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Apresentação

A história das mulheres, as perspectivas analíticas de gênero bem como o estudo das identidades femininas constituem hoje, sem sombra de dúvida, um campo fértil e vigoroso de produções acadêmicas no âmbito dos estudos africanistas em geral e da História da África em particular. As pesquisas africanistas têm dado contribuições relevantes aos debates não apenas por incorporar descrições de novas realidades, mas também, como sugere Boris (2007)Boris, Eileen. Gender after Africa! In: Cole, Catherine M.; Manuh, Takyiwaa; Miescher, Stephan F. (ed.). Africa after Gender? Bloomington, Indiana University Press, 2007, pp.191-204., porque à luz de outras experiências históricas, têm proposto novos temas, enquadramentos e abordagens aos estudos feitos desde o Ocidente.

Os textos que compõe o dossiê “História das mulheres, gênero e identidades femininas na África Meridional” foram originalmente apresentados – na íntegra ou em parte – no Seminário Internacional “Cultura, Política e Trabalho na África Meridional”, realizado na Unicamp entre os dias 11 e 14 de maio de 2015.1 1 Os artigos de Eugénia Rodrigues e Raquel Gomes tiveram sua primeira versão apresentada em mesa e simpósio realizados durante o Seminário Internacional “Cultura, Política e Trabalho na África Meridional”. O artigo de Matheus Serva Pereira, embora não tenha sido apresentado na íntegra nesse evento, é uma continuidade do trabalho de investigação exposto pelo autor naquela ocasião. O seminário organizado pelo Centro de Pesquisa em História Social da Cultura (CECULT), da Universidade Estadual de Campinas, e o Harriet Tubman Institute, da York University, pretendeu estreitar laços acadêmicos entre as duas instituições, mas incluiu também pesquisadores de outras universidades e centros de pesquisa com os quais as duas equipes vêm trabalhando de forma sistemática. O tema proposto para este dossiê, além de ter sido abordado numa mesa redonda específica, tangenciou outras mesas e workshops realizados durante o evento. Os textos selecionados para esta publicação – um conjunto diverso em termos cronológicos e temáticos – refletem a centralidade e a pluralidade do tema na historiografia africanista contemporânea. Os artigos abarcam uma cronologia extensa, do século XVI ao XX, em dois países da África Meridional (Moçambique e África do Sul). A história das mulheres, as relações de gênero, bem como as experiências e condições femininas são abordadas por meio da análise do poder político das mulheres em Moçambique entre os séculos XVI e XVIII, da presença e de experiências das mulheres indígenas na cidade de Lourenço Marques sob o impacto do colonialismo e de uma narrativa fundadora da literatura sul-africana. Desse modo, duas historiadoras e um historiador, vinculados a universidades no Brasil e em Portugal, participam deste dossiê e oferecem leituras singulares dos temas acima apresentados, permitindo o reconhecimento dos diálogos e, sobretudo, das contribuições africanistas aos estudos sobre a história das mulheres e de gênero produzidas ou referenciadas em outros contextos geográficos.

O artigo de Eugénia Rodrigues se insere num conjunto mais amplo de investigações acadêmicas que tem dedicado particular atenção às mulheres enquanto atores sociais e políticos, enfatizando, sobretudo, a sua agência no período pré-colonial. Nos últimos anos, os estudos acadêmicos conseguiram avançar em relação a uma história das instituições e dos poderes políticos na África que reconhecia os homens como únicos atores e que, por conseguinte, tratava como excepcionais os casos em que mulheres exerceram alguma forma de autoridade pública. Entretanto, a maioria dos trabalhos que apresentou à história a importância política das mulheres que ocuparam posições de autoridade pública, como as chamadas “rainhas-mãe”, teve na África Ocidental seu principal campo de pesquisas. Desse modo, a investigação de Rodrigues é uma contribuição singular e exemplo da tendência mais recente que vem buscando descortinar a experiência das mulheres que possuíam autoridade política, entre os séculos XVI e XVIII, em diferentes contextos africanos, particularmente nas regiões que correspondem hoje, para além de Moçambique, aos territórios do Zimbábue, Zâmbia e Malauí. No artigo que integra este dossiê, a autora identifica mulheres desempenhando cargos em vários estados e sociedades africanas na região do Vale do Zambeze, sendo descritas nas fontes portuguesas e na tradição oral como imperatrizes, rainhas, princesas, fumu-akasi, mamwene, apwyamwene. Rodrigues chama atenção ainda para a importância desses antigos poderes e tradições políticas na constituição e no desenvolvimento dos prazos, instituição portuguesa que organizou a ocupação territorial no Vale do Zambeze na qual o poderio feminino, particularmente das “donas” africanas e mestiças, foi um marcador fundamental. As fontes escritas por europeus – memórias descritivas e correspondência entre as autoridades portuguesas em Moçambique e entre estas e as chefias africanas – e a literatura baseada em tradições orais são inquiridas pela autora à luz de uma abordagem atenta à historicidade dos papéis sociais no âmbito dos poderes exercidos por homens e mulheres.

Matheus Serva Pereira apresenta em seu artigo histórias e vivências das mulheres ditas “indígenas” na cidade de Lourenço Marques, no período de implantação e consolidação da presença colonial portuguesa no sul de Moçambique. Cidade concebida por um projeto colonial que pretendia criar uma urbe europeia em território africano, Lourenço Marques construiu para si uma memória e uma história que excluiu os moradores e trabalhadores africanos indígenas do cenário urbano. Pereira mostra, no entanto, que o projeto, alardeado e festejado pela propaganda oficial, não alcançou o sucesso pretendido. As várias medidas que impuseram restrições à presença dos africanos e negros em Lourenço Marques não foram capazes de inibir os esforços empreendidos por homens e mulheres de vivenciar e transformar o meio urbano de acordo com seus horizontes culturais e projetos pessoais. Esse universo complexo e múltiplo, como evidencia o autor, não cabia dentro da categoria jurídica imposta pelo colonialismo. O artigo explora de forma particular o afluxo de mulheres para Lourenço Marques, apresentando e analisando as novas e singulares formas de vida forjadas por aquelas que se viram forçadas a viver e conviver com os variados modelos de dominação masculina, o que incluía as recém-criadas instituições coloniais reguladoras da vida social. Por meio de fontes diversas como periódicos laurentinos, com destaque para a famosa imprensa dos assimilados; álbuns fotográficos e documentação administrativa variada, o autor nos aproxima da história de muitas mulheres. Utilizando particularmente os processos produzidos na Direção dos Serviços e Negócios Indígenas, o autor descreve os dramas e as iniciativas de Cotasse, Otasse ou Kotasse, acusada de feitiçaria e “causadora de distúrbios em um lar de origem europeia”, e também de Mitimbane ou Micuiche Alarge, acusada de fugir do poder do marido e do régulo para viver em Lourenço Marques.

No artigo de Raquel Gomes, o cenário é a África do Sul, um pouco antes do apartheid, mas já em pleno contexto de segregação. Gomes analisa o romance "Mhudi: An Epic of South African Native Life a Hundred Years Ago", publicado em 1930, por Sol Plaatje, um político, jornalista e literato sul-africano. No centro da narrativa de Plaatje identifica-se sua preocupação com a intensificação das políticas segregacionistas que intencionavam limitar o acesso dos nativos sul-africanos ao recém-instituído Estado nacional. Mhudi foi responsável por consolidar o pioneirismo de Plaatje em diversos aspectos da história sul-africana: o autor foi o primeiro sul-africano a publicar em inglês, sendo considerado um dos pais fundadores da literatura africana que surgia no início do século XX. A personagem principal dessa narrativa tão emblemática da composição do Estado-nação desejado por um dos principais líderes políticos da resistência africana é justamente uma mulher africana de origem Barolong. No desenrolar da narrativa, Mhudi é obrigada a abandonar as terras de seus ancestrais e sua vida cotidiana. Na jornada em busca de um novo espaço para se estabelecer, Mhudi constrói uma personalidade marcada pela resiliência e pela independência - sendo chamada de “o berço de sua raça”, símbolo de um novo começo para seu povo. Em um momento em que milhões de africanos eram diretamente afetados por leis como o Natives Land Act, de 1913, que destinava à população africana da União somente 7% do território nacional, Plaatje criava, na literatura, cenários possíveis de resistência e sobrevivência para aqueles que se viam subitamente privados de um dos referenciais primeiros da cultura africana: a terra. Desse modo, Sol Plaatje concentra o poder de sua narrativa na figura que, na África do Sul das primeiras décadas do século XX, era aquela que mais facilmente poderia ser imaginada sem voz no cenário político social: uma mulher negra.

O dossiê traz, assim, contribuições significativas e perspectivas diversas para os debates centrais que abarcam o amplo campo de estudos no qual se insere a história das mulheres, as abordagens de gênero e as identidades femininas na África Meridional.

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    Os artigos de Eugénia Rodrigues e Raquel Gomes tiveram sua primeira versão apresentada em mesa e simpósio realizados durante o Seminário Internacional “Cultura, Política e Trabalho na África Meridional”. O artigo de Matheus Serva Pereira, embora não tenha sido apresentado na íntegra nesse evento, é uma continuidade do trabalho de investigação exposto pelo autor naquela ocasião.

Referências bibliográficas

  • Boris, Eileen. Gender after Africa! In: Cole, Catherine M.; Manuh, Takyiwaa; Miescher, Stephan F. (ed.). Africa after Gender? Bloomington, Indiana University Press, 2007, pp.191-204.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017
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