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Por amor, por dinheiro? Trabalho (re)produtivo, trabalho sexual e a transformação da mão de obra feminina

Resumo

Este artigo tem como objetivo refletir sobre os conceitos de trabalho e trabalho de mulher à luz das análises marxistas feministas clássicas. A intenção é problematizar essas categorias a partir de uma conversa ocorrida durante a pesquisa de campo etnográfica, pensando o que significa o trabalho sexual dentro do contexto histórico e atual do mercado de trabalho feminino. Situamos essa ocupação como uma variante do trabalho reprodutivo que ainda provoca grandes polêmicas entre parcelas significativas dos movimentos sociais “progressistas” e dos setores religiosos conservadores, dificultando seu reconhecimento como uma ocupação legítima. Exploramos algumas das possibilidades pelas quais o trabalho sexual – quase sozinho entre os tradicionais trabalhos reprodutivos “feitos por amor” – ainda gera tanto desconforto em grupos políticos/sociais tão heterogêneos.

Trabalho; Trabalho de Mulher; Teoria Marxista Feminista; Trabalho Sexual

Abstract

The present article reflects upon the concepts of work and womens’ work in the light of classic Marxist feminist analyses. It seeks to problematize these categories, beginning with a conversation that took place during ethnographic fieldwork, thinking about what sex work means within the historical a current context of the market for women’s labor. We situate sex work as a variant of reproductive work which still provokes great controversy among significant portions of “progressive” social movements and also among conservative religious sectors, complicating its recognition as a legitimate occupation. We explore some of the possible reasons why sex work, almost alone among the traditional reproductive labor “done out of love”, still generates so much discomfort among such heterogeneous political and social groups.

Work; Woman's Work; Feminist Marxist Theory; Sex Work

Para alguns de nós, a política é mais que um exercício intelectual – é uma experiência vivida. Quando o assunto é trabalho sexual, não penso; sinto

(Melissa Petro, 2017Petro, Melissa. Kamala Harris’ Whorephobia is Sadly No Surprise. The Establishment, 26.7.2017 [https://theestablishment.co/kamala-harris-whorephobia-is-sadly-no-surprise-250e52ceb3bd. – accessed on 26.7.2017].
https://theestablishment.co/kamala-harri...
).

1- Introdução

O gatilho para este artigo foi uma conversa informal que aconteceu durante o trabalho de campo no interior do Estado do Rio de Janeiro, que me1 fez refletir sobre o trabalho de mulher2 e, particularmente, o trabalho sexual3 e como isso encaixa dentro dessa categoria.

A venda do sexo está no centro de muitas polêmicas, particularmente dentro de determinados setores dos movimentos sociais que consideram a atividade como violação básica de direitos humanos e, portanto, acham que as pessoas que a exercem não devem ser protegidas por direitos trabalhistas. Esses grupos políticos entendem as pessoas que vendem sexo como mulheres vitimizadas e sem agência alguma, sendo frequentemente descritas como “escravizadas” ou “estupradas”, sujeitas à exploração de uma indústria sexual entendida como extremamente poderosa e lucrativa. Também entendem os membros do movimento das prostitutas como traidoras ou exploradoras que são pagas para defender essa indústria e que merecem ser legalmente punidas por incentivarem esse mercado.4 Dentro dessa ótica, que parece ganhar cada vez mais popularidade dentro da política brasileira, falar em trabalho sexual parece defender a violência patriarcal, a objetificação dos corpos femininos, e a comodificação da mulher.

Para nós, enquanto antropólogos, essa posição é problemática. Não negamos que a prostituição foi historicamente constituída, em grande parte, sob condições patriarcais. A mesma coisa, porém, pode ser dita sobre a instituição de casamento e uma série de trabalhos – trabalhos de mulher – que não atraem tantas controvérsias e que não são entendidas como criminalizáveis, nem pelas alas mais separatistas ou androfóbicas do movimento feminista. Ademais, como afirmam Lévi-Strauss (1982)Lévi-Strauss, Claude. As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis, Vozes, 1982., Sherry Ortner (1940, 1978Ortner, Sherry. The virgin and the state. Feminist Studies, vol.4 #3, 1978, pp.19-35.), e Gayle Rubin (1993)Rubin, Gayle. O trafico de mulheres: notas sobre a “economia política” do sexo, 1993. [Tradução: Sonia Correa] [https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/1919 – 5.5.2017].
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, a capacidade sexual/reprodutiva da mulher parece estar entre os primeiros “bens” trocados entre grupos humanos. De acordo com David Graeber (2010)Graeber, David. Debt: The First 5000 Years. New York, Melville House Publishing, 2010., os sistemas pré-capitalistas de troca de esposas muito provavelmente serviam de base para a comodificação do ser humano por meio da escravidão. E, se recentes pesquisas com macacos podem servir como guia, trocar sexo por sustento é um comportamento que é até pré-humano (Chen, 2006Chen, M. K. How Basic Are Behavioral Biases? Evidence from Capuchin Monkey Trading Behavior. Journal of Political Economy, vol.114, n.3, 2006, pp.517-537.). Não queremos naturalizar a prostituição, mas nos parece óbvio que trocar sexo por dinheiro (ou por outros meios de sustento) é um comportamento social que antedata o capitalismo – e até o patriarcalismo. Da mesma maneira, nos parece óbvio que o casamento foi e ainda é, em muitos casos, uma instituição patriarcal, opinião que compartilhamos com várias alas do movimento feminista. No entanto, não conhecemos nenhum grupo no mundo que pretende criminalizar o casamento: de fato, a tendência no Ocidente parece ser ampliar a instituição para incluir casais homoafetivos. Aparentemente, então, o casamento é uma instituição patriarcal visto como reformável enquanto a prostituição, não.

Quando a questão é a venda do sexo dentro do universo de trabalhos feminizados, nossas pesquisas sobre a estruturação da prostituição no Rio de Janeiro e no mundo (Blanchette; Silva, 2009; Blanchette; Schettini, preloBlanchette, T. G.; Schettini, C. Sex Work in Rio de Janeiro: Police Management without Regulation. In: Garcia, M. et al. Sex Sold in World Cities: 1600s-2000s. Leiden, Holanda, Brill (prelo).) têm indicado duas coisas. Em primeiro lugar, longe de ser o ponto máximo de degradação na vida de uma mulher, o trabalho sexual muitas vezes compara-se favoravelmente com outros trabalhos feminizados, particularmente os domésticos e de serviço. Em segundo lugar, o trabalho sexual é dificilmente uma vocação para a maioria das pessoas que a exerce; ela é melhor entendida como uma posição temporariamente ocupada numa economia triparte de makeshifts (Hutton, 1974), estruturada em torno de prostituição, casamento, e empregos de baixo status social e rendimento, tipicamente feminizados.

Em outras palavras, o trabalho sexual não é o pior trabalho do mundo, de acordo com a grande maioria de nossas interlocutoras trabalhadoras sexuais. Muitas vezes, ele até aparece como aquilo que permite a saída de outras relações de trabalho que são entendidas como mais opressivas, mais violentas, e mais objetificantes. Como Monique Prada, ex-presidenta da Central Única dos Trabalhadores do Sexo (CUTS) afirma:

Basicamente, a prostituição é um lugar onde o senso comum diz que nenhuma mulher deve querer estar – e ainda assim, milhões de mulheres a tem exercido através dos séculos. Talvez este esteja longe de ser o pior lugar do mundo para uma mulher, mas há toda uma sociedade se esforçando para torná-lo péssimo... E há uma classe de pessoas, e eu pertenço a essa classe de pessoas, para a qual trabalhar com sexo, limpar banheiros ou trocar fraldas de idosos são trabalhos possíveis, são trabalhos dignos, e os exercemos. Infelizmente, na sociedade em que vivemos, precisamos ter em mente que nem todas as pessoas terão tão amplo leque de escolhas que as permita ficar longe da precariedade ou de chefes abusivos – ainda assim, seguimos vivendo e fazendo as escolhas que estão ao nosso alcance (apudDrummond, 2017Drummond, Maria Clara. Voz do feminismo no Brasil, a prostituta Monique Prada fala para a Revista J.P. Glamurama, 16.1.2017 [http://glamurama.uol.com.br/voz-do-feminismo-no-brasil-a-prostituta-monique-prada-fala-para-a-revista-j-p/ – acessed on 12.4.20170.
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).

É dentro desses embates que produzimos este artigo, que busca problematizar o que se considera como trabalho e – em particular – o trabalho de mulher, do qual consideramos a prostituição um componente tradicional. Acreditamos que os conflitos entre diversos setores da sociedade e as pessoas que vendem sexo estão diretamente relacionados ao tipo de atividade desempenhada (particularmente quando é exercida por mulheres), dentro daquilo que Gayle Rubin (1993)Rubin, Gayle. O trafico de mulheres: notas sobre a “economia política” do sexo, 1993. [Tradução: Sonia Correa] [https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/1919 – 5.5.2017].
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chama de o sistema sexo/gênero. O que parece ofender, em suma, é que algo que deveria ser dado por amor (ou – mais historicamente – por obrigação) passa a ser comodificado, supostamente tornando a vendedora vítima da exploração capitalista do seu corpo (McKinnon 1998). Nossa intenção é problematizar essa visão a partir de uma análise da categoria marxista trabalho e como esta tem sido articulada com aquilo que é popularmente entendido como “trabalho de mulher” no ocidente.

Embora “trabalho de mulher” seja uma categoria êmica, cujo uso tem sido recordado por etnólogos em várias culturas e tempos5, ela tem sido pouca desenvolvida em termos éticos. Isso não implica, porém, que vários teóricos da vida social não usem o termo, casualmente, como se fosse algo autoexplicável.6 Ele tem sido mais empregado dentro do âmbito das discussões sobre housework (trabalho doméstico) ou trabalho reprodutivo (Dalla Costa, 1974Dalla Costa, Maria. The Power of Women and the Subversion of the Community. Bristol, England, Falling Wall Press, 1974.; Federici, 1975Federici, Silvia. Wages Against Housework. Malos Ed., 1975, pp.187–194., 2004Federici, Silvia. Caliban and the Witch: Women, the Body and Primitive Accumulation. Brooklyn, NY, Autonomedia, 2004.) ou, mais recentemente, care work (trabalho de cuidado: Hirata; Guimarães, 2012Hirata, H.; Guimarães, N. (org.). Cuidado e Cuidadoras. As várias faces do trabalho de care. São Paulo, Atlas, 2012.; Boris, 2014Boris, E. Produção e reprodução, casa e trabalho. Tempo Social, vol. 26, nº1, São Paulo, Depto. Sociologia-FFLCH/USP, 2014, pp.101-122.). Por fins do presente artigo, tomamos trabalho de mulher7 como aquelas formas de labuta que, no Ocidente, têm sido historicamente entendidas como o domínio exclusivo (ou quase exclusivo) de mulheres, articulando determinadas tarefas com o gênero feminino. Isso inclui trabalhos como professora (particularmente de crianças pequenas), enfermeira, cozinheira, babá, e toda espécie de “trabalho de cuidado” (veja-se England, 2005, para uma discussão teórica sobre esse conceito), mas também, como Barber (1994)Barber, Elizabeth Wayland. Women's Work: The First 20,000 Years - Women, Cloth, and Society in Early Times. 1994. New York: W.W. Norton & Company. aponta, certas atividades que foram rapidamente proletarizadas no capitalismo nascente dos séculos XVI e XVII, particularmente os associados com a produção de tecidos (não é à toa que o símbolo internacional da mulher é um fuso8). Finalmente, inclui as atividades sexuais/reprodutivas e o trabalho emocional.

À primeira vista, então, olhando para o contexto histórico-cultural do Ocidente nos últimos dois séculos, “trabalho de mulher” parece semelhante, em largos termos, ao clássico conceito feminista-marxista de trabalho reprodutivo, embora estejamos cientes que nem todo trabalho de mulher é reprodutivo e nem todo tipo de trabalho reprodutivo é feito dentro do espaço doméstico (Boris, 2014Boris, E. Produção e reprodução, casa e trabalho. Tempo Social, vol. 26, nº1, São Paulo, Depto. Sociologia-FFLCH/USP, 2014, pp.101-122.:103). Como o filósofo e economicista Jason Read tem apontado, porém, o trabalho de mulher tem uma especificidade nesse contexto: tradicionalmente tem sido trabalho não pago (Read, 2003Read, Jason. The Micropolitics of Capital: Marx and the Prehistory of the Present. New York: SUNY Press. 2003.:139) e, dentro das condições ideológicas do capitalismo, foi entendido como o “não trabalho” ou, nas palavras das minhas interlocutoras, o trabalho “feito por amor”. No decorrer dos últimos cem anos, porém, esse tipo de trabalho tem sido cada vez mais comodificado, formalizado e até proletarizado. A grande exceção continua a ser os trabalhos sexuais/afetivos, sob a rubrica de prostituição.

Por que?

Este artigo pretende ser um voo teórico, inicial, em busca de uma resposta para essa questão. Por que, num mundo em que os trabalhos reprodutivos e produtivos estão cada vez mais confusos, onde a mulher é, cada vez mais profissionalizada e/ou proletarizada, a “mais antiga das profissões” encontra-se cada vez mais criminalizada, difamada, e impossibilitada de ser tratada como trabalho?

2- Trabalho por amor e trabalho de homem

Era uma manhã chuvosa em Canário, na Fazenda Duas Traças, localizada na região do Noroeste Fluminense, próximo a Santo Antônio de Pádua, no norte do Estado do Rio de Janeiro. Sentada numa cadeira da varanda, coloquei-me9 a ouvir as histórias de D. Genuína, parteira, dona do terreno, uma senhora de 81 anos. Descendente de italianos, D. Genuína faz parte da história de uma colonização imigrante que se espalhou pelo interior do Estado do Rio de Janeiro ao longo do século XIX e meados do XX.

A região de Canário é tradicionalmente dedicada à agricultura familiar e teve em seu passado, de acordo com D. Genuína, forte produção de arroz e café. Atualmente, essas culturas desapareceram em função da mecanização do cultivo desses produtos. Hoje, os habitantes do distrito sobrevivem do plantio de culturas como quiabo, tomates e abóboras, além de trabalhar numa ou outra indústria na região. Também fazem parte desse conjunto econômico a agropecuária leiteira e a exploração de pedras decorativas.

O que mais me chamou a atenção na conversa com D. Genuína foi quando se pôs a falar da sua trajetória como mulher, discursando sobre as ocupações femininas do seu tempo. As histórias eram complementadas por Nazaré, mulher bem mais nova (na casa de 45 anos) e amiga da família. D. Genuína contou-me como era ser filha da parteira mais solicitada da região e, disso, ela passou a opinar sobre os trabalhos de mulher e o trabalho por amor. Falava em tom de protesto. Lembrava que sua mãe era obrigada a se ausentar de casa por mais de 15 dias durante a espera do nascimento do bebê. Além disso, tinha que cuidar do recém-nascido e ainda ajudar nas tarefas domésticas (cozinhar, lavar e passar), enquanto a mãe da criança “se recuperava”. Eu perguntei às duas mulheres se esse trabalho era remunerado. “Não”, me responderam. “Tudo era feito por amor”. A parteira, no máximo, ganhava reconhecimento e desfrutava de certo status nas localidades onde atendia.

Sabemos, como Marcel Mauss (2013)Mauss, Marcel. Ensaio Sobre a Dádiva. São Paulo, Cosac & Naify, 2013. Coleção Portátil 25. demonstrou em seu Ensaio Sobre a Dádiva, que as trocas que geram prestígio (ou talvez aquilo que o Bourdieu chamaria de capital social [1986]) são, de fato, intimamente imbricadas com as estruturas econômicas e não podem ser ignoradas em termos de sua capacidade reprodutiva da comunidade. Todavia, é mister lembrar que a mãe de D. Genuína não se situava numa sociedade pré-capitalista, mesmo vivendo no interior do estado do Rio de Janeiro há mais de século. Como o resto de seu discurso confirmou, o dinheiro, o capital e a capacidade de acumulá-los, já reinavam em Canário naqueles tempos. Mas o máximo que a mãe de D. Genuína, a parteira mais requisitada da região, ganhava de imediato e concreto pela sua labuta era um corte de fazenda e a “benção” de batizar o recém-nascido.

De acordo com Nazaré e D. Genuína, o trabalho de parteira podia estender-se por um mês. D. Genuína falava em tom de queixa: “tinha gente que abusava”. Quando perguntei quem mais abusava, ela respondeu: “os que tinham mais posses”. Nessa hora, Nazaré contou sua própria história de trabalho enquanto mulher. Começou com ela “olhando um menino” quando tinha onze anos de idade. Em troca, recebia dinheiro para pagar sua escola. Logo em seguida, Nazaré começou a lavar, passar, cozinhar e limpar para os pais do menino, embora continuasse recebendo só o combinado (acordo que foi feito, aliás, pelos pais de Nazaré) para “olhar o menino”. Nazaré trabalhou sob esse regime por mais de uma década, até seus 23 anos, quando conseguiu terminar seus estudos e prestou concurso do Estado para trabalhar numa escola. Bem articulada e usando um português extremamente correto, Nazaré disse que mesmo trabalhando muito, conseguia estudar. O orgulho particular dela é ter conseguido ler toda a obra de Clarice Lispector.

Tanto a trajetória de Nazaré, quanto a de D. Genuína, ilustram bem a observação da economista Lourdes Benéria, no relatório da Organização Internacional do Trabalho, de que, longe de serem participantes marginais na economia, “as mulheres rurais são, com frequência, as participantes mais esquecidas da economia,” trabalhando “por longas horas em tarefas agrícolas e domésticas” e sendo “essenciais para o sistema econômico, notadamente naquelas tarefas ligadas à produção de alimentos e aos serviços, nos campos e em casa, quanto aquelas relacionadas com a reprodução da força de trabalho” (Benéria, apudBoris, 2014Boris, E. Produção e reprodução, casa e trabalho. Tempo Social, vol. 26, nº1, São Paulo, Depto. Sociologia-FFLCH/USP, 2014, pp.101-122.:101). De fato, a economia rural de Rio de Janeiro do século XX (e do século XXI) seria impensável sem levar em conta os trabalhos feitos por mulheres – muitas vezes reificados nas acepções populares como “trabalho de mulher” – que, como D. Genuína nos lembra, eram geralmente “feitos por amor”, e não por dinheiro.

Quando me contaram suas trajetórias, porém, tanto Nazaré quanto D. Genuína lembraram de uma outra mulher, Mariazinha, negra (segundo as duas “bem escura”). Mariazinha era classificada repetidamente por elas como uma “coitada”. Sem marido e com vários filhos, era obrigada a exercer aquilo que as outras duas mulheres classificaram como “trabalho de homem”, se ocupando da lavoura, pois essa atividade era regularmente remunerada em dinheiro. As palavras exatas de D. Genuína, porém, dão outro aspecto às atividades de Mariazinha, esse moralizante: “a pobre coitada tinha que trabalhar como homem; ela era muito mal falada na região”. Não se sabe ao certo se Mariazinha tinha má fama por ser negra, por ter muitos filhos sem pai reconhecido, ou por exercer o trabalho de homem, com os homens. Mais provavelmente, todos esses fatores se combinavam para situá-la como “menos respeitável” às outras mulheres da aldeia, que exerciam funções entendidas como tipicamente femininas e largamente “por amor”.

Indaguei D. Genuína (que também trabalhou na lavoura, antes de exercer a função de merendeira durante 30 anos, após parte dos seus 10 filhos crescerem), o porquê de Mariazinha ser tão mal falada, sendo que D. Genuína também trabalhou por dinheiro e não simplesmente “por amor”. A resposta veio curta, ríspida e de cara fechada: “No meu caso, era diferente”. A diferença, aparentemente, era no fato de que Mariazinha nunca formou família tradicional, não tendo marido. Ninguém podia dizer, com exatidão, quem eram os pais dos filhos dela. Mariazinha partiu para trabalhar na lavoura “como um homem” e sustentar sua família, sem homem. Enquanto isso, D. Genuína (e Nazaré) só entraram no mundo de “trabalho por dinheiro” após suas longas carreiras se dedicando à reprodução de espaços domésticos, já com maridos e crianças. O “trabalho por dinheiro” entra em suas trajetórias como complementar aos seus papéis como esposas e mulheres “trabalhando por amor” (ou, no caso de Nazaré, obrigação). Mesmo após sua entrada no mundo das assalariadas, ambas exerciam profissões tipicamente feminizadas no Brasil contemporâneo: merendeira e professora primária. Não precisavam, nunca, “trabalhar como homem”, muito menos sustentar sozinhas suas famílias.

Genuína e Nazaré afirmaram que todos os filhos de Mariazinha se formaram e saíram da região. Apenas um voltava para visitar a mãe. Mariazinha, com seu “trabalho de homem” comprou uma casa, uma pequena roça que prosperou, além de formar todos os seus filhos. Pelo que apurei, sua vida não estava ruim. Mesmo assim, D. Genuína e Nazaré continuavam a se referir a ela como a “coitada da Mariazinha”. Dava para perceber que o subtexto, aqui, era moral: trabalhando como homem, Mariazinha trabalhava com homens; trabalhando com homens e sendo solteira, presumia-se que Mariazinha exerceria outras funções no campo além das estritamente agricultoras. Presumia-se, enfim, que Mariazinha era puta.10

As conversas relatadas acima referem-se a um microuniverso e são casos particulares, porém emblemáticos. No entanto, os depoimentos de D. Genuína e Nazaré são interessantes para pensarmos algumas das complexas questões embutidas nos estudos das desigualdades no Brasil – particularmente as de gênero – e as combinações e intersecções de marcadores de identidade na criação e na manutenção dessas desigualdades, particularmente no mundo do trabalho.

No caso exposto acima, é preciso atentar para o contexto histórico, dentro do qual as desigualdades de gênero e cor/raça cruzam com o mercado de trabalho. Esse contexto é absolutamente importante para nossas tentativas de analisar aquelas ocupações categorizadas como “degradantes” e pouco valorizadas, mas que acabam sendo, em muitos casos, os refúgios econômicos das mulheres que não conseguem se sustentar “por amor”. Para melhor entender essa questão, achamos necessário analisar a natureza do trabalho e como este tem sido conjugado com a qualificadora “mulher” dentro da tradição marxista-feminista.

3- Trabalho de mulher: do produtivo/improdutivo ao reprodutivo e o sistema sexo/gênero

Como Gayle Rubin comenta,

não existe nenhuma teoria que dê conta da opressão das mulheres – em sua interminável variedade e monótona similaridade através das culturas e ao longo da história – com o mesmo poder explicativo que tem a teoria marxista (Rubin, 1993Rubin, Gayle. O trafico de mulheres: notas sobre a “economia política” do sexo, 1993. [Tradução: Sonia Correa] [https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/1919 – 5.5.2017].
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:3).

Inicialmente, porém, o marxismo quase não tocava na questão dos trabalhos feitos por mulheres, no espaço doméstico (Read, 2003Read, Jason. The Micropolitics of Capital: Marx and the Prehistory of the Present. New York: SUNY Press. 2003.).

Karl Marx herdava a questão do valor e do significado do trabalho dos teóricos liberais da geração anterior e, em particular, de Adam Smith que primeiro teorizou a distinção entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo, situando a primeira categoria como aquele trabalho que produz valor ou riqueza, enquanto a segunda não produz nada – apenas desloca a riqueza de um lugar para o outro (Smith, 2003Smith, Adam. The Wealth of Nations. New York, Bantam Classics 2003 [1776]. [1976]). Nessa segunda categoria, Smith situava os trabalhos dos “clérigos, advogados, médicos, homens eruditos de todos os tipos, jogadores, bufões, músicos, cantores e dançarinos de ópera, etc.”. Essas pessoas poderiam trabalhar, mas eles não produziam valor ou riqueza. A característica principal do trabalho improdutivo, de acordo com Smith, é que ele “produz nada que poderia mais tarde comprar… uma quantia igual de trabalho” e que ele “é eliminado no momento de sua produção” (Smith, 2003 [1976], Livro II, Capítulo III, segundo parágrafo). Smith (2003)Smith, Adam. The Wealth of Nations. New York, Bantam Classics 2003 [1776]. não fala nada daquilo que poderíamos entender como “trabalho de mulher”, mas o primeiro parágrafo do Livro II, cp. III de A Riqueza das Nações indica que ele não consideraria os trabalhos “domésticos” como necessariamente improdutivos, pois dentro da categoria trabalho produtivo ele situava aquilo que acresce à manutenção do trabalhador.

Marx, por sua vez, dedicou bastante esforço para distinguir teoricamente os trabalhos produtivos e improdutivos. Dar conta completa dessa discussão é uma tarefa quase teosófica, que vai muito além do alcance deste artigo. Podemos dizer que Marx inicialmente seguiu Smith, definindo o trabalho produtivo como “aquilo que é diretamente trocado por capital”, enquanto o trabalho improdutivo seria “absolutamente estabelecido” como aquilo que não é trocado por capital, e sim por alguma forma de renda (Marx, 2013Marx, Karl. Theories of Surplus Value. New York, Pine Flag Books, 2013 [1863]. Organizado por Karl Kautsky. [1863]:303). Dentro dessa formulação inicial, Marx parece rejeitar a ideia de que trabalhos que só produzem serviços, e não bens, podem ser, de alguma maneira ou outra, produtivos. Todavia, seus pensamentos sobre esse assunto não estavam completados quando Marx morreu, necessitando uma reconstrução de suas ideias. Para fins de nossa discussão, o problema é saber se o trabalho que produz serviços imateriais (como a grande maioria dos trabalhos domésticos) podem ser considerados como trabalhos produtivos ou apenas necessários e reprodutivos da economia social.11

É importante notar aqui que produtivo e improdutivo não têm nenhuma conotação moral na acepção de Marx: são apenas termos éticos que denotam certo relacionamento para com o capital. Os trabalhos ditos improdutivos podem ser socialmente úteis. Existem uma série de trabalhos que não são trocados diretamente por capital, mas que são necessários para a circulação do capital (os advogados que criam contratos, por exemplo). E existem trabalhos que produzem valores de uso, mas que não são trocados por capital. Marx notoriamente oferece o exemplo do alfaiate que trabalha para um cliente particular, em sua casa. O trabalho do alfaiate que labuta nessas condições não é produtivo, pois ele não tem ligação alguma com o capital e sua produção não é transformada numa commodity que pode ser livremente trocada no mercado (Marx, 2013Marx, Karl. Theories of Surplus Value. New York, Pine Flag Books, 2013 [1863]. Organizado por Karl Kautsky.:402).

Marxistas mais ortodoxos como Ken Tarbuck relutam em considerar como produtivo qualquer trabalho que produz bens imateriais ou serviços. Todavia, existem amplas evidências que Marx, no fim de sua vida, estava afastando-se dessa posição. Afinal, no primeiro volume de O Capital, que representa a apresentação mais madura das ideias de Marx acerca das distinções entre o trabalho produtivo e improdutivo12, afirmou que

um professor é um trabalhador produtivo quando (...) ele trabalha feito cavalo para enriquecer o dono da escola. O fato que esse empregou seu capital na construção de uma fábrica de ensino em vez de uma fábrica de salsichas não muda em nada a relação (Marx, 2007Marx, Karl. Capital: A Critique of Political Economy - The Process of Capitalist Production. New York, Cosimo, Inc. 2007 [1867]. [1867]:558).

Obviamente, para Marx maduro, o fator que mais distinguia o trabalho como produtivo era sua articulação com o capital:

ser um trabalhador produtivo implica não tão somente uma relação entre trabalho e efeito útil entre o trabalhador e o produto de sua labuta, mas também uma relação social específica de produção, uma relação que marca o trabalhador como o meio direto de produzir a mais valia (Marx, 2007Marx, Karl. Capital: A Critique of Political Economy - The Process of Capitalist Production. New York, Cosimo, Inc. 2007 [1867]. [1867]:558).

Como Ian Gough nos lembra, é necessário dar conta, em nossa análise da produtividade do trabalho, das mudanças que aconteceram no capitalismo nos últimos 150 anos. De acordo com Gough, nos tempos de Marx,

o modo de produção capitalista se espalhava e crescia gradualmente, e conquistava o campo da produção material, mas pouco tocava a produção não-material. Assim, os trabalhadores que produziam bens materiais eram, muitas vezes, trabalhadores produtivos empregados por capitalistas, enquanto os trabalhadores que providenciam serviços geralmente eram pagos por alguma forma de renda [revenue], sendo trabalhadores improdutivos. [Todavia,] o crescimento dos serviços providenciados por empresas capitalistas há de qualificar essa observação hoje em dia (Gough, 1972Gough, Ian. Productive and unproductive labour in Marx. New Left Review, no 76, 1972, pp.47-67.:53).

Em outras palavras, os trabalhos que produzem serviços, cujos resultados são consumidos no ato de produção, podem muito bem ser qualificados como trabalhos produtivos, desde que gerem a mais valia. Isso talvez não tenha sido tão claro em 1867, mais é um fato mais que óbvio hoje em dia.

Todos os pensadores envolvidos nesse debate concordariam, porém, que o trabalho feito por dinheiro (ou por outras considerações) só seria trabalho produtivo se gerasse o capital. No final do século XIX e no início do século XX, isso significava que, de fato, o grosso daquilo que teria sido chamado de “trabalho de mulher” não era trabalho produtivo: poderia ajudar na circulação do valor e na manutenção das condições sociais de trabalho, mas não era trocado diretamente por capital.

Dessa maneira, as pensadoras marxistas clássicas desse período, como Rosa Luxemburgo e Alexandra Kollontai, largamente entendiam as mulheres a partir de duas categorias: burguesas e proletárias. As primeiras (nas palavras de Luxemburgo) “não prestam nenhum papel na produção social, sendo consumidoras conjuntas da mais valia que seus machos extraem do proletariado: são as parasitas dos parasitas do povo”. E ainda continua, claramente distinguindo os trabalhos domésticos do trabalho produtivo:

As mulheres do proletariado são economicamente independentes; são engajadas no trabalho produtivo para a sociedade, exatamente como os homens são. Não no sentido de ajudar seus homens através do trabalho doméstico, se arrastando numa sobrevivência cotidiana e educando crianças por um pagamento pífio. Esse trabalho não é produtivo dentro do sentido do sistema econômico atual de capitalismo… (Luxemburgo, 1971Luxemburg, R. Womens Suffrage and Class Struggle. Selected Political Writings. New York, Monthly Review Press, 1971. D. Howard, Ed.[1912]).

Kollontai faria eco ainda mais implacável desses sentimentos em 1921, após a Revolução Bolchevique, situando as esposas, em geral, como parasitas, equiparando-as às prostitutas:

Para nós, na república dos trabalhadores, não faz diferença se uma mulher se vende a um homem ou a muitos, se ela é classificada como uma prostituta profissional que vende seus favores a vários clientes ou se é uma esposa que se vende a seu marido. Toda mulher que evita o trabalho e não toma parte na produção ou no cuidado das crianças está sujeita, do mesmo modo que as prostitutas, ao trabalho forçado.13 Nós não podemos fazer diferença entre uma prostituta e uma esposa fiel mantida pelo marido, quem quer que seja o marido, ainda que seja um comissário. O trabalho coletivo se torna defeituoso se não conseguir interligar todos os desertores do trabalho. Os trabalhadores coletivos condenam a prostituta não porque ela dá seu corpo a um homem, mas porque, como a esposa que fica em casa, ela não faz nenhum trabalho útil à sociedade. (Kollontai, 1977Kollontai, Alexandra. Prostitution and Ways of Fighting it. In: Holt, A. (ed.) Alexandra Kollontai: Selected Writings. London, Allison and Busby, 1977 [1921]. [1921]).14

Para Kollontai, o “trabalho de mulher” tradicional, efetuado no espaço doméstico para a reprodução de uma família era, de fato, uma deserção social. Era plenamente comparável com a prostituição e remediado somente por meio do trabalho produtivo coletivizado – forçado, se for necessário. Para ambas, Kollontai e Luxemburgo, ser mulher proletária, então, significava trabalhar fora do espaço doméstico, na produção fabril relacionada diretamente com o capital. Nessas citações vemos uma interpretação extremamente literal dos pensamentos iniciais de Marx acerca do trabalho produtivo, com o tradicional “trabalho da mulher” sendo desqualificado como improdutivo e até como não trabalho, pelo menos em seu sentido social. É esse o estilo de marxismo que tem criado o fenômeno de campos de trabalho e reabilitação para mulheres “suspeitas” após revoluções socialistas bem-sucedidas.15

Mesmo aqui, porém, podemos ver algumas frestas na ortodoxia do marxismo clássico. Afinal, existia um tipo de “trabalho de mulher” que Kollontai situava como necessário e, portanto, digno de respeito, mesmo não sendo propriamente produtivo: cuidar de crianças. E, por sua vez, Luxemburgo reconhecia determinadas formas de trabalho sexual como trabalho produtivo, desde que, envolvessem a troca de serviços por capital:

Somente é produtivo o trabalho que produz a mais valia e os lucros capitalistas… Desse ponto de vista, a dançarina num café, que gera lucros para seu empregador com suas pernas, é uma trabalhadora produtiva, enquanto toda a labuta das mulheres e mães do proletariado dentro de quatro paredes do lar é considerado trabalho improdutivo (Luxemburgo, 1971Luxemburg, R. Womens Suffrage and Class Struggle. Selected Political Writings. New York, Monthly Review Press, 1971. D. Howard, Ed. [1912]).

Até Engels, escrevendo naquela obra seminal de estudos de gênero, A origem da família, da propriedade privada e do estado, dá suas escapadas da ortodoxia, comparando prostitutas com trabalhadoras (senão proletárias) na sua famosa afirmação que a mulher no matrimônio burguês “só se diferencia da cortesã habitual pelo fato de que não aluga seu corpo por ato, como uma assalariada, e sim que o vende de uma vez, para sempre, como uma escrava” (Engels, 1884Engels F. The Origin of the Family, Private Property, and the State: In the Light of the Researches of Lewis H. Morgan. NY, International Publishers, 1972 [1884].). Embora o uso de Engels da palavra “assalariada” deixe em dúvida se o trabalho sexual poderia ser produtivo ou era apenas o não produtivo “piece work” (trabalho para a produção de valor de uso e não para o capital), a prostituta aqui é situada como nada diferente do professor descrito por Marx, precisando tão somente uma ligação direta ao capital para ser entendida como proletária plena.

Todavia, eram necessárias as apropriações feministas do marxismo do último terço do século XX para uma plena reavaliação daquilo que chamamos de trabalho de mulher. Em seu livro Marxism and the Oppression of Women (2013 [1983]), considerado como texto fundamental do marxismo-feminismo, a historiadora Lisa Vogel situa Juliet Mitchell (1966), Margaret Benston (1970) e Peggy Morton (1971) como fundadoras dessa tendência, mas entende a italiana Mariarosa Dalla Costa (1972) como a autora que construiu a primeira tentativa mais teoricamente sofisticada de engajar, em termos marxistas e feministas, aquilo que estamos chamando aqui de trabalho de mulher.

Quebrando com o marxismo clássico, Dalla Costa argumenta que o trabalho que a mulher tradicionalmente efetuava na esfera doméstica é trabalho produtivo no mais estrito sentido, pois produz a commodity mais essencial do capitalismo: o próprio trabalhador. A mais valia desse trabalho é expropriada indiretamente pelo pagamento do salário ao marido proletário da mulher, transformando ela, assim, “na escrava do escravo assalariado” (Dalla Costa, 1973:52). A afirmação de Dalla Costa, porém, ainda não conseguiu resolver o problema central do debate: demonstrou que o trabalho doméstico tinha um uso social do qual o capitalismo era dependente, sim, mas não conseguia situar isso como forma social de trabalho que produzia a mais valia. Ou seja, embora Dalla Costa tenha comprovado que o trabalho doméstico não podia ser entendido, simplesmente, como trabalho improdutivo, ela não conseguiu demonstrar como ele era trocado, diretamente, por capital. O marido, fatalmente, se inseria como intermediário entre a mulher e o capital, complicando uma estrita proletarização da mulher enquanto trabalhadora doméstica (Vogel, 2013 [1983]).

A solução mais interessante para esse impasse teórico foi a constituição do conceito de modo de reprodução. Essa seria uma esfera de produção social de seres humanos – tanto na vida cotidiana (lavando roupas, cozinhando, etc.), quanto em termos intergeracionais (criando e educando a próxima geração) – que, nas palavras da teórica Renate Bridenthal, existia numa relação dialética com o modo de produção (apud Vogel, 2013 [1983]:27). Em seu artigo “O tráfico de mulheres”, a antropóloga Gayle Rubin famosamente rotulou essa “segunda esfera” de (re)produção como o sistema sexo/gênero. Rubin distingue, porém, entre o conceito de sistema de reprodução e o de sistema sexo/gênero, evitando uma estrita divisão entre produção e reprodução e propondo uma visão mais holística e imbricada dessas duas esferas (Rubin, 1993).

Rubin concorda com a síntese de Dalla Costa, achando crucial entender a reprodução da força de trabalho como um dos custos necessários da geração do capital (salientando que até Marx e Engels reconheciam essa sine qua non do capitalismo) e situando esse custo como socializado através das instituições domésticas. Todavia, Rubin comenta que nada no capitalismo implica, necessariamente, a associação da esfera da reprodução com a mulher, observando que a opressão feminina, o sexismo, e as noções tradicionais de gênero antedatam o capitalismo. Em outras palavras, o capitalismo utiliza e se beneficia do confinamento da mulher à esfera reprodutiva, mas não dá origem a esse confinamento. Rubin entende que a origem da “derrota histórica mundial” das mulheres antedata o modo de produção capitalista, salientando suas raízes essencialmente culturais e tradicionais, ou – adotando o linguajar marxista – “morais e históricas”:

É, precisamente, esse “elemento histórico e moral” que determina que uma “esposa” encontra-se entre as necessidades de um trabalhador, que destina as mulheres e não os homens a realizar tarefas domésticas e define o capitalismo como herdeiro de uma longa tradição na qual as mulheres não herdam, não lideram e não falam com deus. É esse elemento “histórico e moral” que dotou o capitalismo de uma herança cultural de formas de masculinidade e feminilidade. Nesse “elemento histórico e moral” está resumido o inteiro domínio do sexo, da sexualidade e da opressão sexual… Apenas sujeitando esse elemento “histórico e moral” à análise que a estrutura da opressão sexual pode ser delineada (Rubin, 1993Rubin, Gayle. O trafico de mulheres: notas sobre a “economia política” do sexo, 1993. [Tradução: Sonia Correa] [https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/1919 – 5.5.2017].
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:5).

Os argumentos de Rubin são particularmente importantes para nossos fins, junto com seu conceito do sistema sexo/gênero. Todavia, esse sistema apresenta algumas distinções pequenas, porém cruciais, do conceito do modo de reprodução. Rubin não nega que exista uma segunda esfera de (re)produção na dialética que sustenta qualquer formação histórica, mas alerta que devemos evitar separar essas esferas em termos absolutos, propondo uma visão mais entrelaçada e imbricada dessa dialética. Rubin qualifica como “cultural” a origem da segregação das esferas por gênero, e adverte que mudanças nesse sistema são possíveis sem, necessariamente, a superação do capitalismo. De fato, a observação da autora é que as mulheres não precisam ser confinadas a uma dessas esferas: no capitalismo moderno, cabe tanto a mulher no trabalho produtivo, quanto a proletarização dos trabalhos reprodutivos, tradicionalmente domesticados.

No Brasil, onde nas últimas sete décadas houve uma explosão da população feminina que é economicamente ativa (passando de 13,6%, em 1950, a 48,9% em 201016), 57,9% dessa população é de trabalhadoras formalizadas17(Alves et al., 2017Alves, J.E.D.; Cavenaghi, S.M.; Carvalho, A. A.; Soares, M.C.S. Meio Século de Feminismo e o empoderamento das Mulheres no contexto das Transformações Sociodemográficas do Brasil. In: Blae, E; Avelar, L. (org.) 50 Anos de Feminismo: Argentina, Brasil e Chile. São Paulo, EdUSP, 2017. Pp. 15-55.:14-16). É necessário, porém, qualificar essa crescente participação da mulher na economia formal, pois em termos marxistas, ser “economicamente ativa”, ou ter uma carteira de trabalho assinada, não significa, necessariamente, se engajar no trabalho produtivo. Uma faxineira, por exemplo, que é empregada diretamente por uma dona de casa não troca sua força de trabalho para o capital, mesmo que sua labuta seja formalizada. É significante notar, nesse contexto, que 15% das brasileiras registradas pelo IBGE em 2012 como “economicamente ativas” trabalharam no emprego doméstico – fator ainda mais saliente quando acrescentamos cor/raça à nossa análise, pois a porcentagem das mulheres negras economicamente ativas no emprego doméstico é de 19%, contra 11% para as brancas (Alves et al., 2017Alves, J.E.D.; Cavenaghi, S.M.; Carvalho, A. A.; Soares, M.C.S. Meio Século de Feminismo e o empoderamento das Mulheres no contexto das Transformações Sociodemográficas do Brasil. In: Blae, E; Avelar, L. (org.) 50 Anos de Feminismo: Argentina, Brasil e Chile. São Paulo, EdUSP, 2017. Pp. 15-55.:14-16). Ademais, as mulheres ainda são massivamente concentradas nos setores de serviço e comércio: em 1999, 56,6% das brasileiras economicamente ativas estavam situadas nessas áreas da economia (IBGE, 1999IBGE. Pesquisa nacional por amostra de domicílios: PNAD de 1999. Brasília, IBGE, 1999.).

De acordo com os dados acima, a única coisa que podemos dizer com precisão é que, enquanto trabalhadora, a mulher brasileira tem saído do espaço doméstico no último meio século, cada vez mais recebendo dinheiro para labutar em espaços que não correspondem a seu domicílio, ou os domicílios das outras. Grande parte dessa força de trabalho feminina parece ainda atrelada a atividades que poderiam ser consideradas como o tradicional “trabalho de mulher”, sendo concentrada na área de serviços, educação, trabalhos de cuidado (care work) e trabalhos domésticos. Qual porcentagem dessa expandida esfera extra-doméstica é composta de trabalho produtivo ninguém pode dizer. Todavia, parte considerável das formas de trabalho reprodutivo que, outrora, eram confinadas à esfera doméstica e privada, está sendo capitalizada e transformada, se deslocando para a esfera mais tradicionalmente entendida como produtiva. Um exemplo claro disso seria o deslocamento da tarefa de cozinheira do espaço doméstico para as franquias de fast food, as cantinas, e os restaurantes populares. A jovem empregada no McDonald’s pode estar empregada na economia de serviços, mas sua labuta inquestionavelmente produz capital enquanto ainda também pode ser entendida como forma de trabalho reprodutivo. Dessa maneira, confunde-se cada vez mais as esferas produtivas e reprodutivas sem, necessariamente, ameaçar o funcionamento do capitalismo.

Embora nem todo trabalho feito por mulher ainda seja produtivo, inquestionavelmente os trabalhos tradicionalmente feitos por amor dentro do espaço doméstico estão se transformando cada vez mais em trabalhos produtivos, feitos por salário, gerando valor e mais valia. Essa transformação não é simples, nem limpa e nem, necessariamente, gera aquela independência feminina relativa, pela proletarização, que Luxemburgo e Kollontai imaginaram. Para entendê-la melhor, precisamos agora olhar para como ela foi prefigurada na constituição histórica da esfera limiar de trabalhos de mulher, feitos por renda, e não por amor.

4- Madames, criadas e as relações de trabalho no modo de reprodução

As atividades de lavar, cozinhar, cuidar de crianças/velhos/enfermos, ouvir, demonstrar empatia, e ter relações sexuais18 por obrigação são todas formas de labuta que eram tradicionalmente entendidas como tarefas domesticadas e femininas no Ocidente. Porém, como Anne McClintock demonstra em seu livro Couro Imperial: Raça, gênero, sexualidade no embate colonial (2010), esse tipo de trabalho precisava ser invisibilizado enquanto trabalho, pelo menos no caso dos espaços domésticos da burguesia metropolitana (e da classe média ainda em formação) do século XIX. Nesses espaços, foi sob o sinal de lazer e amor que o trabalho de mulher foi desaparecendo. A vocação da dona de casa “era não só criar uma família limpa e produtiva, mas também assegurar a habilidosa ocultação de cada sinal de seu trabalho”:

Seu sucesso como esposa dependia de sua habilidade na arte de, ao mesmo tempo, trabalhar e aparentemente não trabalhar (....) O dilema dessas mulheres era que quanto mais convincente fosse sua performance do trabalho do lazer, maior era seu prestígio. Mas esse prestígio era conquistado não pelo próprio ócio, mas por uma laboriosa imitação do ócio (McClintock, 2010McClintock, Anne. Couro Imperial: Raça, Gênero e Sexualidade no Embate Colonial. Campinas-SP, Editora da Unicamp, 2010.:244).

Esse imperativo à invisibilidade criava uma contradição dentro do modo de reprodução: a dona de casa ganhava prestígio – ou capital social – na medida em que mantinha sua casa absolutamente impecável e produtiva. Todavia, esse estado de conforto e higiene tinha que parecer como algo que emanava da própria natureza graciosa da dona de casa – algo praticamente impossível para uma só mulher.

Dessa forma, gerava-se a demanda para o trabalho doméstico, feito por mulheres, em espaços que não eram suas próprias casas. E essa demanda, por sua, vez, borrava as fronteiras entre produção e reprodução:

As criadas se tornaram, assim, a corporificação de uma contradição central dentro da formação industrial moderna. A separação entre o público e o privado foi alcançada apenas pagando às mulheres da classe trabalhadora pelo trabalho doméstico que as esposas poderiam fazer de graça. O trabalho das criadas era indispensável ao processo de transformar a capacidade de trabalho das esposas no poder político dos maridos. Mas a figura da criada paga punha constantemente em perigo a separação “natural” entre a casa privada e o mercado público. Cruzando em silêncio as fronteiras entre o privado e o público, entre a casa e o mercado, entre a classe trabalhadora e a classe média, as criadas traziam para a casa de classe média o bafejo do mercado, o cheiro do dinheiro. As trabalhadoras domésticas, assim, corporificavam uma dupla crise no valor histórico: aquela entre o trabalho pago dos homens e o trabalho não pago das mulheres e a outra entre a economia da servidão feudal e a economia industrial do salário (McClintock, 2010McClintock, Anne. Couro Imperial: Raça, Gênero e Sexualidade no Embate Colonial. Campinas-SP, Editora da Unicamp, 2010.:247).

De acordo com McClintock (2010)McClintock, Anne. Couro Imperial: Raça, Gênero e Sexualidade no Embate Colonial. Campinas-SP, Editora da Unicamp, 2010., o dialético complexo entre produção e reprodução sob condições do capitalismo moderno não era simplesmente expresso numa divisão entre mulheres donas de casa e homens trabalhadores. Existiam milhões de mulheres – talvez até a maioria, particularmente nos novos espaços urbanos que explodiam na modernidade – que não encontraram seu lugar no lar (pelo menos como “donas”) e tampouco se proletarizaram numa troca direta com o capital. Uma complexa hierarquia se estabeleceu, então, dentro da casa burguesa moderna, em que certas mulheres se transformaram em donas de casa, ao passo que outras mulheres, geralmente mais pobres (e, nas Américas, mais escuras) se tornaram criadas, peças chaves na manutenção do conforto, da eficiência, e do capital político da família burguesa. Essas “empregadas” trocaram seu poder de trabalho não por capital, como trabalhadoras proletarizadas, mas por uma renda (ou até mesmo pelo simples sustento) num espaço estruturado simultaneamente por uma lógica patriarcal e pela nova ideologia burguesa da respeitabilidade. Dessa maneira, o trabalho doméstico, transferido das mãos de esposas burguesas para as mãos de mulheres das classes (e raças) subordinadas, tornou-se, ao longo da modernidade, uma forma de trabalho invisibilizada, central na (re)produção de pobreza, raça, e gênero.

De qualquer maneira, proletária é um adjetivo que não dá conta das vidas dessas mulheres. Elas muitas vezes migravam constantemente entre a esfera de reprodução (sendo esposas), para a de produção (sendo empregadas em fábricas), para o trabalho doméstico (empregada em tarefas reprodutivas nas casas de outras mulheres), para a prostituição. Atualmente, estamos envolvidos num projeto (Garcia et al., preloGarcia, M.R.; Van Voss, L.H.; Meerkerk, E. (ed.) Sex Sold in World Cities: 1600s-2000s. Leiden, Holanda, Brill (prelo).) que investiga a história da prostituição em vinte cidades globais. Uma das características que impressiona sobre o trabalho de mulher em quase todas as cidades estudadas (particularmente as ocidentais) é como esse trabalho foi constituído dentro aquilo que a historiadora Olwen Hufton (1974)Hufton, O. H. The Poor of Eighteenth-Century France 1750–1789. Oxford, Clarendon, 1974. chama de “a economia de retalhos” (economy of makeshifts)19 – uma colcha de retalhos de ocupações através da qual as pobres procuram tecer a sobrevivência. Uma das trajetórias mais comuns detalhadas nos estudos de caso do projeto é da mulher que migra do campo para a cidade por não se adequar ao mercado matrimonial, precisando então vender sua força de trabalho ou como proletária, ou no espaço doméstico de outra mulher como criada. Tipicamente, porém, essas soluções se revelam como precárias ou insuficientes, então a mulher também acaba vendendo sexo. Outras mulheres nessa situação acabam casando, mas, mesmo assim, continuam labutando fora do espaço doméstico de sua própria casa – muitas vezes até como trabalhadoras sexuais. Podemos chamar essas vidas femininas, simplesmente, de proletárias, no sentido clássico e marxista da palavra?

A pergunta é mais interessante do que pode parecer à primeira vista, pois se estamos levando a sério o grande insight do feminismo marxista da existência de um modo de reprodução que existe numa relação dialética com o modo de produção, há de perguntarmos sobre a natureza das relações sociais do trabalho que existem dentro da esfera de reprodução e quais posições de poder essas relações produzem. O modo de produção notoriamente gera a burguesia e o proletariado. E o modo de reprodução: o que gera?

Uma maneira simples de resolver essa questão seria presumir que o sistema de sexo/gênero não modifica em nada as relações de trabalho, com a mulher adquirindo o posicionamento de seu marido e/ou pai, ou ainda entendendo proletário em sua acepção popular brasileira como sinônimo simples de pobre. Outra maneira seria entender as mulheres, em si, enquanto classe. Isso parece ser a posição adotada por várias vertentes do movimento “radfem”20, exemplificada pelos escritos da jornalista Meghan Murphy (2015)Murphy, Meghan. 9 things that really do make you a better feminist than everybody else, 11.9.2015 [http://www.feministcurrent.com/2015/09/11/9-things-that-really-do-make-you-a-better-feminist-than-everybody-else/ – accessed on 12.3.2017].
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. De fato, a marca “mulher” foi decisiva para situar certos seres humanos na esfera do trabalho reprodutivo, independente da situação de classe de seus parentes masculinos. Mas, como Avtar Brah (2006) escreve, embora as mulheres possam ser o “segundo sexo”, globalmente, isso não faz a sororidade ser global. As mulheres não devem ser entendidas como grupo homogêneo, sujeitas a uma única e singular “experiência feminina”, unidas em seus interesses de classe – fato comentado pelo feminismo negro faz quase meio século (Davis, 1981Davis, Angela. Women, Race and Class. 1981. New York: Vintage Books.; Collins, 2000Collins, Patricia Hill. Black Feminist Thought. New York, New York, Routledge, 2000.).

Ademais, em termos das relações sociais de trabalho dentro da esfera de reprodução, algumas mulheres são situadas para empregar a força de trabalho que as outras precisam oferecer. Concordamos com McClintock (2010)McClintock, Anne. Couro Imperial: Raça, Gênero e Sexualidade no Embate Colonial. Campinas-SP, Editora da Unicamp, 2010.: o que é produzido, pelo menos tradicionalmente (na casa burguesa metropolitana do século XIX), é o “poder político dos maridos”. Seria mais correto dizer, porém, que essa produção resulta numa série de capitais simbólicos, culturais, sociais e políticos, que podem ser apropriados pelos maridos, mas que ganham mais destaque na constituição e na manutenção daquilo que é propriamente chamado de mulher. Pois como a teóloga feminista Elizabeth Schussler-Fiorenza demonstrou analisando o caso do patriarcado clássico da Grécia antiga, nem toda mulher é mulher:

Falando estritamente, as mulheres escravas e mulheres estrangeiras residentes não são mulheres. São “engendradas”, não com respeito aos homens escravos ou aos homens estrangeiros residentes, mas com respeito a seus mestres. São subordinadas e, portanto, “diferente por natureza”, não só dos homens de elite, mas também das mulheres da elite. Como resultado, a pirâmide patriarcal de dominação e subordinação cria “diferenças naturais” não só entre homens e mulheres, ou homens e homens, mas também entre mulheres e mulheres (Fiorenza, 1993Fiorenza, Elisabeth Schussler. But She Said: Feminist Practices of Biblical Interpretation. Boston, Beacon Press, 1993.).

No capitalismo moderno, essa mulher de referência é aquela chamada por McClintock (2010)McClintock, Anne. Couro Imperial: Raça, Gênero e Sexualidade no Embate Colonial. Campinas-SP, Editora da Unicamp, 2010. de “burguesa”. Ela geralmente é casada com um homem dessa classe, ou é nascida por pai e mãe dessa classe, mas ela é, talvez, melhor concebida por outra categoria, que seria própria à esfera de reprodução. Tomando emprestado um termo êmico oriundo das relações de reprodução brasileiras, podemos chamar essa mulher de madame (dona de casa também serve). E, apesar de ainda estar sob o domínio masculino do patriarca, a madame tem uma relação de dominação com suas criadas, que é análoga àquela que o burguês tem com seus trabalhadores. É a madame que extrai o capital simbólico, sinalizado pelo lazer produtivo e higiênico do lar exemplar, transformando-o em algo politicamente útil. Tipicamente, ela faz isto por meio da expropriação da força de trabalho das criadas. E embora a referência para a madame possa ser burguesa e branca (como McClintock apresenta), nem toda madame é necessariamente branca ou burguesa.

Ser dona de casa e poder ter criadas foi e ainda é uma ambição de muitas mulheres. Em regiões como o Brasil ou o sul dos EUA – que foram fortemente marcadas pela escravidão africana no século XIX e por uma abolição que relutava em integrar os libertos na economia modernizante – o racismo e a miséria garantiram que essa ambição poderia ser alcançada por famílias muito menos abastadas que nas regiões mais metropolitanas do sistema global. No Brasil, esse ímpeto frequentemente se revelava em nossa tradicional instituição popular de “pegar para criar”, pela qual até famílias operárias, camponesas, ou de classe média baixa conseguem criadas , ainda crianças (como no caso de Nazaré), que são “quase da família” e, assim, presas a tal por obrigações que só podem ser quitadas com trabalho por amor. De fato, a tradição do trabalho doméstico “amoroso” é tão cara e enraizada na cultura brasileira que, até hoje, é difícil encontrar planta de apartamento, mesmo os mais modernos, que não inclua um quarto de empregada nas dependências.

5- Trabalho (re)produtivo, trabalho sexual, e a “economia de retalhos”

Entendemos que a categoria criada tem diminuído em tamanho frente às outras categorias de trabalho femininas no último século. Esse é o caso mesmo no Brasil, onde uma parcela significante da população feminina ainda está economicamente ativa na venda dos serviços domésticos. Em paralelo, houve uma crescente proletarização dos trabalhos reprodutivos (Coburn, 1994Coburn, David. Professionalization and Proletarization: Medicine, Nursing, and Chiropractic in Historical Perspective. Labour/Le Travail, 34 (Fall), 1994, pp.139-162.; Réses, 2012Réses, Erlando Silva. Singularidade da profissão de professor e proletarização do trabalho docente na Educação Básica. SER Social, vol. 14, no 31, 2012, pp.419-452.; Read, 2003Read, Jason. The Micropolitics of Capital: Marx and the Prehistory of the Present. New York: SUNY Press. 2003.). De fato, parece que aumenta cada vez mais a confusão entre a esfera de reprodução e a de produção. Se queremos adotar a perspectiva de Rubin, talvez seja melhor dizer que a interdependência imbricada dessas duas esferas intensificou-se ao ponto em que elas estão cada vez mais congruentes (embora devamos lembrar que nunca foram completamente separadas).

Todavia, esse “colapso” não mudou significativamente a feminização e a invisibilização do trabalho reprodutivo. Notoriamente, a reprodução da vida familiar continua sendo pensada como uma obrigação feminina, expressa na famosa “jornada dupla”. Em outras palavras, continua sendo a responsabilidade da mulher de respeito criar uma família limpa e produtiva enquanto assegura a habilidosa ocultação de cada sinal do trabalho doméstico – mesmo que ela trabalhe fora de casa. Hoje em dia, podemos ver esse imperativo nas numerosas propagandas de produtos e tecnologias domésticas que prometem (por exemplo) eliminar os maus cheiros do banheiro sem ninguém perceber que eles, uma vez, existiram. Tais produtos são protagonizados por mulheres em mini-dramas televisivos que miram quase exclusivamente no consumidor feminino. Ironicamente, essas propagandas são muitas vezes as únicas produções dramáticas na televisão que passam pelo famoso “teste Bechdel”.21

Mas há outro tipo de invisibilização em curso: a proletarização da mão de obra reprodutiva dentro da economia de serviços, que oculta a diferença de classe, entre as mulheres, outra hora explícita na relação madame/criada. Um exemplo excelente desse “apagamento” pode ser visto no livro Laughter Out of Place, no qual a antropóloga e brasilianista Donna M. Goldstein (2013)Goldstein, Donna. Laughter Out of Place: Race, Class, Violence, and Sexuality in a Rio Shantytown. Berkeley, University of California Press, 2013. lança uma crítica mordaz sobre a dependência de famílias da classe média brasileira por trabalho doméstico, geralmente feito por criadas negras e pobres:

[Essas famílias] estão constantemente cuidadas por outras, geralmente mulheres, que fazem as tarefas onerosas da vida cotidiana, livrando tempo para atividades criativas, incluindo o avanço profissional, os hobbies, e uma vida social ativa. Intelectuais engajadas, portanto, podem trabalhar muito e ainda fazerem o papel de anfitriões graciosos… (Goldstein, 2013Goldstein, Donna. Laughter Out of Place: Race, Class, Violence, and Sexuality in a Rio Shantytown. Berkeley, University of California Press, 2013.:31).

A observação de Goldstein é perspicaz, mas devemos indagar como é que ela viabiliza sua própria vida enquanto intelectual engajada estadunidense? Quem faz as “tarefas onerosas da vida cotidiana” para Donna Goldstein e as mulheres como ela? O que produz o tempo livre para suas atividades criativas, hobbies, e seu avanço profissional, senão a proletarização das tarefas reprodutivas que, no passado, eram feitas por criadas? O estranhamento de Goldstein frente às criadas brasileiras tem, como pano de fundo, a normalização (e invisibilização) de outro regime de trabalho reprodutivo e feminizado por parte da antropóloga americana – regime, aliás, que cresce cada vez mais no Brasil.

O trabalho de mulheres profissionais como professoras universitárias, advogadas, designers e etc. é sustentado por uma legião de trabalhadoras que ganham um salário-mínimo ou até menos. Hoje, a administração desse trabalho é frequentemente terceirizada, saindo das mãos da madame para as de um gerente. Muitas vezes essa labuta é proletarizada, sendo produtiva (i.e. gerando capital) além de reprodutiva. São mulheres, porém, que continuam sendo consumidoras privilegiadas desses serviços, muitas vezes pagando por eles com seu próprio dinheiro. Dessa forma, a divisão de classe entre as mulheres, antigamente operada na esfera da reprodução e expressa pelo binômio madame/criada, continua ativa. Pode ser vislumbrada na divisão entre mulheres que costumam consumir os serviços reprodutivos e as que necessitam vender sua força de trabalho para providenciar serviços reprodutivos, sendo que essa venda é agora cada vez mais feita diretamente para o capitalista, dono de uma empresa de serviços, e não para a família na esfera doméstica. Uma diferença significante entre os dois sistemas, porém, é que essa proletarização intensifica a ilusão de que esse trabalho (re)produtivo não tem origem, gênero, ou cor.

Talvez por essa razão, certa ala do feminismo – a mais associada com a classe das madames – relute para entender a perene atração da prostituição como opção de trabalho para muitas mulheres. Para melhor entender essa cegueira aparente, precisamos sair do terreno da teoria e avançar para um breve resumo de algumas das descobertas mais salientes das nossas investigações etnológicas na prostituição e suas questões políticas correlatas.

Desde 2004, temos investigado a prostituição, o turismo sexual e o tráfico de mulheres nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo.22 Em função disso, também nos engajamos num processo de observação/participação nos campos políticos brasileiros e internacionais que buscam combater o tráfico humano e reformar as leis de prostituição – ora como pesquisadores, ora como aliados do movimento organizado das prostitutas. Nossas pesquisas têm demonstrado o descompasso entre como a prostituição é imaginada na sociedade brasileira e como ela é apresentada e vivida por seus protagonistas principais, as mulheres que vendem o sexo.23

Durante esse período, temos testemunhado um crescente sentimento de abolicionismo24 na sociedade civil brasileira. Na base desse sentimento, existe a afirmação que a prostituição é fundamentalmente um ato de violência e uma atividade que nenhuma mulher, em sã consciência, iria se engajar sem ter absolutamente nenhuma outra escolha. Em evento público após evento público, temos ouvido pessoas, muitas vezes mulheres que se autoafirmam como feministas, equacionarem a venda do sexo com estupro e escravidão. O que têm nos impressionado nessas ocasiões são três características que se repetem com frequência: as mulheres em questão são, geralmente, brancas e da classe média25; têm pouco ou nenhum contato com trabalhadoras sexuais; e parecem entender o trabalho como “explorador”, na vida das mulheres, só na medida em que esse trabalho envolve a venda do sexo.

Essa terceira característica é a mais importante no contexto deste artigo. Uma conversa típica ilustraria o que queremos dizer. Essa aconteceu numa palestra na UFRJ que discutia a regulamentação da prostituição. Os protagonistas eram Thaddeus e Sandy26 uma jovem branca de 21 anos, aluna de graduação do direito, que se classificava como marxista, feminista, e militante de um partido socialista. O pesquisador começou perguntando qual era a posição da moça e seu partido sobre o Projeto de Lei Gabriela Leita, que regulamentaria o trabalho sexual. Segue o diálogo:

Sandy: Estamos contra a prostituição porque explora a mulher.

Thaddeus: Mas todo trabalho do qual é extraída a mais valia é exploração, não é? Vocês apoiam a luta para os direitos trabalhistas em outras áreas da economia, não é verdade, independente desse fato? Por que que as trabalhadoras sexuais não podem ter direitos?

S: Porque ninguém escolhe ser prostituta. As mulheres só fazem isso quando são forçadas porque não encontram nenhum outro emprego.

T: E você acha que os outros empregos que são tradicionalmente “de mulher” – balconista, cozinheira, diarista, manicure – esses as mulheres fazem por opção?

S: Ninguém quer ser prostituta.

T: Tem gente que quer ser caixa de supermercado?

S: Mas a prostituição é uma instituição patriarcal. Não serve a nenhuma outra função. É um trabalho indigno que fere todas as mulheres. É, essencialmente, uma forma de estupro ou escravidão.

T: Vocês estão a favor do casamento gay?

S: É claro. Casar com quem quiser é um direito humano.

T: Mas o casamento também não é uma instituição patriarcal? As mulheres que trabalham nela como esposas, em casa, reproduzindo a família, mas que não ganham um só centavo – essas também não podem ser pensadas como cativas?

S: Hoje, o casamento não é assim.

Mesmo para essa jovem que afirma ser marxista e feminista, então, o trabalho não é ipso fato explorador: existe um corte moral que separa os trabalhos “bons” dos “ruins”. Existem trabalhos “dignos” – e nisso encontram-se quase todos os trabalhos feminizados de serviço, proletarizados ou não – e trabalhos “indignos”, do qual a prostituição é o exemplo mor.27 Ademais, o casamento é visto por ela como algo feito hoje, essencialmente, por opção ou amor, e não como instituição econômica. Nessa visão do mundo, nenhuma mulher “optaria” por trabalhar no sexo e, por contraste, todas as outras formas de trabalho (inclusive a doméstica e não paga) são “voluntárias”

A conversa relatada acima é absolutamente “normal”, no sentido Durkheimiano: sempre aparece em eventos públicos onde a (des)criminalização da prostituição é discutida. Mas a caracterização do trabalho que se apresenta aqui difere, e muito, daquela proferida pela grande maioria de nossas interlocutoras trabalhadoras sexuais.

Em primeiro lugar, o poder de dar ou não o consentimento para o acesso ao corpo é extremamente importante para nossas interlocutoras prostitutas. A grande maioria dessas mulheres faz uma nítida separação entre a prostituição e a violência sexual e distinguem, com muitas detalhes, as diferenças entre as duas coisas. Salientam como o consentimento não é algo simples, oferecido uma só vez, mas é um processo complexo de constante (re)negociação durante o decorrer do trabalho sexual. As trabalhadoras sexuais descrevem limites além do qual não se aventuram. Se esses são forçados, entendem isso como violação. Essa práxis fica em franco contraste com a noção de que as prostitutas hão de aceitar tudo que o cliente quer, uma vez que o cliente pague: o bom e velho estereótipo da prostituta que “vende seu corpo”. Não temos encontrado nenhuma trabalhadora sexual que concordaria com a ideia de que vendem o livre acesso a seu corpo, uma espécie de passe em branco para um “vale tudo” sexual. De fato, muitas de nossas interlocutoras qualificam a noção que a prostituta “vende seu corpo” como atitude de “psicopata”: própria do tipo de pessoa que pretende torturar ou matar mulheres, que elas distinguem de seus clientes.

Mais importante: a maioria de nossas interlocutoras não descreve a prostituição como a “última das opções antes da morte”. A maior parte a descreve como um trabalho desagradável que, porém, demonstra nítidas vantagens frente a outras ocupações disponíveis em seu horizonte de possibilidades. É significante notar que, quase sem exceção, essas mulheres demonstram variadas histórias de engajamento em outras formas de trabalho prévio à sua entrada no negócio de sexo. A lista das ocupações prévias (ou ainda exercidas) revelada por nossa última incursão de campo inclui garçonete, atendente de padaria, empregada doméstica, babá, professora do ensino básico, cozinheira, trabalhadora na construção civil, segurança, tecelã, manicure, balconista, caixa de supermercado, telemarketeira, vendedora de roupas numa loja de shopping e cabeleireira. Mas a ocupação mais comum (que quase todas têm passado por) é esposa, com a mulher sendo economicamente sustentada por um marido.28

Notável aqui a quantidade dessas ocupações – a grande maioria – que é classificável como trabalho de serviço, trabalho reprodutivo, ou até “trabalho de mulher”. De fato, as ocupações passadas de nossas interlocutoras prostitutas configuram um retrato bem delineado daquilo que as feministas norte-americanas chamam de um “pink collar ghetto”: trabalhos marginalizados e mal pagos que são historicamente feitos quase exclusivamente por mulheres (Napikoski, 2017Napikoski, Linda. What is a pink collar ghetto? Thought Co. March 3rd, 2017 [https://www.thoughtco.com/pink-collar-ghetto-meaning-3530822 – accessed on 14.07.2017].
https://www.thoughtco.com/pink-collar-gh...
). Mais notável ainda é quantas dessas mulheres têm trabalhado formalmente em ocupações proletarizadas: somente uma minoria nunca trabalhou com carteira assinada, ou em empregos que geravam capital. Todavia, formalização e proletarização raramente se traduziam em situações de trabalho que nossas interlocutoras consideram “dignas”. Bom exemplo seria a experiência de Luana, mulher negra com 28 anos de idade que foi contratada na construção civil após três anos de trabalho sexual no centro do Rio:

Me empregaram vedando azulejos nos banheiros de um desses novos condomínios aqui no Centro. Era trabalho de carteira assinada e tudo. Então, pensei “Opa! Agora sim!” e larguei a putaria. Só que após seis semanas, ainda não tinha recebido meu primeiro salário. Pior, trabalhamos sem proteção alguma e as químicas causaram feridas nos meus braços e mãos. Tive que ficar fora do trabalho por três dias, com atestado médico, mas quando voltei, eles me mandaram embora. Nunca me pagaram pelas seis semanas de trabalho que fiz e ainda ficaram com minha carteira de trabalho. Então, voltei pra cá [um bordel no Centro]. Pelo menos aqui recebo.

Raramente ouvimos a prostituição apresentada como o único trabalho disponível num quadro econômico marcado por desemprego e miséria total. Em geral, temos ouvido muito mais histórias de mulheres que largaram outros empregos para vender sexo. Ironicamente, foi após a eclosão da atual crise econômica em 2015 que vimos um notável aumento no número de mulheres que buscam deixar a prostituição por outras formas de sobrevivência econômica. Nas palavras de uma de nossas interlocutoras cariocas, “Homem que não recebe salário não costuma ir ao puteiro”.

Mas a característica mais saliente das histórias de trabalho dessas mulheres é a rotatividade delas por diferentes posições naquilo que só pode ser descrito como uma versão do século XXI da “economia de retalhos” de Hufton (1974)Hufton, O. H. The Poor of Eighteenth-Century France 1750–1789. Oxford, Clarendon, 1974.. Circulam, constantemente, entre o espaço doméstico e o trabalho reprodutivo estrito sentido (como esposas), a esfera de trabalhos (re)produtivos e feminizados no setor de serviços, e o trabalho sexual. Essas três posições são apresentadas nos depoimentos dessas mulheres como complementais e igualmente (in)evitáveis, cada uma tendo suas características problemáticas e suas recompensas.

A história de “Júlia”, uma de nossas interlocutoras (carioca, branca, de 24 anos, residente no Complexo do Alemão), que trabalhou por um tempo como balconista numa Lojas Americanas, exemplifica essa circulação:

Me casei quatro anos atrás quando fiquei grávida [com 17 anos de idade]. Só que meu ex- era muito ciumento e a gente brigava o tempo todo. Não dava. Então, quando minha filha tinha 3 anos, eu deixei ele e comecei a trabalhar aqui [num bordel no Centro]. Dois anos atrás, passei num concurso para ser balconista nas Lojas Americanas e ganhei! Eu estava tão feliz, porque era emprego com carteira assinada e eu achava “Tudo bem. É pouco salário, mas posso crescer na empresa”. Minha mãe [que sabia que ela trabalhava na prostituição] também ficou feliz, porque isto aqui [a prostituição] pode dar um dinheiro, mas não tem futuro e é um nojo. Só que não deu. Diziam que precisavam me treinar, mas o trabalho não era nada daquilo [i.e. difícil]. Eram meses recebendo quase nada porque eu ainda estava em fase de treinamento. E quando acabou, o salário continuava pequeno. Trabalhando lá por anos, eu poderia subir e ganhar mais, mas meu pai morreu, minha mãe é aposentada... Se não ganho, não posso criar minha filha. Então, tive que largar as Lojas Americanas e voltar pra cá. O trabalho é o que é, mas adianta ter carta assinada e morrer de fome?

É importante notar que a maioria de nossas interlocutoras não gosta do trabalho sexual. Como Júlia, acham a prostituição desagradável. Mas, como várias delas têm salientado no decorrer de nossos anos de trabalho de campo, “Desde quando trabalha-se por gostar?” Quando perguntamos sobre as histórias de trabalho dessas mulheres, sempre indagamos se elas largariam a prostituição para voltar aos empregos do passado. Quase sem exceção, a resposta é “não largo, a menos que eu possa ganhar bem mais do que eu ganhava”.

A razão mais citada por nossas interlocutoras para deixar a prostituição é o casamento, e não algum trabalho fora do comércio do sexo. Mas o casamento tem seus próprios problemas, como a história de Júlia salienta, geralmente associados com a dominação masculina (ciúmes, violência doméstica, atitudes controladoras, etc) e a falta de dinheiro. O fim de um casamento também é constantemente citado por nossas interlocutoras como razão para (re)entrar na prostituição.

É essa economia de retalhos, delimitada pelas posições de ser esposa, ser trabalhadora na economia de serviços, e ser prostituta (e a possibilidade de se movimentar entre essas posições ou combiná-las de várias maneiras), que podemos talvez rotular, utilmente, como o trabalho de mulher, agora de forma mais ética. Dentro dele, o trabalho sexual raramente aparece como “a última opção”, pelo menos nas palavras de nossas interlocutoras. Antes, é apresentado como recurso que permite a mulher sair de um relacionamento abusivo; que possibilita a criação de seus filhos com um módico de dignidade; que gera os recursos necessários para a construção ou compra de uma casa, ou de um negócio próprio. É, sobretudo, o espaço em que a mulher “trabalha por si”, reunindo capital para projetos próprios que seriam inalcançáveis pela labuta no setor dos serviços. Nesse sentido, [e também fortemente contrastada, por nossas interlocutoras, com “a casa”, onde a mulher está presa às necessidades da unidade familiar sob uma dominação masculina.

Nas palavras de nossas interlocutoras, então, o trabalho sexual não aparece como a pior de todas as possibilidades e muito menos como escravidão ou estupro. Embora frequentemente descrita como desagradável, é uma posição situada em oposição ao mundo do trabalho normal, dominado por “chefes” e “madames” frequentemente arbitrários e exploradores, e a casa, dominada por parceiros masculinos frequentemente violentos. Dentro desse quadro, ironicamente, o trabalho sexual pode, sim, aparecer como espaço de relativa liberdade, mesmo sendo reconhecido como “trabalho ruim”. Pois como explica uma de nossas interlocutoras, “Não faço nada agora que não fiz quando era casada. Ou você acha que transava com meu ex- por gosto próprio? Era obrigação. Mas pelo menos agora sou paga por aquilo que faço”. Da mesma forma, muitas de nossas interlocutoras contam histórias de agressões sexuais sofridas em trabalhos normais (Blanchette; Silva, 2011Blanchette, T.G.; Silva, A. P. da. Amor um real por minuto: A prostituição como atividade econômica no Brasil urbano. In: Correa, S; Parker, R. (org.). Sexualidade e política na America Latina: Histórias, intersecções, paradoxos. Rio de Janeiro, Sexual Policies Watch, 2011, pp.192-233.).

O quadro que se apresenta é de um grupo de mulheres rodeado por precariedades, violências, sexualizações e formas de dominação que são capazes de transformar o “trabalho maldito” da venda de sexo numa opção comparada favoravelmente com as outras oportunidades presentes em seus horizontes de possibilidades.29 Longe de ser a “última opção”, o trabalho sexual pode ser vivenciado como melhoria frente às condições normativas do mercado de trabalho e das economias sexuais embutidas no casamento (Piscitelli, 2016Piscitelli, Adriana. Economias sexuais, amor e tráfico de pessoas – novas questões conceituais. cadernos pagu (47), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2016, e16475 [http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332016000200401&lng=en&nrm=iso – on 14.7.2017].
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
).

A natureza reforçante e imbricada das posições nessa economia de retalhos, também como sua textura cotidiana, tende a escapar a compreensão de uma classe de mulheres cujos horizontes de possibilidades incluem tais profissões como advogada, professora universitária, jornalista, designer, médica, e etc. É importante notar que não estamos imputando culpa nessa nossa análise: estamos apenas reafirmando que as experiências cotidianas e histórias pessoais dessas mulheres dificilmente as preparam para entender, “organicamente”, as vidas vividas nas precariedades da economia de retalhos. Não existe uma posição “de mulher” que seja capaz de criar alguma “sororidade” por si só, sem o acréscimo de outros eixos de identidade e poder.

Um excelente exemplo das cegueiras causadas pela classe, entre as mulheres, foi um escândalo que estourou na internet brasileira no início de julho 2017, quando a designer Patrícia Gomes Benfica (branca, de 44 anos) postou um anúncio que oferecia moradia em troca de serviços de babá. Empregando como chamariz o ditame feminista “Juntas somos mais fortes” (Figura 1), o anúncio causou forte sensação de revolta entre os internautas, muitos dos quais taxavam a “troca” como escravidão. Benfica, porém, não entendeu a polêmica. Sua reação oferece um excelente raio-X daquilo que poderíamos rotular como feminismo de madame:

A grande ideia é acolher uma mãe solteira como eu. Eu falo que juntas somos mais fortes. A gente pode somar esforços. Podemos dividir tarefas, alegrias, tristezas e aflições.... Até o mês passado, eu tinha uma pessoa das 8h às 13h e pagava R$ 700, mas não estava contente com o trabalho dela. Ela tinha preguiça de fazer um suco de limão e deixava claro que não gostava de trabalhar...

Tive muitos retornos positivos com o post e espero fechar a escolha em breve. Já entrevistei muita gente, muitas mães solidárias se identificaram com a dificuldade de criar o filho sozinha e diz que sentiram na pele a dificuldade de não ter um pai presente. Para escolher, vou olhar o perfil do Facebook, RG, onde mora, contato família, antecedentes criminais, enfim, tudo o que se pede quando faz uma entrevista de trabalho.

...Eu não entendo de lei trabalhista. Vejo as pessoas comentando sobre trabalho escravo e não faz sentido.... Tem a tarde livre, o final de semana livre. Ela pode trabalhar e estudar nos outros momentos. Fica por conta da pessoa. Ela dormiria no quarto do meu filho (Crescer Online, 2017).


A resposta de Benfica mistura, de forma promíscua, discursos de sororiedade e hierarquia de classe, naturalizando o trabalho como uma espécie de ajuda mútua regida por uma ética feminista. Por um lado, procura uma mãe “solteira como ela”, para “somar esforços” e “dividir tarefas, alegrias, tristezas e aflições”. No entanto, essa pessoa tomaria o lugar de uma trabalhadora que ganhava um salário mínimo. Teria que passar por uma averiguação igual a “tudo o que se pede quando faz uma entrevista de trabalho”. Os esforços da (não) contratada seriam julgados como adequados ou não, como se fossem trabalho, porém não seriam retribuídos com salário algum. Metade do dia da “assistente” seria comandada por Benfica, que imagina a mulher “companheira” dormindo num quarto, junto com os filhos de ambas as mulheres (O Povo, 2017“Mulher oferece moradia em troca de serviços domésticos”. O Povo, 10.7.2017 [http://www.opovo.com.br/noticias/brasil/2017/07/mulher-oferece-moradia-em-troca-de-servicos-domesticos.html. – accessed on 10.7.2017].
http://www.opovo.com.br/noticias/brasil/...
). A designer qualifica as leis trabalhistas do Brasil, que criminalizam o trabalho de troca sem salário, como obsoletas e ainda afirma: “Há pessoas precisando de ajuda, mas não tem como ajudar porque vivemos em um país burro. Isso precisa ser modificado” (Veja.com, 2017“Não é escravidão, diz mulher que ofereceu casa por trabalho”, Veja.com. Accessed on 13.7.2017.). Ironicamente, porém, pouco antes da gafe de Benfica na internet brasileira, oito princesas sauditas começaram a ser processadas na Bélgica por tráfico de pessoas, em situação que lembra a oferta da designer (Desai, 2017Desai, Devika. “They called us bitches”: Arab princesses face human trafficking and slavery charges. National Post, 12.5.2017 [http://nationalpost.com/news/world/they-called-us-bes-arab-princesses-face-human-trafficking-and-slavery-charges/wcm/f9d4698a-0b43-47bd-9a10-c2e6f4ea55b1 – acessed on 21.7.2017].
http://nationalpost.com/news/world/they-...
).

Ausente em todas as falas públicas de Benfica é qualquer reconhecimento do desequilíbrio de poder inerente nessa troca. Embora a designer entenda que sua situação e a da “companheira” não seriam iguais (afinal, Benfica está oferecendo “ajuda” e pretende gerenciar as atividades da (não) contratada), em nenhum momento engaja com o óbvio ululante: seria ela que teria o poder de fazer e desfazer a relação; de convidar vir e de mandar embora, como e quando quiser, sem remuneração ou até aviso prévio. O fato de que sua parceira preferida seria mulher pobre, mãe solteira, potencializa ainda mais as possibilidades para abusos no relacionamento. Afinal, se a “companheira” desagradasse Benfica, não só colocaria a sua situação de moradia em risco, como também a de seu filho. Será que uma mulher nessa situação, sem dinheiro e sem para onde ir, com filho no colo, teria como recusar qualquer coisa que sua “não empregadora” mandasse fazer?

Várias de nossas interlocutoras prostitutas descreviam situações semelhantes daquela proposta por Benfica como determinantes para sua entrada na prostituição. Maria Clara, por exemplo, aposentou-se após 25 anos trabalhando como tecelã em Minas Gerais. Veio ao Rio de Janeiro aos 45 anos para servir como “companheira” informal para uma senhora idosa, ganhando casa e comida em troca e dividindo um quarto com a mulher. Após seis meses, não aguentava mais a situação, que ela classificava como “escravidão”, e começou a frequentar a famosa Discoteca Help, centro nevrálgico do turismo sexual no Rio no início do século XXI (Blanchette; Silva, 2011Blanchette, T.G.; Silva, A. P. da. Amor um real por minuto: A prostituição como atividade econômica no Brasil urbano. In: Correa, S; Parker, R. (org.). Sexualidade e política na America Latina: Histórias, intersecções, paradoxos. Rio de Janeiro, Sexual Policies Watch, 2011, pp.192-233.). Hoje, trabalha como prostituta independente nas ruas do Centro do Rio e, mesmo com 55 anos de idade, ganha três vezes o valor de sua aposentadoria no comércio do sexo. De acordo com ela, isto é “muitíssimo mais que eu ganhava como 'companheira', que era nada”.

“Não entend[endo] nada de lei trabalhista,” Benfica ainda qualifica como “burro” o Brasil que veja sua proposta como alarmante. Deixa entender que, em outros países menos burros, seu anúncio não levantaria sobrancelha nenhuma. Afirma não ter medo de nenhum processo por parte do Estado, pois “qualquer investigação só vai comprovar que eu sou uma pessoa do bem” (Oliveira, 2017).

É esta última afirmação de Benfica que é mais fértil no contexto deste artigo, pois propõe um status a priori, popularmente conhecido no Brasil como “moça de família”. Essa seria a mulher cuja posição de cor, classe, e educação a coloca acima de qualquer suspeita, mesmo (talvez até particularmente) quando propõe a violação das leis. E essa é exatamente a mesma posição “do bem” da mulher que é mulher, de Elizabeth Schussler-Fiorenza; a mulher geradora de prestígio para o marido, de McClintock; a mulher nada irmã, de Avtah Brah. É essa, enfim, a mulher entendida como respeitável, posição bem analisada por feministas negras EUAmericanas como Evelyn Brooks Higginbotham (1993)Higginbotham, Evelyn Brooks. Righteous Discontent: The Women’s Movement in the Black Baptist Church, 1880-1920. Boston, Harvard University Press, 1993. e Patrícia Hill Collins (2000)Collins, Patricia Hill. Black Feminist Thought. New York, New York, Routledge, 2000.. É a madame.

Higginbotham e Collins empregam respeitabilidade no contexto de uma classe média negra EUAmericana que internaliza os valores brancos e burgueses e buscam “educar” outras negras, menos avantajadas, sobre esses valores para “não envergonhar a raça”. Todavia, o conceito de respeitabilidade é extremamente útil para pensar as relações entre mulheres em geral. Isto é particularmente o caso num Brasil racista-porém-mestiço, onde a brancura é patologicamente construída, brutalmente defendida, e estrategicamente negada quando for necessário (Ramos, 1982; Silva, 2001Silva, Ana Paula. Menino do Rio: Cenário dos Negros nas Propagandas. Tese (Mestrado em nas Ciências Sociais), IFCS, UFRJ, 2001.). Entre as mulheres brasileiras, a respeitabilidade continua a ser um forte divisor, que opera em torno de uma feminilidade racializada e sexualizada, crivada por marcadores de classe. Ser “do bem” ou “da família” – ser “madame” ou “sinhá”, enfim – referencia performances de uma feminilidade entendida como “branca” ou “civilizada”, porém nem sempre ensaiada por corpos brancos. Esse é o “bem” feminino da “bondosa filha do senhô”, encarnada na mitologia nacional brasileira na figura de Princesa Isabel, a Libertadora. Mais adiante na história brasileira, seria associado com a “higiene” sociobiologizante e eugenizada das teorias de branqueamento (Lacerda, 1911Lacerda, João Batista. Sur les métis au Brésil. Congrès Universel des Races. Paris, Imprimerie Devouge, 1911.). Esse é o “bem” que pretende “educar” e “limpar” as desafortunadas em nome da assistência moral e econômica, mas que, em troca, exige um claro reconhecimento de uma hierarquia, estabelecida como ipso fato e inquestionável. A violência social entre mulheres no Brasil é muitas vezes expressa em afirmações sobre quem é “do bem” e que se imagina no lugar de providenciar ajuda, em nome da respeitabilidade.

Como podemos ver no Canário, o local onde eu comecei a pensar sobre este artigo, a noção da respeitabilidade perpassa o sistema sexo/gênero. Afeta até aquelas mulheres que são longe de serem madames, mas que – mesmo assim – conseguem construir certa respeitabilidade feminina fundamentada na casa, no casamento, e no “trabalho por amor”. D. Genuína e Nazaré, ao mencionarem Mariazinha como “coitada”, deixaram implícito que ela era digna de cuidado e da assistência social. Mariazinha, ao sair da esfera doméstica para exercer trabalho de homem e com homens, colocava-se como moralmente “suspeita” nos olhos das outras mulheres e, assim, como objeto de pena (anunciada) e desrespeitabilidade (não anunciada), sendo situada como inferior. A persistência desse sistema confere a manutenção da subalternidade das mulheres, na qual a maioria não consegue sair dos três pontos da economia de retalhos que configura o trabalho de mulher. Uma parcela relativamente pequena de mulheres, apesar de profissionalizada e ainda sofrendo a pressão das obrigações do casamento e do cuidado com os filhos, serve-se do trabalho ou da “ajuda” de uma maioria de mulheres pobres (e muitas vezes não brancas). É essa uma das condições fundamentais, numa sociedade capitalista e patriarcal, que permite a classe das madames organizar suas vidas enquanto exerce a profissão. Dessa maneira, (re)produz-se uma forte hierarquização entre as mulheres. Relações de poder são estabelecidas entre aquelas que, apesar de tudo, continuam subalternizadas no sistema sexo/gênero como mulheres. Nas palavras da ativista trabalhadora sexual Monique Prada, “A divisão das mulheres entre boas e más beneficia a estabilidade do sistema”.

O estigma da prostituição não tem nada a ver com o que as trabalhadoras sexuais são ou fazem, representa um potente elemento de controle para as mulheres que não atuam na indústria do sexo. O modelo de esposa e mãe abnegada exige muito sacrifício. Ainda que se diga que a mulher é a rainha do lar, sabemos que não, que é uma pessoa a serviço de todo mundo. É um modelo tão pouco atraente, e com tão pouca recompensa e reconhecimento que a única forma de conseguir que as mulheres se adequem a ele é lhes assegurar que a outra possibilidade é pior (Prada, 2015Prada, Monique. O Estigma da Prostituição. A Cortesã Moderna, 5.2.2015 [http://acortesamoderna.com.br/estigma/ – accessed on 21.6.2017].
http://acortesamoderna.com.br/estigma/...
).

7- Considerações finais

Como vimos acima, no decorrer do último século, várias ocupações antes praticadas primariamente na esfera doméstica (invisibilizadas e feitas, frequentemente, em troca de comida e casa, ou “por amor”) se transformaram em trabalhos produtivos geradores do capital, muitas vezes exercidos fora do espaço doméstico. Junto com essa transformação, a associação da “mulher pública” com a “não respeitabilidade” tem diminuído significativamente. As enfermeiras, jardineiras, cozinheiras, professoras, e até diaristas têm migrado cada vez mais para a categoria “mulher de respeito”, a medida que ser “economicamente ativa” (para empregar a categoria utilizada pelo IBGE) passou a ser uma nova marca diacrítica que faz mulher ser mulher.

Todavia, o trabalho sexual (que era, uma vez, tão associado à mulher que labutava fora de casa que “mulher pública” virou-se sinônimo de “prostituta” [Pereira, 2006Pereira, Cristiana Schettini. Que tenhas teu corpo: uma história social da prostituição no Rio de Janeiro das primeiras décadas republicanas. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2006.]) não seguiu no mesmo caminho. Comparado com as antigas ocupações reprodutivas, e apesar das acusações de abolicionistas como Sheila Jeffreys (2008)Jeffreys, Sheila. The Industrial Vagina: The Political Economy of the Global Sex Trade. London, New York, Routledge, 2008., “o negócio da vagina” persiste relativamente não industrializado. Na vasta maioria dos lugares no Ocidente onde o sexo é abertamente vendido, as mulheres não são obrigadas a trabalhar por um determinado tempo em troca de um salário fixo. Mesmo naqueles países como Holanda e Austrália, onde a prostituição é regulamentada, as mulheres não trocam produção por capital: o trabalho sexual – seja num bordel, seja na pornografia, seja na dança erótica – ainda é largamente regulado pela lógica de piecework (trabalho por peça).

Como as antropólogas Susan Dewey (2011)Dewey, Susan. Neon Wasteland: On Love, Motherhood, and Sex Work in a Rust Belt Town. Berkeley, University of California Press, 2011. e Katherine Frank (2002)Frank, Katherine. G-Strings and Sympathy: Strip Club Regulars and Male Desire. Durham, Duke University Press Books, 2002. relatam no contexto dos clubes de strip nos EUA, as mulheres nesses estabelecimentos tendem a ser definidas como “empresárias independentes”. As trabalhadoras sexuais dos bordéis de Nevada e da Zona de Luz Vermelha de Amsterdã reportam situações semelhantes. O espaço de trabalho – cabines, booths, quartos de motel, a vaga na passarela de strip – é alugado pela trabalhadora ou pelo cliente. Alternativamente, a casa leva uma parcela do preço do programa. De qualquer maneira, a extração da mais valia acontece principalmente pelo controle desses espaços. Essa extração só fica economicamente viável por causa de leis que controlam, regulamentam, ou até proíbem a prostituição. Sem a limitação artificial desse recurso (zonas morais onde a venda dos serviços sexuais é tolerada e relativamente segura), é difícil ver como a prostituição poderia gerar capital. De qualquer maneira, o ritmo de produção nesses espaços geralmente está sob o controle da trabalhadora e, em muitos casos, o preço negociado também. Ou seja, a “indústria” do sexo parece ativamente repelir a proletarização, pelo menos em seu sentido tradicional, sendo muito mais inteligível como parte do gig economy que é hoje exemplificado por serviços como Über.

De fato, na maioria dos lugares, como no Brasil, a proletarização do trabalho sexual é criminalizada – eis quando a venda e/ou compra do sexo não é, em si mesmo e sob quaisquer condições, ilegal. Dada a crescente proletarização do trabalho reprodutivo em si, e a crescente confusão das esferas (re)produtivas, uma pergunta se coloca: por que é que o trabalho sexual permanece, no capitalismo tardio, como quase o único tipo de trabalho reprodutivo entendido como explorador por natureza? Por que tanta resistência à noção do reconhecimento da prostituta enquanto trabalhadora?30

Seria fácil responder “por razões morais e históricas”, mas isto não dá conta do fato de que outras formas de trabalho reprodutivo, igualmente feminizadas e não reconhecidas “por razões morais e históricas”, têm sido cada vez mais co-modificadas no último século e que isso tem acontecido em conjunto com uma crescente liberdade sexual feminina. Monique Prada tem resumido a questão de forma bem sucinta: “Que ‘moralidade’ é essa que prega que posso dar gratuitamente para quem quiser, quantas vezes quiser, e como quiser, mas que não posso cobrar um só centavo?” Ou, nas palavras da ativista sueca Pye Jakobsson, “Qual é a lógica moral que afirma que sou competente para trepar e competente para ganhar dinheiro, mas sou incompetente se eu ganho dinheiro trepando?”.31

Em primeiro lugar, é importante salientar que a venda de sexo tem sido, desde sempre, uma questão que tem dividido a voz política mais ativa das mulheres, o movimento feminista. Esse, em muitos casos, tem respondido “a questão da prostituição” em consonância com as respectivas classes sociais e cores de seus membros. Um exemplo claro disso pode ser visto já na luta sufragista pelo voto. Como Angela Davis (1981)Davis, Angela. Women, Race and Class. 1981. New York: Vintage Books. e Gail Beiderman (1995)Beiderman, Gail. Manliness and Civilization: A Cultural History of Gender and Race in the United States, 1860-1917. Chicago, University of Chicago Press, 1995. têm comentado, essa primeira onda do movimento feminista EUAmericano estava fatalmente embricado com os movimentos racistas e eugênicos que visavam o voto feminino como baluarte na defesa da “família branca”, imaginada como racialmente e moralmente pura. É menos lembrado, porém, o envolvimento desse feminismo incipiente com os movimentos de pureza social que, nos EUA, militavam para criminalização do consumo de bebidas alcoólicas e a prostituição. A revolucionária Emma Goldman, contemporânea da primeira onda, criticou duramente o moralismo pequeno burguês dos movimentos sufragistas hegemônicos da época, que muitas vezes empregavam seu poder eleitoral recém-conquistado para excluir mulheres consideradas “indecentes”. Goldman lembrava que, em Idaho, um dos primeiros estados americanos que liberou o voto para as mulheres, as sufragistas “descredenciaram suas irmãs da rua, declarando todas as mulheres de 'caráter suspeito' inaptas para o voto. 'Suspeito' não sendo interpretado, é claro, como a prostituição dentro do casamento” (Goldman, 1911Goldman, Emma. Woman Suffrage. Anarchism and Other Essays. New York & London, Mother Earth Publishing Association, 1911, pp.201-217.).

A antropóloga Laura Agustín leva essas observações mais além, demonstrando como o “resgate da mulher decaída” fornecia um caminho inicial para a profissionalização das mulheres “respeitáveis” da classe média:

Antes [do século XIX] não existia nenhuma classe de pessoas que entendeu sua missão como “ajudar” as mulheres da classe trabalhadora que vendiam sexo, mas durante a “elevação do social” [particularmente no final do século XIX], a figura da “prostituta” como vítima patética acabou dominando todas as outras imagens. Ao mesmo tempo, mudanças demográficas significavam que muitas mulheres precisavam e queriam ganhar dinheiro e sua independência, mas nenhuma profissão entendida como respeitável era aberta a elas. Simultânea com a criação da prostituta-vítima, as mulheres da classe média foram identificadas como particularmente aptas para elevar as prostitutas e demonstrar a elas o caminho para a domesticidade. Essas “assistentes” construíram uma nova identidade e esfera ocupacional para si mesmo, que era considerada respeitável e até prestigiosa (Agustín, 2005Agustín, Laura María. Helping Women Who Sell Sex: The Construction of Benevolent Identities. Rhizomes, 10, 2005 [http://www.rhizomes.net/issue10/agustin.htm – accessed on 2.2.2017].
http://www.rhizomes.net/issue10/agustin....
).

A identidade da mulher emancipada, branca e da classe média, então, foi em muitos casos construída não só em franca oposição à figura da prostituta como Outra, mas a utilizando como “matéria-prima” para a construção da nova figura da mulher pública respeitável, cuidadora profissional. Nesses discursos, a prostituta era ora apresentada como abjeta, ora como ameaçadora (particularmente no caso de mulheres entendidas como não brancas), mas sempre necessitando de uma mulher “do bem” como intercessora. Obviamente, grandes e importantes seções do campo político feminista não seguiam essas linhas de pensamento, mas elas eram (e ainda são) típicas daquela parte do feminismo que podemos considerar como “hegemônica” em termos gramscianos: o feminismo que Goldman criticava como produtor de mulheres “cidadãs firmes do Estado” e que Elizabeth Bernstein hoje qualifica como feminismo carceral (Bernstein, 2010Bernstein, Elizabeth. “Militarized Humanitarianism Meets Carceral Feminism: The Politics of Sex, Rights, and Freedom in Contemporary Anti-Trafficking Campaigns. Signs: Journal of Women in Culture and Society, special issue on Feminists Theorize International Political Economy, 36:1, pp.45-71.).

Além disso, é mister notar a continuidade da invisibilização e da feminização do trabalho reprodutivo e a articulação que isso ainda mantém com a reprodução da respeitabilidade do lar burguês idealizado. Como apontamos acima, a entrada e a permanência das mulheres da classe média no mercado de trabalho como profissionais têm sido subsidiadas pela crescente comodificação dos trabalhos de reprodução, que continuam a ser notavelmente feminizados. Todavia, como temos demonstrado acima e em outra ocasião (Blanchette; Silva; Camargo, 2014Blanchette, T.G.; Silva, A. P. da. Idealismo Alemão e o Corpo Alienável: Repensando a “objetificação” no contexto do trabalho sexual. In: Simões, Soraya et al. (ed.) Prostituição e Outras formas de Amor. Niteroi, EdUFF, 2014, pp.145-184.), o trabalho sexual muitas vezes se configura como alternativa viável para as mulheres que, outrossim, teriam que comodificar sua força de trabalho no “gueto colarinho cor de rosa”, fato salientado por quase todas nossas interlocutoras prostitutas. Em outras palavras, o trabalho sexual compete para mão de obra feminina com o trabalho reprodutivo comodificado, utilizado no sustento dos lares burgueses e das carreiras burguesas.

Talvez essa seja a raiz da persistente falta de imaginação revelada nos projetos para a “recuperação social” que pretendem “profissionalizar” as prostitutas como trabalhadoras na indústria de tecelagem, como garçonetes, cabeleireiras, manicures, e cozinheiras, ou como “micro-empresárias” (devidamente munidas com empréstimos de programas de micro-crédito) donas de carrinhos de cachorro quente ou participantes em coletivos de tricô.32 O senso comum burguês parece entender que o lugar “natural” dessas mulheres, enquanto trabalhadoras, é nas camadas mais baixas e feminizadas da economia, fazendo os trabalhos que a maioria de nossas interlocutoras prostitutas rejeitou em prol do trabalho sexual – trabalhos, nota-se bem, que essa mesma burguesia não sonharia para si mesmo.

Esse senso comum acredita que a prostituição é uma degradação, mas sente-se absolutamente confortável em usufruir os serviços prestados das atendentes de telemarketing, caixas e empacotadoras de supermercados e lojas, diaristas, empregadas de limpeza tercerizadas – empregos que pagam bem menos que o trabalho sexual e, não raro, produzem mais exploração e abuso que o negócio do sexo. Não é de surpreender, então, a incompreensibilidade das madames burguesas –feministas ou não – quando encaram mulheres pobres (e muitas vezes não brancas) que afirmem preferir vender sexo que lavar calcinha de madame, ou empacotar suas compras, fazer suas unhas, cuidar de seus filhos, e etc (Blanchette; Silva, 2011Blanchette, T.G.; Silva, A. P. da. Amor um real por minuto: A prostituição como atividade econômica no Brasil urbano. In: Correa, S; Parker, R. (org.). Sexualidade e política na America Latina: Histórias, intersecções, paradoxos. Rio de Janeiro, Sexual Policies Watch, 2011, pp.192-233.).

Outro fator nessa equação tem a ver com a natureza do sexo e os simbolismos que ainda se articulam a esse ato biológico no sistema sexo/gênero. Como Rubin adverte (1993), o sexo é extremamente naturalizado, apesar de ser um ato moldado pela intervenção social humana. Simbolicamente, ele continua a ser pensando primariamente em termos da reprodução, em seu sentido restrito. Apesar do grande avanço das tecnologias reprodutivas no último século, a relação sexual continua sendo o principal meio de gerar novos seres humanos e o ventre da mulher ainda é a sine qua non dessa atividade. Mesmo com a melhoria no controle da natalidade, a mulher continua a ser pensada, no contexto do ato sexual, como progenitora potencial. O grande problema da prostituição, nesse registro, em termos do sistema sexo/gênero do capitalismo, não seria que a venda do sexo objetifica a mulher - pois, como comentamos em outro lugar (Blanchette; Silva; Camargo, 2014Blanchette, T.G.; Silva, A. P. da. Idealismo Alemão e o Corpo Alienável: Repensando a “objetificação” no contexto do trabalho sexual. In: Simões, Soraya et al. (ed.) Prostituição e Outras formas de Amor. Niteroi, EdUFF, 2014, pp.145-184.), nada ameaça objetificar mais o ser humano que o trabalho proletarizado, mecanizado e mal remunerado -, mas sim ela alienar o sexo da reprodução, vendendo-o como produto em si, sem nenhuma referência à família (do ponto de vista patriarcal e conservador) ou ao prazer do indivíduo e o cuidado de si (do ponto de visto feminista, pró-sexo [Gregori, 2013Gregori, Maria Filomena. Pleasure and Danger: Notes on feminism, sex shops and S/M. In: CLAM, Sexuality, Culture and Politics - A South American Reader. Rio de Janeiro, CLAM, 2013, pp.390-405.]).

Enfim, o sexo que não é feito “por amor” ou por prazer permanece simbolicamente interditado às mulheres. Falando em termos amplos, mesmo após um século de vitórias feministas, no caso das mulheres, o sexo continua firmemente situado como atividade na esfera reprodutiva, seja da família ou do indivíduo. A única maneira culturalmente aceita da mulher trocar sexo por sustento e renda continua sendo no contexto de um relacionamento heterossexual e monogâmico. Talvez essa seja a razão principal pela qual o trabalho sexual é, enfim, o último dos trabalhos reprodutivos tradicionais que há de ser feito por amor.

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  • Zelizer, V. A. The Purchase of Intimacy. Princeton, Princeton University. 2005.
  • 1
    Apesar de este artigo ser escrito a quatro mãos, a protagonista do trabalho de campo que incentivou este texto e sua autora principal é a pesquisadora Ana Paula da Silva. Portanto, qualquer uso da primeira pessoa singular refere-se a essa autora, enquanto “nós” e as conjugações plurais referem-se a ambxs autorxs.
  • 2
    Via de regra, termos êmicos aparecem neste artigo entre aspas enquanto termos éticos chaves aparecem em itálicos.
  • 3
    Por trabalho sexual não entendemos tão e somente a prostituição em si, mas também toda e qualquer forma de trabalho em que alguém é remunerado por providenciar serviços sexuais, incluindo a dança erótica, a massagem erótica, fone sex., e a produção de pornografia. No contexto deste artigo, também significa o dever tradicional da mulher providenciar a seu parceiro (e particularmente seu marido) atenções sexuais/afetivas/eróticas. Por mais considerações teóricas, veja-se Leigh (1997)Leigh, Carol. Inventing Sex Work. In: Nagle, Jill (ed.). Whores and Other Feminists, New York, Routledge, 1997, pp.225-230. e Sutherland (2004)Sutherland, K. Work, Sex, and Sex-Work: Competing Feminist Discourses on the International Sex Trade. Osgoode Hall Law Journal, Vol. 42, 2004. Pp. 139-167,. Vale a pena salientar que, embora não concordamos com a teoria de McKinnon (1989) de que a prostituição é necessariamente estupro, nem essa autora – cujas obras formam uma das pedras fundamentais do feminismo radical – discordaria com a noção de que as mulheres, de fato, trabalham quando produzem atos/afetos sexuais. Afinal das contas, até o labuto feito em regimes de escravidão é trabalho.
  • 4
    Esse sentimento foi talvez mais bem expresso pela jornalista inglesa, Julie Burchill, que falou “Quando ganhamos as guerras do sexo, as prostitutas devem ser fuziladas como colaboradoras por sua traição a todas as mulheres” (apudMcNeill, 2010McNeill, Maggie. Traitors to Their Sex. The Honest Courtesan: Frank commentary from an unretired call girl, 9.8.2010 [https://maggiemcneill.wordpress.com/2010/08/09/traitors-to-their-sex/ – accessed on 23.7.2017].
    https://maggiemcneill.wordpress.com/2010...
    ).
  • 5
    Entre numerosos exemplos, veja-se as notas de Margaret Mead, “women's work and men's” (March 25, 1932. Typescript. Manuscript Division, Library of Congress [136c]), ou ainda mais notoriamente, o clássico de Bronislaw Malinowski, Argonautas do Pacífico Ocidental (1976 [1922]).
  • 6
    Veja-se, por exemplo, Zelizer (2005Zelizer, V. A. The Purchase of Intimacy. Princeton, Princeton University. 2005.:83,295); Boris (2014Boris, E. Produção e reprodução, casa e trabalho. Tempo Social, vol. 26, nº1, São Paulo, Depto. Sociologia-FFLCH/USP, 2014, pp.101-122.:104).
  • 7
    Quando usamos esse termo no sentido ético, delineado acima, ele aparece em itálico. Quando é usado para referenciar um conceito mais êmico, atrelado aos sentidos populares de um determinado lugar ou época, ele aparece entre aspas.
  • 8
  • 9
    Ana Paula da Silva.
  • 10
    Usamos a palavra “puta” para expressar a desconfiança moral sobre Mariazinha, que vai além da questão do trabalho sexual. Puta, enfim, é termo usado para indicar qualquer mulher cujo comportamento defronta as expectativas da família monogâmica e a dominação masculina. A palavra “coitada” aqui deve ser entendida como maneira polida de indicar que a Mariazinha fazia algo “impronunciável”: não dedicava suas atenções sexuais e afetivos a homem só, e, sendo assim, era uma mulher de moralidade questionável – uma puta, enfim. Se Mariazinha, de fato, aceitava dinheiro por serviços sexuais era de interesse secundário para minhas interlocutoras.
  • 11
    Aquelas leitoras que são interessadas em seguir esse debate podem começar com a análise Tarbuck (1983)Tarbuck, Ken J. Marx: productive and unproductive labour. Studies in Political Economy 12.1, 1983, pp.81-102. e a réplica de Miller (1984)Miller, Riel. A Comment on Productive and Unproductive Labour. Studies in Political Economy 14.1, 1984, pp.141-153..
  • 12
    Como Tarbuck observou, o Volume I de O Capital foi o único volume da obra que foi escrita, reescrita, editada e reeditada de acordo com os desejos de Marx quando ele ainda estava vivo. Volumes 3 e 4 (o último contido em Marx, 2013 [1863] foram escritos antes de Volume I (Tarbuck, 1983)Tarbuck, Ken J. Marx: productive and unproductive labour. Studies in Political Economy 12.1, 1983, pp.81-102..
  • 13
    Kollontai está sugerindo aqui o que deve ser feito com essas mulheres esposas e/ou prostitutas: devem ser transformadas, pelo Estado, em trabalhadoras escravas.
  • 14
    Tradução do texto é de Carlos Henrique, acessado no https://www.marxists.org/portugues/kollontai/1920/mes/com_fam.htm em 09.01.2017.
  • 15
    Por um excelente retrato – embora fictício – dessas atitudes e seus resultados, sugerimos o filme Virgem Margarida (2013), do diretor Licinio Azevedo, que retrata a prisão e a “reeducação” de mulheres “parasitas” após a Revolução Moçambicana de 1975. Por uma breve descrição da situação pós-revolução na Cuba, veja Wolfe (2014)Wolfe, Lisa Reynolds. Cuban Revolution: War on Prostitution. Cold War, 2014 [https://coldwarstudies.com/2014/03/30/cuban-revolution-war-on-prostitution/ – accessed on 25.7.2017].
    https://coldwarstudies.com/2014/03/30/cu...
    .
  • 16
    Os dados vêm de 2010, apud Alves et al., 2017.
  • 17
    Os dados vêm de 2012, apud Alves et al., 2017.
  • 18
    É importante notar que sexo não é só procriativo: ele também é reprodutivo da vida cotidiana, no sentido explorado por Rubin, seguindo Marx. Deixando de lado os argumentos sobre se o sexo é ou não é uma necessidade biológica, ele certamente é entendido, na vasta maioria das culturas capitalistas, como necessidade básica em termos históricos e morais. Portanto, como “cerveja é necessária para a reprodução da classe trabalhadora na Inglaterra, assim como o vinho é na França” (Rubin, 1993:4), certo nível de acesso às relações sexuais é necessário para reprodução do proletariado em quase todo o mundo. O “boom” dos últimos 40 anos de serviços e produtos sexuais direcionados às mulheres – a venda de produtos eróticos e a apresentação deles como forma de self-care (Gregori, 2013)Gregori, Maria Filomena. Pleasure and Danger: Notes on feminism, sex shops and S/M. In: CLAM, Sexuality, Culture and Politics - A South American Reader. Rio de Janeiro, CLAM, 2013, pp.390-405.; viagens “românticas” a destinos tropicais, destinados a criar encontros sexuais/afetivos (Piscitelli, 2010Piscitelli, Adriana. “Gringas ricas”: viagens sexuais de mulheres europeias no Nordeste do Brasil. Revista de Antropologia 53(1), 2010, pp.79–115.; Cantalice 2012Cantalice, Tiago. Feminismo, mercado de sexo e turismo: reflexões sobre as múltiplas faces e interpretações do sexo mercantil. Bagoas-Estudos gays: gêneros e sexualidades 2(03) [http://www.periodicos.ufrn.br/index.php/bagoas/article/view/2288. 2012].
    http://www.periodicos.ufrn.br/index.php/...
    ; Brennan, 2004)Brennan, Denise. What’s Love Got to Do with It? Transnational Desires and Sex Tourism in the Dominican Republic. Durham, Duke University Press Books, 2004.; e serviços de encontro (Beleli, 2015)Beleli, Iara. The Imperative of Images: Construction of Affinities through the Cuse of Digital Media. cadernos pagu (44), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2015, pp.91–114. – indica que essa necessidade não é tão somente masculina e que também cresce entre as mulheres.
  • 19
    A “economia de improvisos” ou – mais literalmente e pitoresco – a “economia da gambiarra”.
  • 20
    Estamos usando a expressão “radfem”, categoria êmica que indica autointituladas feministas radicais que buscam entender a prostituição a partir das leituras de autoras como Andrea Dworkin, Julie Bindel, Sheila Jeffreys, Catharine Mackinnon, Melissa Farley entre outras.
  • 21
    Criado pela quadrinhista Allison Bechdel, uma obra de ficção passa pelo teste Bechdel se, em algum momento, ela possui pelo menos duas mulheres que conversam entre si sobre algo que não seja um homem.
  • 22
    A nossa produção intelectual está disponível em nossos respectivos currículos no sistema Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/busca.do?metodo=apresentar
  • 23
    Obviamente, homens e pessoas trans- também vendem sexo. Nossa atuação, porém, tem sido quase exclusivamente entre mulheres cis- que vendem sexo para homens cis-.
  • 24
    Abolicionismo: a posição política que equaciona a prostituição feminina com escravidão e busca aboli-la, geralmente por meio da intervenção do Estado e da criminalização de parte ou de todos os atores envolvidos na venda e/ou compra do sexo.
  • 25
    Obviamente, existem mulheres negras e/ou pobres que se posicionam contra a prostituição, particularmente entre as organizações religiosas. Todavia, temos encontrado poucas dessas tomando posições públicas nos eventos onde a legislação sobre a prostituição e/ou o tráfico de pessoas têm sido discutidos. Como temos descrito em outro lugar (Blanchette; Silva, 2013)Blanchette, T.G.; Silva, A. P. The Myth of Maria and the imagining of sexual trafficking in Brazil. Dialectical Anthropology vol.37, n.2, 2013, pp.1- 21., esses eventos são majoritariamente compostos por pessoas brancas, da classe média, com alto grau relativo de educação formal.
  • 26
    Todos os nomes de informantes apresentados nesse trabalho são fictícias, para manter o anonimato.
  • 27
    O trabalho doméstico também aparece, às vezes, numa minoria desses discursos como “trabalho indigno”.
  • 28
    É importante notar que existem várias razões para vender o sexo e, também, que cada classe social tem suas prostitutas. Estamos falando aqui, principalmente, de mulheres que fazem da prostituição um meio de sustento – enfim, de trabalhadoras.
  • 29
    Importante ressaltar, nesse contexto, que as trocas sexuais “mercantis” feitas por mulheres da classe média para cima (particularmente se são brancas) geralmente não são reconhecidas como prostituição, sendo classificados como “namoros”, mesmo quando essas trocas envolvem quantias significativas de dinheiro e recursos (Piscitelli, 2004)Piscitelli, Adriana. Entre a Praia de Iracema e a União Europeia: turismo sexual internacional e migração feminina. In: Piscitelli, Adriana; Gregori, Maria Filomena; Carrara, Sergio (org.). Sexualidades e Saberes, convenções e fronteiras. Rio de Janeiro, Garamond, 2004, pp.250-270..
  • 30
    No Brasil, vale lembrar que o trabalho doméstico também sofre resistências para se regularizar e os avanços nessa área são ameaçadas de reversão, como Nadya Araujo Guimarães alerta (2016). No entanto, mesmo em nosso contexto nacional, contemplar a regularização do trabalho doméstico parece ser uma tarefa bem mais fácil que contemplar semelhante regularização do trabalho sexual.
  • 31
    Comunicações feitas aos autores em 3.8.2017.
  • 32
    Todos esses são projetos que temos encontrado que pretendem “integrar” trabalhadoras sexuais “ao mercado de trabalho”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    16 Jan 2017
  • Aceito
    13 Nov 2017
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