prostituição realizadas no país. Na 14º RBA, em 1984, Maria Dulce Gaspar e Edward MacRae apresentaram trabalhos que se tornaram "clássicos" nos estudos sobre prostituição e sobre homossexualismo. Essas apresentações tinham lugar em grupos diversos: sobre Mudanças sócio-culturais, Imaginário Social e Vida Cotidiana e também antropologia da Mulher. Garotas de Programa, de Maria Dulce Gaspar foi apresentado no Grupo de Trabalho Antropologia da Mulher, coordenado por Maria Luiza Heilborn, e o estudo de Edward MacRae sobre o Grupo Somos, no grupo sobre e Imaginário Social e Vida Cotidiana, coordenado por Carmen Cinira. Referindo-se a esse período, Mariza Corrêa observou:

Não tínhamos uma visão geral da ABA quando participávamos dela - cada um ia fazendo as suas coisas, propondo mesas e GTs e coisas assim. Não era nada articulado. Então, acho que foi acontecendo, ao sabor dos tempos... Certamente as feministas que participavam da ABA incluíam a questão nas suas mesas e GTs, mas não havia um planejamento. Não tínhamos qualquer ideia de "incluir" sexualidade e gênero, como um projeto, embora eles tenham sido incluídos aos poucos... mas a partir de iniciativas individuais.7 7 Comunicação pessoal de Mariza Corrêa, Campinas, 2012.

Na segunda metade da década de 1980, porém, a presença de grupos de trabalho inteiramente voltados para a sexualidade parece responder ao delineamento de estratégias políticas. Na RBA de 1986, trabalhos sobre sexualidade foram apresentados de maneira dispersa em diversos grupos, entre eles o estudo de Nestor Perlongher sobre trottoir masculino, que foi discutido num grupo sobre organizações populares urbanas. Nessa reunião, porém, Luiz Mott coordenou um grupo de trabalho denominado Sexualidade no Brasil 8 8 Nesse grupo, entre outras pessoas, participaram Peter Fry e Edward MacRae. , que concentrou trabalhos sobre a temática, sobretudo, em torno da homossexualidade masculina, com destaque para questões sobre a construção da cidadania e a epidemia de AIDS. Luiz Mott organizou novamente um Grupo de Trabalho sobre sexualidade9 9 Antropologia da sexualidade. em 1990, e paralelamente, Miriam Grossi um Grupo de Trabalho sobre Relações de Gênero. Nessa confluência, enquanto o grupo sobre sexualidade concentrou trabalhos sobre homossexualidades masculinas, o único trabalho sobre sexualidade feminina foi apresentado no grupo de gênero.

Nas décadas seguintes, a produção sobre gênero, sobre sexualidade e sobre suas relações cresceu intensamente, diversificando-se de maneira considerável. Na virada do século, essa diversificação se tornou palpável no corpo de estudos realizados no marco de abordagens teóricas, nas quais gênero, pensado como categoria relacional, articulado a outras diferenciações, não se restringia às relações entre masculinidades e feminilidades e os estilos de sexualidade considerados desafiavam o aprisionamento na divisão entre homossexualidade e heterossexualidade. Isso é perceptível nos trabalhos realizados na metade da década de 2000, quando a temática da sexualidade é discutida em grupos de trabalho vinculados à saúde; à corporalidade10 10 GTs Corpo e saúde, e Corporalidade e pessoa. e à família11 11 FP.09 - Família Contemporânea: Relações Intergeracionais e de Gênero, 24 RBA, 2004. .

Esse movimento parece acentuar-se, no âmbito da explosão da incorporação da temática, no final da década de 2000. Na RBA de 2008, estilos de sexualidade corporificados por mulheres, homens, travestis "convivem" em estudos apresentados em grupos de trabalho voltados para discussões sobre migrações e deslocamentos de população através das fronteiras, direitos humanos, corpo, e ainda as sobre articulações entre gênero, sexualidade, raça e classe. Essa convivência também está presente nos grupos de trabalho centrados especificamente em gênero e sexualidade.

Tomando como referência aspectos dessa vasta produção, a proposta deste dossiê é realizar uma leitura crítica sobre ela, levando em conta as novas perspectivas que se delineiam nos trabalhos mais recentes e considerando suas contribuições na produção de conhecimento. Analisando os temas e abordagens utilizadas nessas pesquisas, os textos que integram este dossiê se debruçam sobre as diferentes experiências envolvidas nos erotismos contemporâneos, sobretudo, levando em conta o que elas permitem decifrar sobre as articulações entre práticas sexuais, normas de gênero e limites da sexualidade. Esses artigos consideram como a produção antropológica brasileiras sobre gênero e sexualidade integrou e problematizou questões vinculadas aos direitos humanos das mulheres, aos direitos sexuais, e à luta pela diversidade sexual e cultural; analisam como nessa produção foram incorporadas diferentes dimensões de violência que afetam o exercício da sexualidade; exploram como a articulação entre categorias de diferenciação foi integrada nesses estudos e consideraram como eles trataram das relações entre sexualidade, sociabilidade e mercado. Nessa análise, que mostra a marcante dimensão política presente na produção de conhecimento na área, os textos que integram o dossiê situam as noções de direitos sexuais, de consentimento sexual e de intervenções sobre a sexualidade no âmbito de diálogos críticos com o Estado e com outras instâncias que operam nos processos de governança no âmbito nacional e num plano transnacional e consideram os problemas, mas também os promissores e inovadores caminhos abertos pelos estudos antropológicos sobre gênero e sexualidade no Brasil.

Adriana Piscitelli

Referências bibliográficas

  • CARRARA, Sérgio. Sexualidade e Moralidades: a emergência dos direitos sexuais. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, Campinas, 17 de maio de 2012.
  • HEILBORN, Maria Luiza e SORJ, Bila. Estudos de gênero no Brasil. In: MICELI, Sérgio (org.). O que ler na ciência social brasileira (1970-1995). Editora Sumaré, ANPOCS, Brasília-DF, CAPES, 1999, pp.183-221.
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    Carrara, Sérgio: Sexualidade e Moralidades: a emergência dos direitos sexuais. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, Campinas, 17 de maio de 2012.
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    Workshop pré-ABA Sexualidade, organizado por Laura Moutinho, Regina Facchini e Sérgio Carrara, e Simpósio Antropologia, gênero e sexualidade no Brasil: balanço e perspectivas, organizado por Adriana Piscitelli e Sérgio Carrara.
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    Diversas atividades realizadas por esse comitê na gestão 2011/2012, sob a presidência de Bela Feldman Bianco, mantêm relações com essas ideias. Os fóruns organizados pela parceria ABA/ANPOCS estiveram voltados para o reconhecimento de direitos GLBT (Fórum 04, Do estigma à cidadania: o processo de reconhecimento dos direitos LGBT no Brasil, 26/10/2011 (org. Camilo de Albuquerque Braz e Sérgio Carrara) e de trabalhadoras/es sexuais em situações de mobilidade e para o questionamento das novas ondas de criminalização envolvendo o sexo comercial (Fórum Tráfico de Pessoas, novas flexões no debate, org. Adriana Piscitelli, Márcia Anita Sprandel e José Miguel Olivar). Essas atividades foram organizadas reagindo a acontecimentos de relevância política no âmbito nacional: considerando a decisão do Supremo Tribunal Federal, que reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo sexo, em maio de 2011 e a partir da preocupação suscitada pela instalação, em abril de 2011, da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre tráfico nacional e internacional de pessoas, no Senado Federal.
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    Os Anais da Segunda RBA, realizada em 1955, em Salvador, mostram como esses temas estavam presentes naquele momento. Na seção Antropologia Cultural, no texto Notas preliminares ao estudo da família no Brasil, a Dra. Maria Carmelita Ayres Hutchinson, do Programa de Pesquisas Sociais do Estado da Bahia, vinculado à Universidade de Columbia, discute a suposta permanência da família patriarcal brasileira à luz da existência de outros tipos de famílias, distribuídos em diferentes classes sociais. E considera o lugar neles ocupado pelo adultério masculino e feminino, pela perda da virgindade das moças e ainda leva em conta as práticas sexuais das classes mais baixas, nas quais ela não detecta grupos de prostitutas reconhecidas como tais, mas, sim de raparigas de alguns senhores, disponíveis para outros senhores e ainda outra categoria de mulheres que chama de "iniciantes", que engravidam e vão tendo filhos de pais diferentes. Disponível em: <http://www.abant.org.br/conteudo/ANAIS/ABA%20-%20Anais%20da%20II%20RBA.pdf>. Acessado em 20 de junho de 2012.
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    Agradeço a Regina Facchini o levantamento sobre esse material que me facilitou.
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    Na X RBA, em 1976, Peter Fry apresentou reflexões sobre a sexualidade nas religiões africanas no Brasil, e Mazzariol uma das primeiras etnografias sobre prostituição realizadas no país. Na 14º RBA, em 1984, Maria Dulce Gaspar e Edward MacRae apresentaram trabalhos que se tornaram "clássicos" nos estudos sobre prostituição e sobre homossexualismo. Essas apresentações tinham lugar em grupos diversos: sobre Mudanças sócio-culturais, Imaginário Social e Vida Cotidiana e também antropologia da Mulher. Garotas de Programa, de Maria Dulce Gaspar foi apresentado no Grupo de Trabalho Antropologia da Mulher, coordenado por Maria Luiza Heilborn, e o estudo de Edward MacRae sobre o Grupo Somos, no grupo sobre e Imaginário Social e Vida Cotidiana, coordenado por Carmen Cinira.
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    Comunicação pessoal de Mariza Corrêa, Campinas, 2012.
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    Nesse grupo, entre outras pessoas, participaram Peter Fry e Edward MacRae.
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    Antropologia da sexualidade.
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    FP.09 - Família Contemporânea: Relações Intergeracionais e de Gênero, 24 RBA, 2004.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Jun 2014
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