Acessibilidade / Reportar erro

Entre parteiras e buchudas: a vida social do cuidado no Melgaço, Pará* * Resenha de FLEISCHER, Soraya. Parteiras, Buchudas e Aperreios. Uma etnografia do cuidado obstétrico não oficial na cidade de Melgaço, Pará. Santa Cruz do Sul, EDUNISC e Belém, Paka-Tatu, 2011. Recebida para publicação em 11 de novembro de 2012, aceita em 4 de julho de 2013.

FLEISCHER, Soraya. Parteiras, Buchudas e Aperreios. Uma etnografia do cuidado obstétrico não oficial na cidade de Melgaço, Pará. 2011. EDUNISC, Santa Cruz do Sul

Para aqueles que têm por áreas de interesse o vasto campo da antropologia da saúde e a, consequente, pluralidade de expressões do cuidado e de bem-estar, bem como os estudos de gênero e as discussões caras à teoria antropológica - como a questão da dádiva e a problematização de pares analíticos como tradicional/cientifico -, o livro de Soraya Fleischer é uma grande oportunidade de reflexão e de atualização de indagações e possibilidades interpretativas.

Logo nas primeiras páginas, a autora anuncia o que encontraremos durante todo o texto: a opção pelo fazer etnográfico que busca, antes e sobretudo, destacar a "prática" e a "relação" encontradas em/no campo, que depois encaminham ou despertam as elaborações teóricas e a arquitetura das conexões interpretativas.

Na recusa de acepções cristalizadas, Fleischer opta por não trabalhar com a ideia de "cultura", bem como com os termos "tradicional" e "popular", preferindo concentrar-se "no fazer" que é também o falar (p.29), no discurso que é ação, assim como pensaria Foucault (1993)FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. São Paulo, Graal, 1993.. Essa aposta, em minha leitura, é a grande abertura para que, no contato com sua anfitriã e principal interlocutora, a parteira Dona Tabita ou Dona Dorca, à la Nisa com a antropóloga Shostak (2000)SHOSTAK, Marjorie. Nisa. The life and words of a !kung woman. USA, Harvard, 2000., a autora possa compreender o universo simbólico que ultrapassa o ato de partejar daquela região úmida e bem distante da de onde provinha.

Nesse percurso, partimos de uma apresentação/introdução sobre seus pontos de partida mais teóricos e conceituais e do mapeamento da atual atenção à vida sexual e reprodutiva paraense, para, dessa maneira, passarmos a conhecer as práticas e ideias de saúde ali operantes. Na realidade, a etnografia trata de muito mais que isso, na medida em que explora as relações entre as mulheres melgacenses e as parteiras, entre as próprias parteiras, entre as mulheres "buchudas", as parteiras e seus maridos, bem como perante o Estado e as políticas públicas de formação de parteiras, sem deixar de, a todo tempo, ir e vir, do global para o local e vice-versa.

No primeiro capítulo, Fleischer começa descrevendo a região amazônica do Melgaço, partindo de seu contexto mais imediato, o de Breves, cidade mais abastada da zona analisada, para, então, apresentar sua conexão com o Estado do Pará como um todo; de maneira a apresentar ao leitor os meandros de sua chegada ao campo, sua inserção via uma organização não-governamental, a Ong Curumin, e as confusões geradas por sua presença naquele local. Para tanto, recupera como foi identificada como "ajudante de parteira" e como foi portadora de um "jaleco invisível" (p.73), antes de assumir a posição de pesquisadora diferente dos demais pesquisadores que por ali passaram. Trata-se, de fato, de um esforço louvável de apresentação dos dilemas e das confusões geradas pela presença do antropólogo em campo e do que o tão famoso "estranhamento" pode gerar, mas também render em termos de impressões e de percepções desse contato com o outro, que é a mola propulsora da boa antropologia.

No segundo capítulo, a autora traz à tona a diferença entre o cuidado das parteiras e o cuidado da biomedicina, iluminando a importância da "relação" que ultrapassa o parto e que atinge uma dimensão holística, apresentando-nos, nesse momento, a prática rotineira da "puxação" durante a gestação. A "puxação" é uma técnica de manipulação das barrigas das "buchudas", usualmente empregada pelas parteiras do Melgaço. Dessa maneira, a antropóloga relata que o que parece ser uma massagem com óleo de cozinha, tão somente, para saber da posição do bebê, melhor local para parir, idade gestacional e bom andamento da gestação, é, na realidade, muito mais do que isso, haja vista abarcar um processo de conhecimento/cuidado daquela que é "afomentada" muito maior do que biológico. Para isso, a autora recupera situações nas quais a parteira, ao "puxar" a gestante, não só a conhece como passa a auxiliá-la em relação a questões de outra ordem, que não mais a física, como problemas com o marido, relações extraconjugais, dificuldades financeiras, pendências políticas e fofocas da comunidade local. "Puxa-se" antes, durante e depois do parto, para saber da gestação, do andamento do trabalho de parto e, depois, para o restabelecimento do corpo da mulher e a expulsão da placenta. Segundo Fleischer, existe momento certo, um espaço simples e uma ocasião tranquila, mas principalmente, uma relação entre "aquela que puxa" e a "gestante que é puxada". A "puxação", portanto, além de ser uma ocasião na qual se sabe do que acomete a mulher em outras searas de sua vida, conecta também uma parteira a uma determinada gestante, cria laços de confiança e de compadrio entre essas mulheres. Dessa forma, em que pese ser uma prática renegada pela medicina e em cursos oficiais de formação de parteiras, é recorrentemente procurada e valorizada entre as mulheres do Melgaço, mesmo para aquelas que decidem realizar o pré-natal no "postinho" da cidade, pois, ainda assim, procuram por uma parteira que possa "afomentá-la".

Se a puxação movimenta-se mediante a criação e a reafirmação de laços sociais e do universo simbólico ali compartilhado, a reciprocidade também desponta no campo de Fleischer como outra dimensão importante. De modo muito atento, a autora nos mostra como as transformações sociais e econômicas, para além do Melgaço, também ali repercutem e chegam ao que as parteiras ainda percebem como "um dom". Dessa maneira, sem romantizar a relação entre parteira e a mulher que vai dar à luz, a autora constata que o partejar é atualmente atravessado pelo contrato, pelo dinheiro, parcelas e cronogramas de tarefas, acertos e cobranças, sem abandonar, no entanto, a dimensão de dádiva e do cuidado da parteira, que, antes, observa as necessidades daquela mulher e dos que, depois, serão seus "filhos de umbigo". E assim, Fleischer conjuga a leitura maussiana do dom à lógica do mercado contemporânea, sem, contudo, vale notar, concluir pela superação de uma em relação à outra, mas sim apontando para a coexistência de ambas naquela região.

Nesse momento do texto, Fleischer recupera também como uma mulher do Melgaço torna-se parteira, encontrando duas formas principais: a que "aprende sozinha" e a que aprende com a ajuda de outrem. No primeiro caso, a capacidade de partejar é aprendida "no susto" e considerada um dom; no segundo, é uma herança a ser preservada e cultivada e também um dom concedido. Nesse sentido, para a autora tanto uma quanto a outra são uma espécie de "portadora do hau", do qual Mauss nos fala. Por isso, quando deixavam de ser remuneradas pelos maridos das "buchudas", era como se um pouco desse "hau ficasse para trás" e seu renome como parteira ficasse abalado (p.168).

À época da etnografia, muitas eram as parteiras à disposição das mulheres e de seus maridos e o preço oscilava em razão do reconhecimento, da experiência da parteira e, mais recentemente, em virtude de terem ou não feito o curso oficial do Ministério da Saúde, que Fleischer denominou de processo de "proto-institucionalização" (p. 195). D. Dorca, por exemplo, era uma das parteiras mais respeitadas, por antiguidade, número de partos, e, depois, porque fez o curso. Na realidade, a mulher poderia escolher por quem seria puxada, podendo, inclusive, ser puxada por mais de uma parteira, mas, de modo muito curioso, era o marido quem ajustava quem seria a parteira a acompanhar o parto, pois ele seria o responsável pelo pagamento. E é interessante notar que o contrato/"acerto" abarcava a puxação, a presença da parteira na hora do "aperreio" e também depois do parto, já que a mesma seguia cozinhando e limpando a casa da "buchuda" por uns dias. De outro lado, era comum, segundo a antropóloga, o pagamento em serviços ou produtos locais e, assim, também a frustração e o sentimento de desconsideração quando o mesmo não acontecia. Nessa mesma linha, a autora nos leva mais uma vez para além das dicotomias e da lógica do "ou/ou", sugerindo que essa remuneração não apagava a relevância da "relação" e do compromisso entre essas mulheres. E nesse esforço conclui, com o próprio Mauss, que existe a possibilidade de que dádivas também sejam oferecidas por interesses pessoais e não somente por sentimentos amistosos e fins morais. Desse modo, ainda que os termos da reciprocidade atualmente sejam outros e envolva dinheiro também no Melgaço, o cuidado com a "buchuda" prevalece como o que mais importa, assim como o dom divino dado às parteiras. E, por conta disso, quando "tomavam uma loba" (a falta do pagamento por parte do marido), o que mais as incomodava não era a falta do dinheiro, mas o desconforto proveniente da quebra de consideração.

De acordo com Fleischer, os partos eram classificados. Eram "partos difíceis" ou "partos fáceis", "partos para casa", "partos para o hospital" ou, ainda, "partos para casa que passaram a ser de hospital", sem aqui esgotar os meandros dessa organização. Um "parto fácil" era aquele da gestante que possuía uma rede social estável, condições de moradia, um marido presente e o pré-natal no "postinho", não necessariamente o de uma mulher saudável nos termos da biomedicina. E assim era desenhado durante os encontros para as puxações. Via de regra, a preferência das buchudas e de seus maridos era pelas parteiras e não pelo hospital e postinho, pois a parteira fazia sentido dentro daquele mundo, porque as mulheres tinham vergonha dos médicos, porque os maridos sentiam ciúme da exposição corporal de suas mulheres e porque as parteiras permaneciam em suas casas depois do parto. Mas essa não era uma regra para todas as melgacenses, pois, para as "da frente", o hospital era o melhor espaço, já para as "de trás" (as mais pobres), as parteiras eram as mais aptas para acompanhá-las no momento do "aperreio". O interessante é que mesmo em um "parto difícil" as parteiras eram acionadas, e que um parto poderia passar de "fácil" para "difícil" não somente em razão de "pente fechada" ou de uma cesárea anterior, mas também em razão de envolver o deslocamento da mulher até o hospital, mais especificamente quanto aos gastos com diesel para barco. De mesmo modo, porém, havia o "parto para hospital" que acabava em casa, como foi o caso de Acácia (p.237), que por ser uma "mulher sozinha" e sem condições de viajar até Breves, não pôde realizar a cesárea anunciada no postinho e até mesmo pelas parteiras que se juntaram para atendê-la.

Partindo dessas constatações, Fleischer sinaliza pontos importantes no que tange à percepção social de parto, de corpo e de seu local ("território social do parto"), percebendo que, entre essas mulheres, o parto é percebido como um evento natural e não patológico; que a casa é o melhor local para dar à luz, tido como mais seguro e acolhedor; que as dificuldades de um parto não decorrem somente do corpo que pari e que, por isso, noções de risco e perigo aparecem ali resignificadas, bem como a ideia de agência entre as buchudas e as parteiras. Dessa feita, sugere que a atenção das parteiras concentrava-se, sobretudo, nas buchudas, enquanto a dos profissionais da biomedicina muitas vezes aparece centrada nos recém-nascidos, já que, no Melgaço, a tristeza era maior quando "se perdia uma mulher".

Por fim, em "Quem não sabe não mede" (p.251), último capítulo do texto, Fleischer, no esforço da conexão entre o local e o global, nos leva a refletir sobre a repercussão dos cursos oficiais de formação de parteiras em nosso país, problematizando suas consequências para as sociedades que as reconhecem, em termos de percepção social da "parteira estudada", de diferenças internas e hierarquias que passam a ser tecidas intra-parteiras, de como elas se apropriam do certificado/diploma, e de como fazem uso daquilo que conheceram, pondo em cena, a todo o tempo, a suposta dicotomia entre conhecimento oficial/ conhecimento popular e autoridade/informalidade. Leva-nos, assim, a um importante lugar, o da desmistificação ou (des)romantização da figura da parteira "tradicional", expressão que propositadamente não adjetivou as mulheres de Melgaço durante toda a etnografia.

Avessa à expressão "tradicional", Fleischer procura romper com grades de leituras que estigmatizam e criam assimetrias e, atenta ao fazer das parteiras melgacenses, prefere explorar a "prática" dessas mulheres que ultrapassa o cuidado físico. Por outra parte, ao trazer à tona a riqueza desse cuidado e desse universo simbólico, a autora também desmistifica a figura da parteira heroica e piedosa ao apontar para o estabelecimento de hierarquias intra-grupo, entre as jovenzinhas, as antigas e as aposentadas, entre as que tinham cursos e aquelas que se recusavam a tê-los - como era o caso de D.Tapuia (p.268). Havia conflitos entre as parteiras, que se boicotavam. Daí a ideia ali ventilada, por algumas, de que "quem não sabe, não mede", daquela parteira experiente que dizia não precisar saber da "centrimetragem ou da minutagem das contrações" para assistir um parto ou nem mesmo das lições do curso de parteiras. No entanto, para outras, os cursos eram importantes, assim como a associação local de parteiras. Os cursos não eram, a priori ou totalmente, apropriados, na medida em que, para algumas, funcionavam mais como um diferencial em termos de popularidade e de reconhecimento local, vigorando, com isso, o que a autora denomina de "apropriação criativa". Era o dom e a herança que marcavam aquela mulher localmente e não o conhecimento adquirido depois, ao menos no momento do aperreio das buchudas. Para as aposentadas, porém, esses cursos eram uma possibilidade de recuperação do prestígio social.

Com isso, a etnografia de Fleischer contribui de maneira decisiva para a percepção de que ali não havia uma única modalidade de partejar e de parteira, mas uma miríade de expressões, que, exatamente por isso, não poderia ser circunscrita ao termo "parteira tradicional". Em suas palavras, "a ideia de parteira era múltipla e dinâmica", na medida em que múltiplas eram as fontes de legitimidade de sua prática, seja o dom e/ou a herança cumulados ou, então, o conhecimento dos cursos. Dessa forma, explica-nos como as parteiras não usavam o termo "tradicional", a não ser nos espaços em que buscavam legitimidade, como perante a comunidade médica e de saúde oficial.

Isso posto, o leitor chega às considerações finais, com a ideia de que o "tradicional" não cabe e que é impossível reduzir a prática dessas mulheres a uma unidade, na medida em que D. Dorca, D. Tabita e todas as outras eram muito mais do que parteiras e que o partejar ali praticado está muito distante de ser a-histórico e imutável (p.303). Porque essas mulheres que "pegam menino", na leitura de Fleischer, ajudavam toda a sociedade melgacense a entender, traduzir e organizar o grupo como um todo, muito além da atuação no parto, em um momento situado, que, na biomedicina, muitas vezes, é percebido como um acontecimento isolado. Sendo assim, sempre orientada pela preocupação com a leitura das práticas, Fleischer nos brinda com uma a "descrição densa" (Geertz, 1989GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. São Paulo, LTR, 1989.) da importância do vínculo e da relação social na atenção ao parto no Melgaço, mas não somente para isso, mas também para a invenção e a convenção da cultura ali operante (Wagner, 2010WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo, Cosac & Naify, 2010.).

Dessa forma, trata-se de um belo e instigante exercício de ruptura com categorias consolidadas, que tem por foco a "relação" e uma noção de cuidado que transborda o biológico, dando ensejo a uma proximidade com o que Maffesoli (2001)MAFFESOLI, Michel. Elogio à razão sensível. Rio de Janeiro, Editora Vozes, 2001. denomina de "conhecimento tátil".

Referências bibliográficas

  • FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. São Paulo, Graal, 1993.
  • GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. São Paulo, LTR, 1989.
  • MAFFESOLI, Michel. Elogio à razão sensível. Rio de Janeiro, Editora Vozes, 2001.
  • SHOSTAK, Marjorie. Nisa. The life and words of a !kung woman. USA, Harvard, 2000.
  • WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo, Cosac & Naify, 2010.
  • *
    Resenha de FLEISCHER, Soraya. Parteiras, Buchudas e Aperreios. Uma etnografia do cuidado obstétrico não oficial na cidade de Melgaço, Pará. Santa Cruz do Sul, EDUNISC e Belém, Paka-Tatu, 2011. Recebida para publicação em 11 de novembro de 2012, aceita em 4 de julho de 2013.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Jun 2014
Núcleo de Estudos de Gênero - Pagu Universidade Estadual de Campinas, PAGU Cidade Universitária "Zeferino Vaz", Rua Cora Coralina, 100, 13083-896, Campinas - São Paulo - Brasil, Tel.: (55 19) 3521 7873, (55 19) 3521 1704 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: cadpagu@unicamp.br