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O gênero do amor: cultura terapêutica e feminismos* * As reflexões deste artigo são pautadas em pesquisas financiadas pelo CNPQ e FAPESP. Agradeço as leituras generosas e atentas de Regina Facchini, Iara Beleli e Rafael Abreu.

Resumo

Neste artigo tomo a cultura terapêutica produzida em grupos de ajuda mútua anônimos, particularmente o Mulheres que Amam Demais Anônimas (MADA), e novas táticas e maneiras de atuação feministas em redes digitais, no contexto brasileiro, como instâncias pedagógicas do aprendizado emocional e na (re)organização social do sofrimento amoroso, buscando compreender como repertórios sobre o amor e o sofrimento amoroso oferecem cursos de ação, sistemas de comunicação e interpenetrações entre esses âmbitos.

Cultura Terapêutica; Amor; Feminismos; Internet

Abstract

This article reflects on the therapeutic culture that Brazilian anonymous support groups produce – especially in MADA (Women Who Love Too Much Anonymous) – and on contemporary feminist strategies and forms of action in digital networks, as pedagogical instances of emotional learning and social (re)organization of romantic suffering. In this way, I attempt to understand how accounts about love and romantic suffering offer modes of action, systems of communication, and exchanges between these domains.

Therapeutic Culture; Love; Feminisms; Internet

Introdução

No entanto, paradoxalmente, e lado a lado com o desejo de defender a própria intimidade, há o desejo intenso de me confessar em público e não a um padre. Mas quem sabe se um dia, L. de A., saberei escrever ou um romance ou um conto no qual a intimidade mais recôndita de uma pessoa seja revelada sem que isso a deixe exposta, nua e sem pudor. Se bem que não haja perigo: a intimidade humana vai tão longe que seus últimos passos já se confundem com os primeiros passos do que chamamos de Deus (Clarisse Lispector, 1999Lispector, Clarice. Outra Carta. In: Lispector, Clarice. A Descoberta do Mundo – Crônicas. Rio de Janeiro, Rocco, 1999.:79).1 1 Em A Descoberta do Mundo – Crônicas, livro no qual são reunidas crônicas, pequenas novelas, contos, pensamentos e anotações da autora publicadas no Jornal do Brasil, entre 1967 e 1973. L de A faz menção a um (ou uma) leitor/a com quem Lispector dialoga nessa crônica.

A preocupação com o futuro de alunas negras cujas ideias, erudição e textos são dolorosamente necessários motivou-me a fazer o autoinventário crítico defendido por West, e discutir em público uma experiência pessoal dando um testemunho pessoal que encoraje e estimule. No processo de autoavaliação crítica, compreendi como eu fora socializada não para falar de um compromisso com a vida intelectual, mas antes ver isso como uma escolha particular quase secreta. Por não falar dessa escolha, eu também não transmitia as estudantes negras as alegrias e os prazeres do trabalho intelectual. Se eu e outras negras, em particular, aquelas entre nós, que trabalham em meios acadêmicos, só falamos das dificuldades, pintamos um quadro triste que pode levar as estudantes a verem o trabalho intelectual como humilhante e incapacitante. Muitas vezes, em conversas com estudantes, sobretudo jovens negras, elas me pedem que fale de aspectos da minha jornada pessoal. Esse apaixonado interrogatório, frequentemente, ameaça meu senso de intimidade (o que existe), mas, tem raízes num profundo desejo de compreender o processo pelo qual algumas negras escolhem a vida intelectual, onde e como encontramos realização pessoal. O anseio das intelectuais negras por mapear a jornada coloca, muitas vezes, uma exigência de abertura, de revelação pura e honesta que não se pode colocar entre colegas homens ou mulheres não negras. Contudo as intelectuais negras comprometidas com práticas insurgentes têm de reconhecer o apelo para falar abertamente sobre a vida intelectual, como a conhecemos, sobre nosso trabalho como uma forma de ativismo (bell hooks, 1995hooks, bell. Intelectuais Negras. Revista Estudos Feministas, ano 3, nº 2 Florianópolis, segundo semestre de 1995, pp.464-477.:477).2 2 Em Breaking Bread (1991), traduzido pela Revista Estudos Feministas com o título Intelectuais Negras em 1995.

Por caminhos e motivações diferentes, os trechos que abrem este artigo gravitam ao redor dos conflitos, necessidades e desejos das autoras de uma exposição pessoal exagerada, bem como da preservação e da confissão de sua intimidade. Escolhi essas passagens porque elas oferecem pistas que me são caras, uma vez que dizem respeito a inquietações, tanto em um marco intelectual, como político. As passagens de Clarice Lispector e bell hooks motivam a reflexão sobre as diversas possibilidades, situações e formas pelas quais histórias privadas convertem-se em atos comunicativos públicos e suas finalidades, a gramática moral, política e os complexos emocionais que as atravessam, e, sobretudo, seu poder de constituir posições de sujeitos e noções do que é público e/ou comum.

Uma parte dessas inquietações nasceu de meu contato com o grupo Mulheres que Amam Demais Anônimas (MADA), na cidade de São Paulo, por ocasião de minha pesquisa de doutorado, no intervalo dos anos 2008-2012.3 3 Pesquisa na qual tratei da emergência das noções de vício em sexo e amor, a partir de grupos anônimos de ajuda mútua, convenções médicas e mecanismos de popularização dessas categorias (Ferreira, 2012). Diferente de outros grupos desse tipo, a participação neste é permitida somente às mulheres. Durante alguns anos, ouvi relatos e testemunhos sobre suas experiências de sofrimento amoroso (a maioria de mulheres heterossexuais) e as maneiras pelas quais elas buscavam superá-los. O grupo é um espaço no qual, a partir da ideia de um sofrimento comum, as mulheres produzem um aprendizado de como conduzir-se no campo afetivo-amoroso. Uma parte significativa das narrativas dessas pessoas na “busca de recuperação” do “padrão de comportamento de amar demais” poderia inscrever-se em um repertório feminista, no entanto, tais narrativas não eram nomeadas dessa maneira. Embora noções e dinâmicas entre MADA e feminismos pudessem ser aproximadas ao considerarmos determinadas perspectivas4 4 No âmbito do debate e prática feministas, narrativas de experiências de vida, depoimentos/testemunhos, escrita de si e técnicas intimistas (tais como as empregadas em grupos de autoconsciência feministas, nos quais participavam apenas mulheres nas décadas de 60 e 70) foram muito comuns para narrar práticas ativistas, produzir marcos teórico-metodológicos, marcar preocupações de determinados períodos ou momentos e produzir memória. Uma relação possível seria entre o MADA e esses recursos utilizados no campo feminista, a despeito das distintas finalidades sobre a qual operam a convenção do relato pessoal e, consequentemente, as diferenças de efeitos que produz. Para ver uma pesquisa sobre o MADA, que produz esses contrapontos, ver Procópio, 2007. , de um ponto de vista etnográfico, durante os anos de pesquisa, não encontrei sujeitos forjados na prática pela articulação desses discursos. Nesse sentido, ser MADA e ser feminista poderiam ser considerados como discursos concorrentes.

Outra parte dessas inquietações se originou, em período concomitante, por meio de acompanhamento e participação nas teias político-comunicacionais feministas que têm na internet um lócus de ação relevante no contexto brasileiro (Ferreira, 2015Ferreira, Carolina Branco de Castro. Feminismos web: linhas de ação e maneiras de atuação no debate feminista contemporâneo. cadernos pagu (44), Campinas, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2015, pp.233-263.). Essas teias são compostas por perfis em redes sociais e também por diversos blogs. O Escreva Lola Escreva é um deles, cuja veiculação dos conteúdos publicados e a atuação da autora têm tido um impacto significativo no universo ativista feminista no contexto brasileiro.5 5 Lola é professora de literatura na Universidade Federal do Ceará e, desde 2008, mantém o blog Escreva Lola Escreva, que veicula opiniões críticas sobre a representação das mulheres na mídia, apoia campanhas para a legalização do aborto e contra violência de gênero. O blog recebe mais de 260 mil visitas mês (Época, fevereiro de 2014). Desde 2014, ela tem sido alvo de campanhas de difamação digital, quando foi criado em seu nome um site que pregava discursos de ódio. Ela também tem recebido ameaças de morte e estupro devido ao alcance de seu ativismo feminista. É comum Lola ceder espaço no blog para autores convidados (guest posts). Em tal modalidade são publicadas cartas dos/as leitores/as ou ainda textos que aclarem temas, posições e/ou contenciosos surgidos nos debates e diálogos que os posts suscitam. Um ano depois de finalizada a pesquisa de doutorado, encontro nesse blog, nessa seção, um texto escrito por M., de 27 anos, moradora da cidade de São Paulo, identificando-se como uma MADA6 6 Agradeço a Adriana Vianna por ter chamado minha atenção para esse material. . Ela explicava “seu processo”: como cinco anos depois de ingressar no grupo tornou-se feminista. Por um lado, o relato em primeira pessoa não excluía as duas identidades (ser MADA, ser feminista). Por outro, os comentários ao texto de M. no blog revelavam que ser MADA e ser feminista podiam ser discursos concorrentes e potencialmente contraditórios.

A partir dessas inquietações, neste texto tomo a cultura terapêutica produzida em grupos de ajuda mútua anônimos, especialmente o MADA, e novas táticas e maneiras de atuação feministas como instâncias pedagógicas do aprendizado emocional e do controle emotivo, bem como na (re)organização social do sofrimento amoroso. Para isso, sigo vertentes antropológicas que tomam as emoções e os sentimentos como linguagens, como formas de comunicação (Mauss, 1999Mauss, Marcel. A Expressão Obrigatória dos sentimentos (Rituais Orais Funerários Australianos-1921). In: Mauss, Marcel. Ensaios de Sociologia. São Paulo, Editora Perspectiva, 1999, pp.325-333., 2003Mauss, M. O efeito físico no indivíduo da ideia de morte sugerida pela coletividade (Austrália, Nova Zelândia). In: Mauss, M. Sociologia e antropologia. São Paulo, Cosac & Naify, 2003, pp.349-358.; Sarti, 2011Sarti, Cynthia. A vítima como figura contemporânea. Caderno CRH, vol. 24, nº 61, Salvador, 2011, pp.51-61., 2014Sarti, Cynthia. A construção de figuras da violência: a vítima, a testemunha. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 20, nº 42, jul./dez. 2014, pp.77-105 [http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832014000200004].
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), na produção de uma “micropolítica das emoções”, que refere-se à capacidade de dramatizar, reforçar ou alterar as macrorrelações sociais que delineiam as relações interpessoais nas quais emerge a experiência emocional individual (Lutz e Abu-Lughod, 2008Abu-Lughod, Lila. Shifting politics in Bedoin love poetry. In: Lutz, Catherine; Abu-Lughold, Lila. Language and the Politics of Emotion. Cambridge University Press, 2008, pp.24-45.; Rezende e Coelho, 2010).7 7 Lutz e Abu-Lughod (2008) em mapeamento sobre a antropologia das emoções no contexto estadunidense convencionaram chamar essa proposta de “contextualismo”. Segunda elas, o tema do controle emocional deve ser pensado a partir da proposta foucaultiana de produção de discursos, ou seja, como uma fala que mantém com a realidade uma relação não de referência, mas sim de formação. Segundo as autoras, o discurso sobre o controle emocional encontra um paralelo nos discursos de controle sobre a sexualidade. Essa retórica do controle requer uma essência psico-física que é manipulada e dirige-se a afastar a natureza socialmente construída da ideia de emoções (Lutz, 2008). No entanto, de acordo com essa visão, as emoções também não seriam apenas um constructo histórico-cultural, sendo mais bem definida como algo que existe somente em contexto, emergindo da relação entre os interlocutores e sua referência (Rezende e Coelho, 2010).

Para isso, em um primeiro momento, revisito parte do material de minha tese de doutorado, para demonstrar como retóricas do controle emocional têm um caráter pedagógico e são produzidas em meio à coexistência de diferentes dinâmicas de gênero. Em seguida, tomo o repertório da experiência do amor e do sofrimento amoroso como sistemas de comunicação entre o âmbito da cultura terapêutica do MADA e as redes feministas digitais. A interpenetração desses discursos também produz instâncias pedagógicas e efeitos que interpelam os dois âmbitos produzindo mudanças em ambos.

1. Revisitando grupos anônimos de ajuda mútua

Uma das frentes etnográficas de minha pesquisa de doutorado tratou dos fluxos produtores de socialidade8 8 Trabalho com o conceito de socialidade inserido nas linhas de pensamento que denotam e ressaltam a importância de prestar atenção na produção e na manutenção de relações, situando-as no âmbito de dinâmicas de processos sociais, nos quais qualquer sujeito está, invariavelmente, engajado, mais do que em conjuntos de regras, costumes ou estruturas que existem como sistemas independentes das pessoas que são socializadas. Para esse argumento, trata-se de apreender, concomitantemente, pessoas como contendo o potencial para as relações, incorporadas em uma matriz de relações com os outros. Nesse sentido, os sujeitos estão em um constante tornar-se através das relações, que são forjadas e reforjadas o tempo todo, sem relegar as pessoas e as relações à um domínio de abstração reificada. estabelecidos em grupos de ajuda mútua anônimos ligados às ideias de adicção/compulsão sexual e/ou amorosa. Justamente o primeiro deles que procurei e passei a frequentar para o trabalho de campo foi o MADA, porque a ideia de um grupo formado por mulheres que se reuniam porque “amavam demais” conectava-se com interesses anteriores de pesquisa.9 9 Refiro-me ao meu trabalho de mestrado (Ferreira, 2006) que tratou de trajetórias de mulheres heterossexuais soropositivas que atuavam em meio à militância política HIV+. Todas as mulheres que entrevistei contraíram o vírus de homens com os quais mantiveram relações estáveis (heterossexuais e monogâmicas), referidas como casamento ou namoro. Na época da pesquisa, algumas não estavam mais casadas nem namoravam o mesmo homem. No entanto, nenhum casamento ou namoro foi rompido em consequência do HIV e de sua descoberta. Nessas narrativas havia certa “legitimidade” atribuída ao fato de o marido, namorado e/ou companheiro as terem infectado. Essa “legitimidade” era expressa nos relatos quando, em um tempo narrativo, remetiam-se ao período de suas vidas em que “não sabiam da aids”, “não tinham informações”, e sentiam-se protegidas por serem casadas. A entrada dessas mulheres em ONGs e redes ativistas abria um repertório político para elas por meio de políticas emocionais, nas quais sentimentos de “amor”, “confiança” e “paixão” produziam um jogo entre conhecimento e ativismo.

Logo no início, entendi que muitas participantes, bem como seus namorados, companheiros ou maridos, frequentavam outros grupos anônimos e não demorei muito a perceber que frequentadores/as de diferentes grupos usavam as mesmas noções, tais como “fundo do poço”, “codependência”, “anorexias”.10 10 Sobre essas categorias, ver Neves (2004); Campos (2005); Ferreira (2012). Algumas delas eram objeto de interesse explicativo e teórico, no sentido de sistematização de conhecimento e de produção de teorias nativas, de alguns grupos mais do que de outros, mas os significados e sentidos circulavam em vários deles. Desse modo, percebi que os grupos formavam fluxos pelos quais circulavam sujeitos e significados, bem como eram produtores de uma socialidade bastante particular11 11 Os modos de organização dos grupos dispensam a presença de especialistas, tais como psicólogos/as, médicos/as, etc. Além disso, tais grupos se autossustentam a partir da contribuição dos participantes de qualquer valor em dinheiro, têm modo específico de gestão de informações sobre os/as frequentadores/as, nativamente conhecido como anonimato, e noções do sagrado veiculadas pelas ideias de Poder Superior e consciência coletiva. Para ver mais sobre as práticas ritualizadas pelas quais os grupos operam e seus modos de funcionamento, ver Ferreira (2012). . Apesar de o campo etnográfico ter envolvido diversos grupos, concentrei foco nos Dependentes de Amor e Sexo Anônimos (DASA), Co-dependentes Anônimos (CODA) e no MADA.

Os grupos anônimos relacionados às noções de adicção/vício em amor e/ou sexo são espaços nos quais se condensam tensões vinculadas às normas e convenções afetivo-sexuais. A patologização do sexo e dos relacionamentos amorosos ocupa um lugar de destaque. Os/as frequentadores/as consideram suas ditas compulsões por sexo, amor e/ou relacionamentos como doenças, tendo em conta a concepção êmica de que esse vício seria uma doença crônica, a qual poderia vir a ser fatal, e que se manifesta por meio dos “padrões de comportamento”.

A dimensão físico-moral, segundo as teorias nativas dessa doença, aparecia nas narrativas dos sujeitos como uma espécie de “curto-circuito” nas maneiras de conduzir-se no campo afetivo-sexual. Ainda, tais teorias também envolviam concepções substancialistas da doença, por exemplo, o papel que álcool, drogas e dinheiro desempenhavam em suas biografias. Nesse contexto, era importante perceber como se dava uma espécie de distribuição da pessoa que articulava sentidos em meio aos diversos grupos pelos quais os sujeitos circulavam, em busca de reparar danos que tinham causado em suas redes de relações, por conta de práticas sexuais, escolha de determinados relacionamentos e estados emocionais – como Madalena, mulher na faixa de 30 anos, negra, funcionária de um banco e frequentadora de vários grupos me disse: “Ah Carol! quando eu vou ao grupo eu deixo cada parte em um, nos Devedores Anônimos eu deixo a parte financeira, nos Neuróticos Anônimos o emocional, no MADA o amar demais”.

Essas noções são reveladas a partir das partilhas, categoria êmica que significa compartilhar sua experiência com os outros. Toda vez que um sujeito toma a palavra, ou é sua vez de dar seu depoimento no grupo, ele/a publiciza sua aflição relativa a um suposto sofrimento ou descontrole emocional, afetivo ou sexual. Os dramas pessoais narrados são expressos corporalmente por teores emocionais diversos, às vezes bastante aflitivos, com a presença de choro, tremores, alterações na voz e na respiração e, às vezes, o simples gesto de colocar a mão sobre a região peitoral, indicando “seu interior” era a expressão dessa dramaticidade. As partilhas ou os depoimentos podem acontecer no grupo, em conversas on-line, estarem publicadas em materiais impressos ou, ainda, disponibilizadas nos sites dos grupos.

As partilhas caracterizam-se por converter as histórias privadas em atos comunicativos públicos. O mecanismo que permite essa tradução é a imaginação de experiência de sofrimento em comum que cria nos sujeitos a percepção profunda de pertencer a uma “comunidade de sofredores”12 12 A inspiração do argumento vem da leitura de Cavalcanti (2007) da obra Cisma e Continuidade, de Turner (1968). Embora seja herdeiro das influências teórico-metodológicas da Escola de Manchester, a obra deste autor apresenta heterodoxias, principalmente na compreensão da articulação entre processo e estrutura social, levando adiante a ideia de que a unidade social não se faz apesar dos conflitos, mas por meio deles. A noção de drama social elaborada por Turner permite relacionar compreensão sociológica com uma visão da experiência social como experiência de subjetivação realizada por meio de aprendizado, manuseio e atuação dos símbolos. Esse conceito é cunhado pelo autor para explicar o sentido de pertencimento a um grupo social, no caso os Ndembu, que baseia-se na produção continua de uma “comunidade de sofrimento”, na qual tensões e conflitos se expressam e se resolvem em ritos de cura e aflição. O desenrolar desses ritos não revelaria apenas os pontos de tensão da estrutura social, mas constituiria um espaço de reflexão, análise, autoanálise e de transformação conceitual e interior da pessoa Ndembu em seus relacionamentos. ou, como formulei em outro momento, “de uma irmandade universal imaginada” (Ferreira, 2012Ferreira, Carolina Branco de Castro. Desejos Regulados: grupos de ajuda mútua, éticas afetivo-sexuais e produção de saberes. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), IFCH Unicamp, Campinas, 2012.). É a partir de uma linguagem e uma estética sociologicamente espacializada que esse processo imaginativo e de identificação desses sujeitos cria uma gama ampla e transnacional de sofredores similares, dando forma aos modos pelos quais as histórias privadas devem ser compartilhadas, à motivação para narrá-las em público, às maneiras pelas quais o público deveria interpretá-las e os cuidados que lhes correspondem.13 13 Na pesquisa entre os grupos anônimos, a “comunidade de sofredores” produzia uma noção de igualdade no âmbito das práticas ritualizadas nos grupos, que podia ser traduzida na afirmação “aqui somos todos iguais, independente de classe, raça, credo ou religião”. No entanto, diversas diferenças eram acionadas pelos frequentadores nos deslocamentos urbano-espaciais entre os grupos, bem como na relação entre práticas sociais e produção das noções de adicções e vícios.

As tecnologias miúdas na fabricação do governo de si, criadas em meio aos grupos anônimos relacionados à ideia de adicção ao sexo e/ou amor, são eficazes em produzir uma sociedade civil emocionada14 14 Agradeço a Adriana Vianna por ter chamado minha atenção para esse termo durante minha defesa de doutorado. a partir do processo imaginativo e de identificação dos sujeitos ao redor de uma experiência de sofrimento comum e da noção de representação pública que isso cria. Sendo assim, nesse âmbito, poderíamos sugerir a criação de uma cidadania afetiva (Irvine, 2007Irvine. Janice. Transient Feelings: sex panics and the politics of emotions. A Journal of Lesbian and Gay Studies (GLQ), Duke University Press, 2007, pp.1-40.) como meio de viabilizar sujeitos sociais a partir de um ethos emocionado15 15 Penso na noção de ethos como empregada por Gilberto Velho (1981) em sua crítica a Geertz. Este último afirma que visão de mundo se referiria a um quadro cognitivo, enquanto ethos estaria associado a estilos de vida. Velho problematiza essa divisão ao considerar que um sistema cognitivo é indissociável de um sistema de crenças, o qual implica emoção e sentimento, produzindo um vínculo indissolúvel entre conhecimento e afetividade. Essa divisão entre ethos e visão de mundo, relativizada na reflexão de Velho, acompanhou sua produção antropológica, uma vez que era importante compreender como se construíam valores e moralidades no âmbito de relacionamentos entre grupos sociais os mais diversos no espaço da cidade e, ao mesmo tempo, como isso relacionava-se aos estilos de vida, a práticas e expressões de grupos no espaço urbano compartilhado. Agradeço a Isadora Lins França e Maria Elvira Díaz-Benitez por terem chamado minha atenção para isso. que tem nas ideias de autocontrole e descontrole de si noções relevantes.16 16 Carrara (2015) buscando entender as mudanças no regime secular da sexualidade aponta para como tais mudanças se deslocaram de indivíduos ou grupos considerados “não reprodutivos” ou aqueles que exerciam sua sexualidade fora das “paredes da heterossexualidade” para outros focos, tais como: aqueles/as que por dificuldades orgânicas ou psíquicas, teriam dificuldades de reconhecer seus próprios desejos, não conseguindo extrair do sexo um prazer satisfatório; os/as que não teriam autocontrole suficiente diante do próprio desejo sexual, colocando a integridade de si e de outros em risco; e, finalmente, aqueles/as que, segundo novos critérios, sentiriam desejos indesejáveis, principalmente, voltados para sujeitos cujo pleno consentimento não se pode assegurar.

A relação entre mulheres e amor não se deu a priori no conjunto do material etnográfico sobre os grupos anônimos, porque o drama social do vício relacionado ao campo afetivo-sexual, cujo teor envolvia noções amorosas, também era expresso por meio de expectativas e de categorias em torno das quais tanto homens como mulheres se identificavam. Isso porque, nesse contexto, coexistiam mais de um discurso sobre gênero relativo às retóricas de controle emocional (Rosaldo, 1978Rosaldo, Renato. The Rhetoric of Control: Ilongots Viewed as Natural Bandits and Wild Indians. In: Babcock, Barbara A. The Reversible World: Symbolic Inversion in Art and Society. Cornell University Press, 1978.; Lutz, 2008Lutz, Catherine. Engendered emotion: gender, power, and the rhetoric of emotional control in American discourse. In: Lutz, Catherine; Abu-Lughold, Lila (orgs.) Language and the Politics of Emotion. Cambridge University Press, 2008, pp.69-91.).

Um desses aspectos está ligado à discursividade criada em meio à cultura terapêutica contemporânea, a qual tem como atributo a androginia e uma não preferência de gênero (Illouz, 2010Illouz, Eva. La salvación del alma moderna: terapia, emociones y la cultura de la autoayuda. Buenos Aires, Katz Editores, 2010.).17 17 Para a autora, o discurso terapêutico, entendido como uma “estrutura cultural contagiosa” é uma narrativa bastante convincente tanto para homens como para mulheres porque se apoia no ideal tradicionalmente masculino da confiança em si mesmo colocado, contemporaneamente, em primeiro plano na vida emocional, o que permitiria o manejo de si tanto na esfera pública quanto na privada. Ainda segundo ela, as competências emocionais criadas em meio à cultura terapêutica contemporânea produzem formas de distinção social. A autora afirma que tais dinâmicas produzem um jogo entre velhas e novas masculinidades criadoras de hierarquias emocionais. Tais hierarquias emocionais, para Illouz (2010), são estratificadas por classe social, assim, sujeitos de classe média e média/alta teriam mais recursos para alcançá-las em relação ao que ela chama de classes trabalhadoras. Nesse âmbito, a disposição de uma conduta virtuosa seria a de que mulheres femininas estão no nível mais alto, seguidos dos homens femininos que, por sua vez, superariam mulheres masculinas. Embora os apontamentos de Ilouz sejam inspiradores, a pesquisa de campo apontou como cada vez mais pessoas das camadas média/média e média/baixa procuravam esses grupos para tratar de seus estados emocionais e afetivo-sexuais, além de frequentarem terapias individuais. Essa característica aparecia no aprendizado veiculado pela participação nas redes entre os grupos, relativo às expectativas na reformulação da conduta afetivo-sexual:

Na verdade, o que a gente tá procurando é amor, não é só sexo (...) Eu acho que ter um relacionamento, né? Encontrar uma pessoa e ter um relacionamento com ela. Um relacionamento saudável e amoroso. Todo relacionamento tem problemas, não é um relacionamento perfeito que eu estou dizendo (Nando, São Paulo, 2010).18 18 Nando, 46 anos, “branco”, solteiro, segundo grau completo, vendedor.

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Aí depois ele me ligou algumas vezes. Passou acho que dois dias, a gente foi no cinema e começou a namorar! Porque eu tenho esse padrão de relacionamento. Eu não tenho o padrão de ficar. Para mim, esse lance de ficar é muito pouco. Para eu ficar, eu tenho que ficar com uns dez! Para mim, é muito pouco, a quantidade de carinho, de sexo, de emoções. Eu preciso de mais. Eu preciso de um namorado. (Cindy, São Caetano, 2010).19 19 Cindy, 40 anos, professora de inglês, na época morava sozinha nos fundos da casa de seus pais situada na região metropolitana de São Paulo, definia-se como heterossexual e morena clara, frequentadora dos grupos Dependentes de Amor e Sexo Anônimos (DASA), Mulheres que Amam Demais (MADA) e Neuróticos Anônimos (N.A.).

Tanto Nando como Cindy consideravam-se viciados em sexo e buscavam na participação nos grupos “conhecimentos” para aprenderem novas maneiras de conduzir-se no campo afetivo-sexual. O aprendizado de tais condutas estava ligado a uma pedagogia que apagava diferenças de gênero na busca por relações estáveis e monogâmicas, no âmbito das quais os sujeitos pudessem atuar de forma sentimental. As noções de adicto/viciado em sexo (ou adicção sexual) e codependência são categorias relevantes nesse repertório das retóricas do controle emocional. A emergência e a trajetória dessas categorias no âmbito especialista também participam das discursividades de gênero presentes em meio aos grupos anônimos.20 20 Ao longo do texto, o que chamo de elementos leigos está ligado a sistemas de produção de conhecimento, principalmente, no universo dos grupos anônimos. Compõem esse contexto as experiências e “verdades” emocionadas dos sujeitos, bem como a (re)apropriação de livros de autoajuda e seu longo e complexo processo de produção, divulgação e consumo. Como “conhecimentos especialistas” me refiro a sistemas de conhecimento tidos, tradicionalmente, como científicos. No entanto, em outros momentos (Ferreira, 2012, 2013 e 2014) mostrei como a separação desses âmbitos é arbitrária no contexto da emergência das categorias de vício em sexo e amor e como, entre elas, mais do que diferenças, há coprodução, tendo nos sistemas leigos uma fonte estruturadora.

No cenário internacional, o conceito de adicção sexual emergiu pela primeira vez entre homens frequentadores de Alcoólicos Anônimos, em 1977, Boston, E.U.A. Alguns membros do grupo descobriram sua condição ao tomar a filosofia e a ideologia de A.A em relação a suas “inabilidades sexuais”; eles definiram suas masturbações frequentes, sexo impessoal, dependência emocional e relações fora do casamento como a manifestação de uma nova doença chamada sex and love addiction. A percepção de uma sexualidade fora de controle motivou esses membros de A.A a encontrar outras pessoas com problemas similares para compartilhar seus sofrimentos, com a finalidade de se “manterem sóbrios” (Levine e Troiden, 2002Levine, Martin P.; Troiden, Richard R. The Myth of Sexual Compulsivity. In: Plummer, Ken (ed.). Sexualities. London and New York, Routledge, 2002.).

A noção de codependência aparece no âmbito de novas leituras a respeito do vício/adicção, sendo que a primeira e mais clássica definição do termo aparece, no final da década de 70, para descrever a relação disfuncional entre a esposa e seu marido alcoólatra.21 21 A noção de codependência começava a surgir, mas ainda não com esse nome, em 1951, no grupo de ajuda mútua anônimo para Familiares de Alcoólatras (Al-Anon). O grupo foi criado em Nova York por pessoas que “tiveram suas vidas prejudicadas indiretamente pelo alcoolismo”. A maioria delas eram esposas de homens considerados alcoólatras. A partir desse momento, a literatura na área da psicologia/psicopatologia sobre o tema faz distinção entre dependência e codependência. É comum a primeira noção aparecer relacionada a pessoas adictas a substâncias químicas e álcool (dependência química). Já a segunda seria uma adicção a outra ou a outras pessoas e os problemas decorrentes disso não seriam um sintoma, mas um problema em si mesmo.

O foco na família amplia a definição do termo e passa a incluir os filhos ou qualquer indivíduo próximo envolvido no relacionamento com um alcoólico, e outras definições passam a defender que a codependência poderia ocorrer independentemente do alcoolismo ou de outros transtornos causados pelo uso de drogas. Na década de 1980, parece haver uma simbiose das concepções fisicalistas e psicológicas para definir a noção de adicto em geral. Nesse contexto, em especial no que diz respeito à sexualidade, a definição de adicto sexual passou a articular as explicações de sua inclinação supostamente física de dependência com sua correlata psicológica, ou seja, a codependência. Nesse sentido, os modelos interpretativos especialistas sobre a etiologia das doenças e a concepção de corpo corroboraram processos já em andamento sobre o entendimento do desejo sexual biologicamente determinado, presente de forma objetiva e empírica no corpo.22 22 Segundo Russo (2004), a terceira edição do Diagnostic and Statistic Manual of Mental Disorders (DSM III), publicado em 1980 pela American Psychiatric Association, trazia mudanças de terminologias que atingiram em especial os supostos transtornos/desvios relacionados a sexualidade e gênero. Segundo a autora, a análise das versões desse documento revela o aumento significativo nos números dessas desordens e o modo como elas se transformaram em novos tipos de desvios que fazem parte do repertório de diagnósticos. Russo caracteriza esse processo como uma “virada biológica” que passou a operar em protocolos que orientam a prática psiquiátrica, diferenciando-se de versões anteriores desse documento, no qual se observava uma predominância da psicanálise na interpretação de perturbações mentais, o que implicava uma predominância da “dimensão moral do sujeito” sobre a dimensão física. Esse cenário repercute no debate sobre a adicção sexual. Nesse âmbito, encontramos teorias centradas no cérebro que propõem um número finito de possibilidades sexuais polimorfas desde a infância e, como consequência, os comportamentos seriam determinados de maneira sincrônica pela mente e pelo cérebro. Assim, a noção de pré-disposição a determinados comportamentos ganha terreno e legitimidade. No entanto, as explicações nas quais se articulam a dimensão psicológica com a física são as mais comuns e mais aceitas (principalmente, no universo dos grupos anônimos). Assim, de acordo com explicações leigas e especialistas, grande parte das causas das supostas desordens sexuais teriam origem em lares disfuncionais, baixa autoestima e sentimentos de falta de valor pessoal. Além disso, com muita frequência o comportamento sexual adicto aparece como consequência de uma vítima produzida, anteriormente, pelo abuso e suas diversas ramificações: sexual, física e emocional.

Na produção dessas novas categorias diagnósticas, a ênfase dada à frequência do ato sexual, quem as pratica e como, se relaciona com a importância de seu significado e está marcada por gênero. No contexto contemporâneo da medicalização da sexualidade, a ideia “clássica” do adicto sexual é relacionada à sexualidade masculina, enquanto a definição de adicção sexual feminina articula sempre a frequência do ato sexual com seu significado. Por exemplo, nos textos de Goodman (1998)Goodman, Aviel. Sexual Addiction: Diagnosis and Treatment. Psychiatric Times, vol. 15, nº10, 1998., psiquiatra americano que tem se empenhado em pesquisas para estabelecer critérios diagnósticos para a adicção sexual, a maior parte dos exemplos clínicos tratam de homens brancos e de classe média americanos. No final da década de 1980, Charlotte Davis Kasl, no livro Women, Sex and Addiction, articula a adicção sexual feminina à noção de codependência, definindo-a como doença devastadora a qual incide sobre a mulher que faz sexo a qualquer hora, mesmo quando não o deseja, tendo em vista manter uma relação afetiva ou agradar ao parceiro (Irvine, 2005).23 23 Para uma análise mais ampliada sobre os deslocamentos da noção de adicto sexual considerando dinâmicas processuais das relações de gênero, que relaciona noções como ninfomania e satiríase, conferir: Groneman (2001) e Ferreira (2012,2013).

Em meio aos grupos anônimos, homens e mulheres se autoidentificavam como viciados em sexo e codependentes, mas apenas mulheres eram “MADAS”, ou então, na enfática afirmação de minhas interlocutoras “muito MADA”, ou ainda “uma MADA do caralho”, e tinham “padrão de amar demais”. Isso porque a natureza processual, mutável e temporária da atribuição de gênero das noções de adicção sexual e de codependência, existia ao lado da natureza oposicional e mutuamente exclusiva das categorias de “homem” e “mulher”. Essa discursividade oposicional de gênero organizava hierarquicamente atributos ligados à feminilidade e a masculinidade na produção das retóricas do controle emocional no contexto dos grupos anônimos. Essa hierarquização aparecia em mais de uma dinâmica presente entre os grupos.

Durante o trabalho de campo ficou claro que os fluxos entre os grupos criavam oportunidades de encontros amorosos, os quais frequentemente se consolidavam em namoros e casamentos heterossexuais. Esse contexto era visto pelos sujeitos como uma oportunidade de exercitar as novas competências afetivo-sexuais que aprendiam nos grupos.24 24 De modo geral, os relacionamentos afetivo-sexuais dentro de um grupo, ou mesmo no âmbito dos fluxos entre os grupos, deveriam ser evitados por conta dos cruzamentos de adicções. No entanto, caso acontecesse, estratégias e negociações eram adotadas quando um homem e uma mulher passavam a se relacionar. Era praticamente uma unanimidade entre os participantes que namoram ou iniciam uma relação que ambos devessem permanecer nos grupos. Na visão deles/as, essa era uma forma de exercer e praticar pedagogicamente éticas e competências afetivo-sexuais com a finalidade de que o relacionamento desse certo. Nem sempre o casal frequentava o mesmo grupo, inclusive passar a ir a irmandades diferentes podia ser uma das decisões que a díade tomava justamente porque começaram a se relacionar. No entanto, quando acontecia de se encontrarem no mesmo local, irem juntos à mesma reunião ou ainda permanecerem em um grupo em comum, uma das estratégias adotadas era sair da sala para que o/a outro/a pudesse partilhar. A rede/oportunidade constituída entre os grupos para paqueras, namoros e casamentos também pode ser pensada como um dispositivo de produção, de exercício e de regulação das heterossexualidades, que no limite, se organizava a partir de um mercado matrimonial que se criava nesse contexto. Esse exercício produzia uma rede de informações sobre a reputação dos sujeitos como elemento importante para a definição nativa em considerar que alguém está ou não comprometido/a com os valores da “recuperação”. Embora homens e mulheres operassem com e fossem alvos dessa avaliação, era entre as mulheres que o manejo de tais informações também tinha como objetivo informar com riqueza de detalhes quais homens eram considerados melhores ou piores parceiros para se relacionar afetivo-sexualmente.

Esse canal de troca de comunicação pormenorizada que produzia a má reputação de alguns homens, principalmente no que tange às avaliações a respeito de um possível envolvimento amoroso, tinha nas e com mulheres suas principais interlocutoras.25 25 Condutas lidas como não seguindo a prática, o exercício e a pedagogia proposta pelos grupos eram muito mal vistas, inclusive gerando noções acusatórias como a de pegador, normalmente dirigidas aos homens que supostamente iriam aos grupos com o intuito de pegar mulheres, sem se comprometerem com os princípios da recuperação. No âmbito dessa espécie de mercado matrimonial que se criava entre os grupos também circulava a noção de mulher fácil, como uma espécie de imagem pública de um tipo feminino produzido a partir das vestimentas e do exercício da sexualidade. Esta figura aparecia entre mulheres frequentadoras dos grupos como critério de avaliação de suas próprias condutas, enquanto que o uso dessa ideia por parte homens se dava no contexto de exercício de seus vícios, e nunca como avaliação das companheiras nos grupos, fossem elas namoradas/esposas ou não. As informações trocadas a respeito dos homens iam além do engajamento supostamente adequado referente a um ideal de aprendizagem das éticas e competências afetivo-sexuais. Tais informações incluíam características físicas, maneiras de beijar, de “transar” e de se portar no cenário íntimo – negociações diversas no cenário consentido de práticas sexuais e uso de camisinha foram as mais frequentes.

O repertório amoroso, como contexto associado, cultural e historicamente, a um tipo de feminilidade, era bastante valorizado na composição das retóricas de controle emocional por homens e mulheres, como já mencionei. No entanto, em meio às mulheres era produzida uma reputação de que elas teriam maior disposição para tratar de estados emocionais em geral. Assim, parte das interações naquele contexto naturalizava e valorizava “aptidões” ligadas às feminilidades, tais como a competência emocional da mãe, o cuidado, o carinho. Ao mesmo tempo, as interações nos grupos faziam com que essa dimensão de valorização e naturalização das competências emocionais ligadas ao feminino fosse desnaturalizada, frente a uma espécie de “surpresa desconfiada”, de verem homens nos grupos contando suas histórias:

A reunião de DASA já havia começado quando duas mulheres adentraram a sala, ambas com as “apostilas” do MADA nas mãos (...) chegado o momento das pessoas que vão ao grupo pela primeira vez se manifestarem, Wilson olhou em direção a elas e lhes deu a palavra. Ambas iniciaram suas falas comentando a respeito da frequência no MADA e que estavam surpresas ao ouvirem homens falando de seus sofrimentos com relação ao amor e /ou sexo (Notas de campo, São Paulo, 2008).

Como comentei antes, se a expectativa amorosa aparecia em uma dimensão como andrógina para homens e mulheres, o movimento em direção a ela feminilizava a carreira moral de homens nas itinerações em busca de cuidados (Bonnet, 2014Bonnet, Octavio. Itinerações e malhas para pensar os itinerários de cuidado. A propósito de Tim Ingold. Revista sociologia & antropologia. Rio de janeiro, vol.04, nº 02, 2014, pp.327-350.) que os grupos ofereciam. Essa reflexão permite um entendimento mais complexo do modo com que indivíduos passam a assumir posições de sujeitos marcados por gênero por meio do envolvimento com múltiplos discursos sobre gênero. Ao reconhecer que a subjetividade não é unitária, mas sim múltipla, e que é produto dos variados discursos e práticas relativos a gênero e à diferença de gênero, feminilidade e masculinidade não podem ser tomados como características singulares, fixas e que estariam, exclusivamente, localizadas em mulheres e homens (Moore, 2000Moore, Henrietta L. Fantasias de Poder e fantasias de identidade: Gênero, raça e violência. cadernos pagu (14), Campinas, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2000, pp.13-44.).

Aos olhos das mulheres, essa feminilização era vista como uma virtude, uma vez que eram elas que investiam em uma reputação sentimental-amorosa. As prerrogativas que apareciam ligadas a elas como mais “hábeis” e mais “sensíveis” aos temas amorosos e afetivos poderiam ser pensadas a partir da reflexão de Moore (2000)Moore, Henrietta L. Fantasias de Poder e fantasias de identidade: Gênero, raça e violência. cadernos pagu (14), Campinas, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2000, pp.13-44. a respeito de fantasias e reputação. Segundo a autora, a fantasia, no sentido de ideias sobre o tipo de pessoa que se gostaria de ser e o tipo de pessoa que se gostaria que os outros acreditassem que se é tem um papel a desempenhar, pois fantasias de identidade se ligam a fantasias de poder e agência no mundo. Segundo a autora, isso explicaria porque noções como a de reputação se liga não somente a autorrepresentação e autoavaliação do eu, mas ao potencial de poder e agência que uma boa reputação confere.

Segundo Lutz (2008)Lutz, Catherine. Engendered emotion: gender, power, and the rhetoric of emotional control in American discourse. In: Lutz, Catherine; Abu-Lughold, Lila (orgs.) Language and the Politics of Emotion. Cambridge University Press, 2008, pp.69-91., discursos sobre emoção estão relacionados a discursos sobre gênero. Ainda de acordo com a autora, retóricas de controle emocional associadas a gênero fazem com que o discurso sobre as emoções sejam falas sobre o exercício de poder. Embora homens e mulheres recorram às retóricas de controle emocional no campo afetivo-sexual disponíveis no contexto descrito, eles podem ser vistos como fazendo sentidos e reivindicações diferentes através deles.26 26 Em outro momento (Ferreira, 2014) explorei os mapas de sentidos e tensões em meio a narrativas de homens membros de grupos anônimos, levando em consideração como a frequência no mercado sexual é tomada como objeto reflexivo, produzindo estilos de moderação e rigor referentes aos usos, demandas e desejos nesse âmbito. Falar de controle emocional por meio do repertório do sofrimento amoroso a partir da perspectiva das mulheres é falar sobre relações de poder, de seu exercício e de posições de sujeitos biograficamente situadas e investidas. No universo dos grupos anônimos (e talvez poderíamos estender para o da cultura terapêutica contemporânea), no qual convivem diferentes discursos sobre gênero, a aposta em uma reputação amorosa sentimental pode ser vista como uma maneira de criar repertórios estratégicos e cursos de ação, resultando em inesperados compromissos.

2. Retóricas de (re)organização da experiência do sofrimento amoroso

O grupo anônimo de ajuda mútua Mulheres que Amam Demais Anônimas (MADA) segue as orientações do livro Mulheres que Amam Demais, da terapeuta familiar americana Robin Norwood. Segundo a psicóloga estadunidense, o livro é baseado na sua experiência e na de outras mulheres envolvidas com dependentes químicos. Ela percebeu um “padrão de comportamento” comum em todas elas e as chamou de mulheres que amam demais. Por isso, no final do livro, a autora sugere como abrir grupos para tratar da “doença de amar e sofrer demais”.

No Brasil, o MADA nasceu em 1994, na cidade de São Paulo, por iniciativa de uma mulher, esposa de dependente químico, que seguiu as orientações do livro de Noorwood. Michele, frequentadora do grupo, há pelo menos três anos à época da pesquisa27 27 Ela é japonesa, na época tinha por volta de 40 anos, três filhos, foi casada e dizia que nesse relacionamento “perdeu tudo que tinha”, e não podia sequer se aproximar de seu ex-marido, pois essa aproximação fazia com que ela se tornasse “doente” de novo. , confirmou que o MADA em São Paulo surgiu pela iniciativa de uma mulher que frequentava o grupo anônimo Entidade de Apoio aos Familiares e Amigos de Alcoólatras (Al-Anon) e duas outras mulheres participantes de Narcóticos Anônimos (N.A): “elas estavam sentadas ali na escadinha da igreja trocando ideia sobre o livro da Robin depois do grupo, quando resolveram fundar o MADA”.

Atualmente, o grupo está presente em 14 estados da federação e no distrito federal (Pardo e Peixoto, 2014Pardo, Astrid Johana; Peixoto, Mônica. Amar Demais. Notícias em Destaque. Centro Latino Americano em Sexualidade e Direitos Humanos, março 2014. [http://www.clam.org.br/destaque/conteudo.asp?cod=11452].
http://www.clam.org.br/destaque/conteudo...
). Como já mencionei, o principal “padrão de comportamento” tematizado no grupo é o “padrão amar demais”. Nas narrativas das frequentadoras tal padrão estava ligado a uma má gestão nas maneiras de conduzir-se no campo amoroso. Entre outras práticas ritualizadas dos grupos, a cada reunião é escolhido ler as características de uma mulher que ama demais ou as características de uma mulher que se recuperou de amar de mais28 28 Tais características podem ser encontradas no livro de Robin Norwood, nas webs dos grupos ou nos folhetos distribuídos pelo MADA. No entanto, cito algumas relacionadas com o tema proposto no texto Características de uma mulher que ama demais: 1) Com medo de ser abandonada, faz qualquer coisa para impedir o fim do relacionamento; 2) Está disposta a arcar com mais de 50% da responsabilidade, da culpa e das falhas em qualquer relacionamento; 3) Sua autoestima está criticamente baixa, e no fundo não acredita que mereça ser feliz. Características de uma mulher que se recuperou de amar demais: 1) Ela se legitima, em vez de procurar um relacionamento que dê a ela um senso de autovalor; 2) Ela pergunta: “Esse relacionamento é bom para mim?” 3) Quando um relacionamento é destrutivo, ela é capaz de abandoná-lo sem experimentar uma depressão mutiladora. Possui um círculo de amigos que a apoiam e tem interesses saudáveis, que a ajudam a superar crises (Fonte: Folhetos distribuídos nos Grupos MADA-SP). .

A profusão nacional do grupo e as (re)atualizações de discursos que tomam as emoções, em especial o amor, como expressões naturais e biológicas29 29 Embora não seja um tema novo relativo à natureza das emoções, no final da primeira década dos anos 2000, neurocientistas europeus e estadunidenses afirmam que o amor é resultado de estímulos fisiológicos e emerge da química cerebral. O sofrimento amoroso é ligado a comportamentos compulsivo-obsessivos que, segundo eles, poderiam ser amenizados pelo uso de fármacos e de manipulação da memória por meio de técnicas adotadas no tratamento de stress pós-traumático. Embora seja um tema controverso na comunidade científica, alguns defendem que tais fármacos e técnicas poderiam ser usados em pessoas que estão em relacionamentos violentos, mas não conseguem desfazer-se do sentimento de vínculo. têm despertado o interesse de pesquisa no campo das ciências sociais. As pesquisas apontam acertadamente que o MADA é um espaço que opera a partir de concepções convencionalmente ligadas às ideias de descontrole e fragilidade emotiva, elementos historicamente tidos como intrínsecos às concepções de mulher e feminino. De acordo com essa argumentação, se por um lado o ideário do grupo aceita e tenta reproduzir padrões normativos de gênero, por outro, ele os ressignifica mediante o encontro com outras discursividades, tais como reivindicações feministas, questionamentos a respeito da sobrecarga das mulheres no mundo doméstico, conflitos que envolvem concepções tradicionais e igualitárias de relacionamentos, etc. (Procópio, 2007Procópio, Adélia de Souza. Quando amar é sofrer: um estudo dos discursos sobre gênero e afetividade das Mulheres Que Amam Demais. Dissertação (Mestrado em Sociologia), Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2007.; Costa, 2008; Pardo, 2012Pardo, Astrid Johana. Quando amar é sofrer: Um estudo etnográfico no grupo de ajuda mutua MADA. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2012.; Pardo e Peixoto, 2014Pardo, Astrid Johana; Peixoto, Mônica. Amar Demais. Notícias em Destaque. Centro Latino Americano em Sexualidade e Direitos Humanos, março 2014. [http://www.clam.org.br/destaque/conteudo.asp?cod=11452].
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.) A marca dessas reflexões reside criticamente na leitura tradicional de gênero operada pelo MADA, bem como no aspecto conflituoso e de crise das discursividades de gênero, no qual o MADA seria um efeito.

Embora considere acertada e da maior relevância tais reflexões, gostaria de propor um exercício diferente. Argumento que a leitura tradicional de gênero operada pelo MADA também deve ser contextualizada em meio a repertórios que reconhecem que a exposição à experiência social do sofrimento amoroso é mais intrincada do que a mera alusão da norma como destino.30 30 Inspiração em Gregori (2010). A redução dessas experiências a mera “falta de consciência” não contempla a capacidade de subverter as normas desde dentro de sua própria normatividade.31 31 Segundo Illouz (2012), desde a “segunda onda” do feminismo, o amor tem sido pensado como elemento que compõem sistemas de opressão às mulheres. As leituras feministas mostraram de forma brilhante como as lutas sobre o poder residiam no centro do amor e da sexualidade, abrindo caminhos, por exemplo, para tomar o pessoal como político. De acordo com ela, a leitura das feministas radicais (a autora cita Shulamith Firestone e Ti-Grace Atkinson) considerou que os homens levavam sempre vantagem nessas lutas, porque o poder econômico convergia com o poder sexual. Em última instância, o poder masculino seria tanto, que hierarquias e desigualdades de gênero se davam e se reproduziam na manifestação e na experiência dos sentimentos românticos que, por sua vez, sustentavam outras diferenças de poder mais amplas em matéria econômica e política. No entanto, segundo a autora, a suposição sobre a primazia do poder constitui uma falha nessa corrente da crítica feminista sobre o amor. Durante o período em que o patriarcado desempenhava um papel muito mais poderoso do que atualmente, o amor cumpria uma função muito menos significativa nas subjetividades femininas e masculinas. Na argumentação de Illouz (2012), a proeminência cultural do amor parece vincular-se com a diminuição do poder masculino dentro da família e com as transformações nas relações a partir de noções como as de igualdade e simetria de gênero. De acordo com ela, quando a teoria feminista reduz o amor feminino (e o desejo de amar) a um mero elemento do patriarcado, a teoria feminista não dá conta dos motivos pelos quais o amor segue tendo relevância para as mulheres e, acrescenta, também para os homens. Ainda, argumento que o repertório da experiência amorosa e de seu sofrimento oferece cursos de ação importantes para os sujeitos32 32 A inspiração do argumento vem das pesquisas de Abu-Lughod (2008), Piscitelli (2011) e Padovanni (2015). As autoras tomam a experiência amorosa como repertórios que abrem cursos de ação no âmbito das poesias amorosas, ao tornarem-se discursos de desafio e resistência aos ideais da vida social beduína, no âmbito dos mercados transnacionais do sexo e matrimoniais nos trânsitos sul-norte globais de brasileiras, e no âmbito de relacionamentos afetivos e sexuais tecidos a partir das penitenciárias femininas das cidades de São Paulo e Barcelona, respectivamente. , inclusive no âmbito dos feminismos. Tal repertório tem aberto canais de atuação, comunicação e de controvérsias importantes para gerações feministas no contexto brasileiro.

Em 2011, aconteceram em várias cidades do país a Marcha das Vadias, que nos anos subsequentes constituiu-se como novos coletivos, cuja atuação tem renovado temáticas, práticas e táticas feministas no país. Esses coletivos compõem parte, como mencionei, das teias político-comunicacionais feministas que têm na internet um lócus de ação importante. Uma das formas de atuação é produzir e fazer circular na internet material imagético relacionado a esse evento, composto por fotografias das marchas nas ruas, bem como de campanhas lançadas por esses coletivos em redes sociais.

Em 2012, o coletivo Marcha das Vadias-Brasília lançou uma campanha de imagens que chamou minha atenção. Essas eram compostas por reapropriações de pautas históricas do feminismo (direito ao prazer, opressão estética, igualdade nas relações trabalhistas e em padrões morais ligados ao exercício da sexualidade) e as vincularam ao cotidiano de diferentes segmentos de pessoas (mulheres de diferentes idades, orientações sexuais, com diferentes corpos, cores de pele, homens e crianças). A linguagem utilizada, ora ou outra, aproximava-se muito de temas e de problemáticas tratadas no MADA, tais como a relevância de buscar e gerir certa autonomia quando se está em um relacionamento amoroso, a importância que noções como autoestima e amor-próprio adquiriam como condições de estar só, ou ainda para atuar em um relacionamento amoroso. Era como se o conteúdo das 12 características de uma mulher que se recuperou de amar demais, tivesse “pulado o muro” do MADA para produzir uma campanha de comunicação veiculada por gerações feministas contemporâneas.

Por exemplo, em uma das imagens vê-se uma jovem negra sorrindo, magra, de cabelos soltos, e do lado direito escrito: “minha felicidade não depende de estar em um relacionamento amoroso – isso também é feminismo”. Ainda em outra, está uma mulher branca mais velha, ela graciosamente faz careta e suspende os cabelos castanhos, e ao lado os dizeres: “Sou feminista porque – Não posso ser a mulher da sua vida, porque já sou a mulher da minha”. Em uma terceira, vê-se uma jovem morena sorrindo, lábios coloridos de vermelho, cabelos presos no alto da cabeça em um coque “bem comportado” com dizeres que parafraseavam uma música da banda da década de 1980, Legião Urbana, mas que fez muito sucesso na voz de Cássia Eller: “Sou feminista porque – sou minha, só minha e não de quem quiser”. E a quarta imagem desse conjunto apresenta uma jovem branca, com cabelos avermelhados, movimentando a cabeça de um lado para o outro, cujo tópico era: “Minha liberdade não acaba quando me relaciono com alguém – isso também é feminismo”.

Foi aproximadamente um ano depois dessa campanha que encontrei o texto de M. no blog Lola escreva Lola. O depoimento dela estava contextualizado em uma “conversa” mais ampla que já vinha acontecendo no blog há pelo menos três meses.33 33 Todos os trechos e comentários são retirados do blog Lola escreva Lola no período de julho a outubro do ano de 2013. Disponível em: http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br/2013/10/guest-post-nenhuma-de-nos-e-todas.html Nesse contexto ampliado, havia relatos de mulheres jovens na faixa dos 20 anos, que expunham a aflição de assumir-se feminista, mas continuar em relacionamentos heterossexuais permeados de violência de todos os tipos. É comum que as leitoras ao trocar e-mails com Lola, peçam sua ajuda, na forma de uma opinião ou conselho. Embora a autora do blog emita sempre uma posição, segundo ela: “é difícil dizer, porque nunca passei por isso”; e o MADA aparece nesses diálogos:

Uma vez, numa palestra em SP no ano passado, na hora de conversar com o público, uma moça muito bonita e meiga fez meus olhos ficarem marejados quando contou ter “sofrido por amor” (parece clichê, mas acontece direto). E então ela falou dessa associação, a MADA (Mulheres que Amam Demais), e como isso a ajudou. Recentemente, eu a reencontrei numa outra palestra e cobrei o guest post que já havia pedido antes.

Essa cena descrita por Lola envolve a articulação de duas espécies de coming out, o primeiro, que já mencionei, a ideia recorrente que aparece nessas redes político comunicacionais de “assumir-se” feminista e as dúvidas sobre quais condutas adotar a partir de então; um segundo, “sair do armário”, envolve tornar pública a identidade considerada anônima de “ser uma MADA”. A partir disso, Lola ao dar opiniões ou sugerir saídas aos sofrimentos apresentados por suas leitoras, passa a indicar o MADA como uma possibilidade:

No final do ano, me escreveu uma leitora contando sua dificuldade em terminar um relacionamento, por pior que ele fosse, e perguntou se haveria um grupo de apoio. Eu, cheia de dedos, disse que uma moça já havia recomendado o MADA, mas que eu não sabia se lá misturavam religião, autoajuda, e outras coisas meio esotéricas. Bom, essa leitora procurou o MADA, e adorou. Primeiro que, segundo ela, não tinha nada de religião (se bem que a apresentação do site fala em Deus o tempo todo). Segundo que ela se sentiu acolhida, e foi ótimo pra ela ver tantas mulheres passando por aquele mesmo problema.

Tudo indica que a moça bonita e meiga atendeu ao pedido de Lola e, apresentando-se como M., escreveu o guest post “Nenhuma de nós e todas representamos o mada”. No texto, ela explica o que é o MADA, seu funcionamento por meio de 12 passos e 12 tradições, a importância do livro de Robin Norwood, e outros temas:

É possível que muitas já tenham ouvido falar; esse grupo foi muito divulgado naquela antiga novela Mulheres Apaixonadas, e por causa dessa mesma novela, várias vezes há um grande tabu no que diz respeito a este assunto. “Amar demais" muitas vezes é relacionado apenas a mulheres extremamente ciumentas (como a Heloísa da novela), ou que apanham em casa. Mas na verdade, a obsessão amorosa é um problema real, o amor-patológico (caso de estudo até no Hospital das Clínicas) é muito mais comum do que se imagina, e é uma doença que mata. Homens e mulheres sofrem desse mal, mas principalmente mulheres, por isso a nossa irmandade é focada nelas.

A narrativa apresenta um esforço em conectar o que é apresentado como “extraordinário” por importantes mediadores culturais nas dinâmicas de popularização das categorias de vício em amor34 34 Durante o trabalho de campo, entre os grupos anônimos a maioria dos/as participantes tomou conhecimento dos grupos a partir do contato com diferentes meios de comunicação. O mais citado era a internet, seguido de novelas e reportagens em revistas e menções a pessoas famosas (tais como atores de cinema e tevê) que já haviam se identificado publicamente com o tema da adicção, principalmente ao sexo. Entre os grupos vigorava uma política de comunicação com a mídia pautada na ideia êmica de atração ao invés da “promoção”. Nesse sentido, havia manuais e comissões que elaboravam sugestões de como os participantes deveriam agir em caso de entrevistas, programas de televisão, ou em qualquer situação que ele/a assumisse a identidade de membro do grupo diante de um veículo de comunicação, com a finalidade de não estigmatizar os/as frequentadores/as. Mesmo assim, a relação entre grupos e mídias era permeada de tensões e co-produções, uma vez que diferentes meios de comunicação exerciam um papel de mediadores culturais na forma como os grupos se preparavam para “falar com as mídias” e como eles recebiam o que era apropriado pelas mídias sobre seus “desajustes”. Sobre esse tema também, ver Pardo (2012). , em experiências ordinárias e do cotidiano. M. segue sua narrativa mesclando elementos provenientes do universo da cultura terapêutica e do campo feminista:

Quando entrei no MADA, eu tinha a mente completamente fechada, era muito infeliz e achava que a única solução pro meu problema era ficar com o homem que tinha me abandonado. Ou seja, era de um machismo total em relação a mim mesma. Vim de um lar abusivo emocionalmente, de repetidos relacionamentos infelizes, muitas amizades prejudiciais, bullying na adolescência, desespero. Tentei o suicídio mais de uma vez. O grupo me deu um alívio quase imediato, pois naquelas mulheres encontrei uma SORORIDADE de verdade, com abraços e sorrisos sinceros e a promessa de nunca mais ficar sozinha (o que era meu maior medo, na realidade). Essas mulheres salvaram a minha vida literalmente.

Toda a narrativa é uma tentativa de produzir coerência na carreira moral de uma MADA como feminista:

Com o passar do tempo, fui aprendendo muito e de repente me dei conta de que tantas mulheres juntas ali, de raças, cores, formatos, classes sociais e de locais diferentes estavam falando a mesma coisa. Não tinha como o problema ser só emocional. Não tinha como falarmos das mesmas experiências apenas por uma deformidade emocional. Comecei a estudar (e conheci o blog da Lola e muitos outros blogs feministas, o que me ajudou imensamente) a ver como isso acontecia. Não era possível que essa doença de "amar demais" fosse um vírus, e que a maior parte da população feminina sofria desse mal. Cheguei à conclusão de que o problema social que é o machismo faz com que tantas mulheres acreditem que não valem nada, que a única coisa que vale na vida é ter um homem ao seu lado. Hoje posso me intitular feminista. Hoje sei que faço parte de uma programação que me dá as ferramentas para escapar dessa doença derivada de uma cultura machista. O MADA me ensinou a gostar das mulheres, a conviver com elas e amar a todas, sejam feministas ou não. Uso meus depoimentos no grupo para falar disso às vezes, sobre como esse programa é feminista e nos ajuda a ver o mundo de maneira diferente.

No entanto, o movimento contrário, ou seja, o de produzir uma coerência moral na carreira de uma feminista como MADA era controverso. Os comentários ao texto35 35 Não é possível informar características dos sujeitos que fizeram os comentários, pois a maioria era de anônimos, ou quando muito possuíam somente algum nome ou pseudônimo. É possível dizer que a maior parte eram comentários de mulheres, uma vez que em muitos deles também havia relatos de experiências pessoais. No conjunto de mais de 50 comentários, havia dois trollers afeministas. O troll é um indivíduo que age online perturbando (“trollando”) intencionalmente ou não, espaços de sociabilidade virtual, como fóruns, ou atacando diretamente indivíduos, através de comentários que criam discórdia (Zilli, 2015). de M. traziam controvérsias, por exemplo, relacionadas ao modo de conceber a noção de violência. Algumas posições concebiam esse tema desde uma perspectiva estruturadora de posições tidas, invariavelmente, como assimétricas, produzindo uma incoerência na articulação entre cultura terapêutica e feminismos. Em tom raivoso, o primeiro comentário ao texto é: “homem "enlouquece de amor" e espanca, mata - normal, "o natural, o mundo como ele é". Mulher, na mesma loucura? Tem que procurar um grupo de recuperação correndo, porque está louca de pedra, varrida”.

Outros comentários ressaltavam o valor da experiência narrada:

Reflita um pouco sobre suas palavras. Você não pode menosprezar o sofrimento de mulheres que têm um comportamento destrutivo. Poxa, a autora diz que o MADA salvou literalmente a vida dela, mas, você não acha justo falar sobre isso? Ser assassinada pelo companheiro é digno de luta e conscientização, mas morrer fruto de um desequilíbrio que leva ao suicídio, não é?

Outros comentários, ainda, chamavam atenção para a complexidade que a conexão entre experiência e cultura terapêutica contemplava: “Iniciativas como essas são muito importantes, já que o machismo atua de “n” formas e nem sempre a opressão se dá no tradicional esquema: vítima e opressor. Aliás, às vezes essas barreiras se borram e o feminismo não pode ser insensível à complexidade da vida”. E, finalmente, aqueles comentários nos quais o “machismo”, para além de um sistema de opressão e constructo sociocultural, era considerado doença, que necessitava de instâncias pedagógicas para seu tratamento:

Homens que estupram e matam a mulher, também precisam, não de um grupo de suporte, mas de tratamento psicológico, para se curar do machismo, e mudar essa visão do mundo, da vida, e de certo ou errado, de pode ou não pode, enfim. Machismo é uma doença que a sociedade insiste em transmitir, e é uma patologia tanto quanto.

A despeito das controvérsias, o encontro do MADA com os feminismos não se dá em um cenário no qual esses discursos possam ser pensados como concorrentes. Um sinal disso é a produção e a exibição de afetos intensos na reação à narrativa de M., seja por meio das discordâncias, seja por meio dos comentários em primeira pessoa que concordavam com ou defendiam a visão dela, e agregavam mais emocionalidade ao evento.

Tanto ser mada como ser feminista são experiências que produzem sujeitos a partir de processos que revelam a experiência como um lugar de contestação, ou seja, um espaço discursivo no qual posições de sujeito e subjetividades diferentes e diferenciais são inscritas, reiteradas ou repudiadas (Brah, 2006Brah, Avtar. Diferença, diversidade, diferenciação. cadernos pagu (26), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu/Unicamp, janeiro-junho de 2006, pp.329-376.). Nesse caso, o entendimento do amor e/ou do sofrimento amoroso tornaram-se significantes de identificações, crenças e lutas, bem como comunicaram mensagens diferentes, lembrando-nos que apesar dos horizontes utópicos normativos dos feminismos, ou das visões da emocionalidade feminina como valor e/ou condenação, pessoas engajadas em determinadas situações não necessariamente têm experiências idênticas dos eventos.

As interações entre as discursividades do MADA e dos feminismos têm produzido mudanças em ambos. O repertório feminista (re)significa a cultura terapêutica em um campo social e político das relações de poder. Nos meus primeiros contatos com o MADA, em 2006, a chamada do grupo consistia em afirmar que ele era destinado às mulheres que precisassem se recuperar do “padrão amar demais” em relação aos seus maridos, namorados, mas também de outras relações que envolviam homens, como pais, chefes e irmãos. Atualmente, essa característica mudou, e a maioria dos grupos define-se como necessário para mulheres que queiram se “recuperar de seu padrão de dependência por outras pessoas”, ampliando o reconhecimento de relações, fundamentalmente aquelas entre mulheres.

O encontro entre as pedagogias do aprendizado emocional e do controle emotivo presentes na cultura terapêutica do MADA e os discursos feministas também faz com que feminismos não apareçam como algo digno de “conversão”, mas sim como posições de sujeitos, biograficamente, situadas e investidas. Nesse contexto, as redes político-comunicacionais na internet exercem um papel fundamental como instância pedagógica e de reconhecimento do que é “ser feminista”, como M, afirmou: “Comecei a estudar (e conheci o blog da Lola e muitos outros blogs feministas, o que me ajudou imensamente) a ver como isso acontecia”.

A influência mútua do encontro dessas pedagogias pode ser pensada ao traçar paralelos entre dados de acesso à internet e percepções de ser mulher, machismo e feminismo no contexto brasileiro em anos recentes. Segundo dados do IBGE, desde 2009, o número de brasileiras usuárias da rede cresce mais do que o de homens, e quanto maior a idade, maiores são as diferenças em favor das mulheres. A Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio (PNAD), de 2013, mostrou que a proporção de internautas no país passou de 49,2%, em 2012, para 50,1%, em 2013, do total da população, no qual as mulheres representam 51,9% (IBGE, 2013).

Segundo pesquisa da Fundação Perseu Abramo, de 2001 a 2010 aumentou de 21% para 31% o contingente de brasileiras que se consideram feminista. Considerando-se ou não feministas, metade dessas mulheres tem visão positiva do feminismo, identificando-o com a luta por igualdade de direitos em geral (27%), por liberdade e independência das mulheres (26%) e por direitos iguais no mercado de trabalho (7%). A pesquisa também mostrou que mulheres jovens são as que mais se declaram feministas – 47% de jovens entre 15 a 17 anos, seguidas das jovens de 25 a 34 anos e de 23% de identificação entre mulheres acima dos 60 anos .

O material apresentado neste artigo mostra um recorte etário importante quando cruzamos cultura terapêutica do MADA e feminismos, sendo que “madas feministas” têm, no máximo, de 20 a 27 anos, e fazem um uso considerável da internet na busca tanto por informações a respeito dos grupos e conhecimentos sobre cultura terapêutica do “amar demais”, quanto sobre feminismos. Isso produz um contraste com o perfil de mulheres frequentadoras desse grupo, à época de minha pesquisa de doutorado, que estavam em sua maioria acima dos 30, e uso da internet por elas se dava, fundamentalmente, para saber sobre a existência e encontrar a localização dos grupos. No entanto, mesmo entre estas últimas, elementos associados à sororidade e ao gostar de estar e conviver com mulheres como elementos feministas apontados por M. não estavam ausentes, ainda que elas não se denominassem como feministas. Um roteiro presente entre mulheres, no âmbito dos fluxos entre grupos anônimos, era ter iniciado no MADA e dali partido para outros grupos. Assim, após estabelecer um circuito entre eles, várias delas avaliavam o MADA como menos “estruturado” e, digamos, com um “potencial” menor no que tangia à promessa de recuperação. Dentre as justificativas em permanecer em tal grupo estavam às amizades estabelecidas, um carinho especial pela sala ou, ainda, que “gostavam muito das meninas do MADA”.

A relação entre aumento de acesso à internet por mulheres e aumento do reconhecimento ou visão positiva do feminismo ilustra a emergência de um campo mais facilitado para o encontro entre elementos da cultura terapêutica e feminismos. Esse encontro e as mudanças que ele acarreta também estão situados nas mudanças que gerações feministas têm imprimido no cenário brasileiro. O conjunto de tais mudanças e características tem sido localizado a partir dos anos 2000, momento no qual o campo feminista é marcado por fluxos mais horizontais de discursos, por práticas feministas plurais e heterogêneas, principalmente sua articulação com diversos setores na sociedade civil, resultando em uma multiplicação de campos feministas (Alvarez, 2014Alvarez, Sonia E. Para além da sociedade civil: reflexões sobre o campo feminista. cadernos pagu (43), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu/Unicamp, janeiro-junho de 2014, pp.13-56.).

Entre as principais mudanças das gerações atuais em relação às anteriores36 36 Gomes e Sorj (2014) exploram contrastes e continuidades entre diferentes gerações de feministas no Brasil, por meio da analise da Marcha das Vadias. A partir de revisão bibliográfica, convencionam chamar como “anteriores” feminismos que aparecem em registros históricos sobre a composição social das feministas, desde o movimento das sufragettes até geração dos anos 1970, que teve presença marcante na luta pela democratização do país, na organização dos encontros nacionais feministas, na formação dos núcleos de estudos de gênero nas universidades e associações científicas e na institucionalização do feminismo no Estado. está a maior diversificação na produção do sujeito político do feminismo, que não se define exclusivamente pela identidade sexual e biológica da mulher (Gomes e Sorj, 2014Gomes, Carla; SORJ, Bila. Corpo, geração e identidade: a Marcha das vadias no Brasil. Revista Sociedade e Estado, vol. 29, nº 2, maio/agosto, 2014, pp.433-447.). A reivindicação de identidades LGBT não hegemônicas (por exemplo, homens e mulheres trans) no campo feminista, a identificação de “homens cis” como feministas (com todas as variações que se apresentam atualmente: “homens feministas”, “homens pró-feministas” e “homens em processo de desconstrução do seu machismo”) têm ampliado a gama dos contenciosos relacionados aos gerenciamentos e critérios de quem o feminismo inclui ou exclui em seus diferentes projetos utópicos normativos.

Um dos trechos que abre este artigo, de uma das mais proeminentes vozes dos feminismos negros, produz uma aproximação possível com a carreira moral de uma mada feminista. No entanto, diante da afirmação de M: “naquelas mulheres encontrei uma SORORIDADE de verdade, com abraços e sorrisos sinceros e a promessa de nunca mais ficar sozinha”, ou ainda, “O MADA me ensinou a gostar das mulheres, a conviver com elas e amar a todas, sejam feministas ou não”, em um exercício contra-factual, hooks poderia ter “respondido” como o fez em um texto programático e crítico ao feminismo branco estadunidense:

La compreensión que a los trece años tenía del patriarcado, creó en mí expectativas hacia el movimiento feminista que eran muy diferentes de las jóvenes blancas de clase media. Cuando entré en mi primera clase de estudios de las mujeres en la Universidad de Stanford a principios de la década de 1970, las mujeres blancas estaban descubriendo la alegría de estar juntas: para ellas era un momento importante y único. Yo no había vivido nunca una vida en la que las mujeres no estuvieran juntas, en la que las mujeres no se hubieran ayudado, protegido y amado las unas a las otras profundamente (bell hook, 2004:44 e 45).

Compondo o cenário de atuação das gerações feministas atuais no contexto brasileiro, estão as reivindicações de lugares políticos específicos: as lésbicas, as negras, as indígenas, as camponesas, bem como as jovens se apresentando como grupos específicos (Gomes e Sorj, 2014Gomes, Carla; SORJ, Bila. Corpo, geração e identidade: a Marcha das vadias no Brasil. Revista Sociedade e Estado, vol. 29, nº 2, maio/agosto, 2014, pp.433-447.). As políticas de mobilização da diferença nesse campo, para além da reflexão sobre como a intersecção de marcadores sociais da diferença opera socialmente em meio às relações de poder, paradigma consolidado no campo teórico e acadêmico a partir dos anos 1990, passam a constituir os próprios sujeitos. É comum encontrar grupos ou pessoas que se definem como “feministas interseccionais”, que ora investem na demarcação das diferenças e afirmação política por meio da oposição identitária, ora reconhecem as diferenças a serviço de uma política de coalizão, mobilizando-as para uma definição mais universal da identidade feminista, sem se sobrepor a ela (Gomes e Sorj, 2014Gomes, Carla; SORJ, Bila. Corpo, geração e identidade: a Marcha das vadias no Brasil. Revista Sociedade e Estado, vol. 29, nº 2, maio/agosto, 2014, pp.433-447.).

Nesse sentido, o modo como as diferenças operam e produzem o campo feminista contemporâneo possibilita criar condições para o despontar da carreira moral de uma mada feminista37 37 Também permite pensar as (im)possibilidades de aproximação de Clarice Lispector e bell hooks. . O atravessamento entre o discurso do mada e o dos feminismos, que têm na reorganização do sofrimento amoroso e de seus scripts emocionais, uma maneira de criar pontes entre o pessoal e o político, permite produzir e situar biografias pessoais como resultados da relação entre a necessidade da resolução de conflitos no âmbito público e uma noção de cidadania cotidiana.

Caracterizando também mudanças no cenário feminista contemporâneo no contexto brasileiro, há a ampliação do repertório “nosso corpo nos pertence”, no qual o corpo assume um significado mais amplo e extrapola referências anteriores38 38 Referências ligadas à autonomia sobre o corpo atrelada às reivindicações pela descriminalização do aborto, pelo planejamento familiar e pela saúde da mulher (Gomes e Sorj, 2014). As autoras também apontam como entre os corpos do feminismo contemporâneo observa-se a presença significativa de jovens, com idades inferiores a vinte anos, produzindo um contraste com os corpos de gerações feministas das décadas de 1970 e 1980, período no qual muitas feministas haviam retornado de experiências no exílio, eram ou haviam sido casadas, já tinham experimentado a maternidade e já se encontravam inseridas no mercado de trabalho; nesse sentido, as reivindicações desse período refletiam o momento do ciclo de vida dessa geração (Gomes e Sorj, 2014). . Na medida em que o corpo é percebido e tomado como um meio de experimentação, embora não seja abstraído de um contexto de transformações na política, na cultura e nas relações interpessoais, o corpo é vivenciado como subjetivo (Gomes e Sorj, 2014Gomes, Carla; SORJ, Bila. Corpo, geração e identidade: a Marcha das vadias no Brasil. Revista Sociedade e Estado, vol. 29, nº 2, maio/agosto, 2014, pp.433-447.) e como uma instância na qual tais experimentações podem explorar os limites de sua plasticidade e performatividade.39 39 Na ampliação do repertório “nosso corpo nos pertence”, são exaltadas performances nas quais feminilidades e masculinidades se misturam (fuck gender), identidades híbridas (ao mesmo tempo masculinas e femininas) e androginia. São muitas as referências à política queer que coloca sob perspectiva a “normalidade do normal”. A plasticidade e a performatividade referem-se a corpos, mas também à relação entre corpos e condutas. Por exemplo, alguns coletivos de Marcha das Vadias no Brasil propunham a vivência Vadia para questionar a existência de normas que qualificam e hierarquizam comportamentos femininos (ver Tavares, 2014). Além disso, na ampliação desse repertório relacionado ao corpo, a noção de capacitismo, termo que englobaria dinâmicas de exclusão e produção de desigualdades ligadas aos impedimentos corporais diante de concepções que relacionam o corpo à aptidão, disponibilidade para o trabalho, e a certo ideal de beleza, tem aparecido frequentemente como modo de problematizar uma suposta condição normal dos corpos e denotar a exclusão sistemática de pessoas com deficiência.

Produzindo esse panorama, argumento que tais mudanças também estão relacionadas na aposta em estratégias nas quais a internet tem tido um papel fundamental, por exemplo, na articulação de redes de “pessoas físicas” como recurso, linguagem e formas de transmissão para o fomento de boas relações intergeracionais (Gonçalves e Pinto, 2011Gonçalves, Eliane; Pinto, Joana Plaza. Reflexões e problemas da “transmissão” intergeracional no feminismo brasileiro. cadernos pagu (36), Campinas, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, janeiro-junho de 2011, pp.25-46.). Ainda nesse contexto, o uso da internet se dá como forma de tradução de termos, ideais e lutas, apostando na eficácia dessa atuação sem considerar os feminismos como consequência de uma consciência prévia e com a finalidade de atrair mais pessoas, ou ainda deixar mais claro o uso de determinados conceitos, temas e/ou “palavras de ordem”.

Como uma face importante dessas mudanças, a internet permitiu a constituição de redes que aprofundaram contatos em organizações políticas e grupos feministas já existentes, mas também criou outras redes de comunicação como instrumento de ação política e recurso de identificação. As gerações feministas contemporâneas fazem uso da internet, mas também são sujeitos produzidos por esses usos prosumers, ou seja, aqueles/as que produzem a si mesmos enquanto fazem uma atividade.40 40 No espaço público da rua, com a ampliação das experimentações do corpo, emerge o corpo-bandeira com importante e duplo papel, porque é ao mesmo tempo objeto de reivindicação da autonomia dos sujeitos sobre seus corpos e também principal instrumento de protesto e suporte de comunicação (Gomes e Sorj, 2014; Ferreira, 2013). No espaço digital, blogs, canais do youtube, perfis em redes sociais diversas, memes, compõem formas-corpo também como instrumentos de protesto, suporte de comunicação e produção de subjetividades e estéticas. Na produção e na operacionalização dessas forma-corpo, parece que idade e a escolha de qual tipo de tecnologia usar são relevantes, na medida que informam e situam os sujeitos em diferentes redes de sociabilidade na internet e intenções de que público se quer atingir. Pelo menos desde 2011, eventos, marchas e manifestações no âmbito dos feminismos contemporâneos brasileiros somente são possíveis de serem entendidos a partir de relações mediadas entre redes ativistas on e off-line.41 41 Sobre o tema, ver Name e Zanetti (2013).

As teias político-comunicacionais feministas na internet estabelecem processos de comunicação por meio do uso de tecnologias que permitem estender e vincular estados emocionais (Castells, 2014Castells, Manuel. Redes de Indignação e Esperança: movimentos sociais na era da internet. Zahar, 2014.). Esse contexto favoreceu os níveis de interpenetração da cultura terapêutica do MADA e dos feminismos. A experiência amorosa e a (re)organização de seu sofrimento a partir de um ponto de vista feminista passam a compor a elaboração de demandas de reconhecimento e de investimentos a partir de mapeamentos afetivos, sociais e morais feitos pelos sujeitos.

Essas redes quando operam no atravessamento dos discursos do MADA e de feminismos contemporâneos ampliam espaços de produção de cidadania afetiva (Irvine, 2007) no conflituoso processo de cidadanização de diferentes sujeitos sociais, cuja identidade se articula na linguagem do gênero, da sexualidade e da orientação sexual (Carrara, 2015Carrara, Sérgio. Moralidades, racionalidades e políticas sexuais no Brasil contemporâneo. Mana 21(2), Rio de Janeiro, 2015, pp.323-345.). A gramática emotiva do MADA oferece repertórios relevantes no engajamento moral, social e político “na luta contra o machismo”, e é incorporado como “programa feminista que nos ajuda a ver o mundo de maneira diferente”. Por outro lado, a gramática política dos feminismos incide em ansiedades e medos difusos, transformando-os em indignação, direcionando-os a políticas concretas, e tecendo uma trama moral, cognitiva e emocional inspiradora da ação política (Goodwin et.al, 2001; Zilli, 2014Zilli, Bruno. Narrativas biográficas de engajamento em Direitos Sexuais. Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, Natal/RN, 2014.), e bastante útil como forma de comunicação social entre públicos múltiplos.

Considerações Finais

Neste texto, explorei o amor e as experiências de sofrimento atreladas a ele, primeiramente, como categorias inseridas na moralidade produzida entre grupos anônimos. Revisitei parte do material etnográfico de minha pesquisa de doutorado, buscando demonstrar como retóricas do controle emocional tinham um caráter pedagógico e eram produzidas em meio à coexistência de diferentes dinâmicas de gênero. A primeira situava os sujeitos em discursos de gênero de modo processual, mutável e historicamente variável. A outra enfatizava a natureza oposicional e exclusiva das categorias de “homem” e “mulher”, cuja dinâmica organizava, hierarquicamente, atributos ligados à masculinidade e a feminilidade. Nesta discussão, busquei mostrar a complexidade dos usos de padrões de aproximação e distanciamentos de sujeitos no âmbito do repertório amoroso, evitando encontrar diferenças sistemáticas entre diferentes posições de sujeito, marcadas por gênero. No âmbito dessas dinâmicas, mulheres produziam uma pessoalização/personalização da experiência amorosa, criando uma reputação ligada à habilidade de lidar com os temas amorosos, produzindo repertórios estratégicos e cursos de ação nesse contexto, que no encontro com outras discursividades criaram compromissos inesperados.

Em seguida, tomei o repertório da experiência do amor e do sofrimento amoroso como sistemas de comunicação entre o âmbito de culturas terapêuticas e redes feministas digitais. A interpenetração desses discursos também produz instâncias pedagógicas e efeitos que interpelam os dois âmbitos produzindo mudanças em ambos, desfazendo a ideia de que a cultura terapêutica do MADA e feminismos seriam, por princípio, discursos concorrentes, embora isso não apague contenciosos que poderíamos derivar desse campo.

Situando os feminismos contemporâneos no contexto brasileiro em um cenário de transformações, chamei a atenção para como a internet é um campo importante de atuação e aparece como instância pedagógica de sensibilidades em relação a ideários feministas. Comentei que as redes político-comunicacionais feministas na internet, quando atravessadas por discursos da cultura terapêutica, ampliam espaços de cidadania afetiva, no processo de cidadanização de diferentes sujeitos sociais, no marco da linguagem do gênero, da diversidade e da orientação sexual.

Ao mesmo tempo em que esse processo possibilita uma forma de comunicação social entre diferentes públicos e instâncias42 42 Outros trabalhos e reflexões também têm se debruçado sobre tais comunicações e instâncias e seus diferentes efeitos, principalmente, no campo de proteção social e combate à violência. Por exemplo, Andrade (2014) explora a produção de discursos sobre violência doméstica/e de gênero no trânsito entre grupos MADA e aparatos institucionais, tais como centros de referência de combate a esse tipo de violência. Oliveira (2016) abordou etnograficamente um grupo reflexivo voltado para homens denunciados por crimes previstos na Lei Maria da Penha, e coordenado também por homens da ONG Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, em São Paulo/SP. Souza (2015) mostrou como a ação de equipes de profissionais em um serviço público de apoio a mulheres vítimas de violência em São Paulo estava impregnada por noções advindas do grupo MADA. Segundo a autora, a psicóloga técnica da equipe sempre fazia referência aos grupos anônimos, por exemplo, sugerindo que, por ocasião de suas férias, as usuárias participantes dos grupos em funcionamento no serviço fizessem “reposição” dos dias perdidos por meio de visitas a reuniões do MADA e dos Neuróticos Anônimos. E, finalmente, as reflexões de Vianna (2013) sobre a semelhança da dimensão pedagógica entre grupos anônimos e aqueles gerados da relação entre aparatos institucionais variados, mobilizações políticas e estratégias de coletivização, que com frequência têm o Estado como mediador. , seus efeitos estão situados em um campo aberto que pode dar novos contornos às dinâmicas de produção da “autenticidade da experiência subjetiva e/ou pessoal” no campo de reivindicações sociais por direitos e na atuação política43 43 Brah (2006) e Parmar (2012) refletindo sobre o movimento/feminismo negro britânico empregaram as expressões “autenticidade da experiência pessoal” e “experiências subjetivas autênticas”, respectivamente, para discutirem como a ideia de opressões múltiplas passou a ser vista não como articulação, mas sim, de maneira linear, de modo que quanto mais opressões um sujeito pudesse listar, maior sua reivindicação para ocupar uma posição moral mais elevada. A releitura da atuação política em termos identidades subjetivas compartilhadas em contextos de opressão produzia uma hierarquia de opressões que por um lado enfatizava a acumulação de uma coleção de identidades oprimidas desviando o olhar para propostas que realmente contribuíssem na direção da mudança social. Nas palavras de Brah: “Declarações farisaicas de correção política passaram a substituir a análise política” (Brah, 2006:349). , abrindo novas agendas de reflexão quanto as (im) possibilidades em termos de ação política, decorrentes da multiplicação de sujeitos e de seus estados emocionados.

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  • 1
    Em A Descoberta do Mundo – Crônicas, livro no qual são reunidas crônicas, pequenas novelas, contos, pensamentos e anotações da autora publicadas no Jornal do Brasil, entre 1967 e 1973. L de A faz menção a um (ou uma) leitor/a com quem Lispector dialoga nessa crônica.
  • 2
    Em Breaking Bread (1991), traduzido pela Revista Estudos Feministas com o título Intelectuais Negras em 1995.
  • 3
    Pesquisa na qual tratei da emergência das noções de vício em sexo e amor, a partir de grupos anônimos de ajuda mútua, convenções médicas e mecanismos de popularização dessas categorias (Ferreira, 2012Ferreira, Carolina Branco de Castro. Desejos Regulados: grupos de ajuda mútua, éticas afetivo-sexuais e produção de saberes. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), IFCH Unicamp, Campinas, 2012.).
  • 4
    No âmbito do debate e prática feministas, narrativas de experiências de vida, depoimentos/testemunhos, escrita de si e técnicas intimistas (tais como as empregadas em grupos de autoconsciência feministas, nos quais participavam apenas mulheres nas décadas de 60 e 70) foram muito comuns para narrar práticas ativistas, produzir marcos teórico-metodológicos, marcar preocupações de determinados períodos ou momentos e produzir memória. Uma relação possível seria entre o MADA e esses recursos utilizados no campo feminista, a despeito das distintas finalidades sobre a qual operam a convenção do relato pessoal e, consequentemente, as diferenças de efeitos que produz. Para ver uma pesquisa sobre o MADA, que produz esses contrapontos, ver Procópio, 2007Procópio, Adélia de Souza. Quando amar é sofrer: um estudo dos discursos sobre gênero e afetividade das Mulheres Que Amam Demais. Dissertação (Mestrado em Sociologia), Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2007..
  • 5
    Lola é professora de literatura na Universidade Federal do Ceará e, desde 2008, mantém o blog Escreva Lola Escreva, que veicula opiniões críticas sobre a representação das mulheres na mídia, apoia campanhas para a legalização do aborto e contra violência de gênero. O blog recebe mais de 260 mil visitas mês (Época, fevereiro de 2014). Desde 2014, ela tem sido alvo de campanhas de difamação digital, quando foi criado em seu nome um site que pregava discursos de ódio. Ela também tem recebido ameaças de morte e estupro devido ao alcance de seu ativismo feminista.
  • 6
    Agradeço a Adriana Vianna por ter chamado minha atenção para esse material.
  • 7
    Lutz e Abu-Lughod (2008)Abu-Lughod, Lila. Shifting politics in Bedoin love poetry. In: Lutz, Catherine; Abu-Lughold, Lila. Language and the Politics of Emotion. Cambridge University Press, 2008, pp.24-45. em mapeamento sobre a antropologia das emoções no contexto estadunidense convencionaram chamar essa proposta de “contextualismo”. Segunda elas, o tema do controle emocional deve ser pensado a partir da proposta foucaultiana de produção de discursos, ou seja, como uma fala que mantém com a realidade uma relação não de referência, mas sim de formação. Segundo as autoras, o discurso sobre o controle emocional encontra um paralelo nos discursos de controle sobre a sexualidade. Essa retórica do controle requer uma essência psico-física que é manipulada e dirige-se a afastar a natureza socialmente construída da ideia de emoções (Lutz, 2008Lutz, Catherine. Engendered emotion: gender, power, and the rhetoric of emotional control in American discourse. In: Lutz, Catherine; Abu-Lughold, Lila (orgs.) Language and the Politics of Emotion. Cambridge University Press, 2008, pp.69-91.). No entanto, de acordo com essa visão, as emoções também não seriam apenas um constructo histórico-cultural, sendo mais bem definida como algo que existe somente em contexto, emergindo da relação entre os interlocutores e sua referência (Rezende e Coelho, 2010).
  • 8
    Trabalho com o conceito de socialidade inserido nas linhas de pensamento que denotam e ressaltam a importância de prestar atenção na produção e na manutenção de relações, situando-as no âmbito de dinâmicas de processos sociais, nos quais qualquer sujeito está, invariavelmente, engajado, mais do que em conjuntos de regras, costumes ou estruturas que existem como sistemas independentes das pessoas que são socializadas. Para esse argumento, trata-se de apreender, concomitantemente, pessoas como contendo o potencial para as relações, incorporadas em uma matriz de relações com os outros. Nesse sentido, os sujeitos estão em um constante tornar-se através das relações, que são forjadas e reforjadas o tempo todo, sem relegar as pessoas e as relações à um domínio de abstração reificada.
  • 9
    Refiro-me ao meu trabalho de mestrado (Ferreira, 2006Ferreira, Carolina Branco de Castro. Mulheres em Movimento: trajetórias de mulheres HIV+ no movimento político de HIV/aids do estado do Paraná. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais), Universidade Estadual de Londrina, 2006.) que tratou de trajetórias de mulheres heterossexuais soropositivas que atuavam em meio à militância política HIV+. Todas as mulheres que entrevistei contraíram o vírus de homens com os quais mantiveram relações estáveis (heterossexuais e monogâmicas), referidas como casamento ou namoro. Na época da pesquisa, algumas não estavam mais casadas nem namoravam o mesmo homem. No entanto, nenhum casamento ou namoro foi rompido em consequência do HIV e de sua descoberta. Nessas narrativas havia certa “legitimidade” atribuída ao fato de o marido, namorado e/ou companheiro as terem infectado. Essa “legitimidade” era expressa nos relatos quando, em um tempo narrativo, remetiam-se ao período de suas vidas em que “não sabiam da aids”, “não tinham informações”, e sentiam-se protegidas por serem casadas. A entrada dessas mulheres em ONGs e redes ativistas abria um repertório político para elas por meio de políticas emocionais, nas quais sentimentos de “amor”, “confiança” e “paixão” produziam um jogo entre conhecimento e ativismo.
  • 10
    Sobre essas categorias, ver Neves (2004)Neves, Delma Peçanha. Alcoolismo: Acusação ou Diagnóstico? Caderno de Saúde Pública vol.20, nº 1, Rio de Janeiro, jan/fev. 2004, pp.7-36.; Campos (2005)Campos, Edemilson Antunes de. Alcoolismo, doença e pessoa: uma etnografia da associação de ex-bebedores Alcoólicos Anônimos. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2005.; Ferreira (2012)Ferreira, Carolina Branco de Castro. Desejos Regulados: grupos de ajuda mútua, éticas afetivo-sexuais e produção de saberes. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), IFCH Unicamp, Campinas, 2012..
  • 11
    Os modos de organização dos grupos dispensam a presença de especialistas, tais como psicólogos/as, médicos/as, etc. Além disso, tais grupos se autossustentam a partir da contribuição dos participantes de qualquer valor em dinheiro, têm modo específico de gestão de informações sobre os/as frequentadores/as, nativamente conhecido como anonimato, e noções do sagrado veiculadas pelas ideias de Poder Superior e consciência coletiva. Para ver mais sobre as práticas ritualizadas pelas quais os grupos operam e seus modos de funcionamento, ver Ferreira (2012)Ferreira, Carolina Branco de Castro. Desejos Regulados: grupos de ajuda mútua, éticas afetivo-sexuais e produção de saberes. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), IFCH Unicamp, Campinas, 2012..
  • 12
    A inspiração do argumento vem da leitura de Cavalcanti (2007)Cavalcanti, Maria Laura Viveiros de Castro. Drama social: notas sobre um tema de Victor Turner. Cadernos de Campo, nº16, São Paulo, 2007, pp.127-137. da obra Cisma e Continuidade, de Turner (1968). Embora seja herdeiro das influências teórico-metodológicas da Escola de Manchester, a obra deste autor apresenta heterodoxias, principalmente na compreensão da articulação entre processo e estrutura social, levando adiante a ideia de que a unidade social não se faz apesar dos conflitos, mas por meio deles. A noção de drama social elaborada por Turner permite relacionar compreensão sociológica com uma visão da experiência social como experiência de subjetivação realizada por meio de aprendizado, manuseio e atuação dos símbolos. Esse conceito é cunhado pelo autor para explicar o sentido de pertencimento a um grupo social, no caso os Ndembu, que baseia-se na produção continua de uma “comunidade de sofrimento”, na qual tensões e conflitos se expressam e se resolvem em ritos de cura e aflição. O desenrolar desses ritos não revelaria apenas os pontos de tensão da estrutura social, mas constituiria um espaço de reflexão, análise, autoanálise e de transformação conceitual e interior da pessoa Ndembu em seus relacionamentos.
  • 13
    Na pesquisa entre os grupos anônimos, a “comunidade de sofredores” produzia uma noção de igualdade no âmbito das práticas ritualizadas nos grupos, que podia ser traduzida na afirmação “aqui somos todos iguais, independente de classe, raça, credo ou religião”. No entanto, diversas diferenças eram acionadas pelos frequentadores nos deslocamentos urbano-espaciais entre os grupos, bem como na relação entre práticas sociais e produção das noções de adicções e vícios.
  • 14
    Agradeço a Adriana Vianna por ter chamado minha atenção para esse termo durante minha defesa de doutorado.
  • 15
    Penso na noção de ethos como empregada por Gilberto Velho (1981)Velho, Gilberto. Individualismo e cultura. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. em sua crítica a Geertz. Este último afirma que visão de mundo se referiria a um quadro cognitivo, enquanto ethos estaria associado a estilos de vida. Velho problematiza essa divisão ao considerar que um sistema cognitivo é indissociável de um sistema de crenças, o qual implica emoção e sentimento, produzindo um vínculo indissolúvel entre conhecimento e afetividade. Essa divisão entre ethos e visão de mundo, relativizada na reflexão de Velho, acompanhou sua produção antropológica, uma vez que era importante compreender como se construíam valores e moralidades no âmbito de relacionamentos entre grupos sociais os mais diversos no espaço da cidade e, ao mesmo tempo, como isso relacionava-se aos estilos de vida, a práticas e expressões de grupos no espaço urbano compartilhado. Agradeço a Isadora Lins França e Maria Elvira Díaz-Benitez por terem chamado minha atenção para isso.
  • 16
    Carrara (2015)Carrara, Sérgio. Moralidades, racionalidades e políticas sexuais no Brasil contemporâneo. Mana 21(2), Rio de Janeiro, 2015, pp.323-345. buscando entender as mudanças no regime secular da sexualidade aponta para como tais mudanças se deslocaram de indivíduos ou grupos considerados “não reprodutivos” ou aqueles que exerciam sua sexualidade fora das “paredes da heterossexualidade” para outros focos, tais como: aqueles/as que por dificuldades orgânicas ou psíquicas, teriam dificuldades de reconhecer seus próprios desejos, não conseguindo extrair do sexo um prazer satisfatório; os/as que não teriam autocontrole suficiente diante do próprio desejo sexual, colocando a integridade de si e de outros em risco; e, finalmente, aqueles/as que, segundo novos critérios, sentiriam desejos indesejáveis, principalmente, voltados para sujeitos cujo pleno consentimento não se pode assegurar.
  • 17
    Para a autora, o discurso terapêutico, entendido como uma “estrutura cultural contagiosa” é uma narrativa bastante convincente tanto para homens como para mulheres porque se apoia no ideal tradicionalmente masculino da confiança em si mesmo colocado, contemporaneamente, em primeiro plano na vida emocional, o que permitiria o manejo de si tanto na esfera pública quanto na privada. Ainda segundo ela, as competências emocionais criadas em meio à cultura terapêutica contemporânea produzem formas de distinção social. A autora afirma que tais dinâmicas produzem um jogo entre velhas e novas masculinidades criadoras de hierarquias emocionais. Tais hierarquias emocionais, para Illouz (2010)Illouz, Eva. La salvación del alma moderna: terapia, emociones y la cultura de la autoayuda. Buenos Aires, Katz Editores, 2010., são estratificadas por classe social, assim, sujeitos de classe média e média/alta teriam mais recursos para alcançá-las em relação ao que ela chama de classes trabalhadoras. Nesse âmbito, a disposição de uma conduta virtuosa seria a de que mulheres femininas estão no nível mais alto, seguidos dos homens femininos que, por sua vez, superariam mulheres masculinas. Embora os apontamentos de Ilouz sejam inspiradores, a pesquisa de campo apontou como cada vez mais pessoas das camadas média/média e média/baixa procuravam esses grupos para tratar de seus estados emocionais e afetivo-sexuais, além de frequentarem terapias individuais.
  • 18
    Nando, 46 anos, “branco”, solteiro, segundo grau completo, vendedor.
  • 19
    Cindy, 40 anos, professora de inglês, na época morava sozinha nos fundos da casa de seus pais situada na região metropolitana de São Paulo, definia-se como heterossexual e morena clara, frequentadora dos grupos Dependentes de Amor e Sexo Anônimos (DASA), Mulheres que Amam Demais (MADA) e Neuróticos Anônimos (N.A.).
  • 20
    Ao longo do texto, o que chamo de elementos leigos está ligado a sistemas de produção de conhecimento, principalmente, no universo dos grupos anônimos. Compõem esse contexto as experiências e “verdades” emocionadas dos sujeitos, bem como a (re)apropriação de livros de autoajuda e seu longo e complexo processo de produção, divulgação e consumo. Como “conhecimentos especialistas” me refiro a sistemas de conhecimento tidos, tradicionalmente, como científicos. No entanto, em outros momentos (Ferreira, 2012Ferreira, Carolina Branco de Castro. Desejos Regulados: grupos de ajuda mútua, éticas afetivo-sexuais e produção de saberes. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), IFCH Unicamp, Campinas, 2012., 2013Ferreira, Carolina Branco de Castro. A emergência da adicção sexual, suas apropriações e as relações com a produção de campos profissionais. Sexualidad, Salud y Sociedad – Revista Latinoamericana, Rio de Janeiro, 2013, pp.284-318. e 2014) mostrei como a separação desses âmbitos é arbitrária no contexto da emergência das categorias de vício em sexo e amor e como, entre elas, mais do que diferenças, há coprodução, tendo nos sistemas leigos uma fonte estruturadora.
  • 21
    A noção de codependência começava a surgir, mas ainda não com esse nome, em 1951, no grupo de ajuda mútua anônimo para Familiares de Alcoólatras (Al-Anon). O grupo foi criado em Nova York por pessoas que “tiveram suas vidas prejudicadas indiretamente pelo alcoolismo”. A maioria delas eram esposas de homens considerados alcoólatras.
  • 22
    Segundo Russo (2004)Russo, Jane. Do desvio ao transtorno: a medicalização da sexualidade na nosografia psiquiátrica contemporânea. In: Piscitelli, Adriana; Gregori, Maria Filomena; Carrara, Sérgio (org.). Sexualidade e Saberes: Convenções e Fronteiras. Rio de Janeiro, Garamond, 2004, pp.97-109., a terceira edição do Diagnostic and Statistic Manual of Mental Disorders (DSM III), publicado em 1980 pela American Psychiatric Association, trazia mudanças de terminologias que atingiram em especial os supostos transtornos/desvios relacionados a sexualidade e gênero. Segundo a autora, a análise das versões desse documento revela o aumento significativo nos números dessas desordens e o modo como elas se transformaram em novos tipos de desvios que fazem parte do repertório de diagnósticos. Russo caracteriza esse processo como uma “virada biológica” que passou a operar em protocolos que orientam a prática psiquiátrica, diferenciando-se de versões anteriores desse documento, no qual se observava uma predominância da psicanálise na interpretação de perturbações mentais, o que implicava uma predominância da “dimensão moral do sujeito” sobre a dimensão física. Esse cenário repercute no debate sobre a adicção sexual. Nesse âmbito, encontramos teorias centradas no cérebro que propõem um número finito de possibilidades sexuais polimorfas desde a infância e, como consequência, os comportamentos seriam determinados de maneira sincrônica pela mente e pelo cérebro. Assim, a noção de pré-disposição a determinados comportamentos ganha terreno e legitimidade. No entanto, as explicações nas quais se articulam a dimensão psicológica com a física são as mais comuns e mais aceitas (principalmente, no universo dos grupos anônimos). Assim, de acordo com explicações leigas e especialistas, grande parte das causas das supostas desordens sexuais teriam origem em lares disfuncionais, baixa autoestima e sentimentos de falta de valor pessoal. Além disso, com muita frequência o comportamento sexual adicto aparece como consequência de uma vítima produzida, anteriormente, pelo abuso e suas diversas ramificações: sexual, física e emocional.
  • 23
    Para uma análise mais ampliada sobre os deslocamentos da noção de adicto sexual considerando dinâmicas processuais das relações de gênero, que relaciona noções como ninfomania e satiríase, conferir: Groneman (2001)Groneman, Carol. Ninfomania: história. Rio de Janeiro, Imago Ed., 2001. e Ferreira (2012Ferreira, Carolina Branco de Castro. Desejos Regulados: grupos de ajuda mútua, éticas afetivo-sexuais e produção de saberes. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), IFCH Unicamp, Campinas, 2012.,2013).
  • 24
    De modo geral, os relacionamentos afetivo-sexuais dentro de um grupo, ou mesmo no âmbito dos fluxos entre os grupos, deveriam ser evitados por conta dos cruzamentos de adicções. No entanto, caso acontecesse, estratégias e negociações eram adotadas quando um homem e uma mulher passavam a se relacionar. Era praticamente uma unanimidade entre os participantes que namoram ou iniciam uma relação que ambos devessem permanecer nos grupos. Na visão deles/as, essa era uma forma de exercer e praticar pedagogicamente éticas e competências afetivo-sexuais com a finalidade de que o relacionamento desse certo. Nem sempre o casal frequentava o mesmo grupo, inclusive passar a ir a irmandades diferentes podia ser uma das decisões que a díade tomava justamente porque começaram a se relacionar. No entanto, quando acontecia de se encontrarem no mesmo local, irem juntos à mesma reunião ou ainda permanecerem em um grupo em comum, uma das estratégias adotadas era sair da sala para que o/a outro/a pudesse partilhar. A rede/oportunidade constituída entre os grupos para paqueras, namoros e casamentos também pode ser pensada como um dispositivo de produção, de exercício e de regulação das heterossexualidades, que no limite, se organizava a partir de um mercado matrimonial que se criava nesse contexto.
  • 25
    Condutas lidas como não seguindo a prática, o exercício e a pedagogia proposta pelos grupos eram muito mal vistas, inclusive gerando noções acusatórias como a de pegador, normalmente dirigidas aos homens que supostamente iriam aos grupos com o intuito de pegar mulheres, sem se comprometerem com os princípios da recuperação. No âmbito dessa espécie de mercado matrimonial que se criava entre os grupos também circulava a noção de mulher fácil, como uma espécie de imagem pública de um tipo feminino produzido a partir das vestimentas e do exercício da sexualidade. Esta figura aparecia entre mulheres frequentadoras dos grupos como critério de avaliação de suas próprias condutas, enquanto que o uso dessa ideia por parte homens se dava no contexto de exercício de seus vícios, e nunca como avaliação das companheiras nos grupos, fossem elas namoradas/esposas ou não.
  • 26
    Em outro momento (Ferreira, 2014) explorei os mapas de sentidos e tensões em meio a narrativas de homens membros de grupos anônimos, levando em consideração como a frequência no mercado sexual é tomada como objeto reflexivo, produzindo estilos de moderação e rigor referentes aos usos, demandas e desejos nesse âmbito.
  • 27
    Ela é japonesa, na época tinha por volta de 40 anos, três filhos, foi casada e dizia que nesse relacionamento “perdeu tudo que tinha”, e não podia sequer se aproximar de seu ex-marido, pois essa aproximação fazia com que ela se tornasse “doente” de novo.
  • 28
    Tais características podem ser encontradas no livro de Robin Norwood, nas webs dos grupos ou nos folhetos distribuídos pelo MADA. No entanto, cito algumas relacionadas com o tema proposto no texto Características de uma mulher que ama demais: 1) Com medo de ser abandonada, faz qualquer coisa para impedir o fim do relacionamento; 2) Está disposta a arcar com mais de 50% da responsabilidade, da culpa e das falhas em qualquer relacionamento; 3) Sua autoestima está criticamente baixa, e no fundo não acredita que mereça ser feliz. Características de uma mulher que se recuperou de amar demais: 1) Ela se legitima, em vez de procurar um relacionamento que dê a ela um senso de autovalor; 2) Ela pergunta: “Esse relacionamento é bom para mim?” 3) Quando um relacionamento é destrutivo, ela é capaz de abandoná-lo sem experimentar uma depressão mutiladora. Possui um círculo de amigos que a apoiam e tem interesses saudáveis, que a ajudam a superar crises (Fonte: Folhetos distribuídos nos Grupos MADA-SP).
  • 29
    Embora não seja um tema novo relativo à natureza das emoções, no final da primeira década dos anos 2000, neurocientistas europeus e estadunidenses afirmam que o amor é resultado de estímulos fisiológicos e emerge da química cerebral. O sofrimento amoroso é ligado a comportamentos compulsivo-obsessivos que, segundo eles, poderiam ser amenizados pelo uso de fármacos e de manipulação da memória por meio de técnicas adotadas no tratamento de stress pós-traumático. Embora seja um tema controverso na comunidade científica, alguns defendem que tais fármacos e técnicas poderiam ser usados em pessoas que estão em relacionamentos violentos, mas não conseguem desfazer-se do sentimento de vínculo.
  • 30
    Inspiração em Gregori (2010)Gregori, Maria Filomena. Prazeres Perigosos. Erotismo, Gênero e Limites da Sexualidade. IFCH/Unicamp. Tese (Livre-docência) Departamento de Antropologia, IFCH, Unicamp, Campinas, 2010..
  • 31
    Segundo Illouz (2012)Illouz, Eva. Por qué duele el amor: una explicación sociológica. Buenos Aires, Katz Editores, 2012., desde a “segunda onda” do feminismo, o amor tem sido pensado como elemento que compõem sistemas de opressão às mulheres. As leituras feministas mostraram de forma brilhante como as lutas sobre o poder residiam no centro do amor e da sexualidade, abrindo caminhos, por exemplo, para tomar o pessoal como político. De acordo com ela, a leitura das feministas radicais (a autora cita Shulamith Firestone e Ti-Grace Atkinson) considerou que os homens levavam sempre vantagem nessas lutas, porque o poder econômico convergia com o poder sexual. Em última instância, o poder masculino seria tanto, que hierarquias e desigualdades de gênero se davam e se reproduziam na manifestação e na experiência dos sentimentos românticos que, por sua vez, sustentavam outras diferenças de poder mais amplas em matéria econômica e política. No entanto, segundo a autora, a suposição sobre a primazia do poder constitui uma falha nessa corrente da crítica feminista sobre o amor. Durante o período em que o patriarcado desempenhava um papel muito mais poderoso do que atualmente, o amor cumpria uma função muito menos significativa nas subjetividades femininas e masculinas. Na argumentação de Illouz (2012)Illouz, Eva. Por qué duele el amor: una explicación sociológica. Buenos Aires, Katz Editores, 2012., a proeminência cultural do amor parece vincular-se com a diminuição do poder masculino dentro da família e com as transformações nas relações a partir de noções como as de igualdade e simetria de gênero. De acordo com ela, quando a teoria feminista reduz o amor feminino (e o desejo de amar) a um mero elemento do patriarcado, a teoria feminista não dá conta dos motivos pelos quais o amor segue tendo relevância para as mulheres e, acrescenta, também para os homens.
  • 32
    A inspiração do argumento vem das pesquisas de Abu-Lughod (2008)Abu-Lughod, Lila. Shifting politics in Bedoin love poetry. In: Lutz, Catherine; Abu-Lughold, Lila. Language and the Politics of Emotion. Cambridge University Press, 2008, pp.24-45., Piscitelli (2011)Piscitelli, Adriana. Amor, apego e interesse: trocas sexuais, econômicas e afetivas em cenários transnacionais. In: Piscitelli, Adriana; Assis, Glaucia Oliveira de; Olivar, José Miguel Nieto (org.). Gênero, sexo, amor e dinheiro: mobilidades transnacionais envolvendo o Brasil. Coleção Encontros. Campinas, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2011, pp.537-582. e Padovanni (2015). As autoras tomam a experiência amorosa como repertórios que abrem cursos de ação no âmbito das poesias amorosas, ao tornarem-se discursos de desafio e resistência aos ideais da vida social beduína, no âmbito dos mercados transnacionais do sexo e matrimoniais nos trânsitos sul-norte globais de brasileiras, e no âmbito de relacionamentos afetivos e sexuais tecidos a partir das penitenciárias femininas das cidades de São Paulo e Barcelona, respectivamente.
  • 33
    Todos os trechos e comentários são retirados do blog Lola escreva Lola no período de julho a outubro do ano de 2013. Disponível em: http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br/2013/10/guest-post-nenhuma-de-nos-e-todas.html
  • 34
    Durante o trabalho de campo, entre os grupos anônimos a maioria dos/as participantes tomou conhecimento dos grupos a partir do contato com diferentes meios de comunicação. O mais citado era a internet, seguido de novelas e reportagens em revistas e menções a pessoas famosas (tais como atores de cinema e tevê) que já haviam se identificado publicamente com o tema da adicção, principalmente ao sexo. Entre os grupos vigorava uma política de comunicação com a mídia pautada na ideia êmica de atração ao invés da “promoção”. Nesse sentido, havia manuais e comissões que elaboravam sugestões de como os participantes deveriam agir em caso de entrevistas, programas de televisão, ou em qualquer situação que ele/a assumisse a identidade de membro do grupo diante de um veículo de comunicação, com a finalidade de não estigmatizar os/as frequentadores/as. Mesmo assim, a relação entre grupos e mídias era permeada de tensões e co-produções, uma vez que diferentes meios de comunicação exerciam um papel de mediadores culturais na forma como os grupos se preparavam para “falar com as mídias” e como eles recebiam o que era apropriado pelas mídias sobre seus “desajustes”. Sobre esse tema também, ver Pardo (2012)Pardo, Astrid Johana. Quando amar é sofrer: Um estudo etnográfico no grupo de ajuda mutua MADA. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2012..
  • 35
    Não é possível informar características dos sujeitos que fizeram os comentários, pois a maioria era de anônimos, ou quando muito possuíam somente algum nome ou pseudônimo. É possível dizer que a maior parte eram comentários de mulheres, uma vez que em muitos deles também havia relatos de experiências pessoais. No conjunto de mais de 50 comentários, havia dois trollers afeministas. O troll é um indivíduo que age online perturbando (“trollando”) intencionalmente ou não, espaços de sociabilidade virtual, como fóruns, ou atacando diretamente indivíduos, através de comentários que criam discórdia (Zilli, 2015Zilli, Bruno. Misoginia na Rede. Notícias em Destaque. Centro Latino Americano em Sexualidade e Direitos Humanos, novembro de 2015 [http://www.clam.org.br/noticias-clam/conteudo.asp?cod=12310].
    http://www.clam.org.br/noticias-clam/con...
    ).
  • 36
    Gomes e Sorj (2014)Gomes, Carla; SORJ, Bila. Corpo, geração e identidade: a Marcha das vadias no Brasil. Revista Sociedade e Estado, vol. 29, nº 2, maio/agosto, 2014, pp.433-447. exploram contrastes e continuidades entre diferentes gerações de feministas no Brasil, por meio da analise da Marcha das Vadias. A partir de revisão bibliográfica, convencionam chamar como “anteriores” feminismos que aparecem em registros históricos sobre a composição social das feministas, desde o movimento das sufragettes até geração dos anos 1970, que teve presença marcante na luta pela democratização do país, na organização dos encontros nacionais feministas, na formação dos núcleos de estudos de gênero nas universidades e associações científicas e na institucionalização do feminismo no Estado.
  • 37
    Também permite pensar as (im)possibilidades de aproximação de Clarice Lispector e bell hooks.
  • 38
    Referências ligadas à autonomia sobre o corpo atrelada às reivindicações pela descriminalização do aborto, pelo planejamento familiar e pela saúde da mulher (Gomes e Sorj, 2014Gomes, Carla; SORJ, Bila. Corpo, geração e identidade: a Marcha das vadias no Brasil. Revista Sociedade e Estado, vol. 29, nº 2, maio/agosto, 2014, pp.433-447.). As autoras também apontam como entre os corpos do feminismo contemporâneo observa-se a presença significativa de jovens, com idades inferiores a vinte anos, produzindo um contraste com os corpos de gerações feministas das décadas de 1970 e 1980, período no qual muitas feministas haviam retornado de experiências no exílio, eram ou haviam sido casadas, já tinham experimentado a maternidade e já se encontravam inseridas no mercado de trabalho; nesse sentido, as reivindicações desse período refletiam o momento do ciclo de vida dessa geração (Gomes e Sorj, 2014Gomes, Carla; SORJ, Bila. Corpo, geração e identidade: a Marcha das vadias no Brasil. Revista Sociedade e Estado, vol. 29, nº 2, maio/agosto, 2014, pp.433-447.).
  • 39
    Na ampliação do repertório “nosso corpo nos pertence”, são exaltadas performances nas quais feminilidades e masculinidades se misturam (fuck gender), identidades híbridas (ao mesmo tempo masculinas e femininas) e androginia. São muitas as referências à política queer que coloca sob perspectiva a “normalidade do normal”. A plasticidade e a performatividade referem-se a corpos, mas também à relação entre corpos e condutas. Por exemplo, alguns coletivos de Marcha das Vadias no Brasil propunham a vivência Vadia para questionar a existência de normas que qualificam e hierarquizam comportamentos femininos (ver Tavares, 2014Tavares, Aline. A organização da zona: notas etnográficas sobre as relações de poder na zona de prostituição de Campinas – Jardim Itatinga. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), Unicamp, Campinas, 2014.). Além disso, na ampliação desse repertório relacionado ao corpo, a noção de capacitismo, termo que englobaria dinâmicas de exclusão e produção de desigualdades ligadas aos impedimentos corporais diante de concepções que relacionam o corpo à aptidão, disponibilidade para o trabalho, e a certo ideal de beleza, tem aparecido frequentemente como modo de problematizar uma suposta condição normal dos corpos e denotar a exclusão sistemática de pessoas com deficiência.
  • 40
    No espaço público da rua, com a ampliação das experimentações do corpo, emerge o corpo-bandeira com importante e duplo papel, porque é ao mesmo tempo objeto de reivindicação da autonomia dos sujeitos sobre seus corpos e também principal instrumento de protesto e suporte de comunicação (Gomes e Sorj, 2014Gomes, Carla; SORJ, Bila. Corpo, geração e identidade: a Marcha das vadias no Brasil. Revista Sociedade e Estado, vol. 29, nº 2, maio/agosto, 2014, pp.433-447.; Ferreira, 2013Ferreira, Carolina Branco de Castro. A emergência da adicção sexual, suas apropriações e as relações com a produção de campos profissionais. Sexualidad, Salud y Sociedad – Revista Latinoamericana, Rio de Janeiro, 2013, pp.284-318.). No espaço digital, blogs, canais do youtube, perfis em redes sociais diversas, memes, compõem formas-corpo também como instrumentos de protesto, suporte de comunicação e produção de subjetividades e estéticas. Na produção e na operacionalização dessas forma-corpo, parece que idade e a escolha de qual tipo de tecnologia usar são relevantes, na medida que informam e situam os sujeitos em diferentes redes de sociabilidade na internet e intenções de que público se quer atingir.
  • 41
    Sobre o tema, ver Name e Zanetti (2013)Name, Leonardo; Zanetti, Julia P. Meu corpo, minhas redes: a Marcha das Vadias do Rio de Janeiro. Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional, 15, 2013. Recife. Anais... Recife, ANPUR, 2013..
  • 42
    Outros trabalhos e reflexões também têm se debruçado sobre tais comunicações e instâncias e seus diferentes efeitos, principalmente, no campo de proteção social e combate à violência. Por exemplo, Andrade (2014)Andrade, Fabiana. Sofrimento e afeto: narrativas sobre o cotidiano de mulheres vítimas de violência doméstica e familiar. Exame de Qualificação em Curso de Doutorado em Antropologia Social, Universidade de São Paulo (USP), 2014. explora a produção de discursos sobre violência doméstica/e de gênero no trânsito entre grupos MADA e aparatos institucionais, tais como centros de referência de combate a esse tipo de violência. Oliveira (2016)Oliveira, Isabela Venturoza. “Homem é homem”: narrativas sobre o gênero e violência em um grupo reflexivo com homens denunciados por crimes da Lei Maria da Penha. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), Universidade de São Paulo, 2016. abordou etnograficamente um grupo reflexivo voltado para homens denunciados por crimes previstos na Lei Maria da Penha, e coordenado também por homens da ONG Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, em São Paulo/SP. Souza (2015)Souza, Bruna Mantese de. Mulheres de Fibra Narrativas e o ato de narrar entre usuárias e trabalhadoras de um serviço de atenção a vítimas de violência na periferia de São Paulo. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), Unicamp, 2015. mostrou como a ação de equipes de profissionais em um serviço público de apoio a mulheres vítimas de violência em São Paulo estava impregnada por noções advindas do grupo MADA. Segundo a autora, a psicóloga técnica da equipe sempre fazia referência aos grupos anônimos, por exemplo, sugerindo que, por ocasião de suas férias, as usuárias participantes dos grupos em funcionamento no serviço fizessem “reposição” dos dias perdidos por meio de visitas a reuniões do MADA e dos Neuróticos Anônimos. E, finalmente, as reflexões de Vianna (2013)Vianna, Adriana. Introdução: fazendo e desfazendo inquietudes no mundo dos direitos. In: Vianna, Adriana (org.). O Fazer e o Desfazer dos Direitos: experiências etnográficas sobre política, administração e moralidades. Rio de Janeiro, E-papers, 2013, pp.15-35. sobre a semelhança da dimensão pedagógica entre grupos anônimos e aqueles gerados da relação entre aparatos institucionais variados, mobilizações políticas e estratégias de coletivização, que com frequência têm o Estado como mediador.
  • 43
    Brah (2006)Brah, Avtar. Diferença, diversidade, diferenciação. cadernos pagu (26), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu/Unicamp, janeiro-junho de 2006, pp.329-376. e Parmar (2012)Parmar, Pratibha. Feminismo negro: la política como articulación. In: Jabardo, Mercedes (ed.). Feminismos Negros. Una antologia. Madrid, Traficantes de sueños, 2012. refletindo sobre o movimento/feminismo negro britânico empregaram as expressões “autenticidade da experiência pessoal” e “experiências subjetivas autênticas”, respectivamente, para discutirem como a ideia de opressões múltiplas passou a ser vista não como articulação, mas sim, de maneira linear, de modo que quanto mais opressões um sujeito pudesse listar, maior sua reivindicação para ocupar uma posição moral mais elevada. A releitura da atuação política em termos identidades subjetivas compartilhadas em contextos de opressão produzia uma hierarquia de opressões que por um lado enfatizava a acumulação de uma coleção de identidades oprimidas desviando o olhar para propostas que realmente contribuíssem na direção da mudança social. Nas palavras de Brah: “Declarações farisaicas de correção política passaram a substituir a análise política” (Brah, 2006:349).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2016

Histórico

  • Recebido
    27 Fev 2016
  • Aceito
    22 Abr 2016
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