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“Gênero”, em português

Connell, Raewyn; Pearse, Rebecca. Gênero: Uma perspectiva global. São Paulo: NVersos, 2015

A análise de gênero é um trabalho para muitas mãos. Requer a capacidade de escutar cuidadosamente. Dada a história de colonização e as enormes desigualdades do mundo contemporâneo, a solidariedade pode ser extraordinariamente difícil (...) É função da teoria pensar para além do que parece estar dado, cavar esses mitos e se digladiar com as desigualdades, para encontrar as bases efetivas da solidariedade, por mais provisórias que sejam

(Connell e Pearse, 2015)

Uma rápida pesquisa na internet comprova que Raewyn Connell não é uma autora desconhecida entre cientistas sociais e pesquisadores da área de humanidades no Brasil. Há publicações de entrevistas com a autora, assim como artigos seus em importantes periódicos do país, tanto na área de estudos de gênero quanto fora dela ( Adelman; Rial; Connell, 2013Adelman, M.; Rial, C. S. M.; Connell, R. Uma trajetória pessoal e acadêmica: Entrevista com Raewyn Connell. Revista Estudos Feministas , 21(1), 2013, pp.211–231. doi:10.1590/S0104-026X2013000100012
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; Connell, 2013Connell, R. Masculinidade corporativa e o contexto global: Um estudo de caso de dinâmica conservadora de gênero. cadernos pagu (40), Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2013, pp.322–344. doi:10.1590/S0104-83332013000100010
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; 2010Connell, R. Bons professores em um terreno perigoso: Rumo a uma nova visão da qualidade e do profissionalismo. Educação e Pesquisa , 36 (spe), 2010, pp.165–184. doi:10.1590/S1517-97022010000400013
https://doi.org/10.1590/S1517-9702201000...
; Connell; Maia, 2012Connell, R.; Maia, J. A iminente revolução na teoria social. Revista Brasileira de Ciências Sociais 27(80), 2012, pp.9–20. doi:10.1590/S0102-69092012000300001
https://doi.org/10.1590/S0102-6909201200...
; Connell; Messerschmidt, 2013Connell, R. W.; Messerschmidt, J. W. Masculinidade hegemônica: Repensando o conceito. Revista Estudos Feministas 21(1), 2013, pp.241–282. doi:10.1590/S0104-026X2013000100014
https://doi.org/10.1590/S0104-026X201300...
; Hamlin; Vandenberghe; Connell, 2013Connell, R. Masculinidade corporativa e o contexto global: Um estudo de caso de dinâmica conservadora de gênero. cadernos pagu (40), Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2013, pp.322–344. doi:10.1590/S0104-83332013000100010
https://doi.org/10.1590/S0104-8333201300...
). Seu trabalho tem estado presente no cenário brasileiro desde a década de 1990. No ano de 2011, a autora esteve presente no Encontro Anual da ANPOCS em uma conferência intitulada “ The Coming Revolution in Social Theory ” (Connell, 2011).

Mesmo assim, os leitores e leitoras daqui ainda não contavam com a possibilidade de consultar em sua língua materna quase nenhum trabalho mais denso, longo e encadeado da autora, que tivesse sido publicado na forma de livro. Enquanto editoras de países como China, Alemanha, França, Grécia, Itália, Japão, Coreia do Sul, Hungria, Eslovênia, Suécia e Turquia, entre outros, já haviam publicado pelo menos uma edição de pelo menos um de seus quase 20 livros, no Brasil até hoje apenas podíamos ler uma pequena parte de seu trabalho apresentado numa obra coletiva da área de educação ( Ashenden; Dowsett, Connell; Kessler, 1995Ashenden, D. J.; Dowsett, G. W.; Connell, R. W.; Kessler, S. (eds.). Estabelecendo a Diferença Escolas, Famílias e Divisão Social . São Paulo, Artmed, 1995. ). Suas elaborações mais recentes – e mais finas – sobre a teoria social como um todo e sobre o gênero, porém, vinham sendo deixadas de fora.

A publicação da versão brasileira da terceira edição de Gender – In world perspective , sob o título de Gênero: uma perspectiva global , vem portanto em boa hora. Com o desenvolvimento cada vez mais acelerado dos estudos de gênero no Brasil; com a disseminação de ideias feministas para além da militância tradicionalmente organizada em partidos e movimentos sociais (como é o caso de mobilizações em blogs e redes sociais); e com o acesso crescente da população ao ensino superior, o livro de Raewyn Connell e Rebecca Pearse provavelmente encontrará um público com sede de referências introdutórias gerais, que ao mesmo tempo compilem com algum detalhe e bastante acessibilidade os principais debates teóricos em torno das relações e práticas sociais que compreendemos hoje como pertencentes ao domínio do gênero. Essa é a sede que o livro em questão, com excelência, sacia.

Utilizando uma linguagem simples e direta, e trabalhando constantemente com a mediação de exemplos concretos bastante acessíveis, as autoras tecem questionamentos em torno das relações de gênero presentes no cotidiano. A partir disso introduzem conceitos, teorias, categorias, autores e estudos que ajudam leitoras e leitores a elaborarem sua percepção mais imediata da própria experiência social. Assim, forma-se um público capaz de, como as próprias autoras colocam, utilizar a teoria para ir além, construindo ordens sociais mais justas e ferramentas essencialmente políticas (enquanto substancialmente reflexivas, e bem-embasadas) de interferência na realidade.

O livro, como um todo, segue a mesma sequência de movimentos que podemos encontrar em cada um de seus capítulos: do exemplo concreto à teoria, de questões mais simples a questões mais complexas. Enquanto seguem nesse movimento, as autoras logram unir todas as conclusões e ferramentas trabalhadas nos capítulos anteriores ao que introduzem a cada novo capítulo, alinhavando e arrematando com destreza o pensamento feminista e a teorias de gênero elaboradas ao longo das últimas décadas. Esse não parece um resultado fácil de se obter – apresentar um campo tão complexo e polêmico quanto o dos estudos de gênero a um público leigo, sem recorrer a qualquer tipo de simplificação, generalização ou exclusão de seus numerosos debates, mas Connell e Pearse são soberbamente bem-sucedidas na empreitada.

Em se tratando de um campo como os estudos e teorias do gênero, em que as palavras estão em franca disputa e carregam um peso político significativo, é preciso uma série de cuidados para que o significado autoral impresso no original chegue aos leitores de outros idiomas. Quando recebi o convite para traduzir “ Gender – In World Perspective ” me fiz consciente desse desafio e espero honestamente tê-lo cumprido de forma satisfatória. Como mencionado na nota introdutória à tradução brasileira, “os bons textos acadêmicos carregam mais sentidos do que se pode supor à primeira vista”, sendo tão complexos de traduzir quanto alguns poemas ou textos literários. Alguns termos e conceitos utilizados pelas autoras merecem, assim, ser observados com atenção pelas leitoras e leitores. Entre eles estão as noções de “masculinidade”, “feminilidade”, “homem”, “mulher”, “ser homem”, “ser mulher”, “corporificação” (frequentemente traduzida para o português também como “encorporação”) e outros, mencionados com algum destaque na nota introdutória da tradução. Embora seja visível um cuidado das autoras na discriminação desses termos e na explanação de conceitos, nem sempre foi possível aprofundá-los, tarefa que merece ser realizada pelas leitoras e leitores.

A inclusão de exemplos e diálogos entre o chamado “sul global”, por exemplo, é uma preocupação das autoras que não se mostra suficiente para colocar com complexidade o debate em torno de categorias como centro e periferia, metrópole e colônia, e norte e sul globais. Ainda que pormenorizar a discussão em torno das dinâmicas de poder em processos de produção e circulação do conhecimento não seja objetivo da obra, esse tipo de contextualização talvez enriquecesse ainda mais a experiência dos leitores, e auxiliasse as autoras a explicitarem sua posição em hierarquias internas ao conjunto de países que chamam de “sul global”. Não parece muito rigoroso, em termos de produção e circulação de conhecimento, igualar a situação de países como o Brasil e a Austrália, uma vez que, por exemplo, escrever e publicar artigos em periódicos de idioma oficial inglês (aquele que circulam internacionalmente com maior facilidade, em geral) não são desafios de igual tamanho a autores brasileiros (alfabetizados em português) e australianos (alfabetizados em inglês). Questões desse tipo podem ter impacto significativo para compreendermos dinâmicas mais complexas de circulação de conhecimento no contexto atual, para além de categorias dicotômicas como centro e periferia, metrópole e colônia ou norte e sul globais.

Uma obra que se pretende quase um guia de estudos, é importante notar, corre também o sério risco de atropelar especificidades do país em que está sendo publicada ao buscar se posicionar como “neutra” em termos das teorias que apresenta. As autoras de Gênero ... também conseguem desviar dessa armadilha. Explicitam, a todo momento, dentro do que é possível, as posições que ocupam em termos de sua nacionalidade, língua, referências culturais, engajamento político, epistemologia, entre outros marcadores sociais e intelectuais. Evidentemente não é possível excluir tais marcas, muito próprias de qualquer autor, sendo importante que o público brasileiro esteja atento a elas, contextualizando por si próprio a produção da obra e do pensamento das autoras. Tanto as notas de tradução quanto o belo prefácio à edição brasileira, assinado por Marília Pinto de Carvalho, oferecem a leitoras e leitores ferramentas para mediar criticamente essa leitura.

A riqueza de casos e a exímia articulação entre teoria e empiria fazem de Gênero – Uma perspectiva global um material-chave para o momento atual do feminismo e dos estudos de gênero no Brasil. Como aponta Marília Carvalho em seu prefácio, (grifos meus)

esta edição brasileira poderá cumprir um papel importante nos debates teóricos em nosso país , recolocando no primeiro plano as dimensões materiais e estruturais das relações de gênero, para além das abordagens centradas nas linguagens e discursos ou que tomam o gênero como identidade individual e expressão de diferenças, aqui predominantes.

Esse posicionamento teórico que a obra carrega e que Carvalho muito bem traduz, dentro dos embates do pensamento feminista contemporâneo, é explicitado na organização de seus capítulos e seções. Partindo de um capítulo introdutório que vai da percepção do gênero no cotidiano a uma definição conceitual geral , as autoras escolheram logo em seguida apresentar a leitoras e leitores estudos de caso referentes a diversas culturas e contextos. Os estudos apresentados no capítulo 2 oferecem não apenas um aprofundamento nas manifestações concretas do gênero em nossas vidas, mas um bom apanhado de pistas, indicações e ideias sobre como examiná-los e estudá-los. As pesquisas discutidas nesse capítulo servem como base, por sua vez, para a discussão intermediária entre teoria e empiria que se efetiva no capítulo 3, que vem para examinar de que maneira teorias distintas podem acabar também por conformar e enviesar dados, expondo as contribuições científicas das ciências humanas e sociais nos estudos sobre gênero e sexualidade, e as contribuições políticas de tratar-se essa esfera da vida humana como parte do mundo social (e não como uma pré-determinação biológica, geográfica etc.). Os sólidos questionamentos às teorias do determinismo biológico sobre o corpo, o gênero e a sexualidade merecem destaque pela magistralidade com que as autoras conseguem combinar substância empírica e teórica a uma linguagem extremamente acessível.

O capítulo 4 marca a metade da obra e poderia, por si só, ser convertido em um curso básico de teoria feminista. Partindo de autoras que podem também ser consideradas como “proto-feministas” anteriores ao século XIX, Connell e Pearse examinam o pensamento feminista para muito além da Europa e dos Estados Unidos. Ao fazê-lo, tecem vorazmente a muito bem-vinda crítica às escolas mais ortodoxas do pensamento feminista, que historicamente acabaram por ignorar uma importante e larga parcela da população mundial, ignorando contribuições fundamentais para o desenvolvimento de um conhecimento mais complexo e profundo sobre como o gênero opera em diferentes sociedades. Um dos exemplos mais interessantes, segundo as autoras, é o complexo pensamento de Heleieth Saffiotti, em A Mulher na Sociedade de Classes . Segundo elas, a brasileira teria articulado de maneira inovadora e visionária as dimensões de classe e gênero ainda nos anos 1960, sendo a pioneira nesse tipo de abordagem que depois tornou-se popular na Europa e nos Estados Unidos, por volta dos anos 1970 e 1980 (sem nenhuma ou com pouquíssima menção a Saffiotti).

É no quarto capítulo, também, que Connell e Pearse se posicionam mais explicitamente quanto a suas próprias contribuições à teoria feminista. Arrematando os debates propostos nos capítulos anteriores, a partir do jogo entre percepções do senso-comum, estudos empíricos rigorosos e conceitos e teorias cronologicamente anteriores, as autoras propõem uma compreensão do gênero enquanto sistema situado em estruturas que organizam a nossa sociedade – como as dinâmica mais amplas de poder entre países e culturas no contexto globalizado. Ao materializarem o gênero, contribuem firmemente para a construção de perspectivas concretas de ação em prol de uma sociedade organizada a partir da igualdade em todos os níveis.

Entre os capítulos 5 e 8, o que a leitora e/ou o leitor encontrará é uma imersão nas interseções entre o gênero e outras grandes questões de nossa sociedade e de nosso tempo. Os capítulos 5 e 6 trazem um aprofundamento na relação entre o pessoal e o político, duas dimensões sempre associadas (embora nem sempre com rigor) pelo pensamento feminista. As discussões apresentadas procuram responder concretamente como se dão as relações entre esses dois lados da vida em sociedade, e como se influenciam mutuamente na produção constante de normas e padrões de gênero. Já os capítulos 7 e 8 utilizam os casos da economia e do meio ambiente para extrapolar o pessoal que é político para além do indivíduo, observando seu efeito em outras formas de estruturas sociais.

Assim, a obra oferece ao público uma compreensão suficientemente complexa e invariavelmente acessível, que funciona como uma ferramenta poderosa para que possamos nos efetivar e emancipar enquanto sujeitos, ao construirmos uma sociedade baseada em novos princípios. É, portanto, um instrumento acadêmico, mas também político, do qual o público brasileiro em geral poderá fazer excelente uso.

Referências bibliográficas

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    7 Jan 2016
  • Aceito
    10 Nov 2016
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