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Narrativas infiéis: notas metodológicas e afetivas sobre experiências das masculinidades em um site de encontros para pessoas casadas* * Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – Fapesp.

Resumos

Internet, sexo e segredo formam uma tríade que lança muitos desafios ético-metodológicos para quem pesquisa no campo das mídias digitais, exigindo que reinventemos técnicas já consolidadas. No site Ashley Madison, voltado para a promoção de encontros entre pessoas casadas imergi em dinâmicas relacionais nas quais a tensão entre novas tecnologias de comunicação, masculinidades, conjugalidades e mercado dos afetos levou-me a discutir o lugar da pesquisadora como interlocutora e confidente, atenta à dimensão emocional das mídias mostrou-se fator decisivo na produção discursiva e da flagrante textualização de si.

Ashely Madison; Mídias Digitais; Conjugalidades Contemporâneas; Masculinidades; Metodologia de Pesquisa Online


Internet, sex and secret are a triad that launches many methodological and ethical challenges for those who conduct researches in the digital media field requiring reinvention of already consolidated techniques. On Ashley Madison website, which is oriented to promote dates between married people, I became immersed in the dynamics of these relations in which the tension among new communication technologies, masculinities, conjugalities and affections market led me to discuss the researcher's place and role as interlocutor and confident; being aware of the emotional dimension of media proved to be a crucial factor on the production of discourse and of the evident textualization of oneself.

Ashley Madison; Digital Media; Contemporary Conjugalities; Masculinity; Online Research Methodology


Eu achava que não, mas estava fazendo sexo com eles. Uma espécie de sexo voyeur, virtual, no qual olhos que leem e dedos que digitam excitam a imaginação de meus colaboradores contumazes. Paulo1 1 Os nomes dos colaboradores são fictícios. , professor universitário, 54 anos, paulista, enche páginas que me envia por e-mail contando-me de suas aventuras desde que começou a usar os serviços pagos do Ashley Madison, site canadense que chegou ao Brasil em 2011 prometendo transas quentes e relações seguras fora do casamento. "A vida é curta. Curta um caso", convida o slogan do AM, como os meus colaboradores costumam grafar o nome do site.

Ricardo diz ter ciúme de Paulo. Compartilho com Ricardo algumas histórias e impressões, pois Ricardo foi, desde o início dessa pesquisa que começou em meados de 2011, meu interlocutor mais instigante. Gosto das análises dele e de sua escrita ácida e sem condescendências. Ricardo diz que não quer nunca me encontrar pessoalmente porque ele não existe. Quem existe é um homem de 46 anos que jogou para cima um emprego estável e está tendo dificuldades profissionais como autônomo; que já não tem interesse sexual em sua esposa, apesar de respeitá-la profundamente como mulher e companheira. Ricardo quer meus e-mails para poder continuar sendo essa personagem provocadora, para ser, como ele mesmo se denomina, meu "guinea pig", minha cobaia. Alimento esse jogo por prazer e interesses acadêmicos. Concluo que sem essa combinação a comunicação não funciona. Pesquisa com mídias digitais são exigentes, é preciso que haja gozo na imersão.

Todos os dias entrar no site. Cadastrar-se em outros sites a fim de fazer análises comparativas e escolhas mais rendosas para a investigação propostas. Conectar-me em horários diversos para verificar se há diferença nos acessos conforme a hora do dia. Checar mensagens enviadas pelo sistema dos sites. Copiar, colar, sistematizar mensagens organizando os perfis. Levantar os perfis de quem me "viu" naquele dia. Contabilizar piscadelas e pedidos de chave.2 2 O Ashley Madison dispõe de uma aba que dá acesso aos perfis dos usuários que visualizaram a minha página no site na última semana. As piscadelas são uma ferramenta, sem custos para os usuários, para chamar a atenção da pretendente para o seu perfil e o pedido de chave se refere à solicitação, enviada via mensagem, para ter acesso às fotos privadas do usuário, no caso, minhas fotos. É possível saber que a pessoa possui fotos privadas ao acessar o seu perfil sem, contudo, poder visualizá-las sem autorização. Mantive fotos na galeria privativa a fim de provar que eu realmente existia e que tinha um rosto, posto que minha foto de perfil, aberta a todos, era de costas. Verificar e-mails, respondê-los também. Organizar a correspondência em pastas nomeadas e manter o conteúdo das conversas organizado cronologicamente. Em azul o que eles me escrevem, em vermelho o que enviei como resposta. Uma rotina extremamente absorvente que me fez eleger, ao fim, apenas o Ashley Madison3 3 Ao acompanhar, juntamente com minha orientanda Mariana Cervi (bolsita PIBIC-Reitoria), a dinâmica dos sites, optamos pelo Ashley Madison por ter um número maior de usuários/as, mais ferramentas para a interação e estar se mostrando, por isso mesmo, mais produtivo, a nossos perfis seguidos de mensagens. À época, o site canadense contava, segundo dados do próprio Ashley Madison, com 17 milhões de usuários/as no mundo, sendo 1 milhão brasileiros/as. , à época o site que dava mais resultados quantitativos e qualitativos para os fins deste trabalho. Sua interface em cores claras e abas de fácil manuseio permitem que se explorem as diferentes ferramentas disponíveis, detalhes técnicos que tornavam o acesso mais dinâmico e abria a possibilidade para coletar mais informações a partir dos serviços ali disponíveis, gratuitos para usuárias mulheres.

Abri naquele site dois perfis, registrando-me com cuidados de uma infiel: foto de costas, mas suficientemente sedutora, no meu ponto de vista: idade diminuída, afastando-me da linha de "abjeção" dos cinquenta anos4 4 Paralelamente, duas orientandas abriram perfis com diferentes idades no Ashely Madison. Em um deles, ela se apresentavam como Mari_28, estudante, loira, e não colocaram fotos ou mais detalhes possíveis de serem clicados a fim de oferecer maiores dados sobre a usuária. Em um só dia receberam mais de 40 abordagens via mensagens e piscadelas (ferramenta disponibilizada pelo site que permite que se envie uma piscada de olho virtual, insinuando interesse, serviço pelo qual o usuário não paga). Em contrapartida, o perfil, igualmente incompleto, de Verinha6.2 ficou à míngua, jamais recebeu uma abordagem. ; informações parcimoniosas que me deixavam na fronteira entre um perfil detalhado e aquele mais seco de informações. No AM, assim como em outros sites afins, a/o usuária/o fornece dados de suas preferências sexuais, dos seus desejos românticos ou dos seus hobbies, a partir de questionários fechados que, quase sempre, terminam com um espaço aberto para que se escreva livremente (mas com o número de caracteres pré-estabelecidos) algo sobre si mesma/o.

Construir um perfil para si em sítios para relacionamentos é um processo altamente racionalizado, independente de estarmos fazendo uma pesquisa. Registrar-se é construir uma espécie de "versão computacional de quem você é" (Illouz, 2011:111______. O amor nos tempos do capitalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.). Mobiliza esforços de síntese e de comodização. Como se anunciar da melhor forma? Como se diferenciar nos vastos catálogos em que estes sites se transformam? Como traduzir iconograficamente o melhor de si? Passar por esta experiência me colocou mais próxima das pessoas que estão ali, ainda que com objetivos distintos dos meus. Colocou-me também frente a desafios éticos, uma vez que meu perfil deveria ser suficientemente convincente e atraente, mas não poderia ser uma "armadilha". Não seria honesto criar expectativas nos possíveis pretendentes a um affair para, em seguida, decepcioná-los com minhas intenções de pesquisadora. Após testar por um tempo um perfil com um nick (apelido, na linguagem da internet) próximo ao meu nome (Lari Silva), a solução foi abrir outro perfil como Pesquisadora2013.

Pesquisadora2013 seguiu sendo uma "armadilha", uma vez que em minha frase de apresentação preferi o ambíguo "explorando o campo... em busca de colaboradores", do que dizer que se tratava de uma antropóloga fazendo pesquisa sobre conjugalidades contemporâneas, intimidades e tecnologias. Ponderei bastante, mas considerei que esse tipo de anúncio prévio criaria um viés imediato, pois impediria que eu pudesse mensurar quantos homens se interessariam por um perfil como o meu: uma mulher casada, de 45 anos, de costas olhando o mar e que se dizia boa ouvinte e aberta para descobertas, além de interessada em conhecer casas de swing. 5 5 Esse era um interesse real, pois o swing me parecia um contraponto à traição sigilosa e segura proposta pelo site, uma vez que pressupõe que a relação com outros parceiros, preferencialmente casais, se dará consensualmente e com os parceiros cientes e presentes na relação sexual. Assim, queria verificar se encontraria swinggers ali. Se havia, nenhum fez contato comigo.

Surpreendentemente muitos homens acessaram meu perfil enviando-me mensagens personalizadas ou "piscadelas" e até presentes digitais (rosas e bichinhos de pelúcia). Com exceção das piscadelas, todos os demais serviços são cobrados dos usuários que se registram como homens. O que tornou meu comprometimento ainda mais delicado, pois houve quem me acusasse de estar fazendo-o gastar créditos vãos e que eu deveria ser mais honesta em minha apresentação.

Sempre que recebi mensagens personalizadas, quer dizer, com textos elaborados pelo usuário do sistema, respondi também de forma personalizada, explicando sobre a pesquisa. Alguns nunca mais me responderam. Poucos foram indelicados, outros tantos, precisamente 32, se propuseram a encetar uma troca de e-mails que, com alguns, se estendeu por meses. É sobre esses homens maduros, entre 38 e 70 anos, que versa este artigo. Melhor, este é um ensaio sobre masculinidades, conjugalidades e tecnologias, cujo campo consolidou-se no Ashely Madison, voltado para a promoção de encontros amorosos e sexuais entre pessoas casadas que assim desejam permanecer. Mas, este é também um texto sobre metodologia e ética em pesquisa quando trabalhamos com mídias digitais.6 6 "É possível definir as mídias digitais como meios que permitem criar redes relacionais seletivas dentro de uma espécie de mercado amoroso e sexual, o qual ascendeu a partir da chamada Revolução Sexual e agora apenas passou a ser visualizável por meio de sites e aplicativos" (Miskolci, neste dossiê).

Afetos e tecnologias

Os homens que se dispuseram a participar desta pesquisa, fui me dando conta aos poucos, têm um perfil sociocultural bastante próximo: quase todos são profissionais liberais ou trabalham com atividades intelectuais (jornalista, professores universitários, advogados), têm flagrante capital cultural, conhecedores de literatura, poesia, amantes da boa escrita, viajados, em suma, homens que, de acordo com os valores vigentes, poderiam ser considerados "pessoas de sucesso".

Ainda assim, havia algo de solidão7 7 Muitos e-mails traziam relatos em tom confessional sobre medos, angustias, desejos e a falta de interlocução com a parceira para falar sobre essas emoções, bem como manifestação de que não encontravam em amigos uma escuta confiável para seus sentimentos relativos ao casamento, a problemas sexuais e profissionais. naqueles textos enviados em respostas às minhas questões. Sem vitimizá-los, passei a considerar que aquela prosa que falava de vidas familiares felizes, mas tensionadas pelo vazio existencial de homens de meia idade, poderia ser um recurso de sedução, convocando não apenas minha solidariedade, me fazendo uma espécie de cúmplice das suas pequenas traições, mas, sobretudo, uma leitora cativa de seus relatos via e-mail e uma interlocutora interessada. Escreve-me Adilson: "acho até interessante poder dividir com alguém esses grandes segredos". Dias antes me dava outra pista também por e-mail: "gosto dessa comunicação. Talvez porque vc, apesar de ser tão interessada por esse meio, certamente não pertence a ele". Não ser uma nativa, para usar um termo caro à antropologia, foi vantajoso justamente porque pressupunha uma outra escuta.

Os e-mails ganharam centralidade como meio de comunicação nesta pesquisa. Já havia trabalhado com mídias digitais anteriormente. Na pesquisa de doutorado8 8 Trata-se da pesquisa sobre o modelo preventivo de aids e sua recepção por travestis que se prostituem. Tal investigação me levou a buscar contato com os clientes delas. Foi pela internet, mas especificamente pelo extinto site de sociabilidade online, Orkut, que consegui estabelecer os primeiros contatos com homens que se assumiram como clientes de travestis. A partir de uma sequência de mensagens e trocas de e-mails, passei a conversar com eles por MSN. Certa feita um desses homens me falou de encontros presenciais dos chamados T-Lovers (amantes de travestis e transexuais). Foi assim que passei a mesclar incursões online com as off-line, passando a conviver intensamente com um grupo que se auto denominavam de T-Lovers. A pesquisa, financiada pelo FAPESP, resultou no livro Abjeção e Desejo - uma etnografia travesti sobre o modelo preventivo de aids (Annablume, 2009). construí parte significativa de meus dados em conversas que foram se dando em comunidades do Orkut, passando por lista de discussões em e-mails, postagens em blogs e conversas pelo MSN. Este último, por sua sincronicidade, tornou-se, naquele momento, um canal excelente para entrevista que, não raro, derivavam em conversas espontâneas. Custei a compreender que para os objetivos desta pesquisa aquela ferramenta não me servia, justamente pela sincronicidade, pela possibilidade de requisitar conservas com webcam aberta o que acabou provocando assédios insistentes9 9 Quando fazia a pesquisa do doutorado, entre 2003 e 2007, a internet era discada, os serviços bem mais caros que hoje em dia, os recursos periféricos como webcam e microfones não vinham acoplados às máquinas e a velocidade operacional era bem inferior que a atual, o que tornava o trabalho com imagens e som muito menos atraente do que veio a se tornar. , mas que serviram para repensar os meios de interlocução e perceber que eles acabam pautando também a forma de exercício de uma certa masculinidade.10 10 Discutirei esse tema mais à frente. Não sem motivo, os homens que aderiram à comunicação por e-mails foram os que apostavam na prosa elaborada como mecanismo de sedução. Mas também como forma de textualizar suas aventuras e desventuras, em narrativas que permitiam uma avaliação de si feitas pelo próprio narrador e também por mim, cooptada como ouvinte ativa, aquela que vai responder, ou seja, interagir com eles. Sherry Turkle (2011)TURKLE, S. Alone Together: why we expect more from technology and less from each other. New York: Basic Books, 2011., em pesquisas sobre o uso intensificado de mídias para a comunicação pessoal, constata que a interação rápida, a resposta a mensagens eletrônicas vindas de pessoas com as quais não se têm, por vezes, intimidade ou sequer conhecemos fora da tela, é um fator de encantamento. Trata-se de uma interação diferente daquela estabelecida no contato face a face ou, como prefere Baym (2010:6)BAYM, NK . Personal Connections in the Digital Age. Cambridge: Polity Press, 2010., no corpo a corpo. O que difere essa comunicação, na percepção de muitos interlocutores nesta pesquisa, tem a ver justamente com a falta de determinadas pistas sociais que os obrigam a ir adivinhando por meio da escrita quem é aquela pessoa.

Nancy Baym (2010:59)BAYM, NK . Personal Connections in the Digital Age. Cambridge: Polity Press, 2010. escreve que "as pessoas mostram sentimentos, imediatismo, divertem-se, constroem e reforçam estruturas sociais mesmo em mídias mais enxutas como aquelas só de textos"11 11 (...) "people show feeling and immediacy, have fun, and build and reinforce social structures even in the leanest of text-only media". (tradução minha), de maneira que aquelas "pistas" (cues) sociais dos quais nos valemos no cotidiano off-line podem ser transpostas com alguma eficiência mesmo em um e-mail. Júlio César, um de meus primeiros interlocutores no AM, valia-se de suas experiências off-line para avaliar as mulheres que conhecia online. Por outro lado, como outros homens que conversavam comigo, Júlio César gostava da diluição dessas mesmas pistas que as mídias enxutas promovem.

O gostoso mesmo é aquilo q se passa atrás dos nossos olhos: quem será, como será, do q gosta, o q faz, será q se falou a verdade nos e-mails, ela não estará fazendo as mesmas perguntas q eu? Acho q uma conquista tem q ser completa: só corpo é pouco, só alma é platônico (Júlio César).

Adilson, o único colaborador com quem estive presencialmente, também frui prazer nesse jogo de textualização de si: "Descobrir a pessoa aos poucos, culminando com um encontro é realmente mágico (ou pode ser)". "Pode ser", porque, ao fim, faltam as pistas. "As pessoas podem ser pessoalmente muito diferentes, porque charme, inteligência, timing, perspicácia, bom gosto, etc., muitas dessas coisas somente se nota pessoalmente", conclui. Ainda assim, ele se deleita com os e-mails saborosos de uma de suas conquistas no site, a "amiga de Santos", uma mulher com mais de 50 anos, que o diverte com crônicas de seu dia-a-dia. Quando viu a foto de seus seios, enviada "travessamente", comoveu-se. Não teria se aproximado dela não fossem sua sagacidade verbal, confessa-me, para em seguida compartilhar comigo uma dessas crônicas vindas por e-mail.

Os usos atribuídos a cada mídia vão mudando com o tempo, pois as próprias pessoas que delas se utilizam vão lhes conferindo outros sentidos. Basta lembrarmos nossas experiências pessoais e profissionais relativas a uso do telefone fixo, por exemplo. Para quem viveu a adolescências nos anos de 1970 e 80 aquela tecnologia tinha um sentido que hoje se perdeu em grande parte, não só para as novas gerações, assim como para nós mesmos que temos à disposição uma série de outros meios de comunicação tanto para o lazer quanto para o trabalho.

Aliás, essa é uma fronteira que apareceu bastante borrada na rotina de meus interlocutores. Como muitos tinham smartphones, faziam da portabilidade e da possibilidade da conexão à internet um facilitador para flertes e encontros com suas pretendentes e/ou amantes, mesmo no período em que estavam no trabalho ou em deslocamento. Confesso que essa mobilidade conectada invadia meu dia de uma maneira perturbadora.12 12 A ideia de estar sempre on call gerou ansiedade em mim. Pensava que ao não responder poderia estar perdendo dados importantes ou, pior, perdendo um interlocutor duramente conquistado. Lidar metodologicamente com esses novos suportes e territórios movediços de pesquisa tem sido exigente (volto a esse ponto adiante).

Os novos suportes para essas tecnologias, como celulares com conectividade e tabletts, foram se caracterizando como objetos pessoais, cujo compartilhamento não é comum. Assim, protegidos por senhas ou pelos códigos tácitos que estipulam o uso privado de certos aparelhos, meus interlocutores aprenderam que a comunicação feita em trânsito podia proporcionar, inclusive, encontros fortuitos em intervalos de trabalho. Em uma de nossas trocas de e-mails, Geraldo justifica-se pela escrita apressada: "Ah, desculpa a falta das virgulas mas como estou te escrevendo na hora do almoço saiu corrido e não deu para revisar a pontuação".

Lia, a única mulher com quem interagi e estive pessoalmente,13 13 Lia me achou em suas recorrentes buscas pelo Google atrás de referências sobre o Ashley Madison, a fim de se manter atualizada sobre o site e obter dicas para otimizar seu uso. Dei uma entrevista para a Revista da Unesp (http://www.unesp.br/aci_ses/revista_unespciencia/acervo/40/te-perdoo) sobre a pesquisa que estava desenvolvendo. Assim, cruzando as palavras de busca que costumeiramente utilizava, Lia encontrou a matéria e, a partir dela, meu e-mail. Enviou-me, então, uma mensagem dizendo que tinha muita vontade de poder contar suas histórias para alguém e viu em mim uma interlocutora interessante. Assim, marcamos de nos ver, o que resultou em três encontros de três horas em média, todos na cidade de São Paulo, onde ela vive. conta das escapadas na hora do almoço ou em fins de tarde, pós-expediente, para motéis "chiques" com o seu amante preferido, chamado por ela carinhosamente de Leão, em referência ao ex-goleiro famoso, entre outros atributos, por suas pernas fortes.

Leão viaja muito, Lia também tem um emprego que exige deslocamentos frequentes. Aos 46 anos, ela não é casada, ao contrário de seu parceiro de aventuras, mas diz que é,

assim eles não ficam pensando que eu quero casar. Não quero. Mas tem o ônus desse tipo de relação, né? E a gente tem que aprender que vai ter de encarar Natal sem a pessoa, fim de semana também e muita conversa por Skype [risos].

A relação se tornou possível, e muy caliente, na avaliação de Lia, porque as mídias digitais somadas à portabilidade e conectividade assim o permitiram. "Pelo Skype a gente fez sexo", um sexo diferente do que ela afirma estar tendo, também por Skype, com seu namorado estrangeiro. Lia desistiu de Leão e de outros dois homens com quem flertava e saia ocasionalmente. Namora à distância, levando para essa relação muito do que aprendeu sobre emoções e tecnologias.

Gosto da proposição de Bruna Bumachar de que "a escolha das tecnologias não apenas revelam o idioma do controle, mas também expressam o das emoções" (2011:93). Os e-mails, percebi, me garantiam mais controle sobre a forma de interagir com aqueles homens. Mais que isso, permitiam um retorno ao texto antes do envio urgente que o MSN pedia. Havia ainda a possibilidade de estar a sós numa imersão na tela textualizando nossas subjetividades (Illouz, 2011______. O amor nos tempos do capitalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.), ansiando pela leitura de quem iria recebê-lo. Constatei que há prazer nesse processo, não só para mim. Adilson, apaixonado por literatura, 49 anos, profissionalmente envolvido com ciências exatas, também sentia nesse jogo de trocas certa excitação que antecedia os encontros presenciais, podendo torná-los ainda mais interessantes. Referindo-se a um grande amor que começou, no final dos anos de 1990, em uma sala de bate-papos da UOL, ele escreve: "Os emails, as mensagens, a espera, o prazer de escrever e de ler, os jantares, os passeios... tudo fazia parte de algo que poderia ter transformado minha vida".

A socióloga e psicanalista Sherry Turkle, teorizando sobre essa relação entre a escrita e as expectativas pessoais de mudanças e transformações, declara em entrevista:

Com uma correspondência importante por mail e as demais formas de comunicação eletrônica há, de um lado, a intensidade e a fantasia desse tipo de comunicação instantânea, mas, diferentemente de uma conversa, pode-se ler e reler uma mensagem. Une-se à potência da conversação um suplemento de sentido. Há um aspecto da ordem da participação na conversa on-line, que pode ser frequente e facilita a coordenação entre pessoas diferentes e geograficamente dispersas (Turkle, em entrevista a Casalegno, 1999:121).

Vivi essa potência em mim e por meio do prazer que meus interlocutores diziam obter valendo-se das tecnologias de comunicação digital para intensificar emoções que, para muitos, estavam dormentes.

Afinal, que tipo de homem abre mão de "caçar" mulheres para ser "estudado"?14 14 Interrogação feita por Ricardo em uma de suas longas mensagens de e-mail trocadas com a pesquisadora.

Importante neste ponto procurar responder à pergunta de Ricardo, que abre este tópico. Afinal, quem são estes homens que desejam ser desejados e, curiosamente, desejam falar de si para alguém que se declara "uma boa ouvinte", mas está, de fato, construindo dados de pesquisa com eles?

A maior parte dos homens com quem interagi nesta pesquisa tem curso superior completo e mora no estado de São Paulo. Somente Luiz é da cidade do Rio de Janeiro. Apenas Teo, Aurélio e Fernando (42, 57 e 70 anos, respectivamente) não estão comprometidos. Os dois primeiros estão recém-separados, o último é viúvo há três anos. Apensar de ter uma namorada, Fernando, o mais velho dos homens com quem conversei, não se sente, de fato, comprometido. Dos 25 perfis restantes, três têm namoradas ou noivas, os demais são casados. A média de tempo dos casamentos é de pouco mais de 13 anos.15 15 Não obtive dados sobre questões raciais.

Os sites apontam para profundas mudanças nas relações conjugais, que passam pelas alterações nas relações de gênero, mas também pelas possibilidades que a internet como artefato cultural e como cultura em si mesma (Hine, 2004HINE, C. Etnografia Virtual. Barcelona: UOC, Colección Nuevas Tecnologías y Sociedad, 2004.) apresenta, sobretudo para uma geração que ainda a tem como relativa novidade para fins amorosos. É preciso também considerar, como diversos/as autores/as já assinalaram, que online e off-line são espaços que determinam um ao outro. O aparecimento de serviços online para traição por si só já pede considerações acuradas do presente, da vida fora da tela.

O amor romântico, alegam meus colaboradores, regeu as uniões que hoje parecem entendia-los. Fiéis a ele, muito mais que às suas esposas, eles procuram um reencontro com esse sentimento descrito como arrebatador e teorizado pelas ciências sociais pelo menos desde os ensaios de George Simmel (2001).

A fidelidade a esse modelo de relação os leva também a apostarem na permanência da vida conjugal como alicerce seguro em um mundo cambiante. O casamento não parece uma instituição que tenha provocado infelicidade para esses homens. Esta mais próxima da visão clássica durkheimiana da sociologia da família, que toma o casamento como uma instituição capaz de proteger os indivíduos em um mundo anômico (Féres-Carneiro, 1998:s/pFÉRES-CARNEIRO, T. Casamento contemporâneo: o difícil convívio da individualidade com a conjugalidade. Psicologia: reflexão e crítica, vol.11, nº 2, Porto Alegre, 1998, pp.379-394.).

Apesar de cultivar a liberdade individual, o amor romântico perdeu as suas qualidades transgressoras e eróticas Costa, 2005), para se adequar às lógicas sociais da diferenciação de gênero e da aliança familiar. Como propõe Chaves (2006:835), este amor é um "amor romântico domesticado", diferente do original, inicialmente mais selvagem e erotizado (Aboim, 2009:108ABOIM, S. Da pluralidade dos afetos: trajetórias e orientações amorosas nas conjugalidades contemporâneas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol.24, nº 70, jun 2009, pp.107-122.).

Em busca dessa dimensão perdida do amor romântico eles se inscreveram no AM, procurando, entre outras emoções, uma um tanto vaga, mas que rende uma boa discussão sobre masculinidades contemporâneas: se sentir vivo. Expressão que adquire diferentes sentidos na escrita de oito, dos 32 homens com os quais interagi com mais constância. Elegi Ricardo, 46; Adilson, 46; Karl, 41; Paulo, 54; Júlio César, 46; Geraldo, 57; Rogério 53; e Luiz, 48 anos, por serem aqueles que escreveram textos mais longos ou mantiveram uma comunicação mais assídua comigo. Sintomaticamente, são também os que expressam mais claramente os desafios a um modelo de masculinidade que vem sendo provocado pelas mudanças nas relações de gênero, de forma mais acentuada, nas sociedades de matriz ocidental desde a década de 1960.

Conto a Ricardo que muitos dos meus outros interlocutores atribuem grande importância à consistência da escrita das mulheres pelas quais se interessam. Enquanto escrevo para Ricardo, penso em Luiz que me disse que seu tesão não se sustenta diante de um erro crasso de português. Mas é Karl quem tem o texto mais eloquente sobre a capacidade de sedução da escrita. Reproduzo o trecho de seu e-mail no qual me conta da arrebatadora paixão que estava vivendo:

Nos falávamos sempre, só nas palavras. Sentíamos muito desejo um pelo outro, um desejo diferente pois o que mais erotizava esse desejo era justamente a distância e as palavras. Sempre elas (Karl, 41 anos, dois casamentos, o atual há cinco anos [na época da pesquisa], artista plástico e profissional da área de Comunicação).

Sarcástico, Ricardo não acredita nesse "tesão gramatical". Tampouco na capacidade das mulheres que estão no AM se expressarem de forma tão fascinante textualmente. Quando pergunto se ele também se sente seduzido pelas mensagens que recebe, sua resposta é cáustica e reproduz, ainda que sem intenção, a clássica dicotomia cérebro versus corpo que organizou a distribuição de poder nas relações de gênero em sociedades de matriz ocidental:

Você me pergunta como as mulheres me seduzem textualmente (?)... e eu digo que isso não ocorreu, pelo menos ainda. Eu as "seduzo textualmente", buscando em seus corpos e sensualidade dos encontros face a face. Interessante supor que as mulheres do AM poderiam seduzir usando apenas um teclado. Garanto que "muitas imagens e poucas palavras" é a forma de expressão feminina. Via teclado elas mandam dados (nem sempre corretos...) sobre idade e etc. Em suma, ou são seduzidas via "teclado" ou fazem contatos simples, abrem suas Galerias16 16 Refere-se à Galeria Privada, aba de cada perfil pessoal na qual podem ser adicionadas fotos. Estas só são acessíveis a partir da concessão que cada usuário/a faz de uma "chave" representada iconograficamente desta forma e que libera o acesso às fotos. e mostram seu real poder de sedução! (Ricardo, 46 anos, 23 anos de casamento na época da pesquisa, engenheiro).

Desconfio que Ricardo gostava de lançar essas provocações para, justamente, "se sentir vivo", porque crítico. Insinuo que este sentimento expresso nessa locução relaciona-se com a ideia de risco e esta com a noção de masculinidade que orienta esses homens. A cada provocação Ricardo sentia o risco de nossa relação ser interrompida. Chegamos mesmo a ter desentendimentos que levaram a um tempo de silêncio nas nossas correspondências.

Em alguma medida, todos ali estavam correndo algum risco: de serem descobertos, de se apaixonarem, de desmancharem relações estáveis que lhes davam segurança. Porém, muitos apostavam na capacidade de gerir e controlar esses riscos. Quando não, se compraziam com as emoções associadas ao "risco-aventura" (Spink, 2001SPINK, M. J. Tópicos do discurso sobre risco: risco-aventura como metáfora na modernidade tardia. Cadernos de Saúde Pública, nº 17, São Paulo, 2001, pp.1277-1311.).

Ao utilizar o termo risco-aventura estamos nos referindo, apenas parcialmente, às novas modalidades de aventura e aos novos usos de antigas modalidades de jogos de vertigem. Optamos pelo termo composto risco-aventura, para enfatizar um deslocamento importante dos sentidos modernos do risco que recuperam a aventura como dimensão positivada da gestão dos riscos (Spink, 2001:1278).

É importante abordar, ainda que tangencialmente, a relação entre usos intensificados de mídias digitais, masculinidades, conjugalidades e gestão de riscos. Este último termo, para esses homens, está bastante associado aos modos como fazem uso dos recursos da internet. Gerir riscos, nesse contexto, passa pelo controle das informações, seja monitorando sua circulação (cuidados com senhas para impedir o acesso a seus equipamentos e perfis); o que exige também cuidado relativo à identidade, por isso a adoção de nicks e a relativa parcimônia na divulgação de fotos pessoais; vigilância sobre o que se informa e como se faz isso, por exemplo, atentando para a escrita a fim de evitar mal-entendidos; regulação do volume de dados pessoais divulgados e compartilhados, acumulando e sistematizando informações sobre as outras pessoas de modo a garantir uma circulação pessoal mais confortável entre os meios, seja a ferramenta de mensagem do site, o e-mail, o MSN, ainda ativo na época desta pesquisa, o skype, bem como as SMS para celulares (no caso, para não confundir as mulheres com quem estão se comunicando, trocando seus nicks ou fazendo confusões relativas a eventos vividos ou narrados, entre outras).

Como gerenciadores de riscos, esses homens acabam expressando nessas experiências narradas elementos basilares da modernidade tardia, teorizada por Ulrich Becker (1993) no conceito de "sociedade de risco". Esta, segundo o autor, se sustentaria na tríade globalização, individualização e reflexibilidade. A primeira trazendo como marca sine qua non o desenvolvimento das mídias eletrônicas; a individuação associando-se à destradicionalização de instituições, por exemplo a família, e a reflexibilidade como a "suscetibilidade à revisão crônica da maior parte dos aspectos da atividade social e das relações com a natureza, à luz de novas informações" (Becker apud Spink, 2001:1282SPINK, M. J. Tópicos do discurso sobre risco: risco-aventura como metáfora na modernidade tardia. Cadernos de Saúde Pública, nº 17, São Paulo, 2001, pp.1277-1311.).

Uma das marcas flagrantes da modernidade tardia, associada aos demais aspectos pontuados por Becker, talvez seja os deslocamentos relativos ao campo das relações de gênero. Meus interlocutores expressam isso de várias maneiras. De alguma forma, gerir, controlar, monitorar, ou ter a sensação de que o fazem, garante a eles um sentimento de controle e autonomia que os vincula a modelos tradicionais de masculinidade, em um universo no qual esses poderes estão diluídos (há mais homens que mulheres buscando aventuras extra-conjugais; trata-se de homens com mais de 40 anos, vivendo em uma sociedade que tem a juventude como um valor em si, na qual o sexo insertivo e ativo é símbolo de masculinidade e virilidade; demonstram algumas dificuldades para lidar com a autonomia sexual feminina, assim como para lidar com valores arraigados de masculinidade, como a não demonstração de suas emoções e o desejo de fazê-lo).

Não se trata de aderir ao discurso "vitimário" da masculinidade que pontuou os estudos de gênero nesse campo (Oliveira, 1998OLIVEIRA, P. P. Discursos sobre a masculinidade. Revista Estudos Feministas, ano 6, nº1, Florianópolis-SC, 1998, s/n.), mas de se deixar provocar pelas angústias que esses homens expressam por meio da escrita. Meio pelo qual é possível verificar a pouca disposição (ou reflexão) para alterar as normas e convenções que orientam e legitimam relações assimétricas de gênero.

Há também muitas decepções, não apenas com o próprio serviço oferecido, mas com o tipo de mulheres que têm encontrado quando se conectam às plataformas. Elas parecem "assanhadas demais", "problemáticas", "vêm de relações infelizes", "querem já partir para os finalmente", desestabilizando, assim as expectativas de gênero para alguns desses homens. Por outro lado, o sentimento de que a vida é curta e de que eles não são "nenhum Georg Cloney, Eike Batista ou Mark Zuckemberg", faz com que considerem que as mulheres mais desejáveis no restrito mercado da traição estejam fora de seu alcance. Instalando um grande sentimento de frustração e os confrontando com seus medos de serem refutados e preteridos por sua idade, tipo físico ou condição socioeconômica. Em alguma medida, todos parecem, ali, correr certo risco de emasculação, o mesmo risco que correm se mantendo na rotina conjugal17 17 Como homens casados, muitos de meus interlocutores relatam que sentem terem perdido algo importante para "um homem": liberdade relativa a momentos de sociabilidade, exercício livre de culpas da conquista sexual, permissão para cometer abusos, seja na ingestão de bebidas alcoólicas ou em aventuras sexuais, maior controle sobre seu tempo e dinheiro, são alguns desses elementos que estou associando com o sentimento de emasculação. (Pelúcio e Cervi, 2013:47-48).

A vida é curta, curta um caso18 18 Slogan do Ashley Madison.

Sem recursos táticos para gerir o imponderável, muitos dos meus interlocutores apaixonaram-se por mulheres encontradas via AM. Outros, não suportaram as sequentes recusas e/ou a indiferença delas em relação a suas mensagens e perfis online. A recusa via internet não é menos dolorida e pode ser mensurada.

Alguns daqueles homens logo foram se dando conta que "curtir um caso" não era tarefa fácil como as propagandas do site prometiam. Curtir um caso, como autoriza a última parte do slogan do AM ("A vida é curta. Curta um caso") ou tentar curtir um, os colocou diante de profundos dramas morais, que passaram também pelos questionamentos sobre relações de gênero, classe social e idade.

Conversei com homens acima dos 40 anos não tiveram ligações emocionais com a internet e seus recursos sociais na juventude. Homens que, apesar de dominarem em boa medida as ferramentas para a comunicação em meios digitais, não estavam tão certo de dominarem os códigos de sociabilidade um tanto fluídos que operam em muitos desses ambientes. Tampouco, estavam seguros que suas estratégias para lidar com o casamento fossem as melhores. Porém, muitos pareciam se dar conta que, sim, "a vida é curta", mas que há ao alcance deles formas de potencializar suas experiências de maneira a terem a sensação de dilatar o tempo. As mídias digitais podiam ajudá-los.

Foi assim com Geraldo, que nos anos de 1990 esteve no Kuait a trabalho, onde morou por 12 anos. Isolado culturalmente ele encontrou nos bate-papos da UOL companhia e emoção para o tédio dos turnos noturnos. Atualmente, agora via AM, procura "alçar voos" no sexo.

Quando eu ainda estava no Kuwait, nós tivemos alguns problemas de relacionamento no casamento, e eu terminei me envolvendo com alguém na internet. Dessa vez ficou tão sério, que eu ligava quase todo dia para ela, às vezes ao custo de uma ligação internacional. Eu inventava de trabalhar depois do horário, só para poder sair e ligar par ela. Foram meses nessas conversas, até que chegou a época das minhas férias no Brasil, e eu devia viajar de Salvador a São Paulo para encontrar com ela. Daí que eu amarelei de novo. Eu sabia que se eu fosse encontrá-la, o meu casamento corria um sério risco de naufragar, e me faltou coragem. (...) Eu amo minha mulher e até que o nosso relacionamento, incluindo o sexo, tem ficado cada dia melhor, especialmente depois do Kuwait, talvez porque lá nos tivemos que nos apoiar muito um no outro, e compartilhar tudo. Eu penso que isso contribuiu para fortalecer a amizade, e a confiança (Geraldo, 57 anos, 32 anos de casado na época da pesquisa, analista de sistema).

Houve um certo tabu em falar sobre suas vidas domésticas e conjugais. Em geral, foram reticentes nesse ponto. Assim, os dados sobre suas esposas e a vida em família foram recolhidos a partir de menções curtas, nas quais a mulher, com raras exceções, era reconhecida como companheira, boa mãe e, em alguns casos, profissional bem sucedida. O problema, portanto, não era com elas, mas com casamento como instituição que macula os valores hegemônicos e contemporâneos sobre masculinidade e, mesmo, juventude e poder aquisitivo.

Ser um homem maduro os desvalorizava no mercado dos afetos, o que podia ser compensado com uma boa conversa e certa erudição, nem sempre suficiente para garantir conquistas. Jorge, 62 anos, um dos homens mais velhos com quais troquei mensagens, mostrou-me um trecho de um e-mail recebido de uma das mulheres que conhecera pelo site e com a qual se encontrou presencialmente. Ele a descreve como "mulher inteligente, com um propósito bem definido e claro, nossa 'conversa' sempre em alto nível, sem baixarias, evoluindo até o primeiro encontro, na semana passada".

Transcrevo a seguir a resposta dela a esse encontro:

Olá meu caro Ariano...

Tudo bem com vc?? Espero que sim...

Bem... saiba que gostei muito mesmo de ter lhe conhecido... pois afinal de contas... hoje em dia, é muito difícil encontrarmos alguém que se possa confiar, com uma boa conversa e algumas afinidades.

Contudo, por mais que tenha me dito que: "Prefere uma verdade que doa, do que uma mentira" ...mas o fato é, para aquilo que venho buscando no site, vc não é esta pessoa... Me desculpe. E menti sim, ao dizer que foi o local que não permitia o "beijo", mas sim, que não rolou a química que eu gostaria...

Paulo, 54 anos, professor universitário, um tanto fora de forma19 19 Paulo me enviou o link de seu Curriculum Lattes, em que vi sua foto. Essa atitude foi muito significativa, pois mostrou confiança em mim e buscava de estreitar nossos vínculos. , ao contrário de Jorge, exibia uma lista de sucessos, dos quais Ricardo, com quem troquei muitas impressões sobre os demais "guineas pig"20 20 Sempre mantive o sigilo relativo aos nomes e mesmo ao nicks usados online. Trocar impressões sobre os demais usuários foi uma estratégia de pesquisa em muitos momentos, pois levava meus colaboradores a tecerem opiniões sobre os demais e, assim, revelavam mais sobre si mesmos. , duvidava: "você sabia que as mentiras masculinas são fantásticas, não é?", me cutucou, ainda falando de Paulo como seu "rival" de narrativas que me prendiam e fidelizavam naquele universo de pretensos infiéis.

Adilson também poderia ser incluído entre os meus preferidos. Escrita cativante, histórias cheias de sentimentos e romances tórridos. O conheci pessoalmente. Pensei logo em Ricardo, que sabiamente preferiu que seguíssemos sendo bons de teclados. Não duvido das aventuras de Adilson, que também se surpreendeu com nosso mutismo no encontro face a face. Para mim, ele foi um dos que melhor expressou a busca por sentir-se vivo, agora que a vida parecia tão estável.

No fundo sinto falta de mais humor, mais arte e mais cultura no meu relacionamento. Se isso é a causa, jamais arriscaria dizer que sim, afinal cada um de nós é um ser tão complexo e de tantos "ocos" que buscar no parceiro tão profunda explicação seria no mínimo covardia... (Adilson, 46 anos, 22 de casamento na época da pesquisa, químico).

Ele busca sexo com outras mulheres, mas não só, arrisco. Creio que, em boa medida a maior parte de meus 32 interlocutores procuravam se sentirem "homens" a partir dessas incursões online e de seus possíveis desdobramentos no off-line. Aspeio a palavra homem, pois trabalho com a hipótese de que eles procuram exercer uma masculinidade que os coloca na tensão entre o "homem familiar", domesticado pelo modelo de casal fusional21 21 "De uma forma geral, a construção do casal fusional, conjugalizado e voltado para o grupo familiar, constitui uma tendência importante de desinstitucionalização da família e, mais ainda, de inclusão masculina na vida privada. Constitui, em traços gerais, um verdadeiro movimento do homem-provedor, institucionalista e regulador, para o homem companheiro, relacionalista e democrático" (Adams e Coltrane, 2005). Como veremos, a construção do companheirismo no masculino constitui um processo atravessado por dificuldades e tensões emanadas de um modelo de masculinidade tradicional que exige aos homens investimento profissional e uma identidade ainda fortemente vinculada aos papéis da esfera pública. A permanente bricolage tecida entre os ideais de envolvimento masculino nas dinâmicas conjugais e parentais e o papel de ganha-pão familiar continua, em muitos casos, a gerar tensões e dificuldades (Aboim, 2010:166-167). e "homem indivíduo", autônomo, que valoriza a dimensão pessoal dos seus próprios projetos, não os subordinando ao ideal de bem-estar conjunto (Aboim, 2010:185ABOIM, S. Da pluralidade dos afetos: trajetórias e orientações amorosas nas conjugalidades contemporâneas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol.24, nº 70, jun 2009, pp.107-122.).

De uma forma ou de outra, parece ser difícil para os homens, sobretudo em quadros modernistas de construção associativa do casal, gerirem as múltiplas referências com que se confrontam. Sentem as tensões que advêm, por um lado, do abandono de masculinidades tradicionais centradas no provedor, na autoridade e numa ética de responsabilidade, a favor da igualdade de gênero e da reconfiguração de si na família; sentem, por outro lado, as dificuldades em "colar" várias referências de masculinidade, debatendo-se com variadas ambivalências e inversões das relações de gênero tradicionais. É um homem que se feminiza, por um lado, acumulando poderes femininos tradicionais (apesar de uma última barreira imposta pela simbologia da maternidade), é um homem que torna femininas categorias tradicionalmente masculinas, é um homem que sente tensões ao tentar ultrapassar o hiato entre valores e práticas de desigualdade no casal (Aboim, 2010, 202).

Nos diferentes ordenamentos conjugais categorizados por Sofia Aboim a partir de sua pesquisa com 37 homens casados e com filhos/as, de diferentes estratos sociais em Portugal, meus colaboradores estariam melhor identificados com o modelo de conjugalidade que ela denomina de "associativa desigual", uma vez que as assimetrias de gênero estão presentes, ainda que de forma mais ou menos marcadas, gerando tensões que eles procuram enfrentar por meio de distintos recursos, entre eles a busca de parceiras fora do casamento, sem desejar, porém, amantes.

Sensibilidades digitais

Larissa,

que ótimo que escreveu! Sempre me faz bem receber suas mensagens. Primeiro, te dou um "follow-up" de minha vida de don juan a volta do otimismo. Tinha te falado de várias pessoas. Muito bem, retomo as crônicas (Paulo, 54 anos, 3 casamentos, professor universitário).

São muitas as mulheres das crônicas de Paulo. Nem todas ele conheceu pelo AM, mas as conexões mediadas por computador fazem parte de seu repertório emocional:

Eu tenho internet desde que ela existe. Para lazer=paquera (rss.) eu descobri as possibilidades em 1999, quando se separei. Era uma novidade, poucos tinham, e era uma festa. Mas entrei em relacionamentos estáveis e me afastei. Depois, com a "fraternalização" do casamento cheguei a usar faz uns ...3 ou 4 anos, tive umas transas, mas foi uma fase ruim, pessoas nada a ver. Depois veio a fase do AM.

Ricardo também coleciona "trepadas" conseguidas via internet, ainda que não as considere de fato prazerosas, ele percebe os sites e chats como potencializadores dessas relações fugazes. Os que não obtiveram tanto sucesso numérico elencam o qualitativo, como Karl, perdidamente apaixonado por uma usuária do AM com quem trocou e-mails, mensagens, telefonemas e carícias on e off-line. Mesmo Geraldo, tão dedicado à sua esposa, sem a qual "não saberia viver", coleciona casos esparsos, não sem culpa. O último deles conseguido via AM. Adilson, bastante tímido pessoalmente, pelo menos quando nos encontramos, também teve "sexo animal" com uma das mulheres contatas via site, além de manter correspondência erótica e mesmo poética com outras tantas.

Praticar sexo dentro da lógica da sexualidade acumulativa ou em série (Illouz, 2012ILLOUZ, E. Porque duele el amor? Una Explicación sociológica. Madrid: Katz Editores, 2012.) faz parte da nova economia sexual desde meados do século XX. Ter muitas parcerias sexuais sem grandes comprometimentos morais e sociais se tornou algo possível para homens e mulheres nas sociedades de matriz ocidental após 1960. Com a revolução sexual e cultural, na qual movimentos feministas contribuíram significativamente para a mudança de comportamentos nas relações de gênero, o sex appeal tornou-se um bem simbólico valorizado no mercado dos afetos.

Se essas transformações promoveram maior simetria de gênero, também possibilitaram a manutenção de algumas assimetrias e até mesmo seu aprofundamento, argumenta a socióloga Eva Illouz (2012)ILLOUZ, E. Porque duele el amor? Una Explicación sociológica. Madrid: Katz Editores, 2012., que se debruça sobre relações heterossexuais para mostrar que o acesso democratizado a muitas mulheres, quer dizer, não era mais necessário que o homem fosse rico ou poderoso para multiplicar suas amantes, estreitou a relação entre sexualidade e status masculino. Em seus próprios argumentos:

A sexualidade acumulativa ou em série é atraente para os machos de todas as classes sociais porque, se o acesso às mulheres está restrito, funciona como símbolo de status masculino, de triunfo sobre outros machos. A validação, o sentido da competição e do status dos homens se canalizaram no âmbito da sexualidade (...) Os homens transferiram para o sexo e para a sexualidade o controle que antes exerciam no lar, desde então o campo sexual se transformou no âmbito no qual podiam expressar e exibir sua autonomia e sua autoridade. O desapego na sexualidade passou então a simbolizar e a organizar o tropo mais amplo da autonomia e do controle, ou seja, da masculinidade. Assim, o desapego emocional poderia ser concebido como uma metáfora para a autonomia masculina, alimentada pela separação entre sexo e matrimônio (Illouz, 2012:102-103. Tradução minha).22 22"Serial sexuality is attractive to men of all classes because, if access to women is restricted, it function as a sign of man's status o of victory over other men. Male competitiveness, validation, and status were channeled through the realm of sexuality (...) Furthermore, men transferred to sex and sexuality the control they had formerly held in the household, and sexuality became the realm within which they could express and display their authority and their autonomy. Detachment in sexuality came to signal and to organize the broader trope of autonomy and control, and thus, of masculinity. Emotional detachment could be viewed as a metaphor for masculine autonomy, which the separation between sex and marriage had encouraged" (Illouz, 2012:102-103).

O paradoxal, nos dados que recolhi por meio dessas tantas correspondências com 32 homens usuários do site Ashley Madison, é perceber que a busca por sexo acumulativo e descompromissado não parece, de fato, satisfazê-los. Ainda assim, eles mantêm-se fiéis, senão ao AM, aos recursos digitais para o exercício da masculinidade, do "sentir-se vivo", que Ricardo traduz como caça ou pesca esportiva, o que remete à busca por parceiras sexuais sem complicações e as emoções derivadas dessa procura a esportes predatórios e competitivos, estabelecendo a clássica associação proposta por Raewyn Connel (1995)CONNELL, R. Masculinities. Berkeley: University of California, 1995. entre esportes e constituição de um modelo de masculinidade o qual a autora chamou de hegemônica.23 23 O conceito foi revisto pela própria autora, mas continua potente heuristicamente, pois permite pensar a partir de diferentes marcadores sociais da diferença de intersectam conformando diferentes formas de viver-se no masculino. Trata, ainda, das relações de poder que atravessam as relações dos homens entre si e destes com as mulheres.

Eu não conto aventuras & desventuras, eu tento analisar o que faz as pessoas buscarem uma abordagem de site para ter sexo... já percebi, por exemplo, que eu quero "caçar" e não exatamente comer o animal abatido (talvez uma tentativa de recuperar uma autoestima abalada?) (Ricardo).

Para Júlio César, a caça, ou melhor, as sensações que ela provoca, justificam a permanência nas buscas online. Ainda que ele procure relações que resultem em sexo "na real", o processo de aproximação via mídias digitais é em si bastante emocionante.

Pq entro no site? É o q eu te falei pouco acima: dá um friozinho gostoso saber q vc está conectando pessoas de carne e osso como vc, com seus defeitos, virtudes, vontades, pecados. E que (não me interprete mau!) se vc apertar o botão certo, a pessoa se abre, te conta a vida. Todos temos necessidades de falar da gente mesmo pros outros (Júlio César, 46 anos, casado há 22 anos na época da pesquisa).

O apaixonado Karl já não quer saber de acumular relações sexuais, mas continua "viciado" nas emoções que pode obter como usuário das mídias para contato com sua amada, ainda casada e com complicações para encontros presenciais:

Essa "tentação" que é a possibilidade de a qualquer momento receber uma mensagem sedutora ou mesmo uma proposta inusitada tem me feito perder algum tempo acessando esse email e entrando no site...não quero que isso vire um "vício". Me tira o foco... (Karl).

De certa forma eu também vivi intensamente essas emoções mediadas pelas tecnologias de comunicação - ansiando pelos e-mails dos interlocutores de pesquisa, torcendo por eles, desprezando alguns, rindo com outros ou temendo a pela minha excessiva exposição. Pois, como tática de convencimento ou para provar a veracidade de minhas intenções científicas, disponibilizei meu nome e sobrenome, link para meu currículo Lattes, contei-lhes passagens de minha vida conjugal, estando, portanto, desprotegida nesse ambiente no qual as informações verídicas são moduladas, não só porque costumou-se pensar nas relações via internet como potencialmente perigosas (Nicolaci da Costa, 2002NICOLACI-DA-COSTA, A. M. Internet: a negatividade do discurso da mídia versus a positividade da experiência pessoal À qual dar crédito? . Estudos de Psicologia, vol. 7, nº1, Natal, jan 2002, pp.25-35.; Miskolci, 2012MISKOLCI, R.A Gramática do Armário: notas sobre segredos e mentiras em relações homoeróticas masculinas mediadas digitalmente. In: PELÚCIO, L.et.alli. Sexualidade, Gênero e Mídia - Olhares Plurais para o Cotidiano. Marília, Cultura Acadêmica, 2012, pp.35-52.), mas também por se tratar de pesquisa que lida com segredos. Eu mesma revelei alguns, não apenas como estratégia para humanizar-me e suscitar empatia, conseguindo assim interações mais profundas, mas porque o envolvimento que vamos tendo com a troca de narrativas de si vai-se construindo relações densas. Assim, todxs nós que pesquisamos no campo das sexualidades e dos segredos temos que nos deixar seduzir pelos convites para falarmos mais de nós mesmxs. Nós que nos aproximamos protegidxs pela aura da ciência, quase sempre vista como sisuda, mas confiável, que pedimos confissões a partir de perguntas que parecem não ameaçar ninguém, vamos nos imiscuindo na intimidade nossxs colaboradoras/es querendo mais. Muitas vezes, essa é a chave para se entrar e permanecer em campo.

Às vezes, a única possibilidade que temos de fazer o campo de pesquisa e catapultar a produção de conhecimento está precisamente no convite que *s24 24 Luiz Felipe Zago adota uma grafia inclusiva a fim de contemplar a multiplicidade de gêneros substituindo pronomes, artigos, adjetivos e advérbios que denotem binarismo pelo asterisco. participantes de pesquisa nos fazem. É como se *s participantes de pesquisa nos dissessem: "tu, pesquisad*r com gênero e sexualidade como eu, venha fazer pesquisa comigo e em mim!". Aceitar o convite não é uma decisão compulsória: é uma decisão que merece ser fruto de uma prática refletida de liberdade, do exercício da ética. (....) o que é mais produtivo para esta pesquisa? Qual a relevância política de cruzar determinados limites? (Zago, 2015, s/n)

"Em que medida o projeto de uma 'antropologia sexual' (...) não exige pensar a especificidade da questão do desejo?" (Perlongher, 1993:s/n), desestabilizando assim a própria pretensão disciplinar da Antropologia? Responder questões como estas exige (re)elaborações metodológicas e éticas ainda pouco habituais no campo das pesquisas acadêmicas, ainda que Néstor Perlongher, em 1993, já provocasse a dimensão ética e metodológica de nosso desejo em campo.

Cruzar limites não significa banalizar o que se faz em campo, muito menos colocar-se em risco de exposição física ou moral, tampouco expor colaboradxs, mas esforçar-se para construir uma metodologia por meio da qual consideremos nosso corpo, gênero, desejos como elementos para pensar analiticamente e metodologicamente o campo. Sem prescindir, como alerta Miskolci, de procedimentos sistemáticos e éticos que devem estar presentes em qualquer trabalho científico off-line:

O que desses diálogos íntimos por mídias digitais pode ser trazido ao discurso científico, público mesmo que dirigido a uma audiência seleta e pequena? Uma resposta provisória seria a de apenas o que os/as colaboradores/as na pesquisa permitirem expressamente, ainda assim com o cuidado indispensável de jamais usar os nomes verdadeiros de entrevistados e/ou fornecer dados pessoais que possam identificá-los. Mesmo quando eles/as sugerirem ou pedirem para serem mencionados devemos manter esse procedimento ético consolidado. O uso de fotos também precisa ser autorizado e usado com parcimônia e cuidado para tornar as pessoas não-identificáveis (Miskolci, 2011:19).

Foram 270 páginas de e-mails cuidadosamente organizadas, 55 delas de mensagens trocadas com Ricardo. Sempre me surpreendo quando volto a elas. Entre as surpresas, constato que tenho saudade dele. Não tenho como acessá-lo. Ele sempre quis se proteger, até mesmo dos resultados desta pesquisa:

Nunca li suas pesquisas acadêmicas por pura proteção... minha proteção! Nada como ser analiticamente revirado do avesso para entrar em depressão! A farsa de Ricardo. Talvez comporte análises psicanalíticas, mas as puramente comportamentais eu duvido. Vou mesmo confessando minha curiosidade por teus trabalhos... ainda mais quando você afirma existir verdades nas mentiras articuladas pelo site. Vamos ver se concordo com as conclusões... até lá! Bem, quanto aos caras quererem mesmo trepar contigo, isso não exige demonstração. É parte da hipótese de estar no site, não da tese. (...) É simples, como eu já disse: é o ato de caçar (e não a caça em si) que move o caçador no site.

Mais uma vez o risco-aventura e o desejo. Sentir-se desejada. Sensação imprescindível, pois percebi como este é um grande fator de fidelização (assim como de abandono) aos serviços do site. Eu os abandonei.

É preciso considerar em nossas investigações até onde é produtivo seguir. No caso deste trabalho, os 32 colaboradores me deram o limite, pois me ofereceram também parâmetros para perceber quando os dados já se repetiam, agora nas escritas de outros "caçadores" e "pescadores"; o quanto as interações, antes dinâmicas, se tornavam esparsas e obrigatórias (de minha parte), sinalizando que o próprio site estava fadado a minguar, pois o que começa ali se desdobra em rede por muitas outras mídias e possibilidades de interação. Era suficiente. Deixei de ser fiel a eles.

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  • *
    Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – Fapesp.
  • *
  • 1 Os nomes dos colaboradores são fictícios.
  • 2 O Ashley Madison dispõe de uma aba que dá acesso aos perfis dos usuários que visualizaram a minha página no site na última semana. As piscadelas são uma ferramenta, sem custos para os usuários, para chamar a atenção da pretendente para o seu perfil e o pedido de chave se refere à solicitação, enviada via mensagem, para ter acesso às fotos privadas do usuário, no caso, minhas fotos. É possível saber que a pessoa possui fotos privadas ao acessar o seu perfil sem, contudo, poder visualizá-las sem autorização. Mantive fotos na galeria privativa a fim de provar que eu realmente existia e que tinha um rosto, posto que minha foto de perfil, aberta a todos, era de costas.
  • 3 Ao acompanhar, juntamente com minha orientanda Mariana Cervi (bolsita PIBIC-Reitoria), a dinâmica dos sites, optamos pelo Ashley Madison por ter um número maior de usuários/as, mais ferramentas para a interação e estar se mostrando, por isso mesmo, mais produtivo, a nossos perfis seguidos de mensagens. À época, o site canadense contava, segundo dados do próprio Ashley Madison, com 17 milhões de usuários/as no mundo, sendo 1 milhão brasileiros/as.
  • 4 Paralelamente, duas orientandas abriram perfis com diferentes idades no Ashely Madison. Em um deles, ela se apresentavam como Mari_28, estudante, loira, e não colocaram fotos ou mais detalhes possíveis de serem clicados a fim de oferecer maiores dados sobre a usuária. Em um só dia receberam mais de 40 abordagens via mensagens e piscadelas (ferramenta disponibilizada pelo site que permite que se envie uma piscada de olho virtual, insinuando interesse, serviço pelo qual o usuário não paga). Em contrapartida, o perfil, igualmente incompleto, de Verinha6.2 ficou à míngua, jamais recebeu uma abordagem.
  • 5 Esse era um interesse real, pois o swing me parecia um contraponto à traição sigilosa e segura proposta pelo site, uma vez que pressupõe que a relação com outros parceiros, preferencialmente casais, se dará consensualmente e com os parceiros cientes e presentes na relação sexual. Assim, queria verificar se encontraria swinggers ali. Se havia, nenhum fez contato comigo.
  • 6 "É possível definir as mídias digitais como meios que permitem criar redes relacionais seletivas dentro de uma espécie de mercado amoroso e sexual, o qual ascendeu a partir da chamada Revolução Sexual e agora apenas passou a ser visualizável por meio de sites e aplicativos" (Miskolci, neste dossiê).
  • 7 Muitos e-mails traziam relatos em tom confessional sobre medos, angustias, desejos e a falta de interlocução com a parceira para falar sobre essas emoções, bem como manifestação de que não encontravam em amigos uma escuta confiável para seus sentimentos relativos ao casamento, a problemas sexuais e profissionais.
  • 8 Trata-se da pesquisa sobre o modelo preventivo de aids e sua recepção por travestis que se prostituem. Tal investigação me levou a buscar contato com os clientes delas. Foi pela internet, mas especificamente pelo extinto site de sociabilidade online, Orkut, que consegui estabelecer os primeiros contatos com homens que se assumiram como clientes de travestis. A partir de uma sequência de mensagens e trocas de e-mails, passei a conversar com eles por MSN. Certa feita um desses homens me falou de encontros presenciais dos chamados T-Lovers (amantes de travestis e transexuais). Foi assim que passei a mesclar incursões online com as off-line, passando a conviver intensamente com um grupo que se auto denominavam de T-Lovers. A pesquisa, financiada pelo FAPESP, resultou no livro Abjeção e Desejo - uma etnografia travesti sobre o modelo preventivo de aids (Annablume, 2009ABOIM, S. Da pluralidade dos afetos: trajetórias e orientações amorosas nas conjugalidades contemporâneas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol.24, nº 70, jun 2009, pp.107-122.).
  • 9 Quando fazia a pesquisa do doutorado, entre 2003 e 2007, a internet era discada, os serviços bem mais caros que hoje em dia, os recursos periféricos como webcam e microfones não vinham acoplados às máquinas e a velocidade operacional era bem inferior que a atual, o que tornava o trabalho com imagens e som muito menos atraente do que veio a se tornar.
  • 10 Discutirei esse tema mais à frente.
  • 11 (...) "people show feeling and immediacy, have fun, and build and reinforce social structures even in the leanest of text-only media".
  • 12 A ideia de estar sempre on call gerou ansiedade em mim. Pensava que ao não responder poderia estar perdendo dados importantes ou, pior, perdendo um interlocutor duramente conquistado. Lidar metodologicamente com esses novos suportes e territórios movediços de pesquisa tem sido exigente (volto a esse ponto adiante).
  • 13 Lia me achou em suas recorrentes buscas pelo Google atrás de referências sobre o Ashley Madison, a fim de se manter atualizada sobre o site e obter dicas para otimizar seu uso. Dei uma entrevista para a Revista da Unesp (http://www.unesp.br/aci_ses/revista_unespciencia/acervo/40/te-perdoo) sobre a pesquisa que estava desenvolvendo. Assim, cruzando as palavras de busca que costumeiramente utilizava, Lia encontrou a matéria e, a partir dela, meu e-mail. Enviou-me, então, uma mensagem dizendo que tinha muita vontade de poder contar suas histórias para alguém e viu em mim uma interlocutora interessante. Assim, marcamos de nos ver, o que resultou em três encontros de três horas em média, todos na cidade de São Paulo, onde ela vive.
  • 14 Interrogação feita por Ricardo em uma de suas longas mensagens de e-mail trocadas com a pesquisadora.
  • 15 Não obtive dados sobre questões raciais.
  • 16 Refere-se à Galeria Privada, aba de cada perfil pessoal na qual podem ser adicionadas fotos. Estas só são acessíveis a partir da concessão que cada usuário/a faz de uma "chave" representada iconograficamente desta forma e que libera o acesso às fotos.
  • 17 Como homens casados, muitos de meus interlocutores relatam que sentem terem perdido algo importante para "um homem": liberdade relativa a momentos de sociabilidade, exercício livre de culpas da conquista sexual, permissão para cometer abusos, seja na ingestão de bebidas alcoólicas ou em aventuras sexuais, maior controle sobre seu tempo e dinheiro, são alguns desses elementos que estou associando com o sentimento de emasculação.
  • 18 Slogan do Ashley Madison.
  • 19 Paulo me enviou o link de seu Curriculum Lattes, em que vi sua foto. Essa atitude foi muito significativa, pois mostrou confiança em mim e buscava de estreitar nossos vínculos.
  • 20 Sempre mantive o sigilo relativo aos nomes e mesmo ao nicks usados online. Trocar impressões sobre os demais usuários foi uma estratégia de pesquisa em muitos momentos, pois levava meus colaboradores a tecerem opiniões sobre os demais e, assim, revelavam mais sobre si mesmos.
  • 21 "De uma forma geral, a construção do casal fusional, conjugalizado e voltado para o grupo familiar, constitui uma tendência importante de desinstitucionalização da família e, mais ainda, de inclusão masculina na vida privada. Constitui, em traços gerais, um verdadeiro movimento do homem-provedor, institucionalista e regulador, para o homem companheiro, relacionalista e democrático" (Adams e Coltrane, 2005ABOIM, S. Da pluralidade dos afetos: trajetórias e orientações amorosas nas conjugalidades contemporâneas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol.24, nº 70, jun 2009, pp.107-122.). Como veremos, a construção do companheirismo no masculino constitui um processo atravessado por dificuldades e tensões emanadas de um modelo de masculinidade tradicional que exige aos homens investimento profissional e uma identidade ainda fortemente vinculada aos papéis da esfera pública. A permanente bricolage tecida entre os ideais de envolvimento masculino nas dinâmicas conjugais e parentais e o papel de ganha-pão familiar continua, em muitos casos, a gerar tensões e dificuldades (Aboim, 2010:166-167ABOIM, S. Da pluralidade dos afetos: trajetórias e orientações amorosas nas conjugalidades contemporâneas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol.24, nº 70, jun 2009, pp.107-122.).
  • 22"Serial sexuality is attractive to men of all classes because, if access to women is restricted, it function as a sign of man's status o of victory over other men. Male competitiveness, validation, and status were channeled through the realm of sexuality (...) Furthermore, men transferred to sex and sexuality the control they had formerly held in the household, and sexuality became the realm within which they could express and display their authority and their autonomy. Detachment in sexuality came to signal and to organize the broader trope of autonomy and control, and thus, of masculinity. Emotional detachment could be viewed as a metaphor for masculine autonomy, which the separation between sex and marriage had encouraged" (Illouz, 2012:102-103ABOIM, S. Da pluralidade dos afetos: trajetórias e orientações amorosas nas conjugalidades contemporâneas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol.24, nº 70, jun 2009, pp.107-122.).
  • 23 O conceito foi revisto pela própria autora, mas continua potente heuristicamente, pois permite pensar a partir de diferentes marcadores sociais da diferença de intersectam conformando diferentes formas de viver-se no masculino. Trata, ainda, das relações de poder que atravessam as relações dos homens entre si e destes com as mulheres.
  • 24 Luiz Felipe Zago adota uma grafia inclusiva a fim de contemplar a multiplicidade de gêneros substituindo pronomes, artigos, adjetivos e advérbios que denotem binarismo pelo asterisco.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    05 Mar 2015
  • Aceito
    06 Abr 2015
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